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Histórias de Vida da Formação Feminina

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Histórias de Vida da Formação Feminina

Ana Sofia António1 e António Teodoro2

1Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

2Chair Portuguese Comparative Education Society SPCE-SEC. Instituto da Educação, Institute of Education. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

Resumo. Neste texto procuramos explorar os propósitos e entender os sentimentos de alunas do curso de Formação Feminina da vertente de ensino Técnico-profissional. A relação entre a vida pessoal e profissional das meninas, agora mulheres, faculta-nos conhecer as finalidades deste curso, os percursos profissionais das suas alunas, os períodos marcantes e as ideologias presentes. Assim, demos maior importância, ao sistema de valores e aos sentimentos de três mulheres. Pensamos que este texto será́ importante para a compreensão dos objetivos do curso de Formação Feminina: a jovem forma-se no espaço público para desempenhar bem as suas funções no espaço doméstico. Mas também para a compreensão de como as histórias de vida constituem um importante instrumento de investigação, num tempo em que era atribuído à mulher a componente sentimental em oposição à eficácia e ao pensamento racional, em que à mulher cabia a responsabilidade de cuidadora.

Palavras-chave: Espaço público; espaço doméstico; histórias de vida; formação feminina; mestra. Life Stories of Female Training

Abstract. This study starts from the exploration of ideas and understanding of feelings expressed by female

teachers from technical education. By establishing a bond between the professional and personal lives of these women, we propose to appreciate their professional growth, as well as to identify decisive stages in their professional performance and their educational beliefs. We think that this study on female technical educators will be important to understand the objectives of female teaching - the young woman becomes skilled in the public arena so that she can successfully carry out her role in the domestic arena.

Keywords: needlework teacher; female training; public arena; domestic arena.

1 Introdução

Recordo isto. [...]a realidade é sempre mais romanesca do que a ficção. Daí que a ficção deva superar, não a realidade mas a ficção da realidade. Fuentes (2003)

Este texto foi escrito após o termo da investigação: A Construção da Profissão Docente no Ensino Secundário (1947-1974). Formações, Percursos, Identidades. Financiada no âmbito do Programa Sapiens 2000, pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, e trazido agora para a atualidade no ano em que se comemora os 45 anos da Revolução de abril, a qual teve um papel preponderante na rutura com o passado no que concerne à situação das mulheres. Salientamos que foi o Decreto-Lei

n.º 496/77, de 25 de novembro, que trouxe o termo da dependência do marido para a mulher casada

e aboliu o termo de chefe de família atribuída ao homem. Mas foi o mesmo documento regulador que anulou a relação entre o governo doméstico e a mulher. Assim, neste texto pretendemos explorar pensamentos e compreender sentimentos; com a finalidade de conhecer os enredos que abarcavam um curso destinado apenas ao género feminino, através de uma metodologia qualitativa com recurso sobretudo às histórias de vida, de modo a damos voz a mulheres numa narrativa.

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O artigo 66º do Decreto nº 37:029 do estatuto do Ensino Profissional Industrial e Comercial refere que os cursos industriais e comerciais se destinavam a preparar os alunos para o ingresso no

trabalho:

Os cursos industriais e comerciais de formação serão ministrados exclusivamente no período diurno a candidatos habilitados no ciclo preparatório, com o fim de lhes facultar a educação geral e técnica necessária para o ingresso nas carreiras da industria, do comércio e análogas.

Todavia, elaborámos o pressuposto de que o curso de Formação Feminina seria orientado também

para que as alunas adquirissem um saber feminino e que mais tarde fossem capazes de realizar

determinadas tarefas domésticas dando continuidade a uma estrutura económica-familiar defendida na época, no período do Estado Novo.

1.1 O curso de Formação Feminina

O curso de Formação Feminina desenvolvia-se nas Escolas Técnicas, por três anos, e destinava-se às alunas que concluíam o Ciclo Preparatório, no tempo do Estado Novo.

Este curso existia em todos os distritos de Portugal Continental, na Madeira e nos Açores, bem como nas então Colónias: Cabo Verde, Guiné, Angola, Moçambique e Índia. Alpiarça (1981) faz referência à representatividade deste curso juntos dos alunos: “os cursos de formação com maior frequência eram os de Comércio, Serralheiro, Montador Electricista e Formação Feminina, representando no seu conjunto 85% da frequência total” (p. 111).

Do currículo deste curso faziam parte disciplinas atribuídas, na época, ao género feminino como a economia doméstica, puericultura e noções gerais de enfermagem, de acordo com o artigo 73.º do Decreto n.º 37:029. Contudo, do currículo deste curso faziam também parte as disciplinas de português, francês, matemática, desenho, educação e religião moral, educação física e oficina. Totalizavam-se 40 horas semanais para o primeiro ano, 41 para o segundo e 42 para o terceiro ano. Após a conclusão do curso de Formação Feminina, as alunas tinham acesso a um dos cinco cursos de especialização: modista de vestidos, modista de roupa branca, modista de chapéus, bordadeira-rendeira ou debuxadora de bordados.

O despacho nº 6649/2005 de 31 de março de 2005 que “visa estabelecer a equiparação entre as habilitações académicas adquiridas no passado em estabelecimentos de ensino público, particular ou cooperativo, com actividade reconhecida pelo Ministério da Educação à data da emissão do respectivo certificado de habilitações, e o seu enquadramento em função dos planos de estudo em vigor”, permite-nos aceder à “relação dos cursos existentes no sistema educativo e equiparação de estudos“. Assim, nele consta que o curso de Formação Feminina é equiparado ao 9º ano de escolaridade, 3º ciclo do ensino básico. A par dos Cursos de Especialização que foram igualmente equiparados ao 9º ano de escolaridade.

Esta equiparação, ao 9º ano de escolaridade, pode trazer alguns constrangimentos às agora mestras sobretudo quando, no exercício da docência, a exercem com colegas detentores de licenciatura.

1.2 As Histórias de Vida

As histórias de vida de mulheres, ex-alunas do curso de Formação Feminina, constituem o objeto de estudo e o instrumento da investigação que deu lugar a este texto. Objeto de estudo porque as histórias de vida permitem-se ser estudadas enquanto instrumento de uma investigação com metodologia qualitativa. Contudo as histórias de vida são também instrumentos de estudo ao permitirem, ao investigador, aceder ao entendimento e às recordações destas mulheres. Pelo que,

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cada história de vida, de cada mulher, tem um valor uno, apesar de Joaquim (1997) referir que o conceito de feminino tem tido tradicionalmente um tratamento globalizante: “em relação ao mundo feminino, só muito recentemente se está a dar esta individualização, o que tem a ver, entre outras causas, com o acesso de camadas cada vez maiores da população feminina ao mundo do trabalho assalariado” (p. 180). Embora as histórias de vida sejam as protagonistas deste texto, no decorrer da investigação houve naturalmente a necessidade de recorrer à revisão de literatura de modo a encontrar algumas explicações em torno da problemática. Tal como à leitura dos diplomas legais para conhecer, por exemplo, o currículo e o acesso ao curso de Formação Feminina, os cursos de especialização e as saídas profissionais. Recolhemos as histórias da Carolina, da Rita e da Margarida que, depois de terem terminado o curso de Formação Feminina, iniciaram uma carreira profissional ligada a esse curso, mais concretamente ao ensino. Conquanto a Margarida nunca tenha usado o título de mestra. As três narradoras, ao contaram as suas histórias, aceitaram outrossim ser as promotoras deste texto. A escolha das narradoras ocorreu por oportunidades diferentes, mas sempre ligadas ao exercício da docência. Como investigadores, temos a crença de que os resultados seriam outras, caso as escolhas recaíssem em narradoras não relacionadas com a docência.

As histórias de vida são constituídas pelos acontecimentos vividos pelas narradoras, pela sua interpretação, mas, também pelo modo como cada um é capaz de expressar a narrativa (Antikainen et al.,1996). No que respeita à importância das histórias de vida para a investigação, Januário (1996) refere que estas "são aplicadas preferencialmente para determinar como os participantes se colocam e agem face a determinadas orientações educativas, acontecimentos ou inovações particulares, estudando em profundidade os motivos, pensamentos e crenças pessoais, constituindo uma autêntica biografia da vida profissional" (p. 63). A par de outro trabalho anterior, António (2002) entende que “o critério de grande número de professoras interrogadas, para justificar a qualidade da pesquisa, não fazia sentido” (p. 24). Aceitamos que uma investigação, cujo instrumento sejam as histórias de vida, não tenha um universo vasto. Pelo que, o seu valor se manifesta num universo individual e significativo. De igual forma, Tinoco (2004) refere que “a abordagem é compreensiva, privilegiando uma profunda análise do material recolhido” (p. 5)

Durante a narração, as relações familiares, o desenvolvimento pessoal, o meio social e cultural de cada narradora, tal como a sua carreira profissional e o seu próprio dia-a-dia vão dando a conhecer-se. Deste modo, as relações e as atitudes que cada uma das protagonistas tem consigo própria e com o mundo que a rodeia vão sendo progressivamente descultadas. Importa reconhecer que cada narradora tem uma complexidade ímpar. A dimensão pessoal de cada uma é condicionada por vários fatores: a idade, a experiência pessoal de vida e as relações familiares, por exemplo. Também importa reconhecer que a correspondência entre as experiências pessoais e as profissionais são definidas de diferente forma. Apesar de as três narradoras terem frequentado o curso de Formação Feminina, o modo como o experienciaram não é idêntico. Da mesma forma, é provável que parte das narrativas seja uma estrutura mental, não correspondendo, portanto, a um relato de um episódio do passado, tal como sucedeu, mas antes a construções que cada narradora faz da situação experienciada. Por pertencerem à narrativa que o emissor faz sobre a sua vida, os relatos precisam ser respeitados e compreendidos pelo recetor, por mais complexos ou estranhos que lhe pareçam. Como Bastos e Colla (1994) referem "a imagem perpassada pelo discurso não espelha a realidade mas assume a função de espelho [...]. Dessa forma, o discurso não representa o real, mas cria uma ideia do real" (p. 5). Cada história de vida pode pois ser entendida como um depoimento vivido, analisado e exprimido pela sua narradora. Porque as histórias de vida permitem a construção de dois tipos de conhecimento: informações sobre o acontecimento e reflexões subjetivas acerca desse mesmo acontecimento, a inquietação do investigador mantem-se quase em permanência. Laville e Dionne (1999) acrescentam que:

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A narrativa será forçosamente uma amálgama de fatos [sic] de toda natureza, de julgamentos, de interpretações, que interessará tanto ao historiador apaixonado por «pequena história» para esclarecer a «grande», quanto ao homem de letras, o psicólogo e, claro, as pessoas preocupadas com os fenômenos [sic] sociológicos e culturais (p.158) O uso das histórias de vida como instrumento de investigação suscitou-nos necessariamente várias dúvidas, as quais procurámos ultrapassar mediante a revisão de literatura. Fizemos uma recolha indireta, com a presença de um narratário, de histórias de vida parcelares, pois correspondem apenas à temática que envolve o curso de Formação Feminina. Embora tenhamos construído um guião para a recolha das narrativas, com o objetivo de garantirmos que todas as nossas questões seriam respondidas. Também “o guião representa uma condição necessária quando se pretende fazer histórias de vida cruzadas porque, ao dar uniformidade a todas as narradoras, evita que as comparações tenham inferências erradas” (p. 27). Não permitimos, todavia, que o guião limitasse as narrativas pois como refere Meneghel (2007):

Há um consenso entre os pesquisadores que trabalham com histórias de vida, que uma boa história “desborda” deixando vir à tona elementos sequer imaginados e surpreendendo o próprio narrador. A história de vida devolve a palavra aos silenciosos e aos esquecidos da história e projeta uma iluminação particular ao social; elas tiram a palavra dos lugares de silêncio e rechaçam um ponto de vista enquadrado em sistemas de pensamento exclusivos, redutores e totalitários. (p. 119)

1.3 A história da Carolina, da Margarida de da Rita

A recolha de cada história de vida foi gravada e as diversas observações anotadas, pois mais tarde poderiam ajudar a esclarecer a narrativa tal como o local onde ocorreu a recolha, a duração, as pausas, os gestos, risos ou as mudanças de olhar. Após a recolha, foi necessário passar o texto do oral ao escrito. A manipulação da informação é quase inevitável, nesta fase. Para atenuar essa situação, a transcrição foi realizada por nós e respeitámos sempre as palavras das narradoras, mesmo assim, tornou-se útil fazer algumas correções gramaticais apenas para facilitarem a leitura do texto. Numa fase posterior, procurámos organizar a informação recolhida e elaborámos grelhas de análise, para tal definimos naturalmente várias categorias. As observações que registámos na coluna da direita dizem respeito a uma análise dos excertos, não a quisemos prolongar para que as histórias de vida não perdessem valor ou passassem para segundo plano.

Nas histórias de vida procurámos conhecer a origem de cada mestra colocando questões em torno de: as razões que a levaram a entrar no curso; a importância que dão ao curso; o sentido que o curso teria atualmente e o impacto que o curso teve para as suas vidas (tabela 1).

Tabela 1. Excertos histórias de vida incluídas na categoria de análise origem da mestra.

Narradora Excerto da Narração Observações

Carolina Espera lá um bocadinho, acho que ainda continuo a escrever tudo na agenda. Tenho para aqui umas coisas escritas. Ainda esta noite acordei e lembrei-me: «-deixa cá pôr isto»1. A Formação Feminina 59, 60. E depois...andas para trás. Fiz a especialização 60, 61. Depois fui dar aulas em 61/ 62. Como aluna estive na Josefa de Óbidos. 61/62 comecei a dar aulas na Luísa de Gusmão e fiz o segundo ano da especialização lá2.

[...] foi uma pena terem acabado estas coisas.3 [...] Porque eu

1. Revela dar valor à recolha da narração. 2. Percurso. 3. Atribui valor ao curso de Formação Feminina. 4. Procura apoio em outros exemplos.

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acho que devia haver mais caminhos. Mais vias profissionais. Noutros países há...4

Rita Deixe ver... em 69, sim, há mais de trinta anos. Um ano depois acabou o curso na Marquês de Pombal. Sim, sim...[...] Primeiro estive na Ferreira Borges e depois vim para aqui5. Primeiro na Economia Doméstica. Depois o professor Calvet de Magalhães disse para eu vir para aqui6.

Não me lembro, espere lá! Eu tinha nove anos. Ainda as minhas colegas andavam comigo ao colo, de trancinhas a pentearem-me. Eu era muito pequenina, muito magrinha. [...] eu comecei, apanhava dezoitos e dezanove a desenho7 e “- porque é uma pena, diz ao teu pai para vir cá falar, porque tu tens tanto jeito para as artes, não deves ir para Físico-química” e eu disse: “ó pai, a Dona Belmira disse para ir lá falar com ela”; “não, tu é que sabes, a vida é tua, tu é que sabes se gostas ou não gostas” e eu segui mais pela Dona Belmira. Eu ia para uma coisa totalmente diferente8.

Então não era? Elas aprendiam tudo e mais alguma coisa9. Adoravam ir aos exames. Então aos meus...10 eu punha sempre uma bebida para acompanhar, percebes? Depois convidavam-se os professores para provarem, avaliarem, comia-se...11

5. Percurso 6. Reconhecimento por Calvet de Magalhães. Apoio. 7. Perspetiva da infância, imagem. Justificação para o ingresso no curso. 8. Reconhecimento. Relação emocional para justificar o ingresso no curso. 9. Valorização do curso. 10. Relação emocional, valorização. 11. Relação emocional positiva. Margarida Eu fiz a Formação Feminina em Sá da Bandeira, estive dois

anos lá e em Luanda. Acabei lá o curso.12 Nunca fui mestra13. Assim que acabei o curso comecei a trabalhar no Liceu Feminino, em Luanda. Aí dava Lavores e Trabalhos Manuais14.

Comecei o curso com quinze anos. Éramos mais ou menos da mesma idade. Eu não quis entrar para o curso de Formação Feminina, por isso te digo que não sou a pessoa mais indicada, sabes?15 Fui obrigada, pela imposição da minha família, especialmente do meu pai. E eu não gostei, pura e simplesmente. Quando eu quis desistir, eu não era maior, nessa altura a maioridade só se atingia com 21 anos. Quando eu quis desistir pedi aos meus tios, onde eu estava, «- faça-me aqui um requerimento para eu desistir do curso»; «- não senhor, não senhor, tu não tens idade para decidir e não podes ter mais do que a [prima]». Ela também estava na Formação Feminina, mas, mais adiantada do que eu, porque era mais velha16. O meu pai entendia que eu devia tirar um curso 17.

Porque é assim, a minha ideia era analista química, percebes? Mas tive azar com a primeira professora que tive e eu gostava de mexer naquelas coisas, ainda hoje gosto18. Mas depois disse logo: «Formação Feminina». E depois é assim, andava lá uma amiga minha de infância. E é isso mesmo que eu vou fazer, e fiz19. Mas inicialmente não era nada disso. Era mais a parte de farmácia, percebes? Era a minha ideia20.

Ajudou-me, eu casei em 71. Ajudou-me na culinária, porque nós tínhamos economia doméstica, e todas as semanas tínhamos de fazer uma refeição, um almoço e servi-lo. E aí ajudou-me um bocadinho21. [...]

A única coisa que realmente eu fiz e que gostei imenso e

12. Percurso. 13. Não identificação. 14. Percurso. 15. Desmotivação, ingresso no curso. 16. Imposição da família. Desvalorização do curso. 17. Importância da Escola. 18. Importância da professora para a definição do percurso. 19. Justificação para o ingresso no curso. Importância das colegas. 20. Desvalorização do curso. 21. Relação do curso com as atividades domésticas. 22. Desvalorização do curso. Relação do curso com as

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ainda hoje guardo - a minha filha tem 32 anos, eu acabei o curso com 20 e ela nasceu tinha eu 26 anos - eu fiz uma pecinha para o enxoval dela de bebé: uma camisinha, um vestidinho para o batizado, sei lá... fiz assim uma série de coisas. E no dia em que ela nasceu, foi exactamente essas as coisas que ela vestiu. Portanto, é a única coisa boa que eu guardo22.

atividades domésticas.

De igual forma quisemos aceder à relação de cada mestra tinha com os outros agentes educativos. Assim procurámos conhecer a relação que tinham com os outros professores; a existência de reuniões conjuntas e o modo como observavam as diferenças salariais (tabela 2).

Tabela 2. Excertos histórias de vida incluídas na categoria de análise relação com outros agentes educativos

Narradora Excerto da Narração Observações

Carolina Como mestra não havia problema nenhum. Por acaso, eu tinha uma diretora que era uma coisa horrorosa [...] Foi isto ... o que mais se notou é por isso que eu dou muito apoio às pessoas novas que aparecem na escola1, foi aqui na Ferreira Borges, na economia doméstica.

[...] Não, não. Por ser nova. Eram assim as pessoas para a minha idade, percebes?2 1. Aceitação dos professores, evidência da idade. 2. Reforço do mal-estar promovido pelas diferenças de idade.

Rita Ah! Eu nunca achei! Nunca achei! Eu sempre me dei bem com todos os professores, de todas as disciplinas. Nunca foi aquele género de me sentir inferiorizada fosse ao pé de quem fosse3. Porque, graças a Deus o que aprendi, aprendi bem. E só não sei dar aulas de línguas ou matemática moderna4 [...]

Era normal, com todos os professores da escola. Era como uma família. [...] Depois como era muito amiga do professor Calvet, era como uma filha para ele5. Quer dizer, era como uma família. [...] Depois da morte do professor... nunca senti nada.

Em E.V.T., de facto, são as professoras de desenho que só querem dar as medidas, porque não sabem fazer. Como não sabem fazer e não querem ficar abaixo de nós, elas é que querem dar aquilo [...]6. Nós tínhamos cinco horas de desenho por dia, tínhamos muito mais desenho do que agora têm7. Assim, como tínhamos de bordados e todas essas coisas [...].

Eu não me atrapalho nada a desenho, porque a gente sabe muito de desenho, só que os miúdos perdem muito8.

3. Relação positiva com outros colegas. 4. Valorização do curso, das suas aprendizagens. 5. Referência positiva

a Calvet de

Magalhães.

6. Desvalorização do saber dos outros colegas da disciplina. 7. Valorização do curso.

8. Valorização das suas competências.

Margarida Não, não. Tanto na Escola e como no Liceu. Nunca senti diferença nenhuma9. Aqui, em Portugal, sim. Os colegas de desenho, porque tinham um curso superior, não é? E nós não tínhamos, nessa altura [pausa] faziam realmente diferença, distinção10. E tratavam-nos assim até um bocadinho com diferença... 9. Relação com outros colegas. 10. Estatuto profissional justificado pela frequência universitária.

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Com o intuito de perceber o espaço de sala de aula onde as mestras administravam as suas aulas, questionámos se a oficina era uma sala da escola ou ficava fora da escola; se as mestras e as meninas usavam uma bata própria e se haviam registos num livro de ponto (tabela 3).

Tabela 3. Excertos histórias de vida incluídas na categoria de análise espaço sala de aula

Narradora Excerto da Narração Observações

Carolina Eu acho que sim. Ainda há pouco tempo, eu estava na loja da minha filha, em Carcavelos, estava lá uma amiga da empregada, e perguntou: - «senhora doutora, não se lembra de mim?» e eu disse: - «não, não me lembro de si; a sua cara não és estranha, mas não me lembro de si»; - «fui sua aluna». Tinha sido minha aluna na Luísa de Gusmão, quando eu tinha 19 anos, ora bem! Eu já não via a senhora há sei lá!

Agora não, mas até 2 anos atrás estive com as minhas alunas1. Muito melhor, agora há um ou outro que fica. [...] Era com todos. Havia mais ligação. Agora tenho um ou outro. Agora há alguém, ainda tenho um grupinho em que vamos todos almoçar... já não há2. 1. Relação com os alunos. Justifica através da narração de uma história. 2. Atitude saudosista na relação com os alunos.

Rita Como aluna foi muito bom, porque tive belíssimos professores3. Havia educação, que é uma coisa que havia nas escolas e que agora já não há, o que é uma pena. As pessoas eram muito educadas, tínhamos umas aulas... aprendíamos muito bem, o que agora é difícil. Havia muita disciplina, o que agora já não há [...]4.

Quando comecei a ser professora, no princípio antes do 25 de Abril ainda havia muita educação, aqui e na Ferreira Borges5. Primeiro estive na Ferreira Borges e depois vim para aqui. Primeiro na economia doméstica e depois o professor Calvet é que disse para eu vir para aqui6.

Usávamos bata, na Francisco Arruda era mesmo obrigatório usar bata, as batas tinhas umas molas com o emblema da escola. Se não tivéssemos aquilo não podíamos dar a aula. [...] Todas [professoras] tínhamos de usar. Sim, como agora temos de usar os cartões, dantes usávamos as batas7.

3. Valorização do curso através dos professores. 4. Atitude saudosista na relação com os alunos. 5. Atitude saudosista, marca com referência a duas escolas. 6. Referência a Calvet de Magalhães. 7. Referência à bata

usada por todas as professoras.

Margarida Não tem comparação! Também era porque era outra altura. Havia respeito! Havia educação! Brancos e pretos. Eu estudei com pretos. E muitos. E os meninos também eram muitos, muitos, muitos pretos8.

Quando começaram a vir, não sei se aqui foram mal recebidos, não sei! Agora temos muitos problemas com estes miúdos9! A maior parte já nasceu aqui!

8. Identificação de educação com respeito. Referência aos tempos em África. 9. Relação com os alunos.

Através das histórias de vida que recolhemos foi percetível que o curso de Formação Feminina permitiu à Carolina, à Rita e à Margarida a entrada no mundo do trabalho. Como Moura (1961) refere, o curso tinha dois intuitos diferentes: preparar as alunas para a entrada noutros cursos e para exercerem as funções de «donas de casa» tradicionais:

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O Curso de Formação Feminina tem como finalidade dar às alunas das Escolas Técnicas uma preparação que lhes permita ingressar nos Cursos de Especialização com a necessária bagagem; prepará-las para a admissão à Escola do Magistério Primário e Institutos Comerciais e Industriais ou, para aquelas que não pretendam frequentar estes cursos, apetrechá-las devidamente para o desempenho das suas futuras funções de donas de casa e mães de família. (p. 7)

Deste modo, verificámos os pressupostos de que o curso de Formação Feminina permitiria que as meninas se formassem no espaço público para desempenhar bem as suas funções no espaço doméstico, de salientar a voz da Margarida quando refere que fez uma pecinha para o enxoval do bebé. E, por outro lado, se formassem para poderem entrar no espaço público − como ocorreu com as três promotoras da investigação.

2 Concluindo

As questões de género são estudadas em diferentes áreas sendo a época atual, uma época em que as questões de equidade, de emancipação da mulher e até de violência sobre o próprio corpo da mulher parecem ainda longe de estarem resolvidas ou desatualizadas. Apesar de, nos dias de hoje as diferenças na educação dos géneros serem debatidas, não podemos esquecer que, no Estado Novo, às mulheres e aos homens era oferecida uma Escola diferente pois as funções que uns e outros desempenhavam no espaço doméstico e social eram também diferentes.

Quis a memória que os valores e os sentimentos de três mulheres fossem trazidos ao nosso tempo. Um dos valores das histórias de vida reside certamente em permitirem contrariar a tendência “da memória de determinados acontecimentos desaparecer com os seu últimos depositários” (António, 2002, p. 21).

A memória oral e as histórias de vida não têm tempo, porque as motivações da Carolina, da Rita e da Margarida permitem-nos clarificar os objetivos do curso de Formação Feminina, mas também perceber as suas expectativas numa fase em que as palavras de Osório e Martinho (1956) faziam sentido “a mulher formada, a que trabalha no escritório, na oficina ou na fábrica [...] não deve abdicar das suas atribuições de dona de casa.” (p. 2). As três narradoras que permitiram a construção deste texto serviram-se do curso de Formação Feminina para entrarem no espaço público, mesmo assim reforçamos as palavras de Margarida quando faz referência às peças de enxoval que costurou. Não podemos ignorar que, como defende Teodoro (2010), a passagem da educação do espaço familiar, ou doméstico, para o espaço público, como é a Escola, ocorreu ainda há relativamente pouco tempo. E certamente questionar o muito caminho que ainda nos falta percorrer para que a discriminação feminina seja definitivamente pertença do passado.

Referências

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António, A. (2004). O Outro Lado do espelho: Sentimentos, vivências, imaginários. Porto: Edições Asa. Bastos, M. H. C., Colla, A. (1994). Retratando Mestres: a idealização do professor na representação da

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Fuentes, Carlos (2003). Gabo: Memórias da Memória. Lisboa: Dom Quixote.

Januário, Carlos. (1996). Do Pensamento do Professor à Sala de Aula. Coimbra: Livraria Almedina. Laville, C., Dionne, J. (1999). A construção do Saber: Manual de Metodologia da Pesquisa em Ciências

Humanas. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul.

Meneghel, S. (2007). Histórias de Vida - notas e reflexões de pesquisa. Athenea Digital, 12, 115-129. Osório, J. F. S., Martinho, F. O. (1956). Apontamentos de Economia Doméstica. Lisboa.

Teodoro, A. (2010). Educação, Globalização e Neoliberalismo. Os novos modos de regulação

transnacional das políticas de educação. Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas.

Tinoco (2004). Histórias de vida: um método qualitativo de investigação. Disponível a 8 de março de 2019, em http://www.psicologia.pt/artigos/textos/A0349.pdf

Referências

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