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ESTALINE NOS MANUAIS DE PORTUGAL E BRASIL

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Academic year: 2021

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MESTRADO

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

ESTALINE NOS MANUAIS DE PORTUGAL

E BRASIL

Paulo Oisiovici

M

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Paulo Oisiovici

Estaline nos manuais de Brasil e Portugal

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em História Contemporânea, orientada pelo(a) Professor(a) Doutor(a) Luís Alberto Marques Alves

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

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Estaline nos manuais de Portugal e Brasil

Paulo Oisiovici

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em História Contemporânea, orientada pelo(a) Professor(a) Doutor(a) Luís Alberto Marques Alves

Membros do Júri

Professora Doutora Marília Gago

Instituto Superior de Ciências Educativas - Universidade do Minho

Professora Doutora Maria da Conceição Coelho de Meireles Pereira Faculdade de Letras – Universidade do Porto

Professor Doutor Luís Alberto Marques Alves Faculdade de Letras- Universidade do Porto

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Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto no âmbito

do Mestrado em História

Contemporânea, realizada sob a orientação do Professor Doutor Luís Alberto Marques Alves

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Dedico este trabalho (in memoriam) ao Doutor Clodomir Santos de Morais, aos meus pais, às minhas filhas Gisele e Mariana, aos meus

netos Mateus e Lara, aos

camponeses do Couro de Porco, aos que tombaram na luta contra a ditadura militar no Brasil, (in memoriam) aos meus familiares paternos deportados e mortos na Romênia durante o Holocausto pelo preposto nazi naquele país, Ion Antonescu, e ao camarada Diógenes Arruda Câmara, único comunista brasileiro a ter uma audiência privada com Stálin.

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SUMÁRIO

Agradecimentos Resumo/Abstract

Introdução ... 5

Capítulo 1 Epistemologia e Ensino da História ... 8

1. (R)evolução Científica ... 8

2. Das ciências à ciência histórica ... 24

3. Da História ciência ao Ensino da História ... 48

4. Stálin, a Revolução Russa, o socialismo, o comunismo e a ditadura do proletariado vistos por adolescentes portugueses e brasileiros ... 62

Capítulo 2 Ensino da História e o papel dos manuais escolares ... 93

Capítulo 3 A perspectiva sobre Stálin nos programas e nos manuais escolares (Portugal e Brasil) ... 109

Capítulo 4 Como preencher as ausências?... 163

Conclusões ... 172

Fontes, bibliografia e webgrafia ... 175

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7

Declaração de honra

Declaro que a presente tese/dissertação é de minha autoria e não foi utilizada previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

Porto, 19 de março de 2019

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AGRADECIMENTOS

Este, como todo trabalho científico, não poderia ser realizado – ou, nas palavras de Marx, não se poderia “escalar” as “veredas escarpadas” da ciência1 – sem o apoio e colaboração de diversas pessoas, órgãos e instituições. Afinal, a sociedade é "a soma de vínculos, relações” nas quais se encontram imersos os homens2.

Por ser a ciência, “a coisa mais preciosa que temos”3, o apoio e a colaboração ao trabalho científico, se constitui em valioso “benefício” que “deve ser retribuído pela virtude da gratidão”, como nos ensinou São Tomás de Aquino4 . É, portanto, a correr-se

o risco do esquecimento, o que aqui se faz.

Em primeiro lugar agradeço ao Professor Doutor Luís Alberto Marques Alves, pela orientação de estilo simultaneamente socrático, rigoroso e pelas leituras que me proporcionou durante a realização deste trabalho. Em seguida, agradeço à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, à Unicepe – Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto. Igualmente agradeço aos jovens e aos colegas professores portugueses e brasileiros pelo valioso contributo. De igual modo agradeço à direção e a todos os funcionários da Biblioteca da FLUP pelo apoio, à Prefeitura e Secretaria Municipal de Educação de Correntina, assim como à Secretaria Estadual de Educação da Bahia e à direção do Colégio Estadual Duque de Caxias, localizado na mesma cidade, pelo apoio e confiança.

Minha gratidão se estende de forma especial aos amigos portugueses, doutores Nuno Bessa Moreira, João Torres Lima, Duarte Monteiro de Babo Marinho, Alberto Guimarães também ao Alípio Nunes, e aos amigos brasileiros, Pedro César Coimbra, Bernhar Gobbi Coimbra, doutor Marcelo Cláudio Coimbra da Rocha, Leonardo Waldemar dos Santos, Guto Campos, ao amigo galegoXosé Collazo Castro, aos meus colegas José Roberto Urpia, Marlúcia Gomes Costa, Joselita Neves de Moura, e Alberto Jânio Sousa Nascimento.

Minha eterna gratidão ao mestre, amigo e camarada doutor Clodomir Santos de Morais, pelo privilégio da amizade, da companhia e pelos valiosos ensinamentos.

1 MARX, 1990: 25. 2 Idem, 2011.

3SAGAN, C. “O Mundo Assombrado pelos Demônios” in

https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/567315/mod_resource/content/1/Carl%20Sagan%20O%20Mund o%20Assombrado%20Pelos%20Demonios.pdf consultado em 20 de janeiro de 2019.

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RESUMO

Esta dissertação, a partir de uma abordagem biográfica de Stálin, efetua uma análise comparativa de manuais escolares de Portugal e Brasil, e um estudo exploratório das ideias tácitas de alunos portugueses e brasileiros do 9º ano da educação básica em escolas dos arredores do Porto e de Correntina, na Bahia, sobre os conceitos substantivos: Revolução Russa, socialismo, comunismo, ditadura do proletariado e URSS sob o governo de Stálin. Este trabalho insere-se nos campos da História Contemporânea, educação histórica e historiografia. Procura contribuir para uma abordagem multiperspectiva dos referidos conceitos substantivos pelos manuais escolares e pelos professores em sua prática do ensino de História, em conformidade com as recomendações da Unesco e do CdE, usando as novas caraterísticas adquiridas pela abordagem biográfica no seu atual retorno: a revalorização do ator individual imbrincado em diversos contextos nos quais viveu e atuou; captação não só do “homem comum” mas, também do “homem múltiplo” e uma reconstrução não linear da narrativa para exprimir a multiplicidade das experiências do indivíduo e a complexidade da trama.

Este trabalho consiste, ainda, numa contribuição para a atualização dos conteúdos dos manuais escolares referentes aos citados conceitos substantivos e, portanto, para a progressão do conhecimento histórico dos alunos, em particular numa História Contemporânea mais atualizada, ao apresentar informações encontradas em documentos da era soviética disponibilizados com a abertura dos arquivos da Federação Russa, além do seu valor heurístico para a realização de estudos exploratórios envolvendo conceitos de segunda ordem.

PALAVRAS CHAVE: manuais escolares, ideias tácitas, Stálin, Revolução Russa,

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ABSTRACT

This dissertation, based on a biographical approach by Stalin, performs a comparative analysis of school textbooks in Portugal and Brazil, and an exploratory study of the tacit ideas of Portuguese and Brazilian students of the 9th grade of basic education in schools around Porto and Correntina, in Bahia, on the substantive concepts: Russian Revolution, socialism, communism, dictatorship of the proletariat and USSR under the government of Stalin. This work is inserted in the fields of Contemporary History, historical education and historiography. It seeks to contribute to a multiperspective approach of these substantive concepts by school textbooks and teachers in their practice of teaching history, in accordance with the recommendations of Unesco and CoE, using the new characteristics acquired by the biographical approach in its current return: the revaluation of the individual actor imbrincado in diverse contexts in which it lived and acted; capturing not only the "ordinary man" but also the "multiple man" and a nonlinear reconstruction of the narrative to express the multiplicity of the individual's experiences and the complexity of the plot.

This work also contributes to the updating of the contents of the textbooks referring to the aforementioned substantive concepts and, therefore, to the progression of the students' historical knowledge, particularly in a more contemporary Contemporary History, by presenting information found in documents of the era Soviet system made available with the opening of the archives of the Russian Federation, in addition to its heuristic value for conducting exploratory studies involving second order concepts.

KEYWORDS: school textbooks, unspoken ideas, Stalin, Russian Revolution, USSR,

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“Toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas” (Karl Marx)

“É tão cómodo gritar “à forca”! Nunca compreendemos bastante. Quem difere de nós – estrangeiro, adversário político – passa, quase necessariamente, por mau”

(Marc Bloch)

“A forma adequada da exposição didática é o ensino histórico da juventude, e isso por um professor que se movimente o mais livre possível e que realize pesquisas autônomas nos campos da História, dominando-os, dando testemunho do espírito mediante constantes renovações, espírito esse que anima e realiza a vida histórica”

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5

INTRODUÇÃO

Esta dissertação, a partir de uma abordagem biográfica de Stálin, efetua uma análise comparativa de manuais escolares de Portugal e Brasil, e um estudo exploratório das ideias tácitas de alunos portugueses e brasileiros do 9º ano do ensino básico em escolas dos arredores do Porto e de Correntina, na Bahia, sobre os conceitos substantivos: Revolução Russa, socialismo, comunismo, ditadura do proletariado e URSS sob o governo de Stálin.

Trata-se de uma temática ainda escassamente abordada num âmbito teórico-prático. Consequentemente, o esforço intelectual empreendido durante a realização do presente trabalho, procurou atenuar a escassez de trabalhos académicos que visem minorar aquilo que, em certa medida, se constitui numa lacuna investigativa e cujo preenchimento pode contribuir, ainda que modestamente, não só para a atualização dos manuais escolares e a progressão do conhecimento histórico dos estudantes quanto aos conceitos substantivos acima especificados, como ainda, mesmo que de forma relativa, para a formação de uma consciência histórica compatível com a pluralidade e complexidade das sociedades atuais.

Tendo como principal substrato teórico as notáveis contribuições de Jörn Rüsen, a presente investigação orientou-se pelo pressuposto de que, para dar conta de seu processo dinâmico e de sua função de orientação na vida prática, sem prejuízo de seus princípios e regras, as operações do conhecimento histórico precisam articular-se num conjunto especializado, no qual se constitui a matriz disciplinar da ciência da história. Assim, durante a investigação, procurou-se interrelacionar didática da História, Historiografia e Teoria da História.

Inserido nos campos da História Contemporânea, da historiografia e da educação histórica, este trabalho procura responder, de entre outras, às seguintes questões: a partir de quais ou de qual perspectiva(s) Stálin e os contextos nos quais viveu e atuou, são abordados pelos manuais de História portugueses e brasileiros? Quais as omissões ou as ausências que são constatadas nos referidos manuais? Os manuais portugueses e brasileiros, têm atualizado suas informações sobre Stálin e os conceitos substantivos acima mencionados de acordo com as investigações recentemente realizadas com base em documentos disponibilizados após a abertura dos arquivos soviéticos pela Federação Russa?

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6

Tais questões foram instigadas durante o exercício profissional do autor, como professor de História do ensino básico no Brasil, ao constatar a manutenção, por vários anos, da(s) mesma(s) narrativa(s) sobre os conceitos substantivos já citados e, ao estabelecer contacto, em 2013, com várias obras biográficas e de géneros distintos5, sobre Stálin e os contextos em que viveu e atuou, recentemente publicadas por historiadores de diversas nacionalidades, através das quais são divulgados resultados de pesquisas desenvolvidas nos arquivos soviéticos abertos a partir de 1991 e que, em 2011, passaram a disponibilizar cópias eletrônicas de centenas de milhares dos seus documentos6. O contacto com as obras citadas, deu-se durante labor investigativo partilhado com o sociólogo doutor Clodomir Santos de Morais7, para a publicação de uma coleção sobre os mais destacados líderes políticos do século XX, pelo IATTERMUND (Instituto de Apoio Técnico aos Países do Terceiro Mundo), infelizmente interrompido com sua morte, em 25 de março de 2016, no município baiano de Santa Maria da Vitória8.

Durante a investigação realizou-se a recolha das ideias dos estudantes portugueses e brasileiros sobre os conceitos substantivos acima especificados, cujos procedimentos e resultados são apresentados ainda no mesmo capítulo.

No capítulo 2, Ensino da História e o Papel dos Manuais Escolares, realiza-se o estudo da multifuncionalidade dos manuais escolares, dos sistemas de certificação, adoção, financiamento e produção em diversos países como recurso didático privilegiado e de seu caráter ideológico, sem se descuidar das recomendações da UNESCO e do CdE quanto às abordagens dos conteúdos de História.

No capitulo 3, realiza-se uma análise comparativa detalhada entre manuais de Portugal e Brasil, aponta-se as omissões e/ou ausências constatadas durante a referida análise comparativa e, no capítulo 4, esclarece-se as consequências das ausências e omissões verificadas nos manuais de Portugal e Brasil e a imprescindibilidade do preenchimento de tais ausências, como e a partir de que fontes se pode realizar o necessário preenchimento, além de se sugerir a realização de novas investigações afins.

5 MARCOU, 2013; FURR, 2013; ZHUKOV, 2017; ALEKSIEVITCH, 2015; TUCKER, 1992, de entre

outros.

6 http://sovdoc.rusarchives.ru/#main consultado em 12 de novembro de 2017.

7 https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/m/morais_clodomir.htm consultado em 20 de

maio de 2018.

8https://www.camara.leg.br/internet/sitaqweb/TextoHTML.asp?etapa=3&nuSessao=057.2.55.O&nuQuart

o=10&nuOrador=1&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=13:18&sgFaseSessao=BC%20%20%20%20%20% 20%20%20&Data=29/03/2016&txApelido=JO%C3%83O%20DANIEL&txEtapa=Com%20reda%C3%A 7%C3%A3o%20final consultado em março de 2018.

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7 A escolha de Stálin como personagem ou personalidade histórica para a realização, a partir de uma abordagem biográfica, do exame da perspetiva na qual são apresentados os conceitos substantivos já especificados, por manuais brasileiros e portugueses, inevitavelmente suscita questionamento.

A versão hegemónica sobre Stálin e os contextos nos quais viveu e atuou, atribui-lhe “a aura de monstro abjeto” impondo-se como consenso, por força de uma profícua, poderosa produção editorial e, segundo Lilly Marcou, “de preguiça intelectual”. Mas, não obstante a hegemonia da sua “demonização”, “nem o relatório Kruchtchev, nem a glasnost de Gorbatchev foram capazes de arrefecer, nas profundezas da memória coletiva da ex-sociedade soviética, a ideia de que a era estalinista foi igualmente motivo de glória e orgulho nacional para os povos da URSS” 9. Uma outra

característica que torna Stálin invulgar é, a de ser ele, o único dirigente do partido bolchevique e da URSS, de origem realmente humilde, gerado de pais servos e, ainda assim, ter transformado a Rússia do arado de madeira numa potência industrial e cultural, além de dirigir a luta que livrou a humanidade do jugo nazi10 .

9 MARCOU, 2013: 11 e 13. 10 DEUTSCHER, 1970.

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8

Capítulo 1 - EPISTEMOLOGIA E ENSINO DA HISTÓRIA

1. (R)evolução Científica

A consciência das potencialidades e desafios contemporâneos da epistemologia da História, na sua real dimensão, só pode ser efetivamente alcançada com a análise do processo de desenvolvimento dos diversos campos da atividade científica e filosófica11, desencadeado pela Revolução Científica, iniciada no século XVI por Copérnico12.

Para Hooykaas, a história da ciência, além de fornecer “material para um auto-exame crítico da ciência”, determina “a ligação entre a ciência e as humanidades” e demonstra “até que ponto as ciências naturais fazem parte do humanismo” no período denominado por modernidade. Uma vez superada a mera “reconstituição do passado” enquanto “a finalidade última da investigação histórica”, é necessário, para se compreender as “condições e factores que” permitiram a evolução da ciência, assim como suas “regularidades”, se estabelecer o seu percurso “a partir do passado, através do presente” enquanto horizonte de perspectivas “para o futuro”, conforme assinala Mikulinsky em artigo publicado em 1975.13 Segundo Wootton, torna-se incontornável a

análise das “origens da ciência moderna” para a compreensão do atual estado epistemológico geral e da atual concepção de mundo”. Essa análise, conforme Whewell, pode “oferecer-nos alguma indicação da forma mais promissora de conduzirmos os nossos esforços”.14

11 Imposição estabelecida por problemas emergentes no percurso da investigação científica “que parecem

constituir um denominador comum”, por serem inerentes “aos diferentes ramos do saber”, desprovidos de natureza específica e, por isso, inclusos na “epistemologia geral” (LUZ, 2002:11). A epistemologia geral pode ser denominada “teoria da ciência” ou “filosofia da ciência” (JANEIRA, 1972: 633-634). Entende-se por “corte epistemológico”, uma cisão completa ou incompleta, que gera uma evolução ou evoluções decisivas na ciência. Quando a cisão é completa torna-se “identificável à ruptura” (JANEIRA, Id. Ibid., p. 629-630).

12 Kuhn define revolução científica como uma mudança de paradigma, a substituição de um paradigma -

antigo-por outro (2009:13, 28 e 34 - grifo meu).“Os paradigmas são” […] “realizações científicas universalmente reconhecidas que durante um certo período fornecem problemas e soluções-modelo para uma comunidade de especialistas” (Id. Ibid., p.13). Patrícia Fara (2013: 19) argumenta, inspirada na resposta dada por “Vossa Majestade” à pergunta do “Coelho Branco” e esperada por “Alice”, na história de Lewis Carroll, que “A ciência não tem um início definido, e, à semelhança do Coelho Branco, todos os historiadores têm de escolher o seu próprio ponto de partida”. Apesar de apontar a possibilidade de se iniciar pela publicação da obra de Newton sobre a mecânica e a gravidade e reconhecer que até agora “a opção mais popular é a do início em 1543, quando Nicolau Copérnico” apresentou o modelo heliocêntrico “do nosso sistema planetário”, a autora adverte que a primeira opção implica na omissão de importantes cientistas (à época “filósofos naturais”), de seus legados e a segunda, dentre outras objeções, a de que exclui “os gregos, cujas ideias se mantiveram extremamente influentes até grande parte do século XVIII”.

13 apud KRAGH, 2001: 39-40.

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9 Ao apontar uma lacuna existente entre a investigação histórica das ideias e a realizada pela história das ciências, Kuhn afirma que, à época, o estudo das instituições e das ideias aparecia como uma terceira abordagem do desenvolvimento científico, ocorrendo “numa área geográfica demasiado pequena” e ressalta que na ocasião da publicação de “A Tensão Essencial”, em 1977, “a grande maioria do espaço dedicado à ciência em quase todos os livros de história geral, excetuando muito poucos”, estava “dedicado aos anos anteriores a 1750”.15

As ciências “só poderão superar suas limitações” decorrentes “do formalismo” incorporado ao(s) seu(s) procedimento(s) técnico(s)-metodológico(s)” se, os que a elas se dedicam, tiverem “a capacidade de interrogar retroactivamente o sentido de origem de todas as estruturas-de-sentido e de todos os métodos que são os seus”.16 Em resposta à acusação de idealismo e de desconhecimento do “papel da ciência como fator histórico”, feita por seu colega Henry Guerlac, em 1961, ao expor um trabalho no Colóquio de Oxford, Koyré, justifica “a grande importância da história das ciências e do pensamento científico para a história geral”:

“Ela nos revela o espírito humano no que ele tem de mais alto, em sua busca incessante, sempre insatisfeita e sempre renovada, de um objetivo que sempre lhe escapa: a busca da verdade, itinerarium in

veritatem. Ora, esse itinerarium não é dado por antecipação […] E

nem mesmo é uma via, mas várias. […] Assim, é preciso que sigamos […] essas vias”17

Ao considerar que o objeto da história abrange tanto os fenômenos “de natureza material como os de caráter intelectual”, e que sem ela os fatos que se desenrolam no tempo não seriam bem explicados, Xenopol em sua obra “Teoria da História”, cita Comte, com quem dialoga mas discorda, quando “coloca como exigência fundamental de toda a ciência a preocupação com o “porque” os fenômenos ocorrem de tal ou qual maneira”, para utilizar a afirmação de que “não se defende uma argumentação, sem uma introdução histórica que mostre como nasceu” determinada “concepção, como se introduziu, quer no mundo dos factos quer no das ideias”.18

15 Apud KRAGH Ibid., p.39-40.

16 LUZ, 2002:45. Segundo o mesmo autor, o exame epistemológico é imprescindível ao rigor da atividade

científica, por clarificar a natureza do conhecimento produzido por ela, ao “definir o seu enquadramento operativo e fundamentar sua objectividade”, distinguindo-o “da atitude natural, que caracteriza o senso comum” e da mera “especulação metafísica” (Id. Ibid., p. 41).

17 KOYRÉ, 1982: 377. 18 apud RAMA, 1980: 76-77.

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10

Segundo Wehling, uma correta “interpretação das transformações epistemológicas do século XX” e dos “fundamentos” da “epistemologia histórica”, exige que sejam “estreitamente consideradas, o que quase sempre não ocorre, as três grandes crises do conhecimento contemporâneo: a da “ciência clássica”, a do idealismo filosófico e a do historicismo”19. Os problemas e consequências provocadas pelas crises e transformações ocorridas no século passado, a que se refere Wehling, obrigam a uma digressão histórica do processo de formação das bases da ciência moderna, que ao contrário de mera e tradicional obediência canônica, se trata do que propõem Salviati e Sagredo, dois dos três interlocutores do “Diálogo sobre duas novas ciências”, de Galileu.20

A Revolução Científica foi “a mais profunda revolução do pensamento humano”, responsável por “uma “mutação” intelectual radical” que “transformara a natureza do conhecimento e as capacidades da espécie humana” ao, no século XVII, romper com as concepções científicas do mundo antigo e medieval que sustentavam o paradigma estabelecido.21

A partir dos meados do século XVIII, a ciência moderna, nascida da Revolução Científica iniciada com Copérnico no século XVI e levada adiante por Kepler, Galileu e Isaac Newton, uma vez abandonados “os cálculos exotéricos”, torna-se o “fermento de uma transformação técnica e social sem precedentes”,22 a ponto de inspirar “os ideais

perfeccionistas do Iluminismo”, “de um progresso ilimitado do conhecimento”, propiciador do controlo das forças da natureza”, aperfeiçoador da sociedade e gerador da felicidade humana23. O “avanço das pesquisas nos diversos ramos da Ciência”, provocado pela revolução desencadeada no início do século XVII, levou a uma radical mudança na mentalidade da maioria dos filósofos da natureza, o que resultou na afirmação e supremacia do conhecimento científico sobre o teológico, na compreensão dos fenómenos naturais. Com base na compreensão da Razão “como uma força que, a partir da experiência sensível, se desenvolveria juntamente com ela”, os pensadores

19 WEHLING, 1992:147 e 149.

20 “Salv. Estes problemas que o senhor me coloca obrigam-me a uma digressão […], uma vez que

pretendemos descobrir uma solução para as questões que levantamos”; “Sagr. “Mas se através dessas digressões podemos alcançar novas verdades, que mal há em começar uma nova agora mesmo?” in HAWKING, 2018: 420.

21 Ruptura epistemológica é a quebra, rompimento ou superação de “obstáculos epistemológicos”

definidos por Bachelard como estruturas inconscientes responsáveis pela “estagnação e até” mesmo “de regressão” do conhecimento científico (2006:19).

22 SANTOS, 1987: 7.

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11 iluministas do século XVIII refutaram o racionalismo metafísico cartesiano do século XVII e, fundindo-o ao empirismo baconiano, formularam uma “síntese das duas principais vertentes da Filosofia Moderna”, pioneiras na elaboração do método científico, denominada “racionalismo empírico”.24

A partir do século XVII, com o que Hazard considerou uma “crise da consciência europeia”, a “mais importante na história das ideias”25, provocada pelo

impacto da mudança do universo de Aristóteles, centrado na Terra, para o universo heliocêntrico de Copérnico, em 1543, o que Kuhn, por sua vez, denominou de “Revolução Copernicana”, precedida por “rasgões feitos pela crítica escolástica no tecido do pensamento aristotélico”26, irrompeu uma crescente preocupação com problemas epistemológicos em variados campos do conhecimento, integrando-se posteriormente “nas discussões sobre a natureza do conhecimento histórico”27, pois

“toda a inovação fundamental numa especialidade científica transforma inevitavelmente as” demais ciências “e, mais lentamente, os mundos do filósofo e do leigo culto”28.

A teoria de Copérnico é considerada o marco inicial da ruptura com o conhecimento sensível29que, juntamente com a autoridade da Igreja, sustentava a concepção astronômica geocêntrica do Almagesto de Ptolomeu, cujo pressuposto básico coincidia com a percepção visual do Sol “nascer de um lado, deslocar-se durante o dia, para acabar por desaparecer do outro lado”30. A explicação ptolomeica, da configuração

cósmica, derrubada pela teoria de Copérnico, era embasada nos escritos de Aristóteles, que integravam “numa única estrutura conceptual coerente”, campos científicos e não científicos hoje conhecidos como física, química, astronomia, biologia, medicina,

24 ROSA, 2012: 16-17.

25 Uma crise que abalou e demoliu “o edifício antigo” constituído de “sonhos metafísicos” não

realizáveis, para erguer em seu lugar as bases do espírito do século XVIII, quando a ciência deixaria “de ser um simples jogo do espírito, para” enfim “se tornar um poder capaz de dominar a natureza” – a “Ciência Nova” – e assim, através dela, se conquistar “uma felicidade” real. Esse período a que se refere, é compreendido de 1680 a 1760, “ou até 1789”, do Renascimento à Revolução Francesa” (HAZARD, 1948: 8, 9 e 317)

26 “Consequentemente não nos envergonhamos de afirmar que toda a região contida entre a esfera da Lua

e o centro da Terra passa através desse grande círculo, entre os restantes, planetas, numa revolução anual à volta do Sol. O centro do Universo está próximo do Sol e, permanecendo este imóvel, todo o movimento que aparece como seu é na realidade devido ao movimento da Terra” (COPÉRNICO, 2014: 51)

27 Possui um componente metafísico: “um real exterior “absoluto” tornado cognoscível pelo crescente

aperfeiçoamento do instrumental científico” (WEHLING, 1992:149).

28 KUHN, 2017: 246.

29 Segundo Carvalho, “Todas as ciências passaram, num dado momento da sua história, por uma grande

revolução epistemológica: a que as fez saltar do conhecimento sensível ao conhecimento inteligível” (1979:21).

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12

lógica, metafísica, política, retórica e crítica literária. Consequentemente, embora a teoria copernicana seja, “em muitos aspectos”, conforme afirma Khun,“uma teoria científica típica” cuja história ilustra “alguns dos processos pelos quais os conceitos científicos evoluem e substituem os seus predecessores”, ela é atípica na amplitude de “suas consequências extra-científicas”, por promover “uma revolução de ideias” que transformou o “conceito que o homem tinha do universo e da sua própria relação com ele”31

Koyré elege duas principais características da nova “atitude mental ou intelectual” produzida com o advento da “ciência moderna” a partir da “revolução espiritual do século XVI”: como primeira, “a destruição do cosmo” concebido como “um mundo de estrutura finita, hierarquicamente ordenado”, diferenciado qualitativamente, que passa a ser substituído por um “universo aberto, indefinido” e “infinito” que funde Terra e céu, sujeitos às “mesmas leis universais”; como segunda, “a matematização (geometrização) da natureza” e, consequentemente, da ciência. Ou seja, a matemática passa a ser linguagem através da qual se interroga a natureza e se interpreta os dados por ela fornecidos32 extrapolando a condição de “um meio formal de ordenar os fatos” e tornando-se “a própria chave da compreensão da Natureza”33.

Conforme afirma Germano34, a teoria copernicana provocou uma “grande

revolução do pensamento” com seu modelo alternativo de ordenamento celeste, provocando “toda uma nova visão de mundo com novas perguntas e novos problemas”, que seu autor não conseguiria responder, “cabendo, dentre outros, a Bruno, Kepler e Galileu a confirmação e defesa de suas teses”.

Galileu ao comprovar a teoria heliocêntrica reconheceria como grande mérito de Copérnico, a superação das constatações até então estabelecidas, utilizando a matemática e observações desprovidas das “qualidades secundárias”, resultantes da percepção sensorial35.

A invenção do telescópio e seu aperfeiçoamento permitiram a Galileu, por meio de uma observação mais rigorosa e precisa dos corpos celestes, visualizar o relevo da Lua e a existência dos quatro maiores satélites naturais “que viajam ao redor de Júpiter a semelhança da Lua em torno da Terra, ao mesmo tempo que todas elas com

31 KUHN, 2017:17, 20.

32 KOYRÉ, s.d., p. 17-18, Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 33 KOYRÉ, 1982:73.

34 GERMANO, 2011:65. 35 Id. Ibid., 2011: 64.

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13 Júpiter percorrem um grande orbe em torno do Sol”36, que entre outras descobertas,

comprovou definitivamente a teoria heliocêntrica de Copérnico. A constatação de um relevo lunar desigual e acidentado, faz ruir “o obstáculo aristotélico” da diferença de comportamento entre os “corpos celestes” e os “corpos terrestres”, ao confirmar a previsão do astrônomo polaco37. Tais realizações de Galileu, entre as de outros “filósofos da natureza” a partir do século XVII, levou a um consenso entre os historiadores da ciência, de que a ciência moderna nascera da experiência e de que possui um “caráter” eminentemente “prático, em oposição ao caráter abstrato do saber antigo e medieval”, tornando-se este, “o núcleo” de sua “compreensão”38. Hannah

Arendt afirma que o telescópio, “um instrumento” fabricado pelo homem, “finalmente forçou a natureza, ou melhor, o universo a revelar os seus segredos” e compreende que esta “mudança” ocorrida “no século XVII foi mais radical do que se pode depreender da simples inversão da ordem tradicional entre a contemplação e acção”.39

Em oposição à interpretação hegemónica da historiografia positivista, Alexandre Koyré afirma que “a invenção do telescópio foi resultado de um desenvolvimento da teoria, tendo sido seguido pelo progresso da técnica”40. Koyré

discorda da afirmação de que a ciência moderna possui um caráter eminente prático. Ele defende que a mera acumulação de novos factos descobertos, por mais importantes que sejam, nada mais é senão “uma pura coleção de dados da observação e da experiência” que por si só “não constitui uma ciência”. Só após “ordenados, interpretados” e “explicados” por uma teoria, “é que o conhecimento dos fatos se torna uma ciência”41.

Ao argumentar que o “empirismo da ciência moderna não repousa na experiência, mas na experimentação”, Koyré ressalta a “estreita ligação entre a experimentação e a elaboração de uma teoria”, além de sublinhar que, ao invés “de se oporem uma a outra, a experiência e a teoria são ligadas e mutuamente indeterminadas”. Disso decorre que só com “o desenvolvimento da precisão e o aperfeiçoamento da teoria”, se consegue aumentar “a precisão e o aperfeiçoamento das experiências científicas”42. De facto, o

36 “Do seu exame muitas vezes repetido deduzimos que podemos discernir com certeza que a superfície

da Lua não é perfeitamente polida, uniforme e exactamente esférica, como um exército de filósofos acreditou, […] mas é, pelo contrário, desigual, acidentada, constituída por cavidades e protuberâncias” (GALILEI, 2010: 156). Quanto ao fragmento do texto de Galileu citado sobre as quatro luas de Júpiter, Id. Ibid., p. 205

37 GERMANO, Id. Ibid., p.65. 38 BARBOSA, 2011: 1. 39 ARENDT, 2001: 356-357. 40 KOYRÉ, 1982: 68

41 Id. Ibid., p.271-272 42 Id. Ibid., p.272.

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aristotelismo, de essência empirista e indutiva, só foi finalmente superado nas suas limitações e “um verdadeiro método experimental pôde ser elaborado”, quando Galileu substitui “o mundo do mais ou menos conhecido empiricamente pelo Universo racional da precisão” e “adota a mensuração como princípio experimental mais importante e fundamental”43.

Ao aplicar, amalgamadas, racionalidade matemática e experiência, ao estudo do movimento (cinemática) Galileu introduz “o tempo como quantidade física fundamental” incorporando-o às “leis que governam os corpos em queda livre” explicadas em sua obra Diálogos sobre Duas Novas Ciências, publicada em 1638, na qual reviu e aperfeiçoou as suas análises do movimento e os princípios da mecânica, antecipando-se a Newton ao estabelecer pressupostos que lhe permitiriam, a partir da mecânica, chegar à lei da gravitação universal e solucionar “a maior parte dos problemas relativos aos movimentos dos planetas”44.

Segundo Gadamer, o que induziu Galileu “à descoberta das leis fundamentais da mecânica, matematicamente formuláveis, foi uma façanha do espírito, e não um apuramento de observações”45.

A substituição dos conceitos aristotélicos sobre o movimento, pelos formulados por Galileu, principalmente o de inércia, e a “matematização da experiência”, constituíram-se numa ruptura metodológica e conceptual que tornou a natureza cognoscível e manipulável, possibilitando o surgimento e posterior desenvolvimento da tecnologia46.

As contribuições científicas de Galileu foram tão decisivas que Einstein prestou seu tributo ao colega italiano reconhecendo-o como “o pai da física moderna, na verdade, o pai da ciência moderna”47.

Segundo Crombie “Galileu destruiu os mais graves inconvenientes da concepção de Aristóteles, segundo o qual havia uma ciência da “física” colocada fora do domínio das matemáticas” e, afirmando, inclusive, que “as substâncias e as causas que essa física colocara em postulados não passavam de simples palavras”.48

Inspirado no modelo heliocêntrico copernicano, que defendia de forma explícita em debates públicos, desde quando ingressou como estudante de Matemática e

43 KOYRÉ, Id. Ibid., p.74. 44 GERMANO Id. Ibid., p.67. 45 GADAMER, 2001: 73.

46 TEIXEIRA & FREIRE JR., 1999: 37. 47 apud HAWKING, Id. Ibid., 413. 48 apud KOYRÉ, Id. Ibid., p.75.

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15 Astronomia na Universidade de Tubinga, em 1587, Kepler, após a morte de Tycho Brahe, “mapeou cuidadosamente os dados encontrados por ele sobre o “movimento de Marte, originando uma elipse”, o que “conferiu credibilidade matemática ao modelo de Copérnico” e fez surgir “uma nova era na astronomia” a partir da possibilidade da previsão dos “movimentos dos planetas”. Ao descobrir “como os planetas orbitavam” e propor “que o Sol e os planetas se relacionavam “magneticamente””49, Kepler “abriu

caminho para que Newton descobrisse porquê”50. As “três leis do movimento

planetário, de Kepler, ainda hoje, no século XXI, são ensinadas a estudantes nas aulas de Física”. Segundo Stephen Hawking, “foi a terceira lei de Kepler, e não uma maçã, que levou Isaac Newton a descobrir a lei da gravitação”.51

Em 1666, 50 anos após Kepler ter enunciado suas três leis do movimento dos planetas em torno do Sol, Isaac Newton iniciou sua investigação sobre a “causa das órbitas elípticas dos planetas”, que o levaria à constatação do caráter universal da gravitação. A aplicação da sua “lei da força centrífuga à terceira lei do movimento planetário de Kepler” resultou no reconhecimento de que a força que faz cair uma maçã ao chão é a mesma que faz a Lua girar em torno da Terra”, o que levou Newton a deduzir “a lei do inverso do quadrado, segundo a qual a força da gravidade entre dois corpos quaisquer é inversamente proporcional ao quadrado da distância entre os centros dos objectos”52.

A imprecisão da estimativa de Newton do diâmetro da Terra o impediu que concluisse satisfatoriamente o teste da relação “do inverso do quadrado” com base no pressuposto galileano “de que a distância entre a Terra e a Lua equivale a 60 raios da Terra”. Em 1679, renovaria seu interesse na solução do problema, ao trocar cartas com Hooke, “seu velho adversário”, também interessado na explicação das órbitas dos planetas.53Ao se empenhar novamente no teste da relação “do inverso do quadrado”, Newton acabou por demonstrar, através da força centrípeta, a veracidade da segunda lei de Kepler, apresentada em sua obra “Astronomia Nova”, em 1609, segundo a qual “a linha que liga o planeta ao Sol varre áreas iguais em tempos iguais”, ou seja, a velocidade com que os planetas se movem depende da distância a que estão do Sol, movendo-se mais rapidamente quanto mais perto dele, “dado que uma linha radial mais

49 HAWKING, Id. Ibid., p.743. 50 Id. Ibid., p.648.

51 Id. Ibid. 52 Id. Ibid., p.743. 53 Id. Ibid..

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curta tem de varrer um ângulo maior para cobrir a mesma área que é varrida mais longa ao movimentar-se ao longo de um ângulo mais curto”.54

O nascimento dos Principia, opus magnum de Newton, dá-se a partir de uma disputa sobre a relação do inverso do quadrado, responsável pelo movimento dos planetas, que envolveu três dos membros Royal Society: Hooke, Halley e Wren. Na ocasião, Hooke declarou que, a partir das leis das elipses de Kepler, deduziu a prova da imanência da força gravitacional, mas não a revelaria aos dois colegas, enquanto não estivesse apto a demonstrá-la publicamente. A declaração de Hooke fez com que Halley se deslocasse a Cambridge para que Newton soubesse e questioná-lo sobre a forma da órbita de um planeta ao redor do Sol sob a atração de uma força cuja variação fosse inversa ao quadrado da distância. Ao responder prontamente a Halley que essa forma seria uma elipse, Newton lhe confessou que resolvera o problema há quatro anos, contudo perdera sua demonstração matemática em seu escritório. Por insistência de Halley, dedicou-se a reconstituição e aperfeiçoamento da sua demonstração, o que resultou, ao cabo de um ano e meio, na produção de três volumes que, numa contraposição ao Principia Philosophiae, de Descartes, intitulou de Philosophiae Naturalis Principia Mathematica.55

Sob a influência do racionalismo de Descartes, do empirismo de Bacon e apoiado nas “descobertas, princípios, ideias e estudos” de Copérnico, Galileu, Kepler, dentre outros, Newton formulou seus “Axiomata sive Leges Motus”, apresentados no Livro I dos Princípia, que constituem a base da “Física Moderna” unificadora das “Mecânicas terrestre e celeste”. Tais axiomas e leis extrapolam a astronomia e tornam-se, graças a “um novo método complexo de cálculo”, “aplicáveis ao conjunto de fenômenos físicos” que incluem “o movimento planetário, das marés, da precessão dos equinócios, das órbitas dos cometas” e “da trajetória dos projéteis”.56

Uma expressão utilizada por Newton, num trecho do Escólio Geral dos Princípia, repetidamente citada e comentada pelos historiadores da ciência e que traz de forma subjacente uma sugestiva e polémica questão epistemológica é:“Hypotheses non fingo”, “que ele próprio teria traduzido” como “Eu não simulo hipóteses”, onde as palavras fingo e no inglês feign significam “imaginar”, o que coincide com a referência feita sobre astrônomos que “fingem” excêntricos e epiciclos, tratando-os como se

54 GRIBBIN, Id. Ibid., p.78.

55 HAWKING, Id. Ibid., p.743-744.

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17 fossem “entidades imaginárias”.57 A tradução para a edição portuguesa dos “Principia”,

de Newton, a partir da versão em inglês, de Stephen Hawking, é a seguinte:

“Mas até aqui não pude descobrir a causa dessas propriedades da gravidade a partir dos fenómenos e não formulo nenhuma hipótese; pois o que quer que seja que não seja deduzido dos fenómenos, deve ser chamado de hipótese; e hipóteses, sejam metafísicas ou físicas, sejam de qualidades ocultas ou mecânicas, não têm nenhum lugar na filosofia experimental”58

A inferência a partir da citação acima, é de que, para Newton, “as únicas hipóteses que valiam a pena, eram as que podiam ser testadas e, se sobrevivessem à prova, deixavam de ser hipóteses”.

A partir da mesma inferência, o “Compêndio” stalinista de “História da Filosofia”, escrito por um grupo de dez historiadores do Instituto de Filosofia da Academia de Ciência da URSS, editado e publicado sob a direção de A. V. Shcheglov, apontou como o “maior defeito do método de Newton”, “seu empirismo estreito e unilateral”. Segundo o mesmo compêndio, Newton, “baseando-se na lógica indutiva de Bacon”, priorizou “a importância da investigação experimental”, negando “a importância da teoria em geral, da hipótese”. Esse aspecto dos “métodos científicos de Newton”, fez com que “Engels” o criticasse “duramente por seu empirismo grosseiro”.59

A forma como Gilbert e Galileu usavam a palavra “hipótese” não teria, portanto, sentido para Newton, pois a empregavam para designar “uma afirmação que pudéssemos ter a certeza de ser verdadeira”, e não para uma que “pudesse ser verdadeira”60 .

Para José Luís Brandão da Luz61, embora a expressão “hypótheses non figo” seja empregada por Newton como rejeição à construção de “uma física” com base em “hipóteses, ou seja, em meras suposições que não pudessem ter correspondência na experiência”, ele “concedeu um papel fundamental às hipóteses no encaminhamento da investigação”, a ponto de estabelecer “quatro hipóteses orientadoras da filosofia natural, a que” denominou, no Livro III dos Princípios Matemáticos de Filosofia Natural, como

57 WOOTON, Id. Ibid., p.492-493.

58 NEWTON in HAWKING Id. Ibid., p.1177.

59 SHCHEGLOV, 1945: 5, 97. O conteúdo crítico do compêndio à prevalência do empirismo e do método

indutivo em Newton, se contrapõe ao “viés mecanicista” do marxismo soviético do período stalinista, alegado por FREIRE JR. (1993: 62).

60 WOOTON, Id. Ibid., p.494. 61 LUZ, Id. Ibid., p. 48.

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As Regras de Raciocínio na Filosofia, esclarecendo, no introito do referido livro, que tais “regras” (hipóteses) são aplicadas para dar “conta de coisas de uma natureza mais geral […] tais como a densidade e a resistência dos corpos e o movimento da luz e sons”62.

A rejeição de Newton quanto ao uso da palavra hipótese já se havia manifestado anteriormente, logo após a publicação do seu primeiro artigo sobre a refração e a natureza da luz, publicado em 1672, pela Philosophical Transactions, revista da Royal Society, ao qual o editor deu o título de “Uma carta do Sr. Isaac Newton, Professor de Matemática na Universidade de Cambridge; contendo sua nova teoria sobre a luz e as cores”63 . Entre as críticas ao artigo figura a do padre francês

Ignatius Pardies que “chamou o escrito de Newton “uma hipótese muito engenhosa”, “uma extraordinária hipótese” que, a ser verdade, derrubaria os alicerces da ótica”.64

Newton, que usara “a palavra “hipótese” na publicação original, mas apenas para se referir a uma regra básica da matemática que considerava imprecisa”, respondeu que não levara a mal e que “não as tivesse” ele “considerado verdadeiras”, teria “preferido rejeitar como especulação vã e desprovida de sentido do que vê-las como hipótese”. Após responder à réplica do padre, Newton finalizou a carta manifestando a certeza de que não houvera “más intenções”, uma vez que havia generalizado “a prática de chamar “hipótese” ao que quer que seja explicado na filosofia”.65

Wootton ao explicar a hostilidade de Newton em relação à palavra “hipótese” a ponto de considerar o seu uso no seu trabalho “quase um insulto”, lembra que a palavra “hipótese” era empregada em matemática, à época, como “um postulado no qual se baseava uma afirmação”. E, quando aplicada à astronomia, servia como um “modelo teórico que gerava previsões das futuras localizações dos planetas no céu”. Consequente, a importância de uma hipótese “não era que ela fosse verdade mas que produzisse resultados previsos”. Salienta ele que “hipótese” possuía vários significados nos escritos do século XVII, mas estava familiarizada dentre os matemáticos, inclusos “Galileu, Pascal, Descartes e Newton”, com o significado que a palavra adquirira no uso “na astronomia técnica e tendiam a evitá-la noutros contextos”.66

62 NEWTON in HAWKING, Id. Ibid., p.1052-1053.

63 NEWTON, 1671/72:3075-3087 in https://royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rstl.1671.0072

(acesso em 22 de novembro de 2018). Ver nos anexos.

64 WOOTTON, Id. Ibid., p.485. 65 Id. Ibid., p.485-486.

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19 Jorge Fonseca e Trindade67adverte para o facto de que “do ponto de vista

metodológico e epistemológico qualquer experiência prática é uma “experiência mental”, pois o cientista, antecipa sua atividade numa “elaboração mental” prévia, ao “refletir sobre a metodologia, o tempo necessário, a minimização dos erros, a instrumentalização necessária para a montagem”, sobre a forma que utilizará para a “obtenção de dados, na sua interpretação e na teoria que dará suporte a essa interpretação” além de prever e procurar “determinado resultado experimental”, ainda como uma estratégia para a “resolução de quebra-cabeças”, conceito apresentado primeiramente por Kuhn”. Tal planeamento é inevitável tanto na atividade laboratorial, como na atividade didática.68

Marx, ao salientar a inerência ao homem, da antecipação mental de suas atividades práticas, como o que o distingue dos outros animais, afirma:

“Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente”69

O próprio Newton se utilizou de uma “experiência mental”,70 para demonstrar que “são as forças de afastamento do eixo do movimento circular” que “distinguem o movimento absoluto do relativo”, uma vez que, “num movimento circular real, elas são maiores ou menores, de acordo com a quantidade do movimento”71. Através da referida

“experiência mental”, conhecida como “experiência do balde”, Newton chegou à conclusão de que, quando “aplicado a movimentos acelerados, o conceito galilaico de velocidade implica a existência de um conjunto de sistemas de referência espaciais fisicamente não acelerados”, o que “nenhum dos relativistas dos séculos XVII e XVIII foi capaz de explicar”.72

67 FONSECA E TRINDADE, Id. Ibid., p. 6.

68https://www.researchgate.net/publication/234004661_CONTRIBUTO_DAS_EXPERIENCIAS_IMAGI

NADAS_DE_GALILEU_NO_DESENVOLVIMENTO_CIENTIFICO

69 MARX, 2013: 327.

70 KUHN, 2009: 277. Ernest Mach foi o primeiro a utilizar o termo, em alemão, gedankenexperiment,

FONSECA E TRINDADE Id. Ibid.

71 NEWTON in HAWKING, 2018:755 72 KUHN, Id. Ibid., p.277 e 299.

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20

“Se uma vasilha, pendurada numa corda longa, for girada tantas vezes que a corda fique bastante torcida e, depois, for cheia com água e segura em repouso junto com a água, e se, a seguir, por uma acção repentina de uma outra força, for girada no sentido contrário, enquanto a corda se distorce, a vasilha continuará por algum tempo o seu movimento, a superfície da água ficará inicialmente plana, como antes de a vasilha se começar a mover; mas a vasilha, comunicando gradualmente o seu movimento à água, fará a mesma começar a revolver-se bastante e afastar-se aos poucos do meio, subindo pelas paredes da vasilha e tomando uma forma côncava (como eu mesmo experimentei); e, quanto mais rápido for o movimento, mais alto subirá a água, até que, finalmente, fazendo as suas revoluções ao mesmo tempo que a vasilha, ela ficará em repouso relativamente à vasilha. Esta subida da água mostra o seu esforço para se afastar do eixo do movimento; e o movimento circular verdadeiro e absoluto da água, que aqui é directamente contrário ao relativo, é revelado e pode ser medido desta maneira”73

Kuhn ao salientar que as “experiências imaginárias” por diversas vezes “desempenharam um papel criticamente eficaz no desenvolvimento da ciência física”, inclusive na sua reformulação durante o século XX, afirma que elas produzem uma nova compreensão do “aparato conceptual do cientista”, ajudando a eliminar uma “confusão anterior”, quando o obriga “a reconhecer as contradições inerentes ao seu modo de pensar desde o início”.74

A mecânica clássica newtoniana sistematizada e condensada nos Princípia, marca a consolidação da Física, da Ciência Moderna e “o determinismo” passa a assumir “o controle de tudo, equacionando todos os problemas humanos de acordo com os princípios de uma razão iluminista”75, convertendo-se no que se denomina como “paradigma clássico”.76

Segundo Margaret Jacob77, o desenvolvimento da mecânica alcançado a partir de Newton e aplicado entre outros campos, ao da termodinâmica, por engenheiros, mecânicos e industriais no aprimoramento de máquinas e na formulação de uma nova organização técnico-industrial levou, entre outros fatores, ao desencadeamento da Revolução Industrial.78 Na introdução à sua obra de investigação etnográfica, “A

Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, Engels escreve:

73 NEWTON in HAWKING Id. Ibid. 74 KUHN, 2009: 277-279.

75 GERMANO, 2011:68-69. 76 WEHLING, Id. Ibid.

77 1997:106 apud SOARES, 2012. 78 apud SOARES, Id. Ibid., p. 5-6.

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21 “A história da classe operária na Inglaterra inicia-se na segunda metade do século passado, com a invenção da máquina a vapor e das máquinas destinadas a processar o algodão. Tais invenções, como se sabe, desencadearam uma revolução industrial que, simultaneamente, transformou a sociedade burguesa em seu conjunto – revolução cujo significado histórico só agora começa a ser reconhecido.

A Inglaterra constitui o terreno clássico dessa revolução, que foi tanto mais grandiosa quanto mais silenciosamente se realizou”79

Mas, apenas invenções como a da máquina a vapor, sem o ferro, o carvão, a madeira locais, 80“a circulação global de indivíduos, de riqueza e de bens alimentada pelo ouro que era extraído em África por mão de obra escrava”, não seriam capazes de realizar tal revolução na indústria. A produção em grande escala capaz de suprir o mercado externo e tão rapidamente (no início do século XIX) tornar os industriais “mais ricos do que muitos aristocratas”, foi garantida não só por meio da opressão e exploração dos trabalhadores ingleses, “mas também dos súbditos” da coroa britânica espalhados por suas colônias em todo o mundo.81

As palavras de Engels expressam a real dimensão da transformação sofrida pela Inglaterra a partir da Revolução Industrial:

“[…] uma história que não tem equivalente nos anais da humanidade. Há sessenta ou oitenta anos, a Inglaterra era um país como todos os outros, com pequenas cidades, indústrias diminutas e elementares e uma população rural dispersa, mas relativamente importante; agora, é um país ímpar, com uma capital de 2,5 milhões de habitantes a, imensas cidades industriais, uma indústria que fornece produtos para o mundo todo e que fabrica quase tudo com a ajuda das máquinas mais complexas, com uma população densa, laboriosa e inteligente, cujas duas terças partes estão ocupadas na indústria e constituem classes completamente diversas das anteriores. Agora, a Inglaterra é uma nação em tudo diferente, com outros costumes e com necessidades novas. A revolução industrial teve para a Inglaterra a mesma importância que a revolução política teve para a França e a filosófica para a Alemanha, e a distância que separa a Inglaterra de 1760 da Inglaterra de 1844 é pelo menos tão grande quanto aquela que separa a

79 ENGELS, 2010: 45. Segundo nota do editor, “Engels foi um dos pioneiros da expressão revolução

industrial e há autores que chegam mesmo a atribuir-lhe sua paternidade”.

80 Segundo Engels, Id. Ibid., p. 56, em 1845, só “a fusão do ferro bruto” consumia “anualmente mais de 3

milhões de toneladas de carvão e” era “notável a importância que as minas de carvão (hulha) adquiriram no curso dos últimos setenta anos”, passando a produzir “mais de 5 milhões de toneladas para exportação, ocupando entre 40 mil a 50 mil operários”. Só nos condados de “Northumberland e Durham”, à época, “estavam sendo exploradas:

em 1753...14 minas de carvão em 1800...40 minas de carvão em 1836...76 minas de carvão em 1843...130 minas de carvão”

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22

França do Antigo Regime da França da Revolução de Julho. O fruto mais importante dessa revolução industrial, porém, é o proletariado inglês”82

Mas, se o progresso técnico, econômico, o aumento da população urbana, dos lucros dos industriais e a expansão das colônias inglesas foram sem precedentes, a miséria, a degradação humana e espiritual da classe operária daquele país e dos habitantes das suas possessões foram proporcionalmente maiores. A utópica previsão dos industriais, de “que a automatização” proporcionada pelo “vapor”, além do aumento de seus lucros, trariam “mais oportunidades aos seus trabalhadores”, minoraria “a servidão do trabalho manual” – uma “legitimação autojustificada da exploração” – não se concretizou.83 Ao contrário, o que ficou comprovado pela realidade, foi que “a ciência, em virtude do seu próprio método” vinculou “a dominação da natureza” a “dominação dos homens”, submetendo-os “aos senhores do aparelho”84 .

Engels, que “durante vinte e um meses”, teve “a oportunidade de conhecer de perto”, através de “observações e relações pessoais, o proletariado inglês, suas aspirações” e seus sofrimentos, “recorrendo às necessárias fontes originais”, afirma que: “Nas condições sociais vigentes, as consequências de todos os aperfeiçoamentos mecânicos são desfavoráveis aos operários, e o são em alto grau: qualquer máquina nova provoca desemprego, miséria e infortúnio e, num país como a Inglaterra, onde já se encontra permanentemente uma “população excedente”, a perda do trabalho é, na maioria dos casos, o que de pior pode acontecer a um operário. Ademais, é brutal o efeito esgotador e enervante que causa nos operários, cuja situação é sempre precária, a insegurança sobre sua condição, acarretada pelo incessante progresso mecânico e pela ameaça do desemprego. Para escapar ao desespero, o operário tem dois caminhos: a revolta interior e exterior contra a burguesia ou então o alcoolismo, a degradação. E os operários ingleses valem-se de ambos: a história do proletariado inglês inclui centenas de revoltas contra as máquinas e a burguesia, e inclui também a dissolução moral da qual já falamos. Esse é, sem dúvida, um outro aspecto do desespero”85

Eric Hobsbawm, por sua vez, afirma que:

“Em termos de produtividade económica”, a “transformação social foi um imenso sucesso; em termos de sofrimento humano, uma tragédia,

82 ENGELS, Id. Ibid., p.58-59. Segundo o autor, “o censo de 1841 indicava 1.949.277 habitantes”. 83 FARA, Id. Ibid., p.185.

84 HABERMAS, 2016: 50-51. 85 ENGELS, Id. Ibid., 178.

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23 aprofundada pela depressão agrícola depois de 1815, que reduziu os camponeses pobres a uma massa destituída e desmoralizada. Depois de 1800, até mesmo um campeão tão entusiasmado do progresso agrícola e do "movimento das cercas" como Arthur Young ficou abalado com seus efeitos sociais ". Mas do ponto de vista da industrialização, esses efeitos também eram desejáveis; pois uma economia industrial necessita de mão-de-obra, e de onde mais poderia vir esta mão-de-obra senão do antigo setor não industrial? A população rural doméstica ou estrangeira (esta sob a forma de imigração, principalmente irlandesa) era a fonte mais óbvia, suplementada pela mistura de pequenos produtores e trabalhadores pobres. Os homens tinham que ser atraídos para as novas ocupações, ou - como era mais provável - forçados a elas, pois inicialmente estiveram imunes a essas atrações ou relutantes em abandonar seu modo de vida tradicional. A dificuldade social e económica era a arma mais eficiente; secundada pelos salários mais altos e a liberdade maior que havia nas cidades”86

Marx, em artigo de 10 de junho de 1853, ao New-York Daily Tribune, no qual analisa os efeitos da colonização britânica da Índia, baseada no “domínio científico dos agentes naturais”, afirma que “a miséria infligida pelos Britânicos ao Indostão” é “infinitamente mais intensiva do que a que todo o Indostão teve de sofrer anteriormente”. Ressaltou que não se referia “ao despotismo europeu implantado” pela “Companhia Britânica das Índias Orientais” que, embora “monstruosa” era apenas uma réplica da colonização holandesa. Segundo Marx, o “invasor britânico” ao quebrar “o tear manual” e destruir “a roda de fiar”, “que produziram as suas miríades de tecelões e fiandeiros”, responsáveis pela “estrutura dessa sociedade”, destruiu-a e, a ausência de destroços impediria “quaisquer sintomas de reconstituição”. Se antes, “a Europa recebia os tecidos admiráveis do trabalho indiano, mandando-lhe em troca os seus metais preciosos”, a “Inglaterra” passou a “privar os algodões indianos do mercado europeu”, para depois introduzir “o fio no Indostão” e inundar “de algodões a própria terra natal do algodão”.87

“De 1818 a 1836, a exportação de fio da Grã-Bretanha para a Índia cresceu na proporção de 1 para 5200. Em 1824, a exportação de musselinas britânicas para a Índia mal chegava a 1 000 000 de jardas, enquanto em 1837 ultrapassou os 64 000 000 de jardas. Mas, ao mesmo tempo, a população de Dacca desce de 150 000 habitantes 20 000. Este declínio nas cidades indianas famosas pelos seus tecidos não foi de modo algum a pior consequência. O vapor e a ciência britânicos

86 HOBSBAWM, A Era das Revoluções, p.35

(lutasocialista.com.br/.../HOBSBAWM,%20E.%20A%20era%20das%20revoluções.pdf )

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24

destruíram, em toda a superfície do Indostão, a união entre a agricultura e a indústria manufactureira”88

2. Das ciências à ciência histórica

Como “toda a inovação fundamental numa especialidade científica transforma inevitavelmente as ciências vizinhas e, mais lentamente, os mundos do filósofo e do leigo culto”89, a “revolução epistemológica” que levou à ruptura com o conhecimento

sensível e à sua substituição pelo inteligível, verificada em diversas áreas das ciências naturais a partir de Copérnico, ocorreu também na história, resultando na substituição de “uma história do sensível” por “uma história do inteligível”, ou na transformação da “história-crónica” em “história-ciência”.90 Na segunda metade do século XVII, em seu

“Discurso do Método”, Descartes chega à conclusão da inutilidade do conhecimento histórico como “construção de fantasias” e “que os historiadores – mesmo no melhor dos casos – deformam o passado”, “não sendo”, portanto, as narrativas históricas, “dignas da nossa confiança” e, por isso, “não podem, na verdade, ajudar-nos a compreender o que é possível” e, desta forma, “não podem ajudar-nos a actuar no presente”.91

“Mas julgava ter já dedicado bastante tempo às línguas, assim como a leitura dos livros antigos, às suas histórias […]. Pois é quase o mesmo conversar com as pessoas dos outros séculos como viajar. […]. Mas, quando se gasta demasiado tempo a viajar, acaba-se por ser estrangeiro no próprio país; e quando se é obsessivamente curioso das coisas que se faziam nos séculos passados, fica-se ordinariamente muito ignorante das que se praticam no presente. Além de que […] fazem imaginar, como possíveis muitos acontecimentos que o não são, e que até as histórias mais fiéis, embora não alterem nem aumentem o valor das coisas, para as tornar mais dignas de serem lidas, pelo menos omitem quase sempre as mais baixas e menos ilustres circunstâncias […] e que os que regulam os costumes pelos exemplos que delas tiram estão sujeitos […] a conceber projectos que excedem suas forças”92

88 Id. Ibid., p.532.

89 KUHN, Id. Ibid., p.246. 90 CARVALHO, Id. Ibid., p.77. 91 COLLINGWOOD, 2001: 79. 92 DESCARTES, 2014: 12-13.

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25 Só no século XVIII, com a contribuição de Kant para o avanço da teoria do conhecimento, os filósofos atingiram a consciência da possibilidade do conhecimento histórico sem que o historiador abandone o presente como referencial e de que, o objeto do conhecimento histórico está “relacionado com o ponto de vista do conhecedor”.93

Ao estabelecer contacto com a “revelação copernicana” de Kant, Vico apercebeu-se de que a afirmação de Descartes era o esboço de uma crítica à História, “que – se fosse plenamente desenvolvida” chegaria à formulação de “um método ou código de regras de crítica histórica”, capaz de redescobrir “a verdade que” as narrativas históricas “escondiam ou deformavam”. 94A partir da compreensão de que a afirmação segundo a qual “as narrativas históricas relatam acontecimentos que não podem ter ocorrido”, o que implica na existência de um outro critério “que não as narrativas que chegam até nós”, Vico procura a formulação dos “princípios do método histórico, tal como Bacon formulara os do método científico”, opondo-se “à filosofia cartesiana, considerando-a como algo que tinha de ser enfrentado polemicamente”.

Após servir-se de “toda a amplitude” do desenvolvimento “atingido pelo método crítico” com a contribuição dos historiadores do século XVII, Vico levou-o a um “estádio mais avançado” e contra-atacou a filosofia da ciência e a metafísica cartesiana, demonstrando “como o pensamento histórico pode ser”, simultaneamente, “construtivo e crítico”, uma vez liberto da dependência de fontes escritas, devidamente autorizadas” e tornando-se “capaz de recuperar – através da análise científica dos dados – verdades que se perderam por completo”, adquirindo originalidade e auto-suficiência.95

O enorme progresso atingido pela ciência deu origem, no século XVIII, ao movimento iluminista caracterizado pela “fé na razão e no seu poder triunfante”,96expressa na premissa da necessidade e possibilidade da “saída do homem

da sua menoridade” intelectual, ou seja, da “incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem culpada, sobretudo nas coisas de religião”, sintetizada na palavra de ordem enunciada por Kant: “Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento!”97. A teoria filosófica na qual se baseava o Iluminismo –

Aufklärung – considerava algumas “formas de actividade mental” primitivas perecíveis

93 COLLINGWOOD, Id. Ibid., p.79. 94 Id. Ibid., p.80.

95 Id. Ibid., p.89.

96 GADAMER, 2001: 41.

97 KANT, “Resposta à pergunta: que é Iluminismo?” p.1 e 7

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Tabela 1                          Sobre quem é Stálin
Tabela  2  Qual  o  significado  do  período  no  qual  Stálin  esteve  à  frente  do  governo  da  URSS

Referências

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