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O ARTIGO 98 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL E A APLICAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO INTERNACIONAL PELO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO MESTRADO EM DIREITO

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GUILHERME ANDRADE LUCCI

O ARTIGO 98 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL E A

APLICAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO INTERNACIONAL PELO

PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO

MESTRADO EM DIREITO

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP

GUILHERME ANDRADE LUCCI

O ARTIGO 98 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL E A APLICAÇÃO

DO DIREITO TRIBUTÁRIO INTERNACIONAL PELO PODER

JUDICIÁRIO BRASILEIRO

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito, Jurisdição Federal, sob a orientação do Professor Doutor Robson Maia Lins.

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Banca Examinadora

_____________________________________________

_____________________________________________

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“Va', pensiero, sull'ali dorate va', ti posa sui clivi, sui colli ove olezzano tepide e molli l'aure dolci del suolo natal!”

[ Vai, pensamento, com tuas asas douradas Vai, pousa sobre as escarpas e sobre as colinas

Onde sopram tépidas e suaves

As brisas ternas do solo natal! ]

Temistocle Solera

(5)

Para Fernanda, pelo companheirismo, pelo amor e pelo incentivo de sempre.

(6)

AGRADECIMENTOS

Ao Egrégio Tribunal Regional Federal da Terceira Região, pelo essencial estímulo à pesquisa acadêmica e ao aperfeiçoamento do conhecimento jurídico deste magistrado federal e mestrando.

A meu orientador, Professor Doutor Robson Maia Lins, pelo entusiasmo com que conduziu as aulas do Projeto Ajufe – Jurisdição Federal. Mais que isso, agradeço-lhe pelo profissionalismo e pela larga generosidade na orientação deste estudo.

Aos colegas do mestrado da PUC-SP, Projeto Ajufe – Jurisdição Federal, que tornaram ainda mais atiladas e agradáveis as inúmeras discussões acadêmicas, inclusive aquelas havidas nas diversas tardes de sábado.

À Associação dos Juízes Federais do Brasil – Ajufe, pela iniciativa e pela promoção do caro interesse de seus associados em avançar no estudo formal acadêmico.

À denodada equipe das bibliotecas da Justiça Federal em São Paulo e em Campinas, sempre eficiente e solícita.

(7)

RESUMO

LUCCI, Guilherme Andrade. O artigo 98 do Código Tributário Nacional e a aplicação do Direito Tributário Internacional pelo Poder Judiciário brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2015.

Este estudo tem por objeto analisar o papel da Jurisdição brasileira na concretização, no plano nacional, de normas tributárias contempladas em tratados internacionais de que o Brasil seja signatário, bem assim na concretização do direito do contribuinte à liberdade ao planejamento tributário internacional realizado com fundamento nesses tratados internacionais. Examina a atribuição do magistrado brasileiro, especialmente do juiz federal brasileiro, como agente político garantidor tanto da efetividade, no caso concreto, do direito à liberdade fiscal estabelecido em tratados tributários internacionais, quanto da concretização dos compromissos assumidos internacionalmente pela República.

(8)

ABSTRACT

LUCCI, Guilherme Andrade. Article 98 of the Brazilian Tax Code and application of International Tax Law by the Brazilian Judiciary.

Master’s thesis (Master of Law). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2015.

This work purposes to analyze the role of Brazilian Jurisdiction in the implementation of tax laws included in international treaties that Brazil is a signatory, at the national level, as well as the realization of the right to freedom to international tax planning undertaken baser on these international treaties. Examines the duties of the Brazilian magistrate, especially the Brazilian federal judge, as political agent guarantor of effectiveness of the right to tax freedom established in international tax treaties, as well honoring international commitments assumed by the Republic.

(9)

RÉSUMÉ

LUCCI, Guilherme Andrade. L’article 98 du Code général fiscal brésilien et l’application du droit fiscal international par le Judiciaire brésilien. Dissertation (Maîtrise de Droit). Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo: São Paulo, 2015.

Cette étude traite d'analyser le rôle de la juridiction brésilienne dans la mise en œuvre, au niveau national, des dispositions fiscales incluses dans les traités internationaux auxquels le Brésil est signataire, ainsi que d’analiser la réalisation du droit à la liberté de la planification fiscale internationale sur la base de ces traités internationaux. Il examine aussi la responsabilité du magistrat brésilienne, spécialement du juge fédéral brésilien, comme un agent politique que garant autant de l'effectivité, dans les cas concrets, du droit à la liberté fiscale établi dans les conventions fiscales, combien de la concrétisation des engagements assumés internationalement par la République grâce à ces conventions.

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RESUMEN

LUCCI, Guilherme Andrade. El artículo 98 del Código fiscal brasileño y la aplicación del Derecho Tributario Internacional por la Justicia brasileña. Tesis (Maestría en Derecho). Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo: São Paulo, 2015.

El objetivo de este estudio es analizar la responsabilidad de la jurisdicción brasileña en la implementación, en ámbito nacional, de las normas tributarias incluidas en los tratados internacionales de los cuales el Brasil es signatario, así como en la realización del derecho a la libertad de planificación fiscal internacional hecha con base en estos tratados internacionales. Analiza también la adjudicación del magistrado brasileño, en especial del juez federal brasileño, como agente político garante de la efectividad, en cada caso, del derecho a la libertad fiscal establecida en los tratados fiscales internacionales, como de la implementación de los compromisos internacionales de la República.

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RIASSUNTO

LUCCI, Guilherme Andrade. L'articolo 98 del Codice Fiscale brasiliano e la concrezione del Diritto fiscale internazionale da parte della magistratura brasiliana. Dissertazione (Master in

Giurisprudenza). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2015.

Questo studio si occupa di analizzare il ruolo della Giurisdizione brasiliana nella concrezione, nel piano nazionale, delle norme fiscali curate nei tratatti internazionali, cosí come del diritto alla libertà di pianificazione fiscale internazionale svolta con l’autorizzazione di questi tratatti internazionali stessi. Esamina l’assegnazione del magistrato brasiliano, specialmente del giudice federale brasiliano, di agente politico garante sia della efetività, nel caso concreto, del diritto alla libertà fiscale stabilito nei tratatti fiscali internazionali, sia della concrezione dei impegni assunti internazionalmente dalla Repubblica.

(12)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 14

CAPÍTULO 1 – JURISDIÇÃO E NORMA JURÍDICA 1.1 Direito e linguagem ... 17

1.2 Projeção axiológica do Direito ... 18

1.3 Jurisdição, poder estatal e soberania ... 20

1.4 Jurisdição na criação da norma do caso concreto ... 25

1.4.1 Magistrado como agente comunicacional credenciado ... 25

1.4.2 Magistrado e sistema de referência ... 27

1.4.3 Magistrado na construção da norma jurídica individual e concreta ... 28

1.4.4 Magistrado e atuação por meio do processo ... 32

1.4.4.1 Jurisdição cível e sua finalidade ... 32

1.4.4.2 Processo como meio de efetivação da tutela jurisdicional ... 36

1.5 Fontes do Direito ... 39

1.5.1 Noção ... 39

1.5.2 Tratado Internacional como fonte ... 39

1.5.3 Previsão constitucional. Treaty making power ... 41

1.5.4 Hierarquia dos tratados no direito brasileiro e julgamento do RE 80.004 pelo Supremo Tribunal Federal ... 43

CAPÍTULO 2 – JURISDIÇÃO E MUNDIALIZAÇÃO DO DIREITO 2.1 Mundialização do Direito ... 50

2.2 Direitos humanos e atuação jurisdicional ... 55

2.3 Magistrado nacional como agente político de mundialização do Direito ... 60

2.4 Magistrado nacional e parcial eficácia dos mecanismos de proteção internacional no plano interno ... 66

2.5 Magistrado federal brasileiro na garantia de direitos outorgados por meio de tratados internacionais ... 70

CAPÍTULO 3 – O ARTIGO 98 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL 3.1 Origem do dispositivo ... 76

3.2 Fundamentos de validade ... 79

3.3 Relevância das convenções internacionais contra a dupla tributação ... 81

3.4 STF e STJ: precedentes jurisprudenciais tributários relevantes ... 82

3.4.1 STF: RE 113.150/SP (tratado contratual) ………..………... 82

3.4.2 STJ: REsp 426.945 (GATT) ………... 83

3.4.3 STJ: REsp 1.161.467 (critério da especialidade) …………....…………... 83

(13)

3.4.5 STJ: REsp 1159379 (PNUD) ………...… 87

3.4.6 STF: RE 229.096-0/RS (isenção heterônoma) ... 88

3.4.7 STJ: REsp 1.325.709 – RJ (Caso Vale S.A.) ... 89

3.4.8 STF: RE 460.320-PR (Caso Volvo) ... 92

CAPÍTULO 4 – JURISDIÇÃO NA GARANTIA DA LIBERDADE FISCAL 4.1 Tributação e direitos humanos ... 95

4.2 Tributação e moralidade ... 98

4.3 Tributação, liberdade e igualdade ... 102

CAPÍTULO 5 – JURISDIÇÃO NACIONAL E PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO INTERNACIONAL 5.1 Noção ... 109

5.2 Fundamento de validade: a liberdade tributária ... 113

5.3 Princípios da universalidade e da territorialidade da tributação ... 115

5.4 Cláusulas ‘antifraudes’ tributárias. Paraísos fiscais ... 119

CONCLUSÃO ... 125

(14)

INTRODUÇÃO

As relações internacionais havidas entre pessoas nacionais de Estados soberanos diversos, dentre elas as relações econômicas com repercussão tributária, desenvolvem-se na mesma intensa velocidade com que esses Estados também estabelecem relações jurídicas e econômicas internacionais entre si. Os interesses dos diversos atores da comunidade internacional e de seus nacionais são cada vez mais heterogêneos, circunstância que propicia a profusão de acordos internacionais, que naturalmente devem ser observados pelo Poder Público nacional.

A maior facilitação à circulação de pessoas, de bens, de serviços, de informação e de capitais entre pessoas de países diversos e a interdependência dos diversos sistemas tributários, monetários, econômicos e financeiros nos tempos atuais cria uma realidade pautada pelo surgimento de fatos jurídicos cujos reflexos extrapolam os umbrais da incidência exclusiva do direito nacional de cada Estado. A atividade legislativa nacional interna, compreendida sobretudo como a produção da norma geral e abstrata, assim, para além de não acompanhar a dinâmica com que as relações internacionais se desenvolvem, mostra-se naturalmente inapta a dar solução jurídica a questões cuja normatização exige necessariamente o exercício da soberania de Estado estrangeiro em concerto com a atuação da República Federativa do Brasil.

Nesse contexto, atua o Direito Tributário Internacional como instrumento jurídico de normatização dos reflexos no campo tributário das interações ocorridas entre pessoas de nacionalidades diversas em relações não limitadas a um único território nacional. O Direito Tributário Internacional, portanto, apresenta-se como regramento jurídico ‘ultrafronteiriço’, por meio de cuja incidência também o magistrado brasileiro, no exercício de jurisdição nacional, poderá dar solvência a processos sob sua presidência com objeto tributário. Assim o fazendo, estará a atuar na destacada atividade de agente de implementação do direito internacional aceito pela República brasileira.

(15)

da jurisdição nacional, julgar “as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional”1.

Essa cláusula constitucional, em última análise atribui ao magistrado federal brasileiro, no exercício ordinário da jurisdição federal, destacado papel de agente valorativo, criador do direito aplicável ao caso concreto sob seu julgamento e, portanto, de agente político garantidor dos direitos oriundos de tratados internacionais de que o Brasil seja signatário — inclusive daqueles cujo objeto seja a relação jurídico-tributária, como por exemplo aqueles que visam a evitar a dupla tributação por Estados soberanos diversos. A mesma cláusula constitucional atribui ao magistrado federal brasileiro, ainda e mais gravemente, por decorrência, o papel de garantidor do próprio cumprimento, pela República Federativa do Brasil, no plano interno, do compromisso internacional por ela assumido em relação a outros Estados soberanos ou em relação a Organismos internacionais cada vez mais presentes no plano das relações econômicas e jurídicas internacionais.

Dentro dessa gama de direitos assim garantidos pelo magistrado brasileiro no exercício da jurisdição nacional, não se incluem exclusivamente os tipicamente qualificados como direitos humanos, senão também outros diversos desse grupo (ou que nele também estão incluídos, conforme se verá), como aqueles pertinentes ao regramento de relações comerciais, tributárias, econômicas e financeiras.

De toda sorte, a regra de competência jurisdicional acima disposta atribui à jurisdição federal brasileira e, pois, aos juízes federais brasileiros, a alta incumbência de exercer o controle de subsunção de certo fato jurídico à norma de direito internacional anuída pela República brasileira, ou de dicção de quais são os contornos dessa norma quando aplicada no plano interno. Atua esse agente nacional, por consequência, como autoridade judiciária eleita pelo Estado brasileiro e autorizada pela Constituição da República com competência para a análise do fenômeno da incidência de norma jurídica colhida de pacto internacional de que o Brasil seja subscritor.

1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em

(16)

O presente estudo, pois, visa a explorar os fundamentos e a relevância desse particular cometimento de competência ao magistrado nacional, especialmente ao magistrado federal brasileiro, na garantia de direitos tributários elementares, como o da liberdade de planejamento fiscal, buscando tratar das questões jurídicas e funcionais que lhe são decorrentemente afetas.

(17)

CAPÍTULO 1

JURISDIÇÃO E NORMA JURÍDICA

1.1 Direito e linguagem

Anteriormente à análise do objeto central deste estudo, consistente no papel e nas possibilidades de atuação do Poder Judiciário nacional na garantia da implementação de direitos contemplados em tratados internacionais tributários de que o Brasil seja signatário, cumpre observar alguns conceitos relevantes.

O desempenho da atividade típica do Poder Judiciário, que se deve comunicar oficialmente com aqueles a quem ele presta a jurisdição, dá-se pelo essencial instrumento da linguagem. A propósito, o disposto no inciso IX do artigo 93 da Constituição da República2, dentre outros valores, traz consigo a legítima

imposição de que os Órgãos do Poder Judiciário necessariamente vazem seus provimentos por intermédio do uso da linguagem (expressa, verbal e idiomática). O provimento prescritivo jurisdicional, assim, deve vir exteriorizado de modo juridicamente fundamentado. A norma jurídica individual e concreta emanada da atividade jurisdicional deve ser apresentada por linguagem apropriada que contenha, inclusive, os fundamentos judiciais de sua edição para aquela espécie sob julgamento.

A linguagem, ao ensejo, é um sistema organizado de sinais que se presta como mecanismo de comunicação e de transmissão de ideias entre interlocutores. Segundo Lourival Vilanova, “todo sistema implica ordem, isto é, uma ordenação das partes constituintes, relações entre as partes ou elementos”3. Sistema comunicacional, portanto, pressupõe a adequada concatenação dos elementos de

2 Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da

Magistratura, observados os seguintes princípios: IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

3 VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas e sistema de direito positivo. São Paulo: RT, 1977. p.

(18)

comunicação de determinada mensagem. Para o objeto deste estudo, importa considerar a mensagem do Direito.

O Direito é fato comunicacional.

O Direito existe para disciplinar comportamentos humanos juridicamente relevantes à sociedade a que ele serve. Esse disciplinamento é levado a termo mediante processo de positivação de mensagens normativas. O conjunto harmônico dessas mensagens normativas versadas em linguagem e em meio apropriados forma o sistema normativo.

Partindo-se desse pensamento, pode-se concluir, conforme Robson Maia Lins4, que o Direito não se manifesta “sem uma linguagem, idiomática ou não, que lhe sirva de veículo de expressão, aqui tomado na sua acepção normativa como conjunto de normas jurídicas válidas vigentes num sistema, em determinado momento histórico”.

O Direito, para se manifestar e, enfim, para ser eficiente no cumprimento de seu objetivo regulatório de comportamentos juridicamente relevantes, deve valer-se da linguagem e da comunicação. Essas, por seu eito, devem emanar de agente credenciado, que as deve exercer segundo as formas previamente admitidas como válidas pelo sistema.

1.2 Projeção axiológica do Direito

O Direito, tanto quanto as demais ciências culturais, possui conteúdo essencialmente valorativo. Ampara-se, para a consecução de sua finalidade regulatória de comportamentos, nos valores vigentes em determinada sociedade e em certo momento histórico. Mais que isso, com sua atuação o Direito busca mesmo implementar ou resgatar esses vigentes valores socialmente admitidos como veneráveis por aquele ambiente social naquele tempo histórico.

4 LINS, Robson Maia. O Supremo Tribunal Federal e Norma Jurídica: Aproximações com o

(19)

Por certo, calha enfatizar, os valores aplicáveis ao Direito devem ser prospectados e extraídos dos parâmetros éticos e culturais vigentes naquele justo momento histórico de sua aplicação. Eles, os valores, ao fim e ao cabo, representam a compreensão e o estima que na média daquele ambiente social se tem dos fatos juridicamente relevantes, naquele determinado átimo histórico. Sobre isso, refere Miguel Reale5:

O elemento axiológico é a essência da compreensão da cultura. No fundo, cultura é compreensão; e compreensão é valoração. Compreender, em última análise, é valorar, é apreciar os entes sob prisma de valor, vivenciando-os.

Deveras, a própria atividade de expressão do Direito toma como fundamento, para a regulação jurídica de comportamentos, o substrato da cultura então vigente ao tempo de fixação da norma aplicável. Sobre isso, refere Machado Neto6:

nada há de cultural e socialmente importante que não se constitua, de pronto, em objeto de regulamentação jurídica e que, por outro lado, não sofra, por sua vez, a influência informadora própria do jus, toda cultura apresentando um mínimo que seja de organização jurídica, por mais consuetudinária que seja.

Evidentemente que por serem expressões subjetivas de seu tempo histórico, os valores não possuem conteúdos intrínsecos, ontológicos. Dessa forma, não são perpetuamente ou perenemente concebidos como algo definido e bastante em si mesmo. Os valores não podem, tampouco, ser decantados por processo de repetição de ações descontextualizadas do momento histórico e cultural. O desenrolar do tempo e a instabilidade inerente dos parâmetros culturais modificam paulatinamente o sentido dos valores. Por isso os valores não são fatos, senão compreensões, experiências, vivências que deles (fatos) podem ser depuradas. Os fatos, portanto, são os suportes dos valores, sobre os quais e nos quais eles se expressam.

A propósito, refere Miguel Reale7:

5 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

p. 255.

6 MACHADO NETO, Antônio Luis. Sociologia Jurídica

. 6.ª ed.. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 163.

7 REALE, Miguel.

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os valores não possuem uma existência em si, ontológica, mas se manifestam nas coisas valiosas. Trata-se de algo que se revela na experiência humana, através da História. Os valores não são uma realidade ideal que o homem contempla como se fosse um modelo definitivo, ou que só possa realizar de maneira indireta, como quem faz uma cópia. Os valores são, ao contrário, algo que o homem realiza em sua própria experiência e que vai assumindo expressões diversas e exemplares, através do tempo.

O Direito, portanto, como ciência cultural regulatória de comportamentos sociais juridicamente relevantes, informa-se dos valores vigentes em certos tempo e espaço para, assim, atuar mediante a prescrição de normas jurídicas.

A jurisdição, por seu turno, porque opera a linguagem do Direito, vale-se igualmente dos valores na realização de seu ministério. Por decorrência, o magistrado, no exercício da jurisdição, sorve os valores veneráveis dessa mesma maneira, para o fim de definir a devida e justa fixação da norma jurídica individual e concreta aplicável àquele caso concreto sob seu julgamento. É nessa fixação que ele, magistrado, opera o fenômeno da incidência.

1.3 Jurisdição, poder estatal e soberania

O exercício da jurisdição, conforme visto, é atividade estatal de compreensão, de eleição e de expressão de valores por intermédio da ação do agente público para isso credenciado: o juiz.

(21)

Nesse contexto, o Judiciário é um Poder (no conceito orgânico) do Estado. É, também, em um Estado Democrático de Direito, especial delegatário do poder (na acepção jurídica) conferido pela Constituição da República – a qual, por sua vez expressa o poder emanado do povo, seu efetivo titular. Ainda, o Poder Judiciário detém poder, na acepção extrajurídica, por meio do qual pode fazer efetivamente valer, inclusive pelo uso da coerção, as normas jurídicas expressadas em seus provimentos decisórios. Sem dispor de poder, nesses últimos sentidos (jurídico e extrajurídico), o Poder Judiciário não contaria com os meios necessários ao adequado desencargo das típicas atividades julgadora e executiva que lhe foram cometidas pela Constituição da República e pela lei.

O magistrado, porque produz a norma do caso concreto sob seu julgamento, exerce ato de poder. Nesse mesmo sentido, refere Eros Grau que “a norma é uma manifestação de poder. Quem produz uma norma exerce um ato de poder”8.

Segundo Ferraz Júnior9, a relação de poder é processo histórico, temporal e espacial que se torna sistema com estrutura conectiva de elementos, modalizando as ações mediante o oferecimento de possibilidade, faculdade, passividade, oportunidade, potencialidade, permissividade, sugestividade, ou ainda autorizando ações e atribuindo o direito subjetivo.

Na dogmática jurídica, o poder é tido como um fato extrajurídico, cujo sentido pode ser o de fenômeno autorizativo da formação do direito (no direito público); ou o de substância, coisa, força, império, faculdade (direito subjetivo), ligado à capacidade de produzir obediência; ou o de instrumento objetivo cultural de exercício de soberania.

Quando considerado como fato, o poder desafia teorias normativas, dentre elas a teoria da soberania. Essas teorias estão centradas não no estudo da teoria geral do fenômeno do poder, mas no estudo da obediência que ele propicia e na sua

8 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos Juízes: a interpretação/aplicação do direito e os

princípios, 6.ª edição refundida do ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 47.

9 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a

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legitimação, demais de no estudo da função estatal e da busca do bem comum a que se deve prestar a atuação estatal. O estudo da soberania, desse modo, pode ser explicado e justificado a partir dessa sua consequência mais visível, que é justamente o poder.

O conceito jurídico de soberania parte de um pressuposto metafísico consubstanciado na existência de uma vontade suprema (divina ou popular), boa e cogente, que rege certa comunidade humana. Então, o poder efetivo emana dessa vontade suprema e em sua vertente de poder originário se torna fonte do direito, a qual encontra limitações internas e externas. O poder soberano e o ordenamento jurídico, pois, são conceitos mutuamente referidos.

Nesse aspecto, jurisdição, soberania e poder guardam entre si relação intrínseca de instrumentalidade, considerando-se que a soberania “é a efetividade da força pela qual as determinações das autoridades são observadas e tornadas de obediência incontrastável mesmo por meio da coação”10. Nesse compasso de ideias, o exercício da jurisdição, sendo uma das atividades através das quais o Estado exerce poder, é também atividade de exercício de sua soberania.

Já sob o viés do direito internacional, a soberania é a “não-sujeição à determinação de outros centros normativos”11 por aqueles que com esses centros

não guardam algum elemento de conexão. Sob esse prisma, contudo, note-se que também será exercício de soberania a livre e consciente opção do Estado à sujeição a regramentos jurídicos emanados de outros centros normativos, desde que de cunho internacional ou transnacional.

Nesse ensejo de exercício de poder estatal e de soberania, o Poder Judiciário, como um dos Poderes da República, deve valer-se, na busca pela prestação jurisdicional justa, do discurso jurídico racional e coerente ao ordenamento jurídico vigente. Assim, em sua atuação deverá lançar mão especialmente das normas constitucionais e daquelas normas contidas em tratados internacionais de que o Brasil seja signatário.

10

Ibidem, p. 22.

11

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Por intermédio da atuação constitucional e política, o Poder Judiciário nacional toma para si atividade que é mesmo sua: a tendente à justa concretização dos direitos e valores fundamentais extraídos da Constituição da República. Essa atuação política e racional, realizada dentro dos lindes estabelecidos em especial pela Constituição e, depois, pelos tratados internacionais, é relevante à ultimação de uma ordem jurídica justa.

Sobre essa atuação e sobre a utilização do discurso racional para exercê-la, doutrina Robert Alexy12:

Finalmente, não se deve subestimar a função da teoria do discurso jurídico racional como definição de um ideal. Como ideal vai além do âmbito da Ciência do Direito. Os juristas podem certamente contribuir para a realização da razão e da justiça, mas não podem fazer isso sozinhos. Isto pressupõe uma ordem social racional e justa.

Como expressão do poder estatal, a atuação jurisdicional deve, por decorrência de imposição da própria legitimação de sua existência, ser realizada sempre com vista à máxima efetivação dos direitos fundamentais e humanos, e sempre com arnês na Carta da República e nos tratados internacionais celebrados pela República. Deve o magistrado perscrutar o objeto da lide e a intenção das partes e, com a energia necessária, construir as normas que expressem os valores ali venerados.

Decerto que não se pretende um desestímulo à serenidade judicial na consecução desse desiderato de exercício de poder, nem tampouco a desconsideração das tradições da relação humana. Antes, segundo refere Lourival Vilanova13, ao magistrado cumpre atentar-se à dinâmica da vida humana, à mudança social, às inovações, à renovação e ao desenvolvimento, sem se descurar, porém, da estática, do hábito, da repetição, da rotina e da tradição das relações

12 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schikd Silva. 3.ª

edição. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

13 VILANOVA, Lourival. O Poder de Julgar e a Norma. In Escritos Jurídicos e Filosóficos, volume

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humanas. Direito é olhar para o futuro a partir da experiência e da tradição dos fatos passados.

Nesse ensejo, também refere Celso Antônio Bandeira de Mello14, sobre os

direitos sociais, que eles “fazem parte do acervo histórico, jurídico, ético e cultural dos povos civilizados. Integram o patrimônio cultural do povo brasileiro”. Expressa o autor, com isso, o fundamental papel da ‘tradição’, quando do exercício do poder estatal pelo magistrado.

O Poder Judiciário, por consequência, exerce relevante poder estatal político. É responsável por mudanças que podem ser realizadas a partir dos modelos sociais vigentes. Deve o magistrado, desse modo, em nítido exercício de atividade política, porque de poder estatal, construir a norma jurídica a partir dos valores que como agente político julgador percebe vigentes e venerados naquele momento histórico. Deve, mais, aplicar tais valores em preito à eficácia dos direitos fundamentais e fazer com que esses valores sejam enfim ultimados nos termos do quanto desejado pela Constituição da República, pelas leis internas e pelos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário.

Sobre o exercício, pelos órgãos do Poder Judiciário, dessa grave atividade estimativa de valores, refere Miguel Reale15:

A sentença de um juiz é também um trabalho estimativo, de compreensão axiológica, e não mero silogismo, como encontramos explicado – e muitas vezes em autores de grande importância – na Teoria do Processo. Nunca será demais acentuar que a sentença só na aparência é um silogismo, não sendo reduzível a simples dedução formal assim como a interpretação do Direito não é mero trabalho de Lógica formal, mas possui antes natureza dialética, implicando conexões fático-normativas segundo valores.

Assim, o juiz nacional, valendo-se de sua experiência e de sua legitimidade como agente político estatal, estima valores e os aplica em suas decisões, após realizar as conexões fático-normativas. Exerce formal e oficialmente, no

14 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das Normas Constitucionais e Direitos Sociais. 1.ª

edição. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 57

(25)

desempenho de sua atividade constitucional, parcela relevante do poder estatal e da expressão da soberania.

Decerto que a atuação política, compreendida ao menos no que se refere ao exercício de parcela (ou função) do Poder Estatal, sempre foi inerente ao desempenho da atividade primária do Poder Judiciário. Também é certo, entrementes, que tal atuação sempre foi de alguma maneira revestida externamente pelo discurso da juridicidade como instrumento de negação da política. Possivelmente isso se tenha dado em deferência às críticas baseadas no falso dogma de que ao Poder Judiciário não cumpre atuar politicamente, ao contrário do que justamente se espera dos outros dois Poderes da República, o Legislativo e o Executivo.

O pudor de grande parcela dos magistrados em se autodeclarar agentes investidos de função política do Estado talvez possa residir na percepção de que tal atuação é capaz de tornar pública e mais facilmente apurável sua orientação cultural e, por decorrência, também sua orientação ideológica. E, segundo Gian Caselli e Livio Pepino16, “può certo accadere che l’orientamento culturale del giudice sia ragione di scandalo o diffidenza (interessata o in buona fede)” 17.

Nesse contexto, o magistrado, como agente de poder estatal, deve velar para que outras expressões desse mesmo poder estatal — como, por exemplo, a celebração e admissão de tratados internacionais — atinjam sua máxima efetividade, como adiante se verá.

1.4 Jurisdição na criação da norma do caso concreto

1.4.1 Magistrado como agente comunicacional credenciado

16 CASELLI, Gian Carlo. PEPINO, Livio. Aun cittadino che non crede nella giustizia. Bari: Editori

Laterza, 2005. p. 47.

17 Tradução livre do autor: “pode decerto acontecer que a orientação cultural do juiz seja razão de

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A Constituição da República, em seu artigo 5.º, inciso XXXV, prescreve como direito fundamental que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos18, documento internacional

regente da atuação das Nações Unidas, prevê, em seu artigo VIII, que “todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”.

Esses destacados preceitos normativos, dentre tantos outros, credenciam os Órgãos do Poder Judiciário nacional ao exercício do poder estatal jurisdicional. Esse exercício, conforme já referido, dá-se por intermédio da linguagem verbal, que por sua vez instrumentaliza que a comunicação seja vazada em forma de norma jurídica individual e concreta para o caso sob julgamento.

O magistrado é, cumpre sempre enfatizar, agente público estatal com competência para produzir normas jurídicas especificamente aplicáveis aos casos sob seu julgamento.

Está, assim, credenciado pelo Estado a dizer oficialmente em seu nome, desde que nas precisas hipóteses e segundo os estritos limites de competência jurisdicional previamente estabelecidos no ordenamento. O magistrado, no exercício regular da jurisdição, exerce atividade que em verdade é fonte do direito, pois dela exsurge a norma jurídica incidente no caso sob seu deslinde.

Consoante já se disse, essa atividade normativa ocorre eminentemente por meio da valoração de tudo quanto se relacione com o Direito. Trata-se de atividade de poder e deve ser exercida por intermédio da comunicação. Valoração e comunicação, contudo, para serem adequadamente ultimadas, devem pautar-se em certa parametrização aceitável socialmente, pois devem expressar as compreensões

18 NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em

(27)

e os valores então vigentes. Demandam, portanto, o alinhamento com o sistema vigente de referência.

1.4.2 Magistrado e sistema de referência

Segundo Paulo de Barros Carvalho, citando Goffredo Telles Júnior, “A ideia de sistema de referência toma posição dominadora em todo o conhecimento humano. Sem sistema de referência, o conhecimento é desconhecimento”19.

O sistema de referência é, portanto, um modelo de parametrização do conhecimento humano.

Nesse sentido, aponta Gustav Radbruch20 que “a ideia do direito é um valor, mas o direito é uma realidade referida a valores, um fenômeno cultural”.

Esse sistema, aplicado à legitimidade da linguagem jurídica, segundo doutrina o mesmo autor21, assume autorreferibilidade, isto é, independência em relação a elementos externos.

Dessa forma, dada a relevância da linguagem na própria constituição de fatos jurídicos, “O jurista é o ponto de intersecção entre a teoria e a prática, entre a ciência e a experiência. (...). É por meio da experiência que teoria e prática se interligam e se relacionam” 22.

Somente pela atuação do homem e de sua linguagem, portanto, é que o evento apurado no mundo externo, após ser relatado em linguagem competente, convola-se em fato jurídico e em relação decorrente entre sujeitos de direto. A realidade, pois, constitui-se pela linguagem. Para o mesmo autor, “A partir daí,

19 CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos Jurídicos da Incidência. São Paulo: Saraiva,

2012.p. 22.

20 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução: Marlene Holzhausen. 2.ª ed. São Paulo.

Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 41.

21 CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos..., p. 25 22

(28)

aparece o direito como sobrelinguagem, ou linguagem de sobrenível, cortando a realidade social com a incisão profunda da juridicidade”23.

Sobre a referibilidade necessária e pertinente também ao direito internacional, discorre Paulo Borba Casella24:

A construção do ordenamento jurídico, seja interno como internacional, se inscreve em tempo (história) e contexto (cultura) determinados, onde o fato de não se ter previamente consciência destes em nada lhes muda o alcance e a importância fundamentais. Assim, o direito internacional pós moderno, enquanto produto, estará necessariamente e contextualmente condicionado pelo tempo histórico e meio cultural nos quais se inscreve.

A construção das normas jurídicas individuais e concretas para cada caso, por consequência, deve contar com lastro ao sistema de referência vigente naqueles certos tempo e espaço. É desse sistema que devem ser hauridos os valores e os contrastes necessários àquela atividade de produção do direito.

1.4.3 Magistrado na construção da norma jurídica individual e concreta

Numa sociedade ideal hipotética – em que vigoram, intemeratos, princípios como liberdade em sentido amplo, solidariedade, trabalho, civilismo, civilidade, honestidade, respeito individual e social em todas suas concepções – o mundo fático, do ser, tende ao mundo do dever-ser, com ampla perspectiva de sucesso de

aproximação.

De outro turno, todavia, numa sociedade real, especialmente naquelas cujos valores morais, sociais e jurídicos impõem múltiplos consertos do ser e nenhum

concerto deste com o dever-ser, isso não ocorre. Ainda que normas preceptivas haja

a guiarem o comportamento do Estado e do indivíduo para o que deve ser, esses

mundos do ser e do dever-ser desencontram-se, pois transitam por planos muitas

vezes intangíveis entre si.

23

Ibidem, p. 33.

24 CASELLA, Paulo Borba. Fundamentos do direito internacional pós-moderno. São Paulo:

(29)

Considerando esse segundo contexto social, é certo que a atividade normativa decorrente da atuação do Estado-juiz ganha destaque. Há algum tempo, todavia, essa atividade judicial criadora não se concebia.

Um corte da história moderna demonstra que coube ao Poder Judiciário a atividade secundária de atuar interpretando limitadamente a lei, fazendo-a atuar nas hipóteses em que a norma legal geral e abstrata não fosse suficientemente clara aos olhos daquele que reclamava a atuação desse Poder. A norma individual e concreta emanada do julgador tinha nenhuma ou pouca inspiração valorativa da norma geral e abstrata elaborada pelo legislador. A atividade jurisdicional, então, satisfazia-se em ser, segundo expressão de Montesquieu25, la bouche de la loi. Reproduzia o texto

positivado na lei sem antes, contudo, atribuir-lhe valor a partir de princípios ou do contexto social e político reinantes.

Não se deviam deter os magistrados, pois, a interpretar o conteúdo dos preceitos legais ou a buscar os valores vigentes que lhes davam fundamento de existência.

Apenas em passado relativamente próximo, iniciado mais seguramente nos pós-guerras do último século, o constitucionalismo se tornou objeto de destaque da Ciência do Direito. Os Estados passaram a ser regidos por Constituições sociais analíticas, que expressam o forte interesse estatal na criação e na efetivação de direitos, em especial quanto àqueles chamados de terceira geração.

Os valores relacionados ao ser humano passaram, assim, a ocupar o lugar de primazia que atualmente lhes cabe no sistema jurídico. O Direito passou a ser efetivamente reconhecido como ciência com objeto cultural e valorativo.

Diante desse contexto, os magistrados foram chamados a expressar esses valores por intermédio da construção da norma individual e concreta ao caso sob julgamento.

25 MONTESQUIEU, Charles Louis de. Do Espírito das Leis. In: Coleção Os Pensadores:

(30)

Pois bem. O contexto atual, conforme referido, é outro. Exige a criação do direito pelo Estado-juiz.

Segundo Paulo de Barros Carvalho26, as normas gerais e abstratas

reclamam a presença de norma individual e concreta para que atuem no caso materialmente definido e para que provoquem a observância do fenômeno da incidência.

Assim, segundo esse mesmo autor, aquele que almeja conhecer o direito positivo não deve dele se avizinhar “na condição de sujeito puro, despojado de atitudes ideológicas, como se estivesse diante de um fenômeno da natureza. A neutralidade axiológica impediria, desde o início, a compreensão das normas, tolhendo a investigação”27.

Chega-se, então, a elemento essencial da conhecida abordagem jurídico-semântica: a norma jurídica não incide automaticamente, sponte sua. Antes, para

incidir, depende necessariamente da atuação valorativa humana, que realiza mentalmente a operação de incidência.

Sobre o tema, Paulo de Barros Carvalho discorre28:

Aquilo que se convencionou chamar de ‘incidência’ é, no fundo, uma operação lógica entre conceitos conotativos (da norma geral e abstrata) e conceitos denotativos (da norma individual e concreta)”. A partir dessa percepção, “utiliza-se a palavra ‘subsunção’ para fazer referência a esse processo do enquadramento do fato na ambitude da norma.

Para que a referida incidência possa ocorrer, ela exige a um só tempo a presença de norma jurídica que seja válida e que esteja em vigor, além da ocorrência de “evento juridicamente vertido em linguagem, que o sistema indique

26 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 4ª ed. São Paulo:

Noeses, 2008. pp. 151-152.

27

Ibidem, pp. 82-83

28

(31)

como própria e adequada”29. Somente com a confluência desses elementos,

poder-se-á falar em incidência da norma.

O mesmo autor30 apresenta os modelos mais recorrentes de atuação

valorativa humana na criação da norma jurídica individual e concreta:

Com efeito, pensemos numa sentença: o suposto invoca a competência específica do magistrado e a situação do processo; recebe um número (que é o do processo) e é proferida em determinado ponto do tempo e em certo lugar do espaço (local e data de publicação). Reúne, portanto, tudo aquilo que se requer de um fato concreto: verbo no pretérito e coordenadas espaço-temporais definidas. Assim como a sentença, teremos todas as outras fontes formais, sejam aquelas emanadas do Judiciário (acórdãos e outros atos de cunho jurisdicional), do Legislativo (emendas e Constituição, leis, decretos legislativos, resoluções etc.) ou do Executivo (decretos, instruções ministeriais, portarias, ordens de serviço, lançamentos tributários, decisões administrativas etc.). Mas não poderia omitir os atos dos particulares que, realizando as figuras típicas que a ordem jurídica prevê, injetam outras regras, enriquecendo o sistema normativo.

Calha evidenciar que a atividade de criação do direito no caso concreto se dá a partir da norma geral e abstrata e do sistema de referência então vigente, com os valores então veneráveis, conforme já se disse.

Pode-se cogitar de aparente paradoxo entre a ideia da criação do direito no caso concreto e a garantia do caro princípio da segurança jurídica. Trata-se de questão que pode emanar-se da equivocada concepção de que o magistrado estaria amplamente livre para, a seu talante, criar o direito do caso concreto. Sobre essa preocupação, advertiu Gregório Robles Morchón31, ao mesmo tempo em que projetou a importância da doutrina para a Ciência do Direito: “a ideia de completa segurança jurídica é um mito dentre muitos outros, que provém também da etapa de triunfo do legalismo. Se se soubesse como virão a ser as decisões judiciais,

29

Ibidem, loc. cit.

30 CARVALHO, Paulo de Barros. Tratados Internacionais em Matéria Tributária: Estudo de um

Caso Concreto. In: Direito Internacional, Humanismo e Globalidade. CASELLA, Paulo Borba et al. (org.). São Paulo: Atlas, 2008. p. 107.

31 MORCHÓN, Gregório Robles. Teoria del derecho (fundamentos de teoria comunicacional del

(32)

sobrariam os advogados. A doutrina dominante vem a ser um mecanismo que reduz essa insegurança”.

Também sobre o tema desse aparente conflito, palestrou Marco Aurélio Mello32:

Há distinção universal entre o ser e o dever-ser. O Direito há de oferecer segurança, minimizar os riscos das incertezas. Disso não se extrai a conclusão de o Direito efetivamente oferecer segurança. Sem a intermediação dos intérpretes, em especial das cortes constitucionais, o Direito não consegue alcançar os fins próprios de preservar a liberdade, a justiça e a segurança. Atentem para o papel dos juristas, o efeito das decisões proferidas pelas cortes no que hão de efetivar a segurança jurídica. E o que as cortes constitucionais têm feito em prol dessa efetividade?

Acredito, e menciono não apenas o Supremo Tribunal Federal, que cortes constitucionais devem, podem e fazem ótimo trabalho em favor da segurança jurídica. Muitos são os exemplos.

Enfim, cabe sintetizar que o magistrado, no exercício da jurisdição, cria o direito aplicado à espécie. Faz incidir a norma jurídica geral e abstrata aplicável àquele específico caso, mediante a produção de uma norma jurídica individual e concreta que assim o declare, modelada com a precisão individual de que a norma geral não dispõe. Desse modo, pois, o magistrado, mediante o uso da linguagem competente e com arnês no sistema vigente de referência, veste a realidade do mundo do ser, naquele caso sob seu julgamento, com a norma jurídica individual e

concreta por ele cosida a partir do tecido normativo fornecido pelos teares abstratos do mundo do dever ser.

Para que assim atue, deve o juiz valer-se do instrumento estatal competente: o processo.

1.4.4 Magistrado e atuação por meio do processo

1.4.4.1 Jurisdição cível e sua finalidade

32 MELLO, Marco Aurélio. O Direito nos oferece segurança? Palestra proferida em 07/07/2015, no

(33)

Conforme acima fixado, a construção da norma individual e concreta pelo magistrado exige a adoção do meio oficial adequado: o processo. E neste estudo, interessa especialmente o instrumento do processo na esfera cível.

O processo civil é o ramo do Direito destinado ao estudo dos parâmetros técnico-jurídicos pelos quais se dará o exercício efetivo da atividade jurisdicional e do direito postulatório a essa atividade do Estado, ao fim da obtenção da tutela material de garantias e do exercício de direitos.

O Estado de Direito impõe a existência de normas jurídicas prévias e específicas à legítima desoneração da atividade estatal de prestação jurisdicional. Somente o prévio estabelecimento dessas regras leva à segurança e legitimidade do sistema processual. A inexistência de regras processuais predeterminadas conduz à anarquia e ao arbítrio, características que negam a própria função pacificadora do processo e, mais, a própria ideia de comunicação apta à produção da norma jurídica individual e concreta.

O processo civil, portanto, é o meio de manifestação de um atuar oficial, e pois formal, do Estado. Pelo processo, o Estado-juiz dita a forma pela qual as crises de direito material que lhe são apresentadas serão analisadas, ao escopo de oferecimento da solução oficial de direito material (norma individual e concreta de conhecimento) e de satisfação efetiva (norma individual e concreta executiva) da pretensão objeto de contraposição das partes.

Não tem o processo, com efeito, finalidade em si mesmo; antes, é essencialmente instrumento a partir do qual o Estado-juiz solve conflitos de interesses materiais que lhe são apresentados.

(34)

Acerca da instrumentalidade do processo, refere Mauro Cappelletti33:

El derecho procesal no es en verdad un fin en si mismo, sino instrumento para el fin de la tutela del derecho substancial, público y privado; está, en suma, por decirlo así, al servicio del derecho substancial, del cual tiende a garantizar la efectividad, o sea la observancia y, para el caso de inobservancia, la reintegración.34

Isso referido, cumpre anotar que para Giuseppe Chiovenda35, “o processo

civil é o complexo de atos coordenados ao objetivo de atuação da vontade da lei (com respeito a um bem que se pretende garantido por ela), por parte dos órgãos da jurisdição ordinária”.

Note-se, em contraponto, que a atuação da vontade da justiça e do Direito é o objetivo almejado pelo processo civil. O efetivo cumprimento da vontade do direito lei material, portanto, é o que realmente dá fundamento de existência ao processo civil, pois que ele existe como instrumento para alcançá-la. A vontade da lei, é claro, deverá ser assim declarada e ultimada mediante análise judicial dos parâmetros normativos vigentes, dos aspectos culturais, sociais e políticos, conforme já visto, devendo para tanto ser particularmente valorados os marcos normativos constitucionais e também aqueles fixados em tratados internacionais – sempre referidos na acepção ampla do termo – de que o Estado seja parte.

Isso porque tal fim de fazer atuar a vontade da lei material não deve ser buscado e alcançado a qualquer custo e por quaisquer meios, nem tampouco às expensas da negativa da eficácia de princípios e valores. O processo civil deve ser meio justo e ético de obter a tutela jurisdicional. E o respeito à justiça e à ética impõe aos atores do processo e, portanto, a esse próprio instrumento, a irrestrita observância dos princípios constitucionais que lhe são afetos e o respeito aos parâmetros processuais predeterminados.

33 CAPPELLETTI, Mauro. Proceso, ideologias, sociedad. Trad. Santiago Sentis Melendo y Tomás

Banzhaf. Buenos Aires: EJEA, 1974. p. 5.

34 Tradução livre do autor: “O direito processual não é em verdade um fim em si mesmo, senão

instrumento para a finalidade de tutela do direito substancial, público e privado; está, em suma, por assim dizer, a serviço do direito substancial, cuja efetividade tende a garantir, ou seja, a observância e, para o caso de inobservância, a reintegração”.

35 CHIOVENDA,Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 1998. v.

(35)

Os princípios constitucionais devem ser sempre respeitados no caso concreto para que determinado processo seja justo e ético. Evidentemente que haverá caso de colisão de princípios constitucionais ou desses e normas positivadas, circunstância que exigirá do intérprete, produtor da norma individual e concreta, a ponderação dos valores envolvidos e a apuração do valor que deve prevalecer no caso concreto.

Assim, princípios como o do devido processo legal, do prévio contraditório, da ampla defesa, da razoável duração do processo e da eficiência, da razoabilidade e proporcionalidade e da efetividade da prestação jurisdicional devem ser constantemente curados pelas partes e pelo julgador na busca do processo ético e justo.

Sobre o tema, doutrina Marcus Orione Correia36:

Ora, como se pode facilmente perceber, OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO SÃO, POR SI SÓ, PURA EXPRESSÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. E, como quaisquer outros princípios constitucionais, possuem como diretriz de interpretação, a dignidade do ser humano.

Logo, como consectário óbvio, toda atuação pautada pela instrumentalidade deve ter como parâmetro mínimo a preservação dos princípios constitucionais do processo e como finalidade a concretização do Estado Democrático de Direito. Assim, é possível atuação instrumental do juiz participativo, desde que este tenha como objetivo a erradicação das diferenças sociais dos homens, reveladas no processo, e que busquem a efetivação de um Estado tendente à erradicação da pobreza. No entanto, na busca deste desiderato, deve o juiz sempre observar todos os princípios constitucionais do processo, já que estes constituem a expressão da Democracia no direito processual. Não há atuação democrática, onde não se busque a implementação dos ideais do Estado Democrático de Direito insculpidos no artigo 3º. da Constituição Federal. Não há atuação democrática, onde a atuação é pautada pelo desrespeito aos princípios processuais constitucionais. Os princípios processuais constituem o meio democrático, no processo, de se implementar o próprio ideal democrático insculpido na Constituição. Não seria possível falar-se em Democracia legitimada por processo anti-democrático.

36 CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Democracia e instrumentalidade do processo: um

(36)

Resta destacada, portanto, a premissa de que o processo não existe apenas para fazer a atuar a vontade da lei ou para fazer atuar a justa vontade exclusivamente jurídica da lei. O processo deve buscar cumprir a justa vontade da lei desde que o conceito dessa expressão esteja definido segundo ponderação dos diversos valores jurídicos aplicáveis, bem assim diante da consideração de valores culturais, sociais e mesmo político-ideológicos, cuja valoração deve o magistrado realizar como agente credenciado pelo Estado.

1.4.4.2 Processo como meio de efetivação da tutela jurisdicional

O desenvolvimento do item anterior permite concluir, pois, que o processo existe para permitir ao Estado a análise e a resolução meritória de certa crise de direito material. Deve trazer como consequência a retomada da pacificação social, por intermédio da criação, pelo Estado-juiz, de uma norma jurídica individual e concreta.

Em termos mais tangíveis, o processo representa a via pela qual o Estado pode analisar determinado conflito de interesses, dizendo e satisfazendo o direito material em favor daquele a quem tal direito está outorgado pelo ordenamento jurídico e pelo conceito de justiça, extraído da análise dos valores vigentes.

Há, portanto, uma estreita aproximação entre o processo e o direito material, embora seja prevalente a ideia de autonomia entre um e outro.

Acerca disso, refere Luiz Guilherme Marinoni37:

Não há dúvidas de que o processo não se confunde com o direito material. Contudo, a escola sistemática, ao construir as bases da autonomia do direito processual civil, parece ter esquecido a diferença entre autonomia e indiferença. O fato de o processo civil ser autônomo em relação ao direito material não significa que ele possa ser neutro ou indiferente às variadas situações de direito substancial. Autonomia não é sinônimo de neutralidade ou

37 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica Processual e Tutela de Direitos. São Paulo: Revista dos

(37)

indiferença. Ao contrário, a consciência da autonomia pode eliminar o medo escondido atrás de uma falsa neutralidade ou de uma indiferença que, na verdade, é muito mais meio de defesa do que alheamento em relação ao que acontece à ‘distância das fronteiras’.

Cumpre evidenciar, contudo, que o que se espera do processo sob o aspecto ontológico, verdadeiramente, é o resultado prático, substancial, material, que ele serve a viabilizar. Assim não fosse, o processo assumiria papel principal, o qual não lhe cabe, por ser instrumental.

Espera-se que o processo traga a pacificação social como resultado de sua existência e utilização. Processo sem resultado é estrada sem destino, é atuação estatal estéril. Essa conclusão se dá também com esteio em conhecida lição de Cândido Rangel Dinamarco38:

Diferente é o posicionamento moderno, agora girando em torno da idéia do processo civil de resultados. Consiste esse postulado na consciência de que o valor de todo sistema processual reside na capacidade, que tenha, de propiciar ao sujeito que tiver razão uma situação melhor do que aquela em que se encontrava antes do processo. Não basta o belo enunciado de uma sentença bem estruturada e portadora de afirmações inteiramente favoráveis ao sujeito, quando o que ela dispõe não se projetar utilmente na vida deste, eliminando a insatisfação que o levou a litigar e propiciando-lhe sensações felizes pela obtenção da coisa ou da situação postulada. Na medida do que for praticamente possível, o processo deve propiciar a quem tem um direito, tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de receber (Chiovenda), sob pena de carecer de utilidade e, portanto, de legitimidade social. O processo vale pelos resultados que produz na vida das pessoas ou grupos, em relação a outras ou aos bens da vida.

Mais que o exclusivo direito de acesso ao Poder Judiciário ou que o direito de ver jurisdicionalmente apreciada certa pretensão, o processo deve servir eficazmente à efetiva tutela de direitos. A existência de direitos e seu livre exercício devem ser prestigiados pelo processo e pelo Poder Judiciário, que utilmente não servem senão que para lhes garantir o reconhecimento e a fruição.

38 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. rev. atual. São

(38)

Assim, “o processo justo está diretamente relacionado com a justiça do seu resultado”39, conforme leciona Sergio Chiarloni40.

Quer-se insistir na evidência da instrumentalidade do processo e na relevância da premissa de que ele somente será útil se viabilizar um resultado material, se viabilizar a produção da norma individual e concreta de cunho material, pondo termo à crise de direito. Tais constatações dão importante fundamento de validade ao exercício do juízo ativo e valorativo pelo magistrado.

Sobre o tema do princípio da instrumentalidade do processo e de como ele se pode viabilizar na produção do direito pelo Poder Judiciário, valiosa é a lição de José Roberto dos Santos Bedaque41:

O caminho mais seguro é a simplificação do procedimento, com a flexibilização das exigências formais, a fim de que possam ser adequadas aos fins pretendidos ou até ignoradas, quando não se revelarem imprescindíveis em determinadas situações. O sistema processual não deve ser concebido como uma camisa-de-força, retirando do juiz a possibilidade de adoção de soluções compatíveis com as especificidades de cada processo. As regras do procedimento devem ser simples, regulando o mínimo necessário à garantia do contraditório mas, na medida do possível, sem sacrifício da cognição exauriente.

Não se pretende, é claro, a eliminação da forma e o abandono de todas as conquistas da ciência processual moderna. Forma e técnica não são, em si mesmas, um mal. Ao contrário, a existência de um modelo legal é fator de garantia para as partes, que têm assegurada a participação efetiva no contraditório. Além disso, contribui decisivamente para o normal e ordenado desenvolvimento do processo.

É preciso, todavia, que o processualista não perca de vista a função indiscutivelmente instrumental desse meio estatal de solução de controvérsias, para não transformar a técnica processual em verdadeiro labirinto, em que a parte acaba se arrependendo de haver ingressado, pois não consegue encontrar a saída. O mal reside, portanto, no formalismo excessivo.

39 Tradução livre do autor, do original: “Il giusto processo ha direttamente a che fare con la giustizia

del suo risultato.”

40 CHIARLONI, Sergio. Giusto processo, garanzie processuali, giustizia della decisione. Rivista

Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, v. 62, n. 1, p. 129-152, Mar. 2008. p. 146.

41 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 2. ed. São

(39)

A visão instrumentalista do processo vem marcada em diversos dispositivos legais processuais e mesmo em dispositivos constitucionais42. Nesse contexto, a

instrumentalidade do processo servirá como um dos fundamentos a que o exercício do juízo de valoração judicial ocorra em questão de máxima eficiência de direitos fundamentais e humanos.

1.5 Fontes do Direito

1.5.1 Noção

A norma jurídica, para que exista e seja válida, deve possuir um nascedouro e seguir um procedimento de criação que estejam autorizados pelo sistema jurídico. Paulo de Barros Carvalho refere “a validade de uma prescrição jurídica está intimamente ligada à legitimidade do órgão que a expediu, bem como ao procedimento empregado na sua produção”.43

O mesmo autor doutrina44 que por fontes do direito devem-se compreender “os focos ejetores de regras jurídicas, isto é, os órgãos habilitados pelo sistema para produzirem normas, numa organização escalonada, bem como a própria atividade desenvolvida por esses entes, tendo em vista a criação de normas”.

1.5.2 Tratado Internacional como fonte

O tratado internacional, quando aplicado no direito interno, deve ser compreendido na condição de norma jurídica introduzida pelo decreto legislativo editado pelo Congresso Nacional, de que se falará no próximo item, que o incorpora ao ordenamento jurídico nacional.

42 Nesse aspecto: CRFB: 5º, LIV (devido processo legal); 5º, LVI (inadmissibilidade das provas

ilícitas); 5º, LXXXVIII (razoável duração do processo); 5º, LXXIV (assistência judiciária gratuita); 93, XIV (delegação aos servidores para a prática de atos de administração e atos de mero expediente sem caráter decisório), etc.

43 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 80. 44

(40)

Para a finalidade deste estudo, insta relativizar a relevância de se estabelecer uma dicotomia entre a ordem jurídica interna e a internacional, ou entre as teorias monista ou dualista da admissão dos tratados como fonte de direito interno. Antes, o que por ora convém analisar – considerando o entendimento vigente, firmado pelo Supremo Tribunal Federal, sobre a supremacia normativa da Constituição, consoante em frente se verá – é essencialmente o conteúdo material da norma contida no tratado internacional e incorporada ao ordenamento brasileiro.

Em verdade, a providência estatal que deveria prosperar em termos fáticos deveria ser a concomitância dos termos inicial e final de vigência interna e internacional da norma extraída do tratado internacional. Dever-se-iam adotar ao mesmo tempo os procedimentos necessários a unificar os termos de vigência das normas assim originadas, fazendo-se com isso perder efeito prático a discussão acerca das correntes monista ou dualista de incorporação dos tratados.

Nesse ponto, aduz Vicente Marotta Rangel45 que “é numa perspectiva de cooperação e de federalismo que se deve entrever as relações entre a ordem interna e a internacional. Errônea é a tese que tenda a exaltar uma ao preço da destruição da outra”.

Prossegue o mesmo autor46:

A solução ideal e desejada é a da harmonização das ordens jurídicas de cada Estado com a ordem jurídica internacional. A tendência de várias Constituições contemporâneas é a de concorrer para essa harmonização. Fortalece essa tendência admitir que os tratados, tão logo sejam regularmente concluídos e produzam efeitos na ordem internacional, passem imediata e automaticamente a produzi-los na ordem interna dos Estados contratantes.

[...]

O problema das relações do tratado internacional com a ordem jurídica estatal deve ser considerado através de dupla perspectiva: a emanada do Direito das gentes e a emanada do Direito interno. São vias que conduzem a resultados fecundos e permitem comprovar que as ordens jurídicas não são radicalmente separadas mas se

45 RANGEL, Vicente Marotta. Os conflitos entre o direito interno e os tratados internacionais.

Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ano LXII, fasc. II, 1967. p. 124

46

(41)

condicionam e se influenciam mutuamente e constituem esferas da mesma ordem jurídica geral.

Enfim, para o objeto deste estudo, tem-se que os tratados internacionais são fonte do direito interno desde que as normas por ele veiculadas sejam introduzidas na ordem normativa interna pelo instrumento competente: o decreto legislativo. Nesse particular, o decreto legislativo funciona como veículo introdutor da norma de direito internacional, a qual por seu turno passará a ser tomada como fonte do direito aplicada pela jurisdição nacional.

Para o fim deste específico trabalho, em termos formais, ressalvada a relevância material das normas originadas de tratados internacionais (e por isso o tratamento da matéria nesses termos), os tratados internacionais por si sós não dispõem de eficácia vinculante, portanto, ao menos na atual quadra jurisprudencial. Sobre isso prossegue Vicente Marotta Rangel47:

Elucide-se que os tratados e as convenções internacionais, bem como os convênios interestaduais, não são portadores de força vinculante. É imperioso, por decorrência do princípio da legalidade supra transcrito, que a ordem jurídica recolha matéria desses atos multilaterais de vontade, sem o que não se dá a produção de normas válidas no direito pátrio. E é precisamente por essa razão que o decreto legislativo assume importância significativa como mecanismo primário de introdução de proposições prescritivas no ordenamento.

Claro está que consagrada a diretriz da legalidade, com tal abrangência, soaria deveras estranho admitir que atos volitivos dessa natureza, por mais autorizados que fossem no que concerne à sua origem e aos elevados propósitos do Presidente da República, pudessem ingressar pura e simplesmente na ordem jurídica interna, criando direitos e obrigações. Por isso, exige o Texto Supremo que haja o referendo do Congresso Nacional, operando por meio de expediente de sua exclusiva competência, qual seja, o decreto legislativo.

Nesse passo, calha analisar a maneira pela qual os tratados são incorporados ao ordenamento interno, segundo o procedimento concebido pela Constituição da República.

1.5.3 Previsão constitucional. Treaty making power

47

(42)

No ordenamento jurídico brasileiro, a celebração de tratados internacionais é atividade cuja competência é exclusiva do Presidente da República, autoridade credenciada a expressar internacionalmente a vontade da República em estabelecer esses pactos com os demais sujeitos de direito internacional. A celebração, contudo, não se perfectibiliza — não ao menos para incorporar o tratado ao ordenamento pátrio — com a atuação única dessa autoridade máxima do Poder Executivo. Antes, por se tratar de ato complexo, demanda o referendo do Congresso Nacional, Órgão maior do Poder Legislativo nacional. Ao Congresso Nacional compete resolver definitivamente sobre a celebração da avença, no que tange aos tratados internacionais materialmente relevantes ou dispendiosos ao patrimônio nacional. Caber-lhe-á ratificá-los. Essa atividade deve ser expressada por intermédio da edição de competente decreto legislativo. É o que preveem os artigos 49, inciso I, e 84, inciso VIII, da Constituição da República4849.

O Poder Judiciário, como se pode concluir, não detém competência para a celebração desses instrumentos. Não é órgão habilitado, portanto, para expressar a vontade soberana do Estado nessa questão. É natural que assim o seja, considerando que sua atividade típica de poder é a jurisdicional. Por outro viés, é justamente essa atividade jurisdicional que enseja a existência de reserva da competência do Poder Judiciário para analisar, quando provocado, a constitucionalidade, a incidência ou a vigência desses mesmos atos internacionais. É o que dispõem os artigos 102, inciso III, alínea ‘b’, 105, inciso III, alínea ‘a’, e 109, incisos III, V, e parágrafo 5.°, da Constituição da República5051 52.

48 Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre

tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.

49 Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: VIII - celebrar tratados, convenções e

atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional.

50 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição,

cabendo-lhe: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

51 Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: III - julgar, em recurso especial, as causas

decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;

52 Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: III - as causas fundadas em tratado ou

Referências

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