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O PANÓPTICO NA DISTOPIA: UMA ANÁLISE COMPARATIVA DE 1984 E JOGOS VORAZES

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

BACHARELADO EM LETRAS

BRUNA DOS SANTOS BORGES

O PANÓPTICO NA DISTOPIA:

UMA ANÁLISE COMPARATIVA DE 1984 E JOGOS VORAZES

Salvador 2016

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O PANÓPTICO NA DISTOPIA:

UMA ANÁLISE COMPARATIVA DE 1984 E JOGOS VORAZES

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Bacharelado em Língua Estrangeira Moderna da Universidade Federal da Bahia – UFBA, como pré-requisito para a obtenção do título de Bacharel em Letras: Língua Estrangeira Moderna ou Clássica.

Orientadora: Profa. Dra. Elizabeth Santos Ramos

Salvador 2016

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Agradeço à minha orientadora, Profa. Dra. Elizabeth Ramos, por ter aceitado me orientar e pela extrema paciência e compreensão ao logo de todo o processo de realização desse trabalho.

Às minhas amigas Isabel e Mayane por compartilharem comigo cada desespero e cada alegria com carinho e compreensão.

Às minhas irmãs Mariana, Stela e Duda pelo apoio emocional e pela disposição de me ouvir sobre esse trabalho durante tantos meses.

E a minha mãe, por nunca deixar de acreditar em mim mesmo nos momentos em que eu não acreditei, por ter me apontado o melhor caminho e por jamais ter exigido que eu desenhasse uma rosa vermelha com caule verde.

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Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o passado.

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A presente monografia realiza um pequeno estudo do gênero distópico apontando sua evolução e pertinência social. Coloca em tela a análise de uma obra canônica distópica,

1984, de George Orwell, publicada originalmente em 1949, e de uma obra

contemporânea, publicada em 2008, Jogos Vorazes, de Suzanne Collins. A monografia busca identificar as características transferidas de um texto para outro, as possíveis influências exercidas pelo texto de Orwell no de Collins bem como as inovações apresentadas no texto distópico contemporâneo em relação a seus antecessores. A ênfase das observações encontra-se no panóptico, a partir da explanação de Michel Foucault, em 1975, na obra Vigiar e Punir, apresentando as relações entre a sociedade distópica, a sociedade produtora do texto, o poder e a vigilância. Utilizando as reflexões de Anna Laura Neumann, Taíssi Alessandra Cardoso da Silva, Rudinei Kopp e Jeronimo Strehl, dentre outros, entendemos a relação da distopia com o contexto de produção, apresentando-se por vezes como seu reflexo.

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ABSTRACT

This work studies dystopian literature presenting the evolution of the genre and its value to the societies in which they are written. To do so, it analyses a classic dystopian text, 1984, by George Orwell, originally published in 1949, as well as the contemporary novel, The Hunger Games by Suzanne Collins, published in 2008. The work seeks to identify the characteristics transferred from one novel to the other, the possible influences of Orwell’s text onto Collins’s as well as the innovations brought by the contemporary text. The emphasis of our observations are the image of the panopticon, as explored by Michel Foucault in his 1975 book Discipline and Punish, presenting the relationship between the dystopian society, the society in which the text is inserted, power and surveillance. Using the reflections of Anna Laura Neumann, Taíssi Alessandra Cardoso da Silva, Rudinei Kopp and Jeronimo Strehl, among others, we understand the way dystopian literature relates, and mirrors its context.

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1 INTRODUÇÃO ... 9

2 GEORGE ORWELL E SUA OBRA ... 12

2.1 GEORGE ORWELL E A ESCRITA POLÍTICA ... 12

2.2 ORWELL ENTRE DUAS INGLATERRAS ... 13

2.3 ORWELL E SEUS ROMANCES ... 15

3 O PANÓPTICO NA DISTOPIA ... 20

3.1 DO SUPLÍCIO AO PANÓPTICO ... 20

3.2 O PANÓPTICO EM 1984 E OUTRAS DISTOPIAS ... 22

3.3 A PRESENÇA MIDIÁTICA NA DISTOPIA ... 23

3.4 A CRESCENTE POPULARIDADE DOS REALITY SHOWS ... 23

4 A DISTOPIA NA CONTEMPORANEIDADE ... 26

4.1 SUZANNE COLLINS E JOGOS VORAZES ... 26

4.2 JOGOS VORAZES X 1984 ... 28

4.3 O PANÓPTICO EM JOGOS VORAZES ... 30

4.4 A REVOLUÇÃO BEM SUCEDIDA ... 31

4.5 A INFLUÊNCIA DE JOGOS VORAZES ... 33

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 35

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1 INTRODUÇÃO

Em 1516 Thomas More apresentou ao mundo uma obra intitulada Utopia. De acordo com Fátima Vieira (2010) em The Cambridge Companion to Utopian Literature a palavra “utopia” é um neologismo criado por More para nomear a ilha presente em sua estória e a ideia de sociedades idealizadas, melhores que a nossa. Anos depois, o termo começou a ser utilizado para definir uma forma de narrativa: a literatura utópica.

Durante anos, a narrativa utópica manteve-se caracterizada pela antecipação do paraíso, pela visão otimista do que a sociedade possuía potencial para se formar, trazendo obras como Memoirs of the Year Two Thousand Five Hundred do francês Louis-Sébastien Mercie, publicado em 1771. No século XVIII, no entanto, sátiras do gênero, como As

viagens de Guliver (1726), de Jonathan Swift, começaram a aparecer, indicando uma

modificação na percepção da sociedade e sua idealização.

Após a primeira guerra mundial, o gênero sofreu grandes modificações. As sociedades tidas como utópicas pararam de ser representadas como ideais ou de forma satirizada, e começaram a apresentarem-se como extremamente manipuladoras e problemáticas. Surgiu, então, o gênero que seria nomeado “distopia”. O termo é outro neologismo e apresenta-se como o oposto para a ideia de utopia. O romance 1984 de George Orwell, publicado em 1949, é uma das obras mais importantes e populares do gênero, apresentando diversas características que se repetiriam nas distopias seguintes tais como a presença de um governo manipulador que exerce controle sobre a mídia e define a versão dos acontecimentos aos quais a população terá acesso, o uso de tortura diante de rebeliões e a instituição do medo para facilitar o controle das massas. Orwell é conhecido por ser extremamente crítico, sendo considerado por diversos estudiosos um “escritor político”. No ensaio escrito em 1946 Porque eu escrevo, Orwell afirmou que escrevia para transformar a escrita política em arte.

A escrita política de Orwell é característica presente no romance que conta a história de Winston, um homem de aproximadamente trinta anos de idade que vive em Oceania, país controlado pela figura do Big Brother que assiste a toda a população, todo o tempo, através de equipamentos chamados telescreen. Na sociedade apresentada no romance, toda a informação é manipulada, os registros históricos são modificados para que apresentem o que o governo necessita e qualquer tipo de pensamento individual é proibido. Oceania vive em uma guerra sem fim com os países vizinhos, Eurasia e Eastasia, conflito utilizado para

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justificar vários gastos do governo, bem como para que a população sinta que está sendo protegida.

O impacto de 1984 na sociedade da época foi grande e evidências do mesmo são visíveis até hoje quando, por exemplo, termos apresentados no romance são utilizados para descrever e/ou denunciar situações de abuso e/ou manipulação. Um dos reality shows mais populares da atualidade chama-se Big Brother, em referência à figura que, no romance de Orwell, vigia todo o país. Em 2014, manifestantes leram trechos do romance em voz alta durante protestos contra o golpe militar ocorrido na Tailândia.

Recentemente, o gênero distópico passou a receber bastante atenção dos grandes públicos com a adaptação cinematográfica do romance Jogos Vorazes de Suzane Collins. A obra de Collins, que consiste em um trilogia (da qual o primeiro volume será tratado nesta monografia), apresenta uma sociedade futurística dividida em doze distritos controlados pela capital. Para afirmar seu poder, a capital realiza anualmente uma competição, que dá titulo ao livro, na qual dois jovens, um do sexo feminino e outro do masculino provenientes de cada distrito, são confinados em uma arena, onde devem lutar até que apenas um, o vencedor, sobreviva. A competição é transmitida para todo o país como um reality show.

Jogos Vorazes apresenta várias características presentes 1984 e outras distopias

clássicas, tais como a presença de um governo manipulador que utiliza o medo como forma de manter-se no poder. Entre essas semelhanças, apresenta-se a noção do panóptico, explorada por Michel Focault em Vigiar e Punir (1975). O panoptismo, trazido como uma estratégia para o sistema carcerário, trata-se de uma estrutura que mantém o prisioneiro sendo observado o tempo inteiro possibilitando o controle de suas ações. A ideia do panóptico é expandida nas obras distópicas, transformando toda a sociedade numa reprodução da estrutura carcerária.

O panoptismo encontra seu apogeu em 1984 e apresenta-se com força em Jogos

Vorazes, aproximando ainda mais as duas obras. Entretanto, a obra distópica mais popular

da contemporaneidade apresenta algumas inovações para a distopia, como uma protagonista que é capaz de utilizar a mídia a seu favor iniciando uma revolução, conquista que não é possível em 1984.

Assim, esta monografia tem como objetivo geral apontar como o gênero e o conceito de utopia transitaram para a distopia e como a própria distopia modificou-se desde a publicação de 1984. Objetiva-se ainda explanar a forma como o panóptico apresenta-se e

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contribui para ambas as obras questionando como e por que o gênero emerge com tamanha popularidade nas primeiras décadas do século XXI.

Para tal, objetiva-se realizar a leitura crítica dos romances 1984 de George Orwell e

Jogos Vorazes de Suzane Collins, a fim de identificar as características que unem e

divergem as obras. Objetiva-se também realizar a leitura de textos teóricos a respeito do tema e analisar o contexto histórico e social da produção das obras.

O livro editado por Gregory Claeys The Cambridge Companion to Utopian

Literature será utilizado para a compreensão das mudanças do gênero e do processo que

levou a utopia a modificar-se até transformar-se na distopia. The Cambrige Companion to

George Orwell e o ensaio Porque eu escrevo ajudarão a compreender o contexto histórico

e social do autor de “1984” bem como da escrita do romance. A leitura de Vigiar e Punir será realizada a fim de compreender o conceito do panoptismo e identificar seu funcionamento dentro das obras estudadas para essa monografia.

Para efeitos de organização, a monografia está dividida em três sessões. A primeira sessão traz uma análise da escrita de George Orwell e de sua posição como crítico do sistema bem como a apresentação do romance 1984. Numa segunda sessão, o conceito de panóptico e sua presença na distopia, especificamente em 1984, serão explicados e analisados. Concluímos o estudo com a terceira sessão trazendo a abordagem do romance

Jogos Vorazes de Suzane Collins, da posição que o mesmo ocupa no gênero distópico e da

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2 GEORGE ORWELL E SUA OBRA

2.1. ORWELL E A ESCRITA POLÍTICA

George Orwell nasceu na Inglaterra em 1903, tendo adquirido fama e reconhecimento como escritor por meio da produção de cunho político e engajado. Suas obras mais bem sucedidas, 1984 publicada em 1949 e Revolução dos bichos publicado em 1945, tratam de opressão, poder, política, entre outros temas. Entretanto, tivesse ele nascido em outra época, esses assuntos não teriam sido a escolha do autor. A escrita política foi antes uma imposição do contexto histórico, da consciência de Orwell e de sua visão crítica do mundo que o cercava.

De acordo com o próprio Orwell no ensaio Porque eu escrevo, publicado em 1946, a vontade de escrever foi algo sempre presente nele. Ainda na juventude, começou a escrever poemas e, em algum ponto, deu início às narrativas de si, como que escrevendo a própria vida. Justificava seu desejo em produzir literatura por quatro motivos: completo egoísmo, entusiasmo estético, impulso histórico e propósito político.

Apaixonado pela estética e pela beleza das palavras, Orwell começa sua carreira com poemas centrados no entusiasmo estético e no egoísmo. Segundo o autor, sua vontade seria ter seguido a vida escrevendo esses poemas com forte enfoque na forma, para tratar de assuntos triviais. No entanto, sua percepção crítica dos acontecimentos a seu redor acabou tornando inevitável seu ingresso na escrita política. Sentia que era impossível viver na época em que viveu e não escrever sobre o que acontecia:

Em uma época de paz, eu talvez tivesse escrito livros ornamentais e meramente descritivos – e teria permanecido quase descuidado de minhas lealdades políticas. No entanto, o caso foi que me vi forçado a me tornar uma espécie de escritor de panfletos. (ORWELL, 1946, p.3)

Apesar da crítica de que se tornara um escritor panfletário, é importante observar que mesmo como autor engajado, Orwell não deixou de se preocupar com a estética e a forma de sua escrita. Segundo o próprio, ele escrevia para tornar a narrativa política em arte e foi o que fez.

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De acordo com William E. Cain (2007), mesmo os ensaios de Orwell funcionam como uma experiência literária antes de tudo, e isso contribuiu para a compreensão e a popularização de sua obra.

Orwell forma frases que confundem e surpreendem os leitores; ele nos impele a sentir descontentamento com idéias comuns e opiniões convencionais. Orwell acreditava resolutamente no senso comum (ele chama isso de sua “atitude pé no chão”), mas, ao mesmo tempo, ele reconhece que o senso comum é difícil de adquirir, e isso ocorre por causa dos falsos tipos de senso comum que saturam a sociedade, a cultura e a política.1 (CAIN, 2007, p. 76)

Assim, Orwell combina os motivos para escrever em sua obra, preocupando-se com a estética da escrita, enquanto provoca reflexões no seu público leitor, demonstrando respeito pelo senso comum e pelo entendimento de seus leitores.

2.2. ORWELL ENTRE DUAS INGLATERRAS

Orwell teve o privilégio de participar e observar diferentes aspectos da sociedade inglesa, o que colaborou para seu entendimento da situação do país de maneira geral, bem como para o desenvolvimento de sua habilidade para comunicar-se e fazer-se entender em diferentes ciclos. Filho de pai aristocrata e mãe artista fez parte de ambas: a Inglaterra aristocrática e anglicana do pai – que detestava, de acordo com Jonathan Rose, mas da qual nunca se libertou – e da Inglaterra intelectual e liberal da mãe, que era parte francesa. A vida entre essas duas perspectivas tão paradoxais influenciou drasticamente seu trabalho e destacou-o dos outros escritores da época.

Desde o início, então, George Orwell tinha os pés firmemente plantados em dois mundos diferentes e antagônicos. Isso ajuda a explicar por que, com toda a sua professada clareza, ele era de fato um observador maravilhosamente paradoxal da cena Inglesa, contraditório no melhor sentido do termo. Se ele estava discutindo a esquerda ou a direita, o

1 Nossa tradução de: “[…] Orwell shapes sentences that disconcert and surprise readers; he impels us to feel

discontented with stock ideas and conventional opinions. Orwell resolutely believed in common sense (he called this his‘belly-to-earth attitude’),but at the same time he recognises that common sense is hard to acquire, and this is because false kinds of common sense saturate society, culture and politics.”

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imperialismo ou o pacifismo, escolas públicas ou socialismo, intelectuais ou proletários, ele sempre foi capaz de transformar a si mesmo, mudando o peso de uma perspectiva para outra. Um eterno contrariador, ele geralmente diferia com quem estava discutindo e às vezes discordava de si, porque entendia estas Inglaterras bem demais para abraçar ou rejeitar totalmente qualquer uma delas.2 (ROSE, 2007, p.29)

Orwell vivenciou ainda, talvez em virtude das heranças tão diferentes que recebeu dos pais, o conflito entre o revolucionário e o patriota. O autor foi sempre bastante apegado à sua terra natal e a algumas de suas tradições, e esse apego foi em parte o que impulsionou o seu sucesso. No entanto, o critico revolucionário dentro dele via os diversos problemas do país e a vasta necessidade de mudanças drásticas em diversos aspectos.

Adicionando outra perspectiva à sua experiência, Orwell passou cinco anos trabalhando para a polícia imperialista em Burma, fato que o expôs a uma nova realidade e contribuiu para o seu posicionamento contra o totalitarismo. A respeito do tempo passado naquele país asiático e do efeito que essa experiência lhe causou, Orwell comentou:

Isto aumentou o meu ódio natural por autoridade e me tornou, pela primeira vez, completamente consciente da existência das classes trabalhadoras. O trabalho em Burma me deu algum entendimento da natureza do imperialismo, mas tais experiências não foram suficientes para me darem uma orientação política bem delineada. (ORWELL, 1946, p.3)

Apesar de o tempo em Burma não ter efetivamente modificado suas visões políticas, a experiência foi um marco na vida de Orwell. Lá, ele se viu no papel do opressor e enxergou o oprimido com mais clareza. Em 1935, quando retornou, Hitler havia ascendido ao poder e a guerra civil espanhola estourou, concorrendo ambos os fatos para consolidar o posicionamento político que influenciaria a escrita de Orwell nos anos seguintes.

A oposição de Orwell ao totalitarismo e aos governos socialistas da época fez com que sua obra fosse diversas vezes interpretada como antissocialista. O escritor, no entanto,

2 Nossa tradução de: “From the beginning, then, George Orwell had his feet planted firmly in two different and

antagonistic worlds. That helps to explain why, for all his professed clarity and straightforwardness, he was in fact a marvellously paradoxical observer of the English scene, contradictory in the finest sense of the term. Whether he was discussing the Left or the Right, imperialism or pacifism, public schools or socialism, intellectuals or proletarians, he was always capable of turning on himself, shifting his weight from one perspective to another. An eternal contrarian, he usually differed with whomever he was speaking with and sometimes disagreed with himself, because he understood these Englands too well to entirely embrace or reject any of them.”

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nunca deixou de acreditar numa sociedade socialista igualitária. Era a forma como o socialismo estava sendo conduzido que ele se opunha e criticava com veemência em sua produção literária. De acordo com Ian Williams (2007), a visão política de Orwell favorecia um “socialismo democrático” do qual ele afastava qualquer resquício de totalitarismo, embora concordando com a base da sua ideologia.

2.3. ORWELL E SEUS ROMANCES

Primeiro dos dois romances mais conhecidos de Orwell, Revolução dos bichos, publicado em 1945, reflete muito do posicionamento político do autor, influenciado pelas suas experiências com a revolução espanhola. O romance foi o responsável por expandir o nicho de Orwell, ao invés de manter seu público na cativa esquerda. Lançado apenas durante o período da Guerra Fria, o livro teve um grande impacto na sociedade da época e é relevante até hoje. Atribui-se parte do seu sucesso à facilidade de acesso, visto que é escrito e apresentado com o uma fábula, acessível a diversos públicos.

O romance narra a história de um grupo de animais em uma fazenda que organiza uma revolução e sucede os seres humanos, tirando-os do poder. Após o sucesso da revolução, os animais, liderados pelos porcos, há a promessa de uma sociedade igualitária baseada nos seguintes mandamentos:

1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo. 2. O que andar sobre quatro pernas, ou tiver asas, é amigo. 3. Nenhum animal usará roupas.

4. Nenhum animal dormirá em cama. 5. Nenhum animal beberá álcool. 6. Nenhum animal matará outro animal.

7. Todos os animais são iguais. (ORWELL, 2007, p.25)

Os mandamentos tinham como propósito impedir que os animais passassem a se comportar como os seres humanos. Não demora muito, no entanto, para que os porcos comecem a corromper-se e comportar-se como opressores. Pouco a pouco, modificam os mandamentos de modo a autorizá-los a fazer o mesmo que os humanos faziam, passando a explorar os outros animais. Ao fim apenas um mandamento resta e ele diz “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que outros” (Orwell, 2007)

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Com Revolução dos bichos, Orwell nos leva a refletir sobre o fato de que uma revolução liderada por intelectuais não pode dar certo, visto que eles se veem superiores à massa. Dessa forma, o poder sempre irá corrompê-los. De acordo com Morris Dickstein:

Se ele fosse pressionado a nos dar um motivo pelo qual a Revolução Russa falhou, ele teria sem dúvidas apontado que era o trabalho de intelectuais, cujas mentes teóricas fervorosamente comprometidas com objetivos mais altos, frequentemente cegas por egoísmo, permitiam comportamentos que a maioria das pessoas rejeitaria institivamente.3 (DICKSTEIN, 2007, p.137)

O poder, em Revolução dos bichos, é exercido a partir da manipulação das massas e modificação da história, fato que se repete em seu outro romance, 1984, mostrando como Orwell enxergava o poder na sociedade que o rodeava. Os porcos mudam pouco a pouco as leis estabelecidas no início da revolução a fim de que deixem de se submeter a elas e os permitam tirar proveito da ignorância das massas.

Apesar da forma pouco esperançosa como Revolução dos bichos e 1984 terminam, Dickstein afirma que Orwell nunca perdeu a esperança de uma sociedade socialista funcional. Assim, seu trabalho não é uma crítica ao socialismo como ideologia, mas à forma como estava sendo conduzido e à influência dos soviéticos na sua condução. O posicionamento fica claro no que ele escreveu no prefácio de uma das edições do romance, na qual ele afirma que o sovietismo corrompeu a ideia de uma Rússia socialista e que seu fim seria a única forma de restaurar a sociedade.

1984 foi escrito após a morte de sua esposa e enquanto Orwell lidava com a

tuberculose. O romance apresenta muitas das características expostas em Revolução dos

bichos e advoga as mesmas causas. No entanto, é um romance mais complexo, sem a

característica de fábula presente no seu antecessor. Ainda assim, o romance é acessível e alcançou impacto similar ou superior no público leitor da época.

Trata-se da configuração da distopia, gênero que ganhou grande visibilidade alguns anos antes com a publicação de Admirável mundo novo de Aldous Huxley caracterizado pela apresentação de sociedades futuristas dominadas por um governo totalitário, que mantém a população aparentemente feliz e enganada por uma falsa sensação de segurança.

3 Nossa tradução de: “If he were pressed to give us one reason why the Russian Revolution failed, he would

undoubtedly have stressed that it was the work of intellectuals, whose theoretical minds, fervently committed to higher goals yet often blinded by self-interest, allowed for behaviour from which most people would instinctively shrink.”

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A distopia surgiu em oposição ao conceito de utopia apresentado na obra de Thomas More, em 1516, reproduzido durante muito tempo, em outros textos.

Os romances distópicos dedicam-se a apontar os problemas com sociedades que aparentam perfeição e alertar o leitor para os riscos que alguns comportamentos de governos que anunciam a possibilidade da utopia. Esse tipo de literatura sinaliza práticas governamentais que acabam por tolher as liberdades dos indivíduos, impedindo o pensamento individual e utilizando de artifícios violentos para punir aqueles que se rebelam contra o estabelecido.

1984 é considerado uma das obras mais icônicas e relevantes do gênero, tendo

influenciado muitos romances que o sucederam, tais como as distopias contemporâneas

Jogos Vorazes (2010) e Correr ou Morrer (2009). O romance apresenta uma Londres

dominada por um regime totalitário ao extremo, do qual todo resquício de liberdade foi apagado. Cada movimento de cada cidadão é monitorado por aparelhos instalados em todas as residências e estabelecimentos do país. A figura do Big Brother é responsável por vigiar e qualquer desobediência é punida. Todas as formas de comunicação são dominadas pelo governo e a historia é modificada de acordo com a conveniência do poder governamental.

Trata-se da história de Winston, um homem por volta dos 30 anos que trabalha para o governo, num setor chamado Ministério da Verdade. Parte do trabalho de Winston é lidar com registros históricos e escrever notícias. É assim que ele começa a perceber a manipulação dos registros que ora afirmam que a Inglaterra está em guerra com determinado país, ora com outro, enquanto a população acredita que a guerra tem sido contra o mesmo país desde o início dos tempos.

O livro segue Winston, enquanto ele se apaixona e começa a ter um caso clandestino com outra funcionária do governo. A forma como relacionamentos amorosos e sexo são vistos na sociedade do romance é outro aspecto importante da trama. Os casamentos devem ser aprovados pelo governo, o celibato é instigado e sexo é visto como algo sujo que só deve ser realizado esporadicamente a fim de procriar. Winston sente-se bastante frustrado diante dessa imposição, uma vez que sente desejo, mas não pode supri-lo.

Seu envolvimento com Julia faz acender um novo desejo pela mudança e ele se envolve numa tentativa de revolução para derrubar o governo. No entanto, a revolução acaba não sendo o que ele esperava. Ao fim do romance, com os planos de uma revolução

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frustrados, Winston passa por uma lavagem cerebral que tenta forçá-lo a aceitar e sujeitar-se à dominação do Big Brother.

É interessante observar como o poder é diretamente associado ao medo da população instaurado pela constante vigilância do Big Brother. Desde o inicio da narrativa, observamos Winston sendo observado e as manobras que realiza para ficar por alguns instantes fora do foco de vigilância do telescreen, que está sempre ligado transmitindo algo para a população e observando-os. Até mesmo os exercícios físicos são controlados pela máquina presente em todos os lugares. Em associação ao telescreen, os cartazes com a imagem do Big Brother e os dizeres indicando que ele está assistindo a todos reafirmam o controle do governo, fazendo com que a população nunca esqueça de que está sendo constantemente observada.

Não havia lugar de destaque que não ostentasse aquele rosto de bigode negro a olhar para baixo. Na fachada da casa logo do outro lado da rua, via-se um deles. O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ, dizia o letreiro, enquanto os olhos escuros pareciam perfurar os de Winston. (ORWELL, 2005, p.12)

A citação deixa clara a sensação transmitida pelo cartaz. É como se o próprio Big

Brother estivesse observando cada passo de Winston, mesmo sem a presença do telescreen. Esse medo da perda da privacidade e da vigilância constante apresentados na

obra de Orwell pode ser explicado pelos avanços tecnológicos da época, utilizados pelos governos para enganar e manipular a população.

Orwell enxergava o poder que a propaganda totalitária exercia sobre a população, tal qual os anúncios midiáticos que manipulavam as massas. O que ele faz no romance é aumentar essa influência, adicionando os aspectos da observação constante, proporcionando ao leitor a possibilidade de refletir sobre sua atual situação, a partir daquela apresentada em 1984.

O poder imposto através da vigilância é algo exposto por Focault em sua obra Vigiar

e punir (2002), na qual ele retoma a estrutura do panóptico proposto pelo filósofo e jurista

inglês Jeremy Bentham, como técnica de controle social, instrumento de disciplina e controle em manicômios, hospitais, escolas, indústrias, presídios ou casas de correção. Esse tipo de estrutura mantém quem está no seu interior sob os olhos atentos de quem os observa, aumentando o medo e impedindo que o detento faça algo errado, possibilitando as

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punições, quando por ventura houver transgressões. Michel Foucault, a título de crítica, frisou a importância do panóptico como ferramenta de poder afirmando que quanto maior o número de informações em relação aos indivíduos, maior a possibilidade de controle desses indivíduos.

Figura 1 – A estrutura do panóptico4

Em 1984, o panóptico, como construção física é substituído pelo telescreen, numa clara alusão aos avanços tecnológicos da época. A representação do panóptico no romance de George Orwell será explicitada na próxima sessão desta monografia.

4 Imagem disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.187/5888>. Acesso em: 04 de

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3 O PANÓPTICO NA DISTOPIA

3.1. DO SUPLÍCIO AO PANÓPTICO

Já nas primeiras páginas do romance 1984 ficam claros o medo e o poder associados à figura do Big Brother e como isso se relaciona à constante vigilância exercida e estendida por ele a praticamente todos os cidadãos. Apesar da clara impossibilidade de um só homem observar milhares de pessoas ao mesmo tempo, todo o tempo, a presença dos telescreens e a propaganda lembrando a todos de sua situação mantêm a atmosfera de medo e o controle. Aqui, vale lembrar, ainda, o conceito cunhado por Samuel Coleridge, em 1817, de “suspensão da descrença” resultante da aparência de “verdade” que não apenas o cinema, mas também a literatura – especialmente no caso do extraordinário – pode suscitar no fruidor. A possibilidade de ser visto a qualquer momento é o que prevalece e mantém a ordem. É esse efeito e esse modelo de governo que foram explicitados pelo filósofo Michel Foucault no seu livro Vigiar e punir, na década de 70, no século XX.

Nessa obra, Foucault traça a evolução do sistema de punições e mostra como este se relaciona com diversas áreas da sociedade submetidas a técnicas que também orientam praticamente todas as operações humanas. É interessante observar ainda como todos os estágios do sistema punitivo encontram-se presentes na sua forma final que é a prevalente no romance de Orwell, como veremos a seguir.

Inicialmente, os crimes eram punidos com castigos físicos, denominados suplícios. Em Vigiar e punir, Foucault explica que os suplícios eram proporcionais ao dano causado pelo criminoso. Assim, ele sofreria de forma proporcional e seria muitas vezes morto ao final do processo. Com o passar do tempo, no entanto, os suplícios passaram a ser considerados demasiadamente cruéis, e a sociedade passou a repudiá-los, implantando, aos poucos, uma “necessária” mudança no sistema penal.

Assim, os suplícios passaram a ser substituídos pelas prisões. Ao invés de uma punição dolorosa, aplicada diretamente ao corpo dos criminosos, estes sujeitos passavam a ser privados de sua liberdade. Dessa forma, a punição pelo crime passava a ser velada, realizada longe dos olhos da sociedade. Até mesmo para a pena de morte, um novo método é adotado: a guilhotina. Segundo Foucault, a guilhotina representa uma morte igual e pouco dolorosa para todos, na qual há pouco ou nenhum contato do carrasco com o criminoso:

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Quase sem tocar o corpo, a guilhotina suprime a vida, tal como a prisão suprime a liberdade, ou uma multa tira os bens. Ela aplica a lei não tanto a um corpo real e susceptível de dor quanto a um sujeito jurídico, detentor, entre outros direitos, do de existir. Ela devia ter a abstração da própria lei. (FOUCAULT, 1975, p.16)

Enquanto os encarceramentos tornam-se a forma mais comum de punição, as prisões passam a evoluir de modo a disciplinar ao máximo os detentos, tolhendo-os, cada vez mais, de qualquer tipo de liberdade. Assim, os detentos têm horários determinados para acordar, alimentar-se, trabalhar, sem que exceção alguma seja autorizada. Nesse ponto do sistema, Foucault (1975) afirma que a punição foi transferida do corpo com extintos suplícios para a alma, visto que os detentos são tratados basicamente com maquinário.

Aos poucos o encarceramento vai tornando-se comum em outras esferas da sociedade. Na educação, os internatos tornam-se cada vez mais comuns, as indústrias passam a se assemelhar a prisões e os internamentos hospitalares também seguem o mesmo modelo. Em todas essas esferas, a disciplina é algo de suma importância e os membros de cada uma delas são cuidadosamente organizados em séries, filas e tem seus horários e funções separados e delimitados com perfeição.

O chamado panóptico seria, para Foucault, o próximo passo dessa evolução. Uma forma de prisão na qual todos os detentos se encontram passiveis de observação constante, sem jamais ver seu observador e com pouco ou nenhum contato com outros na mesma situação.

O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções — trancar, privar de luz e esconder — só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha. (FOUCAULT, 1975, p.223)

Fica clara assim a visão de Foucault a respeito da relação entre vigilância constante e o exercício do poder por seus detentores. Os observadores se encontram protegidos, enquanto os punidos encontram-se à mercê de seus olhos, suas informações, sua misericórdia.

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3.2. O PANÓPTICO EM 1984 E OUTRAS DISTOPIAS

A organização da sociedade apresentada no romance de Orwell mostra uma versão extrema do panóptico, estendendo-o para toda a sociedade e não o restringido apenas às prisões. Todos os cidadãos estão sob os holofotes, expostos aos olhos do Big Brother, submetidos à crença de sua existência, ainda que ele jamais tenha sido visto pessoalmente.

A questão da disciplina também pode ser observada em 1984, visto que todos os cidadãos têm rotinas rigidamente estabelecidas (até mesmo os exercícios físicos são controlados pelo telescreen). Além disso, casamentos e amizades são observados e devem ser aprovados pelo governo de acordo com a compatibilidade dos envolvidos. O governo mantém ainda a população com uma quantidade mínima de suprimentos aumentando ainda mais a dependência de cada membro dessa sociedade em relação ao poder.

Observa-se ainda, ao final, no romance de Orwell um aparente retorno ao suplicio através da tortura imposta a Winston, a fim de fazê-lo sucumbir e admitir a existência e a supremacia do Big Brother. Winston é torturado física e psicologicamente, tendo o corpo e a alma maculados para expurgar seus crimes e admitir o que o governo exige. Aqui, no entanto, essa tortura não é realizada de forma pública, o que mancharia a imagem do Big

Brother, mas às escuras, longe dos olhos da sociedade, em espaços semelhantes aos que

foram denominados no Brasil, durante o último período de repressão como “porões da ditadura”.

Em 1984, há ainda um grupo de pessoas que vive aparentemente fora da zona de vigilância do Big Brother. Nesses locais, há contrabando e os moradores têm certa liberdade. No entanto, são considerados menos humanos que os demais e mantidos na miséria como que a mostrar aos outros como é ruim e perigoso se arriscar a viver sem a vigilância e a aparente proteção do Big Brother e do governo.

A problemática da vigilância é uma constante em boa parte das obras distópicas ao longo dos séculos. A maioria das sociedades distópicas possuem regras estritas, rotinas estabelecidas para cada um de seus cidadãos e a constante sensação de está sendo observado, ainda que não tão evidente quanto em 1984.

No romance Farenheit 451 (1953), de Ray Radbury, por exemplo, existe uma proibição estrita em relação à leitura. Livros, revistas ou qualquer material de leitura são objeto de contrabando e, se localizados em posse de algum cidadão, são queimados, resultando na punição do possuidor. Nessa sociedade há também aparelhos semelhantes a

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televisões em todas as casas que ficam ligadas o tempo todo alienando a população e também pílulas que administradas para evitar possíveis revoltas.

Em O doador de memórias (1993), de Louis Lowry, existe uma determinação de funções para cada cidadão, uma vez que eles alcancem a adolescência. Há câmeras espalhadas por todos os ambientes e também a presença das pílulas que são ministradas a fim de controlar impulsos específicos e impedir que alguém saia do controle. Essas características repetiram-se e ainda se repetem em diversas situações e narrativas de distopia ao longo dos anos.

3.3. A PRESENÇA DA MÍDIA NAS DISTOPIAS

No mundo contemporâneo, observa-se também o controle da mídia, dada a sua extensa capacidade de divulgação de fatos e acontecimentos. Em quase todas as sociedades distópicas, existe um tipo de artefato tecnológico nas residências que transmite as informações do governo. Essa é a única fonte de informação a que os cidadãos têm acesso que os demanda o silenciamento no que diz respeito a discussões e contestações, e na medida em que não tem chance de divulgar ou interferir. O governo é detentor do único canal de informação nessas sociedades o que proporciona controle de informações e impede a divulgação de qualquer fato por um cidadão não autorizado, que não esteja de acordo com as diretrizes governamentais. O exemplo mais conhecido na nossa contemporaneidade é o da Coreia do Norte.

3.4. A CRESCENTE POPULARIDADE DOS REALITY SHOWS

A associação entre poder e observação talvez seja uma das explicações para o crescente sucesso de programas televisivos conhecidos como reality shows. Como o próprio nome indica, esses shows de realidade têm como premissa mostrar pessoas reais, vivendo suas vidas sem script, ao menos em teoria. O primeiro reality show foi exibido pela emissora estadunidense PBS chamado Uma Família Americana, deflagrando um gênero que se tornou bem sucedido e espalhou-se mundialmente com o holandês Big

Brother.

O programa, nomeado em referência à figura apresentada no romance de Orwell, apresenta doze participantes desconhecidos que são confinados em uma casa num período

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de três meses. A cada semana um dos participantes é eliminado pelo público e o vencedor ganha uma larga quantia em dinheiro. A franquia foi, e continua sendo, extremamente bem sucedida, teve seu formato vendido para várias emissoras ao redor do mundo e copiado por diversas outras que buscavam seguir seu sucesso.

Atualmente, existem dezenas de programas que seguem a linha de reality show com diferentes premissas. Alguns apresentam pessoas em situações extremas tentando sobreviver, como o americano Survival (agora na sua vigésima terceira temporada) e o brasileiro No Limite, uma das primeiras tentativas nacionais do gênero. Outros seguem a vida de famílias ricas, como Keeping up with the Kardashians. Alguns acompanham, ainda, grávidas adolescentes e assim sucessivamente, dentro do que a imaginação se traduzir maior audiência e marketing.

O sucesso dos reality shows vem crescendo gradativamente, diversificando e expandindo seu público a cada dia. Esses programas dão a seus telespectadores uma sensação de poder em relação aos participantes, uma vez que eles os observam diariamente, decidem quem fica e quem sai a cada semana, elegem favoritos, escolhem mocinhos e vilões, que ávidos lutam por uma boa quantia em dinheiro.

Sabe-se, no entanto, que essa sensação de poder dos telespectadores não é necessariamente real. Os programas são manipulados desde a escolha aparentemente aleatória dos participantes até a edição das emissoras que mostram o que querem de modo a possibilitar que o público sinta o que eles desejam, fazendo com que os programas se tornem mais interessantes. Assim, o público é tomado pela sensação de que tem algum poder e de que está vendo algo real, quando na verdade apenas consome mais um produto midiático feito pelos mesmos sujeitos que produzem os demais programas de televisão. A respeito da escolha dos participantes da primeira edição do “Big Brother Brasil”, por exemplo, observa-se que:

Tanto os homens entre si, quanto as mulheres tinham o biotipo semelhante. Todos eram magros à exceção do cantor, que era um pouco mais gordo. As mulheres, além de magras, tinham o quadril mais largo que o tronco, que se alinhava com as cinturas finas, formando um padrão na casa do Big Brother Brasil, o padrão associado a mulher brasileira. (ALMEIDA, 2003, p.64)

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As criticas ao gênero dos reality shows são diversas e frequentes por parte dos intelectuais. Vale frisar que a televisão e todo o seu conteúdo são alvo de criticas desse público como afirma Veronica Eloi de Almeida:

Segundo Martin-Barbero se os intelectuais que pesquisam a televisão vêm o desligar do aparelho como a única saída, não cabe mais pensar em políticas de televisão, em luta contra a lógica mercantil, ou numa televisão pública que passe das mãos do governo para as mãos das organizações da sociedade civil, ou ainda na valorização dos canais independentes. Não há nem mesmo a necessidade de se formar uma visão critica que distinga informação independente de informação submissa ao poder político e econômico. (ALMEIDA, 2003, p. 30)

Observa-se que a televisão em geral tende a ser considerada algo nocivo, um instrumento de manipulação das massas que apenas dita comportamentos sem que haja espaço para reflexão do público. Essa noção vem desde o surgimento desse equipamento tecnológico e talvez venha daí sua presença em romances distópicos com uma função tão negativa.

A televisão é considerada uma forma de mídia unilateral, visto que a informação é transmitida sem possibilidade de interação com o público e sob o controle de um grupo pequeno de pessoas, proporcionando um ambiente favorável à manipulação. No mundo contemporâneo, com as mídias sociais, no entanto, essa realidade mudou um pouco e isso se reflete nas obras distópicas produzidas mais recentemente.

Em 2010, Suzanne Collins publicou o romance Jogos Vorazes. A obra, que trouxe o gênero distópico de volta à evidência, apresenta uma sociedade distópica bem similar às apresentadas anteriormente, embora aqui, o governo utilize um novo instrumento para exercer poder e espalhar medo pela sociedade: um reality show. A função do reality show no texto de Suzanne Collins e sua relação com o panóptico, o romance de George Orwell e a forma como a mudança na mídia contemporânea influencia a obra serão exploradas no próximo capitulo desta monografia.

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4 A DISTOPIA NA CONTEMPORANEIRADE

4.1. SUZANNE COLLINS E JOGOS VORAZES

A trilogia Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, que teve o primeiro volume publicado nos Estados Unidos em 2008, e no Brasil em 2010, é a obra distópica mais bem sucedida da contemporaneidade. Figurou em primeiro lugar na lista de mais vendidos do The New

York Times durante semanas, tendo os romances sido traduzidos para mais de trinta

idiomas. Além dos textos escritos, a história foi adaptada para o cinema e os quatro filmes foram campeões de bilheteria ao redor do mundo. As formas como a obra de Collins apresenta o panóptico e se relaciona com o romance 1984 de Orwell serão objeto das reflexões neste capitulo.

Filha de um doutor em ciência política que é também veterano da guerra do Vietnam, Suzanne Collins foi exposta a relatos de guerras e política desde a infância. Em entrevista concedida à editora Scholastic, a escritora conta que o pai sempre conversou sobre os assuntos em casa e preocupava-se em contextualizar as guerras, explicando suas causas e consequências. Assim, não é difícil compreender a preocupação de Collins com os temas. Quando questionada a respeito do gênero no qual escreveu seus livros, a autora afirmou:

Contar uma história em um mundo futurístico te dá liberdade para explorar coisas que te incomodam atualmente. Então, no caso de Jogos Vorazes, problemas como a vasta discrepância de riquezas, o poder da televisão e como ela é usada para influenciar nossas vidas, a possibilidade de que o governo possa usar a fome como arma, e o mais importante pra mim, o problema da guerra. (HUDSON, 2013)

A respeito da inspiração para a trilogia, Suzanne Collins apontou um mito grego:

Em parte é baseado no mito de Teseu e o Minotauro, que li aos oito anos de idade. Eu era uma grande fã de mitologia grega e romana. Como punição por desagradar Creta, Atenas tinha que enviar periodicamente sete meninos e sete meninas para Creta, onde eles eram lançados no labirinto e devorados pelo Minotauro, um monstro que é metade homem,

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metade touro. Desde criança, a história me amedrontava, porque a crueldade não tinha limites.5 (MARGOLIS, 2008)

No mito mencionado, a crueldade de Creta tem fim quando Teseu se voluntaria para matar o Minotauro, pondo fim ao ciclo de violência, ato que a protagonista de Collins repete no primeiro volume da trilogia.

Jogos Vorazes transcorre num futuro indeterminado em Panem, um país dividido

entre doze distritos e a capital. Anos antes do momento em que o livro começa havia treze distritos que se rebelaram contra a capital a fim de acabar com o regime autoritário vigente. A rebelião falhou, o décimo terceiro distrito foi exumado e os Jogos Vorazes, competição que dá nome à trilogia e ao primeiro livro da saga, foram instituídos.

Os Jogos Vorazes consistem em um reality show em que um menino e uma menina de cada distrito que tenham entre 12 e 18 anos são colocados numa arena para lutar até a morte. A competição é transmitida pela televisão para todo o país e, além de sobreviver aos oponentes, os participantes enfrentam ainda diversas armadilhas colocadas na arena pelos organizadores. O vencedor ganha suprimentos de comida para seu distrito e o direito de viver com parte dos privilégios concedidos apenas aos moradores da Capital.

Dentro desse contexto, seguimos a história de Katniss Everdeen. Moradora do distrito 12, um dos mais pobres do país, aos 16 anos Katniss é responsável pelo sustento de sua mãe e da irmã mais nova, Prim. Para tal, ela recorre à caça e a trocas ilegais com a ajuda do amigo Gale. No inicio do romance, a narrativa remete o leitor à “colheita”, cerimônia na qual os participantes dos jogos são sorteados. Uma vez que o nome de Prim aparece no sorteio, Katniss se voluntaria para tomar seu lugar e vai para os jogos ao lado do outro sorteado, Peeta Melark.

Desde a preparação para os jogos, Katniss toma algumas atitudes que desafiam a Capital e a tornam um alvo e uma ameaça para o governo. Durante os jogos as alianças que ela estabelece primeiro com a participante do distrito 11, Rue, e mais tarde com o próprio Peeta, fazem com que o público fique concentrado em sua jornada. Os organizadores dos jogos tentam usar essa aliança a favor da Capital, fazendo com que Peeta e Katniss

5Nossa tradução de: “It’s very much based on the myth of Theseus and the Minotaur, which I read when I

was eight years old. I was a huge fan of Greek and Roman mythology. As punishment for displeasing Crete, Athens periodically had to send seven youths and seven maidens to Crete, where they were thrown into the labyrinth and devoured by the Minotaur, which is a monster that’s half man and half bull. Even when I was a little kid, the story took my breath away, because it was so cruel, and Crete was so ruthless.”

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acreditem que ambos podem vencer. Quando restam apenas os dois, surge a revelação de que houve uma mudança nas regras e um deles deve morrer.

Diante dessa situação, Katniss entende de uma vez por todas as estratégias da capital e toma, ainda que sem intenção ou mesmo consciência, a atitude final que desencadearia a rebelião:

Sim, eles precisam de um vitorioso. Sem um vitorioso, a coisa toda explodiria nas mãos dos Idealizadores dos Jogos. Eles teriam fracassado diante da Capital. Talvez fossem até executados, lenta e dolorosamente, com as câmeras transmitindo para todas as telas de televisão do país. Se Peeta e eu morrêssemos, ou se eles imaginassem que nós tivéssemos... (COLLINS, 2010)

Assim, Katniss oferece uma fruta venenosa para Peeta, propondo que ambos a comam negando à Capital o luxo de haver apenas um vitorioso. Ao perceberem o plano de Katniss, os Idealizadores interrompem os Jogos, anunciando a vitória de ambos os participantes pela primeira vez na história do certame. Nos dois capítulos que se seguem no romance, “Em chamas” e “A esperança”, Katniss lida com as consequências de seus atos na arena, que acabaram por transforma-la no símbolo da revolução e inimiga do governo.

4.2. JOGOS VORAZES x 1984

Uma das semelhanças entre o governo presente em Jogos Vorazes e aquele apresentado no texto de Orwell é a forma como se faz vista grossa para algumas atividades ilegais. Enquanto em 1984 o comércio paralelo e outras atividades ilícitas ocorrem à margem do país, na trilogia de Collins o mercado Prego existe sob os olhos dos pacificadores e permite que a população faça trocas ilegais no mercado convencional, estratégia que faz parte do controle do governo.

Em ambas as obras distópicas, encontramos, ainda, a manipulação da história por parte do governo, através da mídia e do sistema educacional.

O medo ininterrupto é o maior temor que Orwell projetou como forma de vida na sua Oceania. Nada do que se aprende nas escolas, se lê nos jornais ou se vê nas teletelas pode ser considerado como conteúdo

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definitivo: a história e as informações oficiais são mutáveis. (NEUMANN, SILVA, KOPP, 2013)

Percebe-se que em Oceania, toda informação transmitida é manipulada por meio da modificação de registros históricos que a população sequer percebe. Em determinado momento do romance de Orwell, Winston se recorda que em algum momento Oceania esteve em guerra com um determinado país, apesar de todos os registros indicarem que a guerra sempre foi contra outro.

Em Jogos Vorazes esse tipo de manipulação aparece de forma similar:

Na escola, os alunos são constantemente lembrados das consequências dos “Dias Escuros”, injetados de patriotismo forçado e suas principais lições estão relacionadas ao tipo de produção dominante em seu distrito. Não há sugestões alternativas nem aspirações profissionais que fujam dessa realidade ou projetem alguma esperança em um futuro de menos precariedade. (NEUMANN, SILVA, KOPP, 2013)

Os chamados “dias escuros” são a tentativa de revolta dos distritos, rebelião que culminou na extinção do Distrito 13 e na instituição dos Jogos Vorazes. No entanto, é revelado posteriormente que o décimo terceiro distrito não foi extinto e a Capital sabe disso. A informação falsa é massivamente transmitida em Jogos Vorazes, assim como em

1984, tanto através da mídia, como nas escolas, com o intuito de manter a população cega

e amedrontada.

Outro instrumento utilizado como instrumento de controle por parte do governo, em ambas as obras, é a instauração do medo. A constante vigilância, os produtos midiáticos massivos e obrigatórios e a presença de castigos cruéis, em alguns casos desconhecidos, são frequentes não apenas em ambas as obras, mas também em regimes que configuram distopias em geral.

E de um modo muito bem articulado, esses regimes fazem uso de expressões estéticas na forma de cultura de massa, utilizando de forma peculiar a indústria cultural e toda sua produção. Portanto ao limitar o livre pensamento, basicamente eliminar a vida privada, vigiar intensamente e punir impiedosamente, um estado totalitário rompe o equilíbrio entre liberdade e segurança, buscando desesperadamente

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controlar a manutenção do seu governo, acaba por desgovernar-se. (STREHL, 2014)

Essa vigilância constante se faz presente em Jogos Vorazes de modo similar àquele construído em 1984, podendo também ser associada ao panóptico. Há câmeras presentes em todos os distritos e, associado a isso, há a presença constante dos chamados Pacificadores, que fiscalizam e punem a população dos distritos de acordo com as leis estipuladas pela Capital. Apesar de não existirem os chamados telescreens em Panem, o aparelho televisivo está presente em todas as residências e cumpre um papel extremamente importante: transmitir os Jogos e a propaganda do governo.

4.3. O PANÓPTICO EM JOGOS VORAZES

É interessante observar como o panóptico é usado na obra de Suzane Collins de forma invertida. Além da vigilância do governo, a presença dos Jogos apresenta outra face desse processo: enquanto os vinte e quatro jovens lutam por suas vidas na arena, toda a população é obrigada a assistir.

A transmissão desse reality show extremamente violento e a obrigatoriedade imposta a cada habitante de Panem para assisti-lo constituem ferramentas de manipulação adotadas pelo governo extremamente eficazes. Os jovens encontram-se dentro do panóptico, e o seu sofrimento é compartilhado por aqueles que os assistem. Os Jogos são um lembrete de quão insignificantes suas vidas são naquele lugar. Em contrapartida, os moradores da Capital, assistem ao espetáculo completamente imunes a ele, sem se dar conta de que há seres humanos naquela arena.

A ideia do sofrimento de pessoas, normalmente desfavorecidas socialmente, sendo utilizado como forma de entretenimento não é algo presente apenas em Jogos Vorazes. Durante o período da Inquisição, na Idade Média, mulheres consideradas bruxas, foram queimadas em praça publica diante de multidões frenéticas. No Império Romano, pessoas eram jogadas em arenas para lutar até a morte contra animais e outros seres humanos como forma de entretenimento para os governantes e a população em geral. Em Vigiar e punir, Foucault expõe como as primeiras formas de punição eram cruéis e executadas como espetáculos. Jogos Vorazes retoma o tema, enquanto faz uso da crítica com relação ao poder massificador do comportamento construído pelas grandes redes de televisão e, em

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particular, aos reality shows, todos meios mais modernos de punir a nossa incapacidade de refletir sobre nossas próprias vidas.

4.4. A REVOLUÇÃO BEM SUCEDIDA

Um aspecto que diferencia a obra de Orwell da de Collins, no entanto, é a revolução, seu desenvolvimento e desfecho, além da maneira como os protagonistas se colocam diante dela. Em 1984, Winston busca a revolução. É iniciativa dele procurar o grupo rebelde com a intenção ativa de derrubar o governo e estabelecer uma sociedade melhor. No entanto, sua tentativa de revolução acaba sendo uma farsa visto que seu mentor era parte do governo e acaba prendendo-o e torturando-o.

Katniss, em contrapartida, nunca teve a intenção de participar de uma revolução. Apesar de ter consciência dos erros cometidos pelo governo e de não concordar com sua política, a única ambição de Katniss é sobreviver para cuidar de sua família. Apesar disso, ela se vê jogada no meio da revolução, sendo considerada um símbolo e uma líder. Além disso, a rebelião da qual Katniss participa é aparentemente legítima e vitoriosa.

Ao comparar os desfechos das duas obras, é importante observar que distopias são fortemente influenciadas pela sociedade que as produzem. Tais romances funcionam como um alerta para humanidade, ressaltando os perigos que certos comportamentos nocivos representam para o ser humano e para o mundo. Assim, cada obra distópica funciona com um espelho da sociedade na qual o autor se encontra.

1984 foi escrito em 1949, durante o período da Guerra Fria e bem depois do fim da

Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O muro de Berlim ainda estava de pé, o fantasma da Terceira Guerra Mundial parecia rondar cada vez mais próximo e a luta entre as ideologias capitalista e socialista crescia acirrada. Além disso, o mundo presenciara direta ou indiretamente, havia pouco tempo, um governo totalitário que chegava à beira do limite. Os horrores do nazismo e do fascismo ainda assombravam a população, e o medo de que pudessem retomar o controle ainda estava no ar. Assim, 1984 apresenta o totalitarismo levado ao extremo e todos os resquícios de liberdade retirados. Seu desfecho reflete, portanto, a falta de esperança e o pessimismo, que tomavam conta do cenário mundial, uma vez que chegando àquele ponto, não haveria maneira de voltar.

Jogos Vorazes, no entanto, é uma obra contemporânea. O mundo ocidental vive

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diariamente nas telas das nossas TVs, parecem distantes. Mas essa aparência, não é real. Collins utiliza os reality shows, programas que se tornaram extremamente populares e que são compartilhados atualmente por grande número de espectadores, e para mostrar quantos absurdos acontecem sob nossos olhos de forma disfarçada e manipulada pela mídia.

É visível que Jogos Vorazes, assim como 1984, utiliza os aspectos mais perigosos da sociedade para lançar seu alerta.

Jogos Vorazes, em termos contextuais mais amplos, expõe os medos da sociedade norte-americana em relação a uma série de eventos e condições que tem marcado o país na última década. O atentado às Torres Gêmeas, em 2001, e a crise do mercado imobiliário que se refletiu em toda a economia, em 2008, são eventos marcantes de uma nação que tem visto seu poderio global ser enfrentado e as diferenças sociais internas, através da concentração de renda, se radicalizado. Collins, a partir disso, expressa os seguintes medos: divisão radical entre grupos sociais; precariedade e escassez para a maioria da população a fim de manter um grupo bem abastecido; fim do controle sobre o próprio destino e perda de esperança; ausência de mobilidade social; uso da mídia como forma de opressão, ameaça e entretenimento vulgar; sistema produtivo baseado na exploração humana; vida fútil e autocentrada (Capital) versus vida ameaçada (Distritos). (NEUMANN, SILVA, KOPP, 2013)

Nesse sentido, Jogos Vorazes, assim como o romance de Orwell e outras distopias, funciona como um alerta para a sociedade. Os medos mais comuns da população estão ali de forma exagerada e com graves consequências. No entanto, seu desfecho a faz diferir de suas antecessoras, visto que a revolução é, até certo ponto, bem sucedida. O Presidente Snow foi derrubado, os Jogos acabaram.

O tom esperançoso do fim de Jogos Vorazes faz com que a obra se diferencie das distopias literárias produzidas nos séculos anteriores e talvez a razão para isso esteja também no contexto social em que foi produzida. Há que se considerar que, apesar de ainda haver uma mídia de certa forma unilateral e controladora na nossa contemporaneidade, esse contexto é mais flexível que nunca. A presença das mídias sociais, tais como Facebook, Twitter, Instagram e outros, dá à população uma nova autonomia, expandindo sua capacidade crítica. A juventude em especial tem a oportunidade inédita de ser ouvida ao redor do mundo. A mídia convencional ainda existe

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com força inegável, mas em nenhum outro momento da história a mídia alternativa teve tanto espaço. Blogs, vlogs, dentre outros meios, têm um poder de divulgação muito superior à mídia impressa, que era a única forma que rebeldes tinham para espalhar sua mensagem no tempo de Orwell.

Assim, Katniss Everdeen representaria essa juventude que tem acesso e controle de uma parte da mídia. Desde o momento em que se voluntaria para substituir a irmã, ainda que inconscientemente, ela utiliza a mídia a seu favor. Um veículo que antes era apenas forma de opressão e manipulação transforma-se em objeto da revolução. É através da mídia que os aliados de Katniss conseguem patrocinadores para ajudá-la durante os jogos; é utilizando a mídia que Katniss populariza os elementos, tais como a imagem do pássaro tordo, que se tornam símbolos da revolução associados a ela.

Em Jogos Vorazes Collins faz mais que dar um alerta; ela apresenta uma saída. É importante observar que a trilogia foi publicada no gênero young adults, ou jovens adultos, tendo como público alvo crianças e adolescentes, que são também os usuários mais ativos das redes sociais. Collins indica ao público ao qual a produção se direciona, primariamente, a arma poderosa que eles têm nas mãos.

4.5. A INFLUÊNCIA DE JOGOS VORAZES

Segundo Neumann, Silva, Kopp (2013) ainda não é possível afirmar que Jogos

Vorazes terá o mesmo alcance que 1984 e algumas outras distopias que a antecederam. A

produção dos filmes e a distribuição dos livros e merchandising da obra possuem um caráter extremamente comercial sendo de certa forma contraditória ao alerta que a película faz emergir. Entretanto, alguns efeitos do filme já são visíveis fora da esfera comercial.

Em novembro de 2014, após militares tomarem o governo através de um golpe na Tailândia, rebeldes organizaram manifestações nas quais faziam o sinal de luto presente em Jogos Vorazes e liam trechos de 1984. Apesar da afirmação dos militares de que os protestos não os preocupavam, rebeldes foram detidos e a exibição do filme foi interrompida em diversos cinemas tailandeses. Nos Estados Unidos, a trilogia foi banida em algumas escolas:

A leitura do texto de Collins chegou a ser proibida em certas escolas norte americanas. A alegação seria de que há muita violência nos embates entre os tributos durante os jogos. Não parece muito coerente em

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comparação com aquilo que qualquer jovem consome na internet e na televisão diariamente, mas essa seria a justificativa. Talvez a maior transgressão e incômodo de Jogos Vorazes seja mostrar como a ficção, até para jovens adultos e com apelo comercial, é capaz de oferecer um espaço de manifestações sobre as incertezas do futuro num país que tem visto sua segurança, sua política, suas crenças, seus sonhos, suas instituições, sua integração e sua economia se mostrarem muito mais frágeis do que pareciam. (NEUMANN, SILVA, KOPP, 2013)

Muito embora seja uma obra recente, Jogos Vorazes já tem causado incômodo e servido como artifício em rebeliões, tal como ocorreu com 1984, e isso talvez seja indicativo do que poderá representar no futuro.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através dos anos, a literatura distópica vem desempenhando um papel significativo. As obras, que historicamente surgem em momentos críticos da política mundial, refletem o contexto em que são produzidas e alertam para as possíveis consequências dos atos repressivos cometidos por poderes autocráticos. O impacto causado pelos clássicos do gênero, especialmente de 1984, foi vasto no momento de sua publicação e seu reflexo ainda ecoa nas sociedades contemporâneas. O recente crescimento e sucesso da produção de distopias iniciadas com a publicação de Jogos Vorazes, com vistas a uma audiência jovem e literariamente emergente, mostra como o gênero se modificou e continua relevante.

O primeiro capítulo desta monografia dedicou-se a descrever o contexto histórico no qual George Orwell viveu e escreveu. A partir daí, fizemos uma breve introdução sobre o gênero distópico e sobre o romance 1984, relacionando-o com o contexto de sua produção. Concluímos, ao fim das considerações, que é possível afirmar que há uma forte relação entre o contexto histórico-social e a produção distópica, aproximando a literatura da sociedade em diversos aspectos.

O segundo capítulo dedicou-se a explorar o conceito de panóptico apresentado por Michel Foucault em Vigiar e Punir, aplicando-o à literatura distópica em 1984, observando como o panoptismo funciona no romance objeto deste estudo. Atentou-se aqui para a associação entre poder, vigilância e punição como bases da sociedade distópica clássica, indicando sua presença quando o gênero renasce na contemporaneidade.

O último capítulo introduziu a obra Jogos Vorazes e sua autora, Suzanne Collins. Em seguida, aplicamos a esta produção o conceito do panóptico e estabelecemos as relações de distopia entre a obra contemporânea e a clássica, 1984. Fizemos, ainda, uma análise do contexto em que Jogos Vorazes foi produzido e refletido contemporaneamente. O capítulo reforça, assim, o forte vínculo entre a literatura distópica e a sociedade que a produz, bem como o temor que, de forma semelhante, atravessa os anos e metaforiza-se no signo do panóptico.

O romance 1984 emerge da guerra fria, um momento dominado pela presença do totalitarismo, por medos e incertezas devido à ameaça constante de eclosão da Terceira Guerra Mundial. A influência desses elementos é vasta no romance e sua atmosfera pessimista e drástica se encontra presente na sociedade da época. Já Jogos Vorazes é uma

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obra contemporânea, produzida em um tempo no qual o fantasma das duas grandes guerras e do totalitarismo encontra-se adormecido, pelo menos em boa parte do mundo ocidental. No entanto, encontramos nestas sociedades, que se orgulham de ser majoritariamente democráticas, aspectos tão amedrontadores quanto os que existiam na guerra fria. É a partir desta constatação que Jogos Vorazes é criado.

Conforme discutido no terceiro capítulo da monografia, apesar de apresentar um futuro pessimista, o texto termina numa nota esperançosa. Ainda vivemos numa sociedade extremamente influenciada pela mídia e os principais canais midiáticos constituem a chamada terceira via de poder. No Brasil, recentemente diante de uma forte divisão política, a principal emissora do país optou por polarizar as manifestações, concedendo diversas vezes a um lado o título de militantes e ao outro o de vândalos. Essas manifestações, no entanto, ganharam força através das redes sociais, onde os usuários expuseram as a forma problemática como a mídia faz a cobertura dos eventos, conseguindo aliados para os dois lados, o que seria impossível quando Orwell escreveu 1984.

Dessa forma, foi possível concluir que o gênero distópico, desde o seu surgimento, cumpriu o papel de tentar alertar a sociedade para a gravidade dos erros que estavam sendo cometidos, mostrando a possibilidade de um futuro desmazelado. Então, o ressurgimento do gênero na contemporaneidade e os tópicos trazidos por ele merecem ser observados e estudados com atenção para que sejamos capazes de impedir a concretização dos Jogos

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