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O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais : o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal

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Academic year: 2021

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O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais:

o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal

Silvia Valencich Frota

Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura, especialidade de Cultura e Comunicação

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O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais:

o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal

Silvia Valencich Frota

Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura, especialidade de Cultura e Comunicação

Júri:

Presidente: Doutora Maria Cristina de Castro Maia de Sousa Pimentel, Professora Catedrática e Membro do Conselho Científico, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Vogais:

- Doutor Fernando Ramallo Fernández, Professor Titular, Facultade de Filoloxia e Tradución da Universidade de Vigo – Espanha:

- Doutora Marta Susana Filipe Alexandre, Professora Adjunta Convidada, Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria;

- Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia, Professor Associado com Agregação, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

- Doutora Maria Teresa Barbieri de Ataíde Malafaia, Professora Associada, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

- Doutor Manuel Amador Frias Martins, Professor Auxiliar com Agregação, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Universidade de Lisboa têm licença não exclusiva para arquivar e tornar acessível, nomeadamente através do seu repositório institucional, esta tese, no todo ou em parte, em suporte digital, para acesso mundial. A Faculdade de Letras da Universidade Lisboa e a Universidade de Lisboa estão autorizadas a arquivar e, sem alterar o conteúdo, converter a tese ou dissertação entregue para qualquer formato de ficheiro, meio ou suporte, nomeadamente através da sua digitalização, para efeitos de preservação e acesso.

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identificação e, em especial, de identificação com uma certa identidade nacional. Neste estudo, procura-se refletir sobre os diferentes modos como a relação entre língua e identidade nacional é construída no âmbito do debate sobre a adoção do Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa, de 1990. Tal acordo, assinado por diferentes países, todos membros da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa), propõe, entre outros objetivos, a promoção da unificação da grafia do português nos diversos países que o têm como língua oficial. Com essa preocupação em mente, são analisados artigos de opinião sobre o acordo ortográfico, publicados pelos jornais portugueses, em 2012.

O enquadramento teórico-metodológico adotado é o da análise do discurso, em sua vertente crítica, entrelaçado com os princípios da linguística sistêmico-funcional. As identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas numa perspectiva não essencialista, que se fundamenta nos diferentes processos de contrução discursiva nos quais a língua desempenha um papel relevante.

Parte-se de uma breve retrospectiva do desenvolvimento dos nacionalismos na Europa, centrada no papel da língua, para, a seguir, identificar-se o contexto português, naquilo que interessa a este estudo. Passando-se à análise propriamente dita, identifica-se e analisa-se um conjunto de representações associadas à ideia de pátria, nação, soberania, povo, cultura, identidade e matriz, que são, neste estudo, caracterizados como “marcadores identitários”. Também as relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais e supranacionais são levadas em conta, num esforço de identificação de simetrias e assimetrias, de movimentos de aproximação ou afastamento e de afirmação de força ou fraqueza, que, em alguma medida, representam tentativas de caracterização de um “eu” e de um “outro”, sempre marcadas por relações de poder.

Palavras-Chave: identidade nacional, cultura nacional, língua nacional, acordo

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in particular, identification of a certain national identity. In this study, we try to realize the different ways the relationship between language and national identity is built in the debate on the adoption of the Portuguese spelling agreement (Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa de 1990). The agreement that is signed by different countries all of them members of the CPLP (Community of Portuguese speaking countries) aims to promote the unification of Portuguese spelling among others objectives. Considering this, opinion articles on the spelling agreement published by the Portuguese newspaper in 2012 are analyzed.

The theoretical and methodological framework adopted is that of discourse analysis, in its critical perspective, intertwined with the principles of systemic functional linguistics. National identities, in this context, are understood within a non-essentialist perspective that is based on different discursive construction processes in which language plays an important role.

The starting point is a brief review of the development of nationalisms in Europe, centered on the role of language. Then the Portuguese context is characterized as far as it is considered relevant to this study. Turning to the analysis itself, a set of representations, which are characterized as "identity markers" in this study, are identifyied and analyzed. They are associated with the idea of homeland, nation, sovereignty, people, culture, identity and matrix. Also the relationship between Portugal and other national and supranational entities are taken into account in an effort to identify symmetries and asymmetries, approach or distance movements, strength or weakness positions, which, to some extent, represent attempts to define an "I" and an "other" and always embody power relations.

Keywords: national identity, national culture, national language, spelling agreement,

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chegasse ao fim: ao Manuel Frias Martins, pela primeira conversa sobre língua e identidade, ainda antes do meu ingresso na FLUL; à Urbana Pereira, pela calorosa presença e pelos constantes cuidados ao longo deste percurso; à Maria Krebber, pela amizade e cumplicidade, que muito amenizaram as inseguranças, a solidão e as angústias que acompanham um projeto como este. Por fim, e sobretudo, agradeço ao Carlos Gouveia pela orientação, pelo apoio e pela amizade sempre.

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Introdução………. 3

PARTE I Capítulo 1 – As identidades nacionais na Europa do século XXI ……… 17

Capítulo 2 – Língua e identidade nacional……… 47

Capítulo 3 – A construção discursiva das identidades nacionais……….. 77

PARTE II Capítulo 4 – Contextualização e apresentação do corpus……….. 105

Capítulo 5 – Análise dos marcadores identitários………. 129

Capítulo 6 – Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal 159 Capítulo 7 – Reflexão final……… 189

Conclusão……….. 211 Apêndice A……… 219 Apêndice B……… 223 Apêndice C……… 239 Apêndice D……… 249 Referências……… 263

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Quadro 4.2 – Total de artigos publicados por autor 115

Quadro 4.3 – Dispersão dos artigos ao longo do ano 116

Quadro 4.4 – Posição assumida face ao AO90 116

Quadro 4.5 – Síntese dos argumentos 124

Quadro 5.1 – Marcadores identitários 131

Quadro 5.2 – Marcadores identitários e contabilização de ocorrências 132

Quadro 5.3 – Pátria 132

Quadro 5.4 – Relação entre pátria e língua 134

Quadro 5.5 – Nação 135

Quadro 5.6 – Acepções de nação 136

Quadro 5.7 – Classificação de nacional/is 138

Quadro 5.8 – Povo 141

Quadro 5.9 – Classificação de povo 142

Quadro 5.10 – Cultura 145

Quadro 5.11 – Classificação dos usos da palavra cultura 145

Quadro 5.12 – Classificação de cultural/is 147

Quadro 5.13 – Identidade 149

Quadro 5.14 – Identidade: língua x ortografia 150

Quadro 5.15 – Relações de identidade 150

Quadro 5.16 – Matriz 152

Quadro 5.17 – Representações de matriz 154

Quadro 5.18 – Marcadores identitários: quadro-resumo 155

Quadro 6.1 – Situações de comparação e relações comparativas simples ou complexas 162

Quadro 6.2 – Relações simétricas ou assimétricas 162

Quadro 6.3 – Brasil como interveniente frequente no total de relações de comparação 163 Quadro 6.4 – Intervenientes que figuram nas relações de simetria 164 Quadro 6.5 – Brasil como interveniente frequente nas relações de simetria 164 Quadro 6.6 – Estratégias de representação do Brasil quando um dos intervenientes, ao

lado de outros países de língua portuguesa: referências explícitas e implícitas 165 Quadro 6.7 – Estratégias de representação do Brasil quando único interveniente:

referências explícitas e implícitas 166

Quadro 6.8 – Classificação das representações implícitas do Brasil quando único

interveniente 167

Quadro 6.9 – Relações simétricas: convergentes e divergentes 169 Quadro 6.10 – Relações simétricas convergentes e divergentes: Brasil e outros

intervenientes 169

Quadro 6.11 – Relações assimétricas: intervenientes 172

Quadro 6.12 – Relações assimétricas: o Brasil como interveniente 173 Quadro 6.13 – Relações assimétricas: outros intervenientes 173 Quadro 6.14 – Relações assimétricas: forças e fraquezas 174 Quadro 6.15 – Portugal no pólo forte: os PALOP como principais intervenientes 174 Quadro 6.16 – Portugal no pólo forte: Timor, Brasil e Espanha intervenientes 175

Quadro 6.17 – Relações assimétricas: quadro geral 175

Quadro 6.18 – Portugal no pólo fraco: principais intervenientes 176 Quadro 6.19 – Relações de simetria e assimetria: quadro-resumo 185

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No final do século passado, apregoaram seu fim, mas, nesta segunda década do século XXI, os Estados-Nação – e os nacionalismos que estão em suas respectivas origens – ainda figuram como intervenientes relevantes neste jogo de azar que cria, desenvolve e regula mercados globais de consumo de ideias, valores, produtos, capitais e, também, de pessoas, e que constitui uma arena internacional de atuação social em sentido amplo.

No contexto europeu, aqui equiparado ao contexto da União Europeia, os nacionalismos se fazem presentes na manutenção da divisão política dos Estados-membros em unidades nacionais, nos discursos de afirmação e proteção de uma língua ou de uma cultura nacional, nas plataformas políticas defendidas principalmente pelos partidos de extrema-direita, nas campanhas de incentivo ao turismo, nas disputas esportivas internacionais, nos concursos televisivos como o Eurovisão, entre tantos outros casos e situações.

Os exemplos acima corroboram, em alguma medida, a tese de que os chamados Estados-Nação ainda são importantes intervenientes no cenário internacional, mas não implicam afirmar que os papéis desempenhados por eles não se tenham transformado ao longo das últimas décadas. Como regra geral, parece haver uma maior concorrência entre as situações em que o Estado-Nação age sozinho e aquelas em que atua em concerto com outros Estados-Nação, ou seja, cada vez mais, os Estados são chamados a atuar como membros de uma instituição ou organização internacional, ou nesse contexto, do que a agir em nome próprio e individual.

Essas transformações do papel dos Estados-Nação, e dos nacionalismos propriamente ditos, está diretamente relacionada com os diferentes processos de globalização que marcaram especialmente o século XX e que seguem se desenvolvendo na atualidade. Tais processos extrapolam as fronteiras nacionais, mas não necessariamente prescindem da ideia de nação. Pelo contrário, muitas vezes parecem se valer dela, quando, por exemplo, se organizam em

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das diferentes e diversificadas culturas nacionais. Nesses cenários, a unidade de negociação é a unidade nacional, embora o resultado que se busque alcançar seja, em geral, muito mais amplo.

Nesse mesmo sentido, mas no âmbito específico das políticas adotadas pela união europeia, parece haver um esforço recorrente, com vistas a assegurar uma suposta soberania ou independência nacional – entendidas, neste contexto, como direito à autodeterminação – que, em geral, surge como um valor a ser protegido e preservado. Com tal afirmação, no entanto, não se pretende corroborar essa tese nem polemizar em torno dela. Por ora, basta reconhecer a existência de movimentos em sentidos diversos: os que afirmam que a cautela adotada na definição das políticas europeias no que diz respeito à proteção das soberanias nacionais pode ser entendida como desejável e saudável; os que a consideram, não mais desejável, mas necessária e incontornável; ou, ainda, os que entendem tal cuidado como excessivo e prejudicial para a construção de uma identidade europeia comum.

Nesse contexto de transformação dos nacionalismos, no entanto, seja essa transformação conducente ao fim das nações ou não, interessa agora verificar o que acontece com as chamadas identidades nacionais. Pensando-se especificamente nos critérios identitários, isto é, nos elementos que, no passado, e em especial, ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, foram frequentemente associados à construção das identidades nacionais – como os conceitos de território (e fronteira), soberania, etnia (e raça), povo, história (e memória) e língua entre outros –, interessa refletir sobre seus respectivos usos nos dias de hoje.

A noção de território nacional como sendo o espaço físico onde se localiza espacialmente a nação e que delimita sua área de atuação, associado à ideia de fronteira, ou seja, de limites físicos e de controlo de acesso ao território nacional, é fortemente impactada pelo desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação que redefinem, de certo modo, a própria noção de espaço, que agora se amplia para dar conta do mundo digital e do mundo virtual.

Além disso, sob pressão dos processos de globalização que conduzem ao estabelecimento de novos mercados e novas solidariedades, os quais, em muitos casos, concretizam-se na criação de entidades multi, inter ou transnacionais, essas fronteiras se deslocam para além dos estados nacionais, muitas vezes instaurando uma zona cinzenta, de indefinição entre o território de um país e o do país vizinho. Exemplo dessa situação é a União Europeia e o seu esforço de abertura e de livre circulação interna, levado a cabo pela

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5 transparentes ou mesmo invisíveis.

A ideia de soberania da nação, por sua vez, como direito de autodeterminação e de livre arbítrio, ou seja, como o reconhecimento da sua capacidade de e da sua autoridade para tomar decisões no âmbito do seu território, sem sofrer ingerências externas, é relativizada pelo contexto sócio-econômico global, que instaura um novo jogo de forças e interdependências. Apenas como exemplo dessas transformações, pode-se citar duas situações recorrentes: a globalização dos mercados financeiros e a globalização dos meios de comunicação de massas.

Com a mobilidade do capital – que se traduz na internacionalização das unidades de produção, das instituições financeiras, assim como dos mercados de consumo entre outros – e a consequente criação de novos e ampliados fluxos que transcendem os limites e o controlo quer das nações de origem, quer das nações de destino, estabelece-se uma forte relação de interdependência caracterizada por maior instabilidade e riscos de contaminação entre países. Nessas condições, se é verdade que uma crise econômica pode ser deflagrada pela ação (ou omissão) de um único país, dificilmente pode ser contornada sem o consórcio de muitos outros, ameaçados pelos riscos de contágio.

Na perspectiva da internacionalização dos meios de comunicação, que implica, por exemplo, a circulação de imagens e mensagens em âmbito global – muitas vezes em tempo real, desafiando o controlo e a censura locais –, estes concorrem para a construção de reputação e imagem dos diferentes sujeitos nacionais, interferindo nas relações estabelecidas entre nações, nas negociações internacionais, no desempenho financeiro e influenciando, inclusive, decisões de natureza política.

Também o conceito de raça sofre um profundo revés, em parte em função da sua apropriação pelos regimes totalitários da primeira metade do século XX, com destaque para o nazismo, e das dramáticas consequências que acarretou. Posto de lado o conceito de raça, com seu sentido pejorativo e sua carga negativa, é preciso encontrar uma maneira de suprir sua ausência, corrigir seus defeitos.A ideia de etnia, como indicativo de uma origem comum, é a que melhor parece corresponder a tais necessidades.

Mas também o conceito de etnia é transformado, como bem ilustra a reflexão de Fredrik Barth (1998) sobre o tema. O autor apresenta o conceito de etnia, não mais como um fato consumado, isto é, como uma caraterística inata e irrevogável de um indivíduo ou de um grupo, mas sim como o resultado de um processo de seleção e descarte de traços avaliados positiva ou negativamente, ou seja, também como resultado de um processo de construção. O

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alguma medida, volátil e passível de transformação ao longo do espaço-tempo.

Nesse mesmo sentido, a noção de povo como os autores, isto é, os criadores originais de uma nação e, ao mesmo tempo, como os seus legítimos e autênticos herdeiros, também é reconfigurada à luz dos processos de globalização e da intensificação dos movimentos migratórios. Multiplicam-se, assim, os deslocamentos, modificando-se os desenhos das cidades, que, aos poucos, transformam-se em espaços multiculturais.

Pessoas de diferentes nacionalidades convivem num mesmo espaço, interagem, estranham-se, identificam-se, num constante movimento de atração e repulsa. Os direitos de cidadania – conquistados pelos antes estrangeiros e agora cidadãos – ampliam a capacidade de ação do indivíduo, equiparam o que antes era desigual, atenuam ou mesmo apagam as diferenças. Em muitos países, partidários do jus solis, filhos de pais estrangeiros, nascidos no país são considerados nacionais ou, ao menos, têm essa possibilidade ao seu dispor, alimentando em alguma medida o cenário de concorrência entre os conceitos de povo (no viés de uma partilha étnica) e cidadão (no viés de uma partilha de direitos), que se confundem em certas situações e constrastam em outras.

A história, com sua forte carga temporal e de continuidade, também é reinventada, ao lado da ideia de memória. A história deixa de ser o resgate ou o registro de fatos e acontecimentos do passado e tranforma-se numa narrativa, isto é, numa versão motivada, parcial e sempre inacabada desse passado. Torna-se, desse modo, objeto de disputa entre indivíduos, instituições, ideologias, governos – e o mesmo pode-se afirmar da memória, seja individual, seja coletiva.

As relações de poder entretecidas nessas narrativas de história-memória têm, afinal, sua existência reconhecida, mesmo que nem sempre seus conteúdos sejam facilmente identificáveis. Essa história-memória perde seus contornos essencialistas e afirma-se como invenção. Agora, portanto, não mais se presta com tanta facilidade à comprovação incontestável da existência secular de uma nação, recurso muito frequente no passado dos nacionalismos.

Finalmente, resta referir o papel da língua como elemento de identificação, isto é, o recurso à língua como critério de nacionalidade, que ainda parece estar em vigor. A associação entre uma língua e uma nação está muitas vezes presente, por exemplo, nos discursos de proteção à língua, seja ela minoritária ou não, contra o risco de extinção – ameaçada por línguas mais fortes, como o inglês – ou de ser maculada ou contaminada por expressões e palavras estrangeiras. Nesse sentido, não são incomuns iniciativas, às vezes no

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multas pecuniárias por erros gramaticais – caracterizados como atentados contra a língua – em contexto de publicidade ou de circulação pública de informação.

Também reforçam essa relação entre língua e identidade os discursos que atribuem valor cultural e econômico às línguas, como, por exemplo, as iniciativas que procuram reunir países que partilham uma mesma língua em busca, entre outras, de vantagens comerciais e políticas, como a lusofonia ou a francofonia. Nesse contexto, a língua é entendida como patrimônio ou bem passível de ser possuído e rentabilizado.

A associação entre língua e cultura também contribui para a valorização do papel das chamadas línguas nacionais como força que une os indivíduos nacionais e os diferencia dos estrangeiros ao estabelecer uma relação entre a língua e um certo caráter nacional, isto é, um suposto padrão de comportamento cristalizado em representações, em geral idealizadas e arquetípicas, que muitas vezes exercem grande influência nos processos de autoidentificação e também no modo como a nação é percebida pelos outros.

Mas, se o caráter identitário da língua parece persistir na Europa atual, não se pode negar que o contexto de uso das línguas se tenha transformado, até porque todos os critérios acima indicados estão ligados e são interdependentes, fazendo com que a transformação de um afete de algum modo os demais. Com os processos de globalização, o desenvolvimento das tecnologias de comunicação, o aumento da mobilidade de dados, bens e pessoas e a multiplicação das migrações, o contato entre línguas também se intensifica. A língua única, como valor, perde espaço para a diversidade linguística – agora, é esta última que é valorizada. O indivíduo monolíngue perde potencial competitivo face ao indivíduo plurilingue tanto nos mercados de trabalho como na sociedade em geral.

No contexto europeu, o multilinguismo é a ideologia linguística adotada, embora não isenta de contestação, o que significa dizer que a identidade europeia se constrói em torno da diversidade linguística e não em torno da construção de uma só língua para a Europa (cf. a Resolução do Conselho da União Europeia de 21 de novembro de 2008, sobre uma estratégia europeia a favor do multilinguismo). Mas, nesse cenário, as línguas também podem assumir diferentes papéis. Com o esbatimento das fronteiras físicas e a virtualização e fragmentação do espaço no interior do continente, as línguas parecem se sobressair como uma espécie de

barreira natural, a separar ingleses, franceses, portugueses ou alemães. Em reforço a tais

discursos, a língua ainda figura como um importante canal de acesso ao exercício pleno da cidadania, quando não à aquisição primeira dessa cidadania em muitos casos.

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língua e nação, ou melhor, no modo como o indivíduo se vale da língua para construir sua identidade nacional ou a de outrem. O objetivo desta pesquisa é refletir sobre esse tema no contexto da União Europeia de hoje. Será que o potencial da língua como elemento de identificação nacional realmente permanece? E, se permanece, mantém-se inalterado ou se transforma? Nesse contexto, o que se pode dizer sobre a relação entre língua e identidade nacional no âmbito do projeto europeu: ela surge como um empecilho para a construção de uma identidade europeia ou consiste numa estratégia relevante para a sua construção?

Com tal objetivo em mente, analisa-se o caso de Portugal, às voltas com um acordo ortográfico (AO) que visa uniformizar a grafia da língua entre os países lusófonos e que tem suscitado polêmica no país, parte dela em torno de questões de identidade. Para desenvolver essa reflexão, estuda-se o caráter identitário das discussões sobre o AO, a partir da análise de artigos de opinião publicados na mídia impressa em Portugal.

A presente pesquisa está dividida em duas partes. Na primeira, que reúne os capítulos de 1 a 3, constrói-se o enquadramento teórico e metodológico que servirá de norte para o desenvolvimento do estudo do caso português e, ao mesmo tempo, de contraponto para a análise dos dados obtidos. Na segunda parte, que reúne os capítulos de 4 a 7, desenvolve-se a análise de caso propriamente dita.

No primeiro capítulo, faz-se um recorte das teorias sobre as identidades a fim de se delinear aquelas que são objeto deste estudo: as identidades nacionais. Parte-se da perspectiva dos estudos culturais sobre o tema, explorando-se seu caráter transdisciplinar e, especialmente, as relações entre identidade e modernidade, marcadas nos tempos atuais pela ideia de crise, fragmentação e multiplicação, ou seja, discute-se o fim da identidade singular e inteira, por um lado, e a configuração de um cenário de concorrência entre identidades diversas, que ora se completam, ora se contradizem ou se anulam.

Dentre as identidades, desenvolve-se o conceito de identidade nacional, traçando-se uma breve retrospectiva da história dos nacionalismos na Europa especialmente a partir do século XIX. A ideia de nação como comunidade imaginada, proposta por Anderson (2006), é o pano de fundo contra o qual se desenha essa identidade, num processo que mobiliza diferentes critérios como os conceitos de raça, etnia, língua, território, povo, soberania, cultura, história, memória entre outros.

A seguir, explora-se a relação entre identidade nacional e cultura – conceitos que, em certos momentos, parecem se sobrepor. A própria definição de Anderson (2006: 4) de nacionalismo como sendo um tipo especial de artefato cultural já aponta para essa

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visões de mundo e tantos outros elementos que podem ou não fazer parte dessa ideia de cultura nacional serve também aos processos de identificação individual e coletiva, de classificação de si mesmo e de outrem, de reconhecimento da igualdade e da diferença.

Por fim, essa reflexão sobre as identidades em geral e as identidades nacionais especificamente debruça-se sobre a atualidade dos processos de globalização e seus impactos sobre o conceito de nação e de identidade nacional. Tal contexto é em muito devedor da ideia de que os nacionalismos estariam perto do seu fim, isto é, de que já não seriam a grande força de transformação social que foram ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, como destaca Hobsbawm (2012).

As identidades nacionais são ainda o foco do segundo capítulo, mas, desta vez, a ênfase da análise recai especificamente sobre o papel da língua em sua construção. Segundo Hobsbawm (2012), é nas décadas finais do século XIX que a língua adquire papel de destaque na construção dos nacionalismos, configurando, assim, uma espécie de nacionalismo linguístico. A máxima uma língua, uma nação conquista terreno e impulsiona a construção das chamadas línguas nacionais, às quais é associado um ideário de pureza e superioridade em relação às demais línguas, ou versões dela, faladas num dado território.

Mas, se a princípio parece ser a qualidade da língua como meio de comunicação e expressão que se destaca, numa reflexão mais aprofundada sobre as identidades nacionais o que chama a atenção é a forte carga simbólica que as línguas adquirem. Nesse sentido, interessa analisar a ideia de língua como símbolo da nação e dos nacionalismos; de língua como matéria-prima do indivíduo nacional, como edificadora de mundos, ou melhor, de representações dele, conformando o espaço de ação da nação e do seu povo.

No espaço de interação entre língua e identidade nacional acima delineado, o conceito de cultura também se faz presente. Aliás, muitas vezes parece difícil delimitar os campos de ação de cada um desses conceitos – língua, identidade nacional e cultura – dada a forte correlação estabelecida entre eles. A língua é identificada como elemente essencial da cultura nacional, contribuindo para sua formação e constituindo-se no interior dessa cultura simultaneamente. Cabe também à língua a importante função de transmissão dessa cultura nacional – no bojo da qual se engendram e manifestam as identidades nacionais –, como se a língua carregasse, isto é, transportasse cultura.

Nesse contexto, e levando-se em conta o projeto europeu, interessa refletir sobre essa relação entre língua, identidade e cultura no âmbito da diversidade linguística, ou melhor, no âmbito da ideologia ou política linguística adotada pela Europa: o multilinguismo. Na

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carregam cultura e se as identidades são dependentes desse contexto cultural, é possível construir uma identidade singular para a Europa? É com essa discussão que se encerra o segundo capítulo.

O terceiro capítulo é dedicado ao enquadramento teórico-metodológico propriamente dito, que tem como ponto de partida a noção de discurso. Parte-se da proposta de Foucault (1997), isto é, da ideia de discurso como modo de organização de significados, para explorar o seu papel como elemento estruturante de e estruturado por relações sociais, transpassado por relações de poder e disputas ideológicas.

De entre a amplitude de discursos possíveis, destacam-se aqueles produzidos e veiculados pela mídia, isto é, os discursos midiáticos, uma vez que são estes os que constituem o corpus desta pesquisa. Considerando-se as funções desempenhadas pela mídia nas sociedades modernas e as relações sociais que ela estabelece e inspira, o discurso midiático parece sobressair como elemento formador de opinião pública, conquistando, assim, uma certa relevância.

Nesse contexto, as propostas de investigação apresentadas pela análise do discurso ganham destaque e são elas que orientam esta investigação. A vertente da linguística sistêmico-funcional é central nesta abordagem e serve como diretriz para o levantamento e análise dos dados obtidos a partir de uma seleção de artigos de opinião publicados sobre o acordo ortográfico nos jornais portugueses ao longo de 2012.

Por fim, explicita-se a posição assumida no estudo das identidades nacionais como sendo a da construção discursiva. Afasta-se, assim, as visões essencialistas das identidades, em geral produzidas em torno de certas representações recorrentes e resistentes à mudança, e afirma-se o seu caráter de processo e construção, sempre dinâmico e em constante transformação. Nesse contexto, as identidades são entendidas como tomadas de posição no âmbito do discurso, em consonância com Tann (2010).

Com o quarto capítulo, tem início a segunda parte desta pesquisa, voltada especificamente para a contextualização, a identificação, o tratamento e a análise de dados. Parte-se da elaboração de uma breve retrospectiva histórica de Portugal, onde são identificados alguns episódios potencialmente relevantes para a análise do papel da língua na construção das identidades nacionais portuguesas, como a fixação das fronteiras do país e a participação de Portugal na chamada era dos descobrimentos.

A seguir, é o contexto da língua que ganha relevância, mas, desta vez, a ênfase recai sobre a atualidade. Neste século XXI, interessa observar que discursos se digladiam no debate

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valorização econômica, afirmação cultural entre tantas outras. Com essa análise, busca-se refletir sobre o futuro da língua portuguesa como elemento de construção identitária das diferentes nações que a adotam.

Em continuidade a essa reflexão, passa-se à apresentação, justificativa e descrição do conjunto de dados que será analisado, isto é do corpus, que consiste em matérias de opinião publicadas nos jornais portugueses, ao longo de 2012, sobre o acordo ortográfico, como já referido anteriormente. Na análise desses textos, são considerados exclusivamente os discursos de caráter identitário, alguns explícitos, outros não. Com essa afirmação, ficam excluídos da análise muitos outros discursos sobre o acordo ortográfico, cuja natureza técnica, jurídica ou política não apresentam, a priori, conotação identitária.

Por fim, encerra-se este capítulo com o delineamento das estratégias de análise, que serão apresentadas de forma pormenorizada nos capítulos cinco e seis. Tais estratégias estão divididas em duas partes principais. Na primeira delas, procura-se analisar certos elementos que, com alguma frequência, surgem nos discursos dos nacionalismos. Na segunda, reflete-se sobre as diferentes posições contruídas por e para Portugal na relação com outros países citados nos textos.

No quinto capítulo, parte-se para a análise propriamente dita do corpus, que será desenvolvida também no capítulo seguinte. Nesta primeira parte da análise, a perspectiva adotada é a da identificação dos principais elementos – designados como marcadores

identitários – a serem mobilizados na construção de discursos em torno da ideia de identidade

nacional, em geral, e identidade nacional portuguesa em particular.

Pátria, nação, soberania, povo, cultura, identidade e matriz são os temas mobilizados via tais marcadores, definidos em função de suas respectivas frequências ao longo do corpus – verificada pela contagem de palavras do texto – e da sua relevância para os discursos e teorias sobre os nacionalismos, elaboradas e desenvolvidas especialmente a partir do século XIX, na Europa.

Por fim, analisa-se o modo como tais marcadores são utilizados, assim como os discursos e representações de identidade nacional sinalizados por eles. Nesse processo, procura-se realçar as relações estabelecidas entre os mesmos e o conceito de língua – aqui entendido de forma abrangente para incluir a ideia de ortografia. O papel simbólico desempenhado pela língua na construção das identidades nacionais é, assim, posto em destaque.

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se concentrar nas relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais ou supracionais, com o intuito de se compreender melhor de que forma as identidades são estabelecidas por via da construção da ideia de um ou vários outros. É dessa tensão entre um

eu e um outro que se pretende inferir o papel da língua como símbolo de uma certa identidade

nacional.

Com tal objetivo, primeiro busca-se identificar os discursos que relacionam Portugal a outras entidades nacionais e supranacionais, para, a seguir, analisar tais relações em função das simetrias e assimetrias que são estabelecidas. Nos casos das relações de simetria, isto é, de equivalência de forças ou posições, estas são classificadas como positivas ou negativas, dependendo do modo como são valoradas em seus respectivos contextos. Nos casos das relações de assimetria, busca-se identificar que posição Portugal ocupa: se o pólo forte – relação assimétrica em que Portugal assume posição de vantagem – ou o pólo fraco – relação assimétrica em que Portugal ocupa posição de desvantagem.

Por fim, tais relações – simétricas e assimétricas – são analisadas em conjunto, de forma constrastada, de modo a se construir um panorama alargado das diversas relações estabelecidas entre Portugal – na perspectiva do eu – e diferentes entidades nacionais ou supranacionais – na perspectiva do outro. Os principais resultados identificados a partir dessa ação são reunidos num quadro-resumo.

No sétimo e último capítulo, busca-se relacionar os discursos teóricos desenvolvidos nos capítulos 1 a 3 às análises de dados desenvolvidas nos capítulos 4 a 6, numa perspectiva comparada. Considerando-se, portanto, a evolução dos conceitos de identidade e de identidade nacional, pretende-se compreender melhor que papel a língua, como símbolo, desempenha hoje na construção dessas identidades no contexto europeu.

Com essa finalidade, retomam-se os conceitos estudados no âmbito dos marcadores identitários, que são agora novamente analisados à luz do conjunto de resultados obtidos e dentro do enquadramento teórico-metodológico definido para esta pesquisa. Do mesmo modo, os diferentes discursos de representação de Portugal, que afloram na perspectiva da comparação entre o país e outras entidades nacionais e supranacionais, são mais uma vez avaliados.

Por fim, a partir do conjunto de dados, conceitos, discursos e representações reunidos e construídos ao longo desta pesquisa, busca-se refletir sobre o conceito de identidade nacional hoje e o espaço ocupado pelas línguas, numa perspectiva simbólica, em sua construção. No presente cenário, propõe-se o exercício do questionamento das forças e

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13 ameaças que se lhe apresentam.

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Capítulo 1

As identidades nacionais na Europa do século XXI

Identidade e modernidade

Identidade nacional Identidade nacional e cultura Identidade nacional e globalização

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Identidade é uma palavra recorrente nos discursos atuais, tanto na academia, como nos jornais, na televisão, no cinema, nos videojogos, na internet, nas conversas do dia-a-dia, nos consultórios médicos. No entanto, tanta insistência em torno do seu uso – às vezes abusivo – não torna mais fácil a sua definição; pelo contrário. Identidade parece ser mais uma noção do que um conceito propriamente dito, muitas vezes confundindo-se com subjetividade, personalidade, imagem, cultura, comunidade entre tantos outros termos. Ainda assim, apesar desses contornos fluidos e difusos, surge como tema central nas discussões sobre a modernidade – aqui entendida como os tempos atuais (ou, mais precisamente, como modernidade tardia ou pós-modernidade).

Este capítulo se inicia precisamente com uma reflexão sobre a ideia de identidade na modernidade. A partir dos estudos de Hall (2014), entre outros, procura-se explorar os papéis desempenhados pelas identidades na caracterização da atualidade. Identidades múltiplas ou identidades fragmentadas? Identidades em crise ou a era das identidades? Identidades líquidas? Esses são alguns dos temas que orientam a discussão.

Parte-se do princípio de que o debate sobre as identidades é prolífico e pode assumir contornos distintos a partir das perspectivas que sejam adotadas. Identidades de gênero, etária, religiosa, étnica, profissional são apenas algumas delas, entre as quais destaca-se as identidades nacionais, que serão aqui analisadas. Com essa finalidade, parte-se da elaboração de uma breve retrospectiva histórica dos nacionalismos na Europa, explora-se o tema das identidades nacionais e alguns dos seus possíveis significados.

Nesse contexto, importa ressaltar que, não raras vezes, as identidades nacionais se confundem com o conceito de cultura ou identidade cultural. Nesses casos, identidade nacional e identidade cultural passam a indicar uma mesma coisa, girando em torno da construção de uma suposta cultura nacional como recurso de identificação individual e coletiva. Essas relações entre cultura e identidade são analisadas na tentativa de se melhor compreender os significados possíves das identidades nacionais hoje.

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Por fim, na “Europa da Nações”, engajada num processo de integração, em diferentes níveis, entre nações soberanas e na construção de uma entidade supranacional, interessa refletir sobre o que acontece com as identidades nacionais. Mais do que isso, na era da globalização, pode-se ainda falar em identidades nacionais? Essas são algumas das questões que se pretende discutir ao final deste capítulo.

O objetivo deste capítulo é, portanto, introduzir o tema das identidades e, mais especificamente, das identidades nacionais, a partir de uma reflexão teórica e de uma breve retrospectiva do desenvolvimento e transformação da ideia de identidade. Entre tantos caminhos possíveis, procura-se, aqui, traçar um pequeno recorte que servirá como ponto de partida para este estudo.

Identidade e Modernidade

O conceito de identidade é historicamente situado. Essa afirmação, que, a princípio, pode parecer banal e desnecessária, marca uma posição que deve ser explicitada desde já: as identidades não são inatas nem eternas; não são uma força da natureza ou um fato à espera de constatação. Na maioria das vezes, quando se fala em identidade, seja na esfera pública, seja na privada, em geral dá-se como certo o mútuo entendimento; mas convém frisar que tal se dá menos em função de um conhecimento partilhado e indisputado do seu significado do que pela operação de um mecanismo de naturalização e essencialização que incorpora as identidades aos discursos da atualidade.

Para refletir sobre o tema, pode-se partir, por exemplo, acompanhando Hall (2014), da Europa do iluminismo. O paradigma da racionalidade, que aflora no século das luzes, traz à tona o sujeito racional, movimento este bem representado pela máxima de Descartes: “Penso, logo existo”. Uma certa noção de individualidade ganha corpo e se propaga no espaço – em especial, no espaço urbano, com o desenvolvimento das cidades. É nas cidades que o sujeito se depara com uma infinidade de outros: rostos, vozes e movimentos que passam, muitas vezes, sem retorno.

Se, no espaço rural, isto é, no campo, a vida avança entre cores, odores e vozes conhecidas, o mesmo não acontece nas cidades. A consciência de si e da diferença, no reconhecimento de um ou muitos outros, está no cerne dessa primeira noção de identidade, tendo a razão ou a racionalidade como motor e justificativa. Como bem destaca Benjamim

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(2006: 40), citando Georg Simmel, o desenvolvimento dos meios de transporte coletivo constitui um bom exemplo desse estranhamento no contato com o outro e do incômodo que provoca:

“As relações recíprocas dos seres humanos nas grandes cidades… caracterizam-se por um evidente predomínio da actividade do olhar sobre a do ouvido. As causas principais deste estado de coisas são os meios de transporte colectivos. Antes do aparecimento dos autocarros, dos comboios dos eléctricos no século XIX, as pessoas não conheciam a situação de se encontrarem durante muitos minutos, ou mesmo horas, a olhar umas para as outras sem dizerem uma palavra.” A nova situação não era, como reconhece Simmel, nada tranquilizadora.

Como descreve Hall (2014: 17-22), o crescimento e a multiplicação das cidades, associados à crescente complexidade da vida social e do nível de organização necessário para mantê-la em funcionamento e sustentá-la, implicam o estabelecimento de novas fidelidades. O indivíduo racional, pouco a pouco, cede seu lugar ao sujeito social, num deslocamento que parece refletir as novas exigências e capacidades inerentes e necessárias à vida em grupos alargados e heterogêneos, ou seja, em círculos sociais ampliados.

Os processos de socialização, a formação de e a interação entre grupos e as novas relações de poder operam sobre aquele indíviduo racional, transformando-o em sujeito social, que, por sua vez, desempenha novos papéis em sociedade. Esses novos papéis ou identidades sociais fornecem, em alguma medida, estabilidade e segurança, proporcionando uma sensação de conforto e de pacificação de conflitos, ao instilarem no sistema um certo grau de previsibilidade e de expectativas pré-fixadas.

Do indivíduo racional ao sujeito social, chega-se ao século XX, marcado, ao menos na perspectiva europeia, por duas grandes guerras em sua primeira metade e pelo despoletar de movimentos de acirramento e multiplicação de contatos entre pessoas, grupos e entidades (associações, instituições e organismos de natureza diversa), identificados como processos de globalização, que provocariam um forte impacto no tecido social, promovendo profundas transformações, especialmente nas últimas décadas do século passado e neste início de século XXI.

A noção de identidade – em suas diferentes versões – vai tomando forma ao longo dessas transformações, sem que seja possível (ou mesmo importante) fixar um ponto de partida. Apenas como referência, vale a pena notar que no vocabulário de termos relevantes em cultura e sociedade (Keywords: A Vocabulary of Culture and Society), de Raymond Williams (1981), publicado em 1976, o verbete “identidade” sequer aparece. No entanto, em

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sua versão revista e ampliada (New Keywords: A Revised Vocabulary of Culture and Society), editada por Tony Bennett, Lawrence Grossberg, Meaghan Morris, publicada em 2005, o verbete “identidade”, elaborado por Kevin Robins (Bennett et al, 2005), não só é incluído como aparece com algum destaque.

A perspectiva adotada por Robins, em tal verbete, é a da identidade como

identificação, isto é, como uma percepção de igualdade individual ou coletiva, que

supostamente se mantém inalterada ao longo do tempo. Essa ideia de permanência contida na ideia de continuidade atuaria como uma espécie de estratégia de organização da complexidade da vida moderna tanto no campo subjetivo (psicológico) como social. Os caráteres de unidade e continuidade das identidades serviriam de contraponto ao pluralismo, à diversidade e à transformação tão característicos desta modernidade tardia:

Identity is to do with the imagined sameness of a person or of a social group at all times and circumstances; about a person or a group being, and being able to continue to be, itself and not someone or something else. Identity may be regarded as a fiction, intended to put an orderly pattern and narrative on the actual complexity and multitudinous nature of both psychological and social worlds. The question of identity centers on the assertion of principles of unity, as opposed to pluralism and diversity, and of continuity, as opposed to chance and transformation. (Bennet et al, 2005).

Essa definição de identidade é apenas uma entre tantas possíveis, uma vez que os estudos de identidade são objeto de disciplinas diversas como a sociologia, a psicologia, a antropologia e os estudos culturais em meio a outras possibilidades. A abordagem adotada nesta pesquisa, entretanto, é a dos estudos culturais, que não só reconhece os diferentes vieses adotados por áreas de conhecimento distintas, como se vale deles para construir sua reflexão – tarefa que pode ser desenvolvida a partir de estratégias diferentes e que, portanto, deve ser clarificada. Com tal intutito, propõe-se aqui pensar-se em três categorias distintas, identificadas como “multidisciplinar”, “interdisciplinar” e “transdisciplinar”.

Entende-se a multidisciplinaridade como a opção que se vale de diferentes áreas do conhecimento na análise de um dado objeto ou na reflexão sobre um tema qualquer. Nessa perspectiva, a divisão do conhecimento em áreas distintas e estanques é assumida à partida e respeitada. O resultado obtido é uma espécie de soma das diferentes mais-valias oferecidas por cada área. Ao longo desse processo e segundo seus críticos, faz-se presente o receio de

contaminação entre elas, associado ao risco de perda de rigor científico ou de coerência

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Entende-se a interdisciplinaridade como a opção que, embora também opere a partir das múltiplas disciplinas, não reconhece a existência de limites claros e definidos entre elas. Pelo contrário, reconhece o contato e a sobreposição, ou seja, a existência de um espaço liminar, valorado positivamente e explorado nessa perspectiva. No entanto, segue reconhecendo a divisão do conhecimento em áreas de saber com suas características e especificidades.

Entende-se a transdisciplinaridade como a opção que rompe com a clássica divisão do conhecimento em disciplinas independentes, construindo-se a partir de diferentes teorias e ideias de origens diversas. Não se quer aqui pôr em causa a classificação e divisão do conhecimento para fins didáticos – esse não é o tema em discussão. O que se reclama é uma perspectiva de conjunto, que trabalha a partir de ideias e reflexões, recusando-se à classificação tradicional ou mesmo à ideia da classificação como um fim em si mesma – a classificação é aqui entendida como um recurso de raciocínio, estratégia de reflexão. Há um potencial de transformação que é valorizado nessa abordagem, sem que isso signifique abdicar do rigor científico ou da coerência teórico-metodológica – embora, muito provavelmente, atribuindo-se a tais termos significados em alguma medida diferentes dos tradicionais.

A perspectiva da transdisciplinaridade, no enquadramento dos estudos culturais, é aquela adotada nesta pesquisa, o que não implica desconsideração pelos riscos inerentes à transposição de um conceito de uma área para outra. Considera-se, no entanto, que um conceito – ou uma ideia, um pensamento, uma reflexão, uma teoria – é indissociável do seu contexto, isto é, do contexto no qual é produzido. Desconsiderar tal relação, impossibilita esse exercício nos moldes propostos. Em outras palavras, o que se defende é que o conhecimento é construído a partir do diálogo, da relação e do embate entre ideias. Partir de uma ideia desenvolvida por outro/s, apropriar-se dela e transformá-la é atividade inerente à produção do conhecimento e não uma ameaça à mesma.

Claro que não se está isento do risco de se construir ideias ou relações inconsistentes ou incoerentes, que, nesse caso, logo serão constestadas, criticadas, descartadas ou transformadas. Mas tal movimento é salutar para o desenvolvimento e a produção de conhecimento. Também é preciso considerar que, muitas vezes, compreender mal significa simplesmente discordar da corrente dominante, isto é, compreender diferentemente de outros ou não conseguir convencer seus pares da validade e pertinência de uma perspectiva – isso se dá em função de vários fatores, que, em geral, envolvem relações de poder, prestígio e posição de quem fala ou de contra quem se fala.

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A discussão em torno dos conceitos de multi, inter e transdiciplinaridade, além de controversa, não é, no entanto, objeto deste estudo. O que se pretende é simplesmente explicitar a posição aqui adotada. Feito esse alerta e esclarecido tal ponto, retoma-se a discussão sobre as identidades no contexto atual, caracterizado como pós-modernidade ou modernidade tardia.

Em A Condição Pós-Moderna (1986), Lyotard reflete sobre os tempos atuais, marcados pelo aumento da complexidade das relações sociais entre sujeitos e pela fragmentação e multiplicação dos centros. É o momento que representa o suspiro final das grandes narrativas que caracterizavam o período que lhe antecede, ou seja, o fim dos discursos com pretensão de generalidade e universalidade que serviam de justificativa e de estrutura para uma dada sociedade – não mais a busca por regras gerais, aplicáveis a toda multiplicidade e complexidade de situações e casos, mas sim o caso específico e particular, sempre contingente.

Para o autor, esse cenário constitui uma mudança, uma transformação suficientemente relevante para marcar uma distinção entre a noção de modernidade e de pós-modernidade, também chamada de modernidade tardia – expressões utilizadas para denominar o período que se estende da segunda metade do século XX até a atualidade. No âmbito deste trabalho, como regra geral, as referências à modernidade, contemporaneidade e modernidade tardia remetem para o tempo presente.

É nesse contexto da modernidade tardia que Stuart Hall (2014: 22-28) afirma que as

identidades perdem seu centro, num processo marcado, principalmente, por cinco

movimentos: o pensamento marxista, o surgimento da psicanálise, a semiologia de Saussure, as ordens do discurso de Foucault e as teorias feministas. Essa afirmação se assenta num cenário anterior no qual as identidades teriam adquirido uma certa estabilidade ou fixidez ou, ao menos, seriam assim percebidas.

Tanto o pensamento marxista, desde o século XIX, como os movimentos feministas, a partir dos anos 60 do século XX, ao promoverem um novo tipo de identidade ampliada, colaboram para esse processo de deslocamento do centro (ou descentramento) das identidades. A promoção de uma identidade da classe trabalhadora assim como a de uma identidade feminina promovem a ideia de identidade desterritorializada e descontínua, isto é, estabelecem uma relação identidade/diferença que não depende da vinculação a um território ou a uma progressão temporal contínua. Pressupõem uma identidade motivada pelo status social e econômico – pela ideia/condição de trabalhador – ou pelo status social e biológico – pela ideia/condição de mulher.

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As teorias psicanalíticas, a partir de Freud e depois com Lacan, promovem a noção de subjetividade, ao mesmo tempo em que ressaltam o papel do inconsciente no desenvolvimento humano e na construção do indivíduo. Os discursos em torno da supremacia da razão e do predomínio do indivíduo racional na construção da identidade são fortemente influenciados pela noção de inconsciente e da sua relevância na formação do ser humano.

A semiologia de Saussure, ao se debruçar sobre os modos de criação e troca de significados, ou seja, sobre os processos de comunicação, põe em evidência a complexidade da interação humana e sua dependência de um sistema de trocas simbólicas. A língua é afirmada como um sistema social e simbólico, dotado de um repertório de significados – construídos e reconstruídos ao longo do tempo-espaço – do qual o indivíduo se vale para viver em sociedade.

A teoria sociológica de Foucault, que posiciona o discurso como elemento estruturante da sociedade, põe em causa mais uma vez a autonomia do indivíduo racional, suspendendo a invisibilidade, ou melhor, revelando as redes sociais (poder/saber) que limitam e delimitam a possibilidade de ação e manifestação humanas. São as ordens do discurso que pré-determinam o que pode ou não ser dito, de que modo, por quem, em que contexto, com qual valor, numa espécie de condicionamento da autonomia e do poder de agência do indivíduo.

Em comum, todas elas anunciam o fim da supremacia do indivíduo racional como o principal – ou mesmo, o único – ator social, dotado de autonomia, capaz de determinar seu próprio destino, contrariando, de certo modo, a máxima de Descartes (“Penso, logo existo”). Fazem-no ao trazer à luz uma série de outras perspectivas e forças que interagem e condicionam em algum grau a vida em sociedade. O indivíduo torna-se sujeito numa dupla perspectiva: do ser e do estar, ou seja, quer numa perspectiva estática e essencialista, quer numa perspectiva dinâmica e performativa.

A ideia de fragmentação, recorrente nos discursos da modernidade tardia, parte do paradigma de uma identidade una e indivisa que se perde ou se parte, ou seja, de identidades que se fragmentam. Com o fim das grandes narrativas, a narrativa das identidades, em sua completude, também se perde. A complexidade da vida moderna, a multiplicação das variáveis que regulam as relações entre sujeitos, as difíceis e confusas equações de interdependência entre fatores e o consequente aumento da especialização, associado ao aumento da quantidade de informação e dados a circular, permitiriam no máximo vistas parciais, fragmentos que poderiam ou não ser combinados.

Essas identidades fragmentadas instauram um estado de tensão permanente, quer em função de um exercício incessante de combinação e conjugação das partes, nem sempre

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conseguido, mas muitas vezes desejado – numa busca pela estabilidade ou pelo equilíbrio –, quer em função da ansiedade gerada pela tentativa de se reconstituir um todo indiviso – meta, agora, impossível de ser alcançada.

Essas tensões transparecem, muitas vezes, nos discursos de afirmação de uma certa “crise das identidades” que se teria instalado nas sociedades modernas. A perda de pontos de referência seguros e estáveis, além da multiplicação das possibilidades de identificação, provocam insegurança e ansiedade no sujeito social moderno, que vivencia essa situação como crise.

Ora em paralelo, ora em concorrência com a ideia de fragmentação das identidades – que pressupõe, como já afirmado, a existência anterior de um todo, de uma totalidade, que se perde – está a noção de multiplicação: não mais identidades fragmentadas, mas sim identidades múltiplas. Para dar conta da complexidade do sistema social é preciso se multiplicar – não mais fragmentar o todo, mas sim multiplicá-lo em sua inteireza. Trata-se, na verdade, de uma justificativa ou estratégia diferente para dar conta do mesmo resultado: o fim de uma identidade una e indivisível e o desenvolvimento de novas e diversas identidades.

Essa perspectiva parece inverter a ideia de crise convertendo-a em oportunidade. A modernidade tardia não é mais caracterizada pela “crise das identidades”, mas sim como a “era das identidades” – em vez da fragmentação, a multiplicação. Para fazer face à complexidade da modernidade, o indivíduo se vale de várias identidades distintas e independentes: de gênero, etária, profissional, nacional, etc.

Nesse sentido, cada indivíduo teria um repertório de identidades à sua disposição, que poderiam ser utilizadas sempre que necessário, segundo o critério de cada um, para melhor atender as necessidades da vida em sociedade. Na era das identidades, o indivíduo exercitaria seu poder de escolha e sua capacidade de compra, como se de um bom consumidor se tratasse, beneficiando-se de um livre-mercado das identidades (Billig, 1995: 134). A identidade de consumidor, desse modo, ganharia proeminência, especialmente numa sociedade caracterizada como sociedade de consumo.

A ideia de livre-mercado das identidades acentua a noção de voluntarismo e a perspectiva sócio-econômica associadas ao tema ao delinear um cenário em que as identidades se transformam em mercadoria, passíveis de serem adquiridas ou descartadas em função do poder aquisitivo do consumidor e da sua vontade. Essa contaminação da lógica de mercado a tantas outras esferas da vida social é também uma característica dos discursos da modernidade.

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A metáfora da liquidez, tão bem explorada por Bauman (2006), parece útil na caracterização das identidades nesse contexto de modernidade tardia como “identidades líquidas”. A matéria em estado sólido se transforma. O estado de liquidez acentua o caráter fluido e de certo modo volátil das identidades, que estão em permanente estado de transformação e acentua também sua flexibilidade, isto é, a sua capacidade de assumir formas diferentes em função do seu entorno.

O que as perspectivas da crise e da era das identidades têm em comum, no entanto, é a valorização do papel desempenhado por elas nas sociedades atuais. Essa afirmação é em parte corroborada pelo volume de trabalhos produzidos em torno do tema e pela frequência dos discursos que dela se valem. Apesar da grande variedade de posições e conceitos veiculados, é possível refletir sobre o tema a partir de duas visões antagônicas que atravessam essas discussões: as visões essencialistas e as visões não-essencialistas das identidades.

Considerando-se os dois extremos, pode-se caracterizar as visões essencialistas como aquelas que partem da ideia de identidade como algo dado, algo que nasce com o indivíduo e o acompanha – mesmo à sua revelia – até a morte. Faz dele o que ele é, regula seus atos, determina seu comportamento, isto é, constitui sua essência. Sendo assim, não pode ser modificada ou transformada. Essas perspectivas retiram poder e autonomia do indivíduo, que passa a estar sujeito a essa identidade, e são compatíveis com os discursos de descoberta, isto é, da ideia do indivíduo que parte em busca de si mesmo.

Do lado oposto, estão as visões não-essencialistas que negam o caráter inato das identidades, afirmando seu potencial de criação e transformação. O indivíduo não nasce com uma identidade, mas sim a constrói na relação com si mesmo e com os outros. As identidades resultariam, assim, de um processo de construção. No âmbito dessas teorias, esses processos de construção podem ser descritos e caracterizados de formas bastante distintas, mas, em geral, em todas elas o indivíduo adquire algum poder de participação – maior ou menor, mais ou menos ativo, mais ou menos condicionado. O indivíduo, desse modo, pode escapar à situação de sujeição e passar à posição de sujeito.

A grande maioria das teorias e reflexões sobre as identidades em vigor hoje, no entanto, parecem se situar entre um extremo e outro, combinando perspectivas essencialistas e não-essencialistas. Partindo-se dessa premissa, pode-se delinear algumas das concepções mais frequentes a partir de duas analogias: a do núcleo-duro e a da moda, que serão desenvolvidas a seguir.

Uma dessas perspectivas de construção identitária pode ser pensada recorrendo-se a uma analogia com o conceito de “núcleo-duro”, retirado do direito. O sistema

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constitucional é construído a partir de um núcleo-duro, isto é, de um conjunto de regras e valores fundamentais – estáveis e, praticamente, inalteráveis – aos quais outras normas jurídicas são associadas e incorporadas, sendo consideradas válidas apenas se e à medida que forem compatíveis com ele. Do mesmo modo, as identidades seriam constituídas a partir de um núcleo-duro, de um centro irradiador de controlo, validade e sentido – perspectiva essencialista – em torno do qual o indivíduo construiria sua identidade ao longo da vida – perspectiva não-essencialista.

Na segunda perspectiva, recorrendo-se à moda como metáfora, as identidades seriam como as roupas, um traje que se veste e se despe segundo o livre-arbítrio, a escolha, o humor do indivíduo – para cada situação, um traje diferente. Nesse modelo, a noção de estilo permite uma certa ligação entre um traje e outro, criando, em seu conjunto, alguma unidade. Desse modo, seria possível reconhecer o indivíduo independentemente do traje utilizado ao se reconhecer o seu estilo. Embora esse modelo se aproxime mais das visões não-essencialistas, quando comparado com o anterior, ainda é compatível com um viés de essência, presente na definição de cada traje a ser utilizado, ou seja, na definição de um repertório de identidades pré-fabricadas à disposição do indivíduo.

A perspectiva adotada nesta pesquisa parte de uma visão não-essencialista das identidades, em que estas são o resultado de um processo constante de construção. Tal processo consiste na tomada de posição no âmbito do/a discurso/prática social. Com essa afirmação, não se pretende fazer qualquer juízo sobre os elementos que condicionam tais processos – sua validade, possibilidade, credibilidade – mas sim afirmar seu caráter relacional e sua necessária fluidez, sua eterna incompletude e sua natureza de projeto sempre em andamento.

A discussão desenvolvida até o momento girou em torno das identidades, consideradas no presente contexto num alto grau de abstração. Agora, no entanto, o que interessa é fazer um recorte mais específico de modo a focar naquela que, entre tantas e tão variadas possibilidades, é o objeto principal desta reflexão: a identidade nacional ou, melhor, as identidades nacionais.

Como alerta Kuper (1999: 235), as identidades, mesmo na perspectiva individual e privada, são vividas no mundo, no diálogo com o/s outro/s – e, na perspectiva construtivista, são aí construídas. No entanto, são vivenciadas individualmente, ou seja, numa perspectiva subjetiva, o indivíduo descobre essa identidade em si mesmo, no seu interior. Essa identidade consiste na identificação com o outro, com o/s grupo/s com o/s qual/is estabelece relação/ões

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de pertença, encontrando, assim seu lugar no mundo – seja uma nação, uma minoria étnica, uma classe social ou um movimento político ou religioso, como exemplifica o autor.

Tais recursos à identificação com o outro e ao estabelecimento de relações de pertença, como referido acima, conduzem ao “mito da nação”, que, como afirma Billig (1995: 137), assim como o mito da tribo ou o da religião, oferece algum conforto ao indivíduo ao propiciar a possibilidade do resgate de uma certa integridade, de uma certa inteireza, isto é, de uma noção do todo em meio à fragmentação e à insegurança inerentes à contemporaneidade.

Identidade nacional

Dois eventos são frequentemente indicados como sendo os precursores dos nacionalismos na Europa: a declaração da independência americana, em 1776, e a revolução francesa, em 1789. Mas é o século XIX aquele caracterizado como sendo o da “era das nações”, ou seja, o período em que os nacionalismos – como movimento político, social e econômico e como ideologia – ganham força e as nações são construídas.

Em sua primeira metade, a Europa passa por grandes transformações, com o início da era industrial e a incidência (e persistência) de uma crise econômica que se espraia pelos campos, promovendo insatisfação e conflitos que culminam com uma série de levantes populares um pouco por toda a Europa, período identificado como sendo o da “primavera dos povos” ou “primavera das nações” (1848).

O poder dos reis é posto em causa e sua origem divina é questionada pelas novas teorias liberais, com destaque para os pensamentos de Rousseau e Adam Smith, que se fundamentam na ideia de que o poder pertence ao povo e só em seu nome pode ser exercido. Trata-se do período que representa o início do fim dos regimes monárquicos e a ascenção da democracia.

Fichte, Korais, Rousseau, Herder e Mazzini, cada um na sua época e à sua maneira, são identificados como os fundadores dos nacionalismos na Europa e, portanto, precursores do seu estudo. No entanto, embora tais estudos constituam uma referência importante para esta pesquisa, é importante ressaltar que seu foco são as identidades nacionais e os nacionalismos como projeto político, meio de mobilização das massas, movimento liberal, requisito democrático entre tantas outras possibilidades, sendo que, muitos desses temas, não são aqui explorados. O que se busca identificar nessas teorias são elementos que contribuam

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