A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIAL-DEMOCRACIA
ÇÕes sociais que, por essa razão, vê-se metamorfoseada em
esfera pública. A dialética do processo resulta em que ele é
urdido para assegurar os interesses privados, mas só o pode
fazer, somente se torna eficaz, se éles se transformam em in
teresses gerais, públicos. Não há, portanto, ao contrário do
que afirma a denúncia liberal e neoliberal, interesse do Estado
senão na medida em que este aparece como uma instância
necessária da publicização.
Por outro lado, a crítica de esquerda, particularmente a
crítica marxista ortodoxa, tampouco foi muito feliz ao inter
pretar a nova relação entre o Estado e a economia no capita
lismo contemporâneo, A esquerda não-marxista não logrou
sequer pensar a questão; sobretudo a sodal-democracia, na
verdade a grande parteira prática da nova relação, não a ela
borou teoricamente. Mais recentemente os trabalhos na linha
de Offe, Przerworski, Wallerstein, Gosta Esping-Andersen, tal
vez Habermas, para citar um pequeno e brilhante conjunto de
tóricos que se têm debruçado sobre o
Welfare State(apenas
exemplares de uma vasta bibliografia, e discordantes entre si),
voltaram-se decididamente para preencher a lacuna que o va
zio social-democrata estava deixando quase irreparável. Mas
a maioria deles, como Offe e Habermas, talvez demasiada
mente tarde, assinala mais os limites do
Welfaree anuncia uma
sociabilidade não estruturada sobre o trabalho, a morte do
trabalho, do que teoriza, propriamente, sobre a
social-demo-cracia. Przerworski, Wallerstein e Esping-Andersen, por outro
lado, pertencem a outra linhagem. Dedícam-se a uma cuida
dosa análise do
Welfaree da social-democracia, estabelecem
tipologias, vêem seus limites, mas não os teorizam como for
mas
diferentesdo capitalismo; é isto que diz até o título do
conhecido livro de Przerworski.
Voltando à crítica do marxismo ortodoxo, este cometeu
equívocos mais ou menos simétricos aos da crítica liberal à
nova relação entre o Estado e o capitalismo. A mais articulada
foi proposta na forma da teoria do capitalismo monopolista
de Estado, que é um desdobramento, uma atualização e um
avanço sobre a teoria do imperialismo de Lênin.
A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIAL-DEMOCRACIA
O conceito de fundo público tenta trabalhar essa nova relação na sua contraditoriedade. Ele não é, portanto, a ex pressão apenas de recursos estatais destinados a sustentar ou financiar a acumulação de capital; ele é ummix que se forma dialetícamente e representa na mesma unidade, contém na mesma unidade, no mesmo movimento, a razão do Estado, que é sociopolítica, ou pública, se quisermos, e a razão dos capitais, que é privada. O fundo público, portanto, busca ex plicar a constituição, a formação de uma nova sustentação da produção e da reprodução do valor, introduzindo, mixando, na mesma unidade, a forma valor e o antivalor, isto é, um valor que busca a mais-valia e o lucro, e uma outra fração, que chamo antivalor, que por não buscar valorizar-se per se, pois não é capital, ao juntar-se ao capital, sustenta o processo de valori zação do valor. Mas só pode fazer isso com a condição de que ele mesmo não seja capital, para escapar, por sua vez, às de terminações da forma mercadoria e às insuficiências do lucro enquanto sustentação da reprodução ampliada. A metáfora que usaria vem da física: o antivalor é uma partícula de carga oposta que, no movimento de colisão com a outra partícula, o valor, produz o átomo, isto é, o novo' excedente social.
O processo de produção desse movimento, que busco con ceituar no fundo público, é o processo da luta de classes. Mas é também o de seu deslocamento da esfera das relações priva das para uma esfera pública ou, dizendo de outra forma, o da transformação das classes sociais de privadas para classes so ciais públicas. O que se quer dizer com isso? Seria mais fácildizer que há um deslocamento da luta de classes da esfera da produção, do chão da fábrica ou das oficinas ou ainda dos escritórios, para o orçamento do Estado. Mas, não apenas de fato, mas teoricamente, não é isso que se passa, pois tanto para que exista o fundo público quanto para que o processo de publicização das classes sociais se dê, é absolutamente neces sário que também continue a luta de classe na esfera da pro dução ou, se quisermos dizer, no confronto imediato e direto entre empregado e patrão, O fundo público só existe e somente se sustenta como conseqüência da publicização das classes so
OS DIREITOS DO ANTIVALOR
ciais, do deslocamento da luta de classes da esfera das relações
privadas para a das relações públicas: ele é uma espécie de
suma de todas essas transformações, as quais têm que ser re
novadas quotidianamente, sob pena de ele perder sua eficácia.
Evidentemente, a publicização, ou o processo desse desloca
mento, não é aleatória, conjuntural, e construiu suas institui
ções, as quais são, na maior parte dos casos, as instituições do
Estado de bem-estar.
Entretanto, as classes sociais, seus contornos, parecem de
saparecer. Offe, Habermas ou Giannotti (para citar os mais
rigorosos de uma vasta bibliografia, que incluiria também os
que deram “adeus”ao proletariado) anunciam o fim da socie
dade do trabalho, o que quer dizer o fim da sociedade de
classes. Ou, fukuianamente, embora os desagrade, o fim da
história, Minha interpretação é que ocorre, de fato, que, pa
rodiando Habermas, o máximo de publicização possível pa
rece privatizar tudo. Mas esta é uma ilusão da aparência, posto
que as classes sociais saíram de seus invólucros anteriores, pri
vados, e não são percebidas como públicas. Mas, quanto mais
parecem desaparecer do campo da visibilidade do confronto
privado, tanto mais são requeridas como atores da regulação
publica. Isto não é um paradoxo, mas a contradição das classes
sociais hodiernas, que é, também, a mesma do fundo público.
As conseqüências ou, dizendo de outro modo, as transfor
mações na esfera pública e no Estado, ao mesmo tempo causa
e efeito do mesmo processo, são extremamente relevantes. A
esfera pública aqui não é mais uma esfera pública burguesa:
mas, da mesma forma como a entrada da classe trabalhadora
na disputa eleitoral redefiniu a democracia, com o que as an
tigas desconfianças marxistas em relação à democracia perde
ram todo o sentido, também uma esfera pública burguesa,
penetrada por um fundo público que é o espaço do desloca
mento das relações privadas, deixa de ser apenas uma esfera
pública burguesa. Assim, de novo parafraseando Habermas,
no máximo de intransparência é possível distinguir, nitida
mente, a esfera pública, redefinida dessa forma, da esfera pri
vada. E isso, por exemplo, que torna possível uma campanha
A ECON OMIA P OLÍTICA DA SOCLAL -DEMOCRACIA
pela ética na política, pela moralidade pública, que terminou na aceitabilidade doimpeachment do presidente, sem que se corra o risco de cair no moralismo conservador. E da distinção entre uma esfera pública não-burguesa e uma esfera privada que nasce a possibilidade de uma nova política.
A grande transformação no Estado, que a revolução teórica keynesiana formalizou, é, em primeiro lugar, a de sua autono-mizaçao fiscal. Que significou o abandono da posição de su-balternidade fiscal, situação real do Estado até os dias da Grande Depressão, à qual correspondia a teoria fiscal do Es tado, do gosto liberal, e de formulação neoclássica. O Estado doméstico, dono-de-casa, que gastava apenas o que arrecadava e tão-só depois de arrecadar. Um Estado sempreex-post. A revolução teórica keynesiana formaliza o que já era o movi mento tateador, tattonnant> do Estado ex-ante. Um Estado que antecipa o que gasta, que é mais do que arrecada; mais que essa contabilidade, o que há, aí, é uma transformação impressionante, no sentido já assinalado do deslocamento das relações privadas para relações públicas. Na maioria das so ciedades do capitalismo hoje avançado, e até porque o Estado foi utilizado instrumentalmente, a forma desse deslocamento ganhou, sobretudo, um rosto, uma forma estatal. Daí, que à ampliação do espaço público correspondeu, na totalidade dos casos, praticamente, uma ampliação do Estado, entendido nos termos em que os liberais o entendem. E até nos termos postos pela luta de classes: para publicizar, operar esse deslocamento, a forma estatal em muitos casos revelou-se imprescindível e insubstituível. E o caso mesmo dos países periféricos como o Brasil.
Essa revolução no Estado tem enormes conseqüências. Para citar uma teorização que depende inteiramente dela, aliás reconhecida por Furtado e Prebisch - e este foi um dos pri meiros keynesianos da América La tina-, relembremos a teoria do subdesenvolvimento da CEPAL, a qual partia, precisamen te, da possibilidade de uma demanda autônoma derivada das funções do Estado. Ora, a rigor não se trata de “funções” do Estado, mas de uma revolução posta nas formas do Estado por
A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCLAL-DEMOCRACIA
uma dificuldade da teorização empreendida sobre o fundo público. O fundo público desmercantiliza parcíalmente a força de trabalho, isto é, seu caráter de mercadoria. Ao fazê-lo, põe a nu uma espécie de desnecessidade da exploração ou a vir-tualidade dessa desnecessidade e, também, simultaneamente, a finitude de uma das formas mercantis mais importantes; a forma mercadoria mais importante do capitalismo, sua espe cífica mercadoria, a única criada realmente pelo capitalismo. Ao fazê-lo - uma operação que é de difícil descrição, pois a
rigor o fundo público consiste precisamente nessa operação que substitui, teoricamente, a auto-regulação do valor - ele desbloqueia as virtualidades do progresso técnico, pois a mer cadoria força de trabalho não é maís um limite nem o suporte da acumulação. Isto é, na formulação de Luiz Gonzaga Beluz-zo, ele autonomiza o capital constante.
Reaparece, pois, o problema proposto pela literatura in dicada sumariamente nos nomes de Offe, Habermas e Gian-notti, no sentido de que a sociabilidade que tem no trabalho seu núcleo estruturador estaria em veloz transformação para desaparecer. E a sociedade de classes do capitalismo fatalmente seria afetada. N ão há uma resposta fácil nem estruturada para essas questões. Tal como Reginaldo Prandi notou, pode-se co meçar a dizer num nível mais modesto que, tal como a própria sociologia dos processos de trabalho vem insinuando, o esta tuto sociológico do trabalho sem dúvida sairá fundamental mente modificado, dando lugar, pelo menos, a nova concepção de trabalhador. Mas uma resposta mais estruturada exigiría muito mais do que simples repercussões no âmbito do traba lhador e do estatuto sociológico do trabalho, por importante que este seja. A menos que uma simples boa intenção seja suficiente, e já não o é, não há o mínimo de experiência social capaz de indicar ou sugerir linhas de força sobre o futuro lon gínquo. Mesmo porque, convém relembrar, o esforço concei tuai aqui desenvolvido não diz respeito à construção de uma utopia, mas de um sistema que tem, pelo menos, setenta anos c cuja capacidade não se esgotou.
OS DIREITOS DO ANTIVALOR
Mas a mesma operação expõe, também, os limites da for ma mercadoria, no sentido de que o lucro passa a ser insufi ciente como forma social, para financiar a continuidade do processo de expansão do produto social. Esses limites apare cem pela retração da base social de exploração, via desmer-cantilização da FT, e pelo desbloqueio operado já referido. Isto vai se expressar em formas aparentes: na concentração da renda, no encarecimento do capital constante - em lugar de seu barateamento constante - e numa volúpia de apropriação de toda e qualquer forma de riqueza pública, que deve ser posta a serviço da acumulação de capital, sem o que ela não pode continuar, pois que a simples forma mercantil, via forma lucro, é insuficiente. Apesar de que todas as aparências são contrárias.
A pista de algumas outras transformações poderia ser se guida no rastro desse paroxismo. Elas podem tomar a forma da constituição dos grandes blocos, por exemplo. Que não passa de uma forma de pôr, em escala supranacional, todas as formas da riqueza pública a serviço do processo de acumula ção, que aparece sob a forma da expansão e integração dos mercados. Mas isso nos levaria muito longe e exigiría muito tempo. Mas mesmo essa pista é da mesma natureza teórica da que examinaremos mais profundamente. Isto é, paroxismos dos limites leva ao que parece ser uma politização da economia, uma economia administrada, preços políticos administrados, enfim, toda uma corte de adjetivos para uma insuficiência teó rica, que faz parte do repertório da direita e para a qual a esquerda não logrou resposta. De fato, o que aconteceu, ou o resultado maior de todo o processo, pode ser sintetizado, com algum pedantismo no título, pelo nome de modo social-demo crata de produção.
Um modo social-democrata teria sua srcem histórica, evi dentemente, nos países com história social-democrata. Mas os EUA não são social-democratastout court , o que desqualifi caria pelo menos a denominação. Convém pensar, entretanto, numa social-democracia fraca, isto é, sem partido social-de mocrata; desde o New Deal, o processo de regulação que subs
OS DIREITOS DO ANTIVALOR
que tentei ensaiar, é de que o socialismo coloca-se, uma vez mais, na tradição clássica, como um desdobramento do pró prio sistema capitalista. Há, neste sentido, uma certa dose de necessidade. Mas não é uma necessidade histórica abstrata, como se desde os inícios dos tempos ele estivesse inscrito. Nem é tampouco o fim da história. O socialismo aparece como necessidade enquanto um sistema que possa resolver as con tradições do que chamei o modo social-democrata de produ ção. Nessa medida, ele não é independente da história dos homens, pois como tratei de expor, a constituição desse modo social-democrata de produção é, afirmativamente, um produ to da história dos homens, da luta de classes, travada não ce gamente, não enquanto as classes são uma espécie de autômatos robitizados do capital, mas enquanto as classes são
personae
de sua própria história. De fato, o modo social-de mocrata de produção mostrou, pela primeira vez, a virtuali-dade da desnecessivirtuali-dade da exploração, e isso ainda vai longe. E está mostrando também que a contradição em que se cons truiu a forma de superar um capitalismo não auto-regulado desbloqueou as imensas potencialidades da produção, mas blo queia as possibilidades da realização. Por isso, seu voraz apetite por todas as formas de riqueza pública, entre as quais espaços supra-nacionais aparecem como uma das mais notáveis; mas, assim mesmo, bloqueado pela forma mercantil, ele concentra renda, o que aparece como encaredmento do capital constante - quando na verdade há um barateamento e condena vastas parcelas da humanidade a serem apenas simulacros de consu midores. O socialismo aparece nessa fronteira para, por sua vez, desbloquear esse caminho.BIBLIOGRAFIA SUMARIA INDICATIVA
AGLIETA,Michel. Régulation et crises auxÉtats Unis.
ALTVATER,Elmar. “A Teoria do Capitalismo Monopolis ta de Estado” .
In : História do Marxis mo.
A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIAL-DEMOCRACIA
Bel uzzo ,Luiz Gonzaga. “A transfiguração crítica” . In: Novos Estudos Cebrap.
ESPING-ANDERSEN, G. “A s trê s econo mias p olí ticas do Welfare State
In: Lua Nova.
FlANNOTTl, Jo sé Arthur. ‘A sociabilidade travada” . In: Novos Estudos Cebrap.
HABERMAS, Jürgen. “A nova intransparência” . In: Novos Estudos Ce brap.
KEYNES, John Maynard. A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda.
LlPIETZ, Alain. Audácia.
Of f e,Claus. Capitalismo desorganizado.
Ol i vei r a ,Francisco de. “ O surgiment o do antivalor ” ./« : Novos Estu dos Cebrap.
PRZERWORSKI, Adam. Capitalismo e social-democracia.
POLÍTICAS DO ANTIVALOR, E OUTRAS POLÍTICAS quer dizer que o que Marx teoriza seja algo que se possa reduzir à pura experiência empírica, senão não teria ganho o estatuto e a força explicativa que ganhou a relação entre as classes tinha muito a aparência de um conflito privado* A partir dos anos 30, o conflito extrapola os marcos daquilo que se poderia dizer que ficava restrito ao espaço da esfera burguesa, segundouma abordagemhabermasiana ou mesmoweberiana. O pró prio conflito interburguês assumiu proporções tais que acar retaram o seu deslocamento do terreno do privado para o público. Portanto, não é propriamente uma transformação das classes, mas um fenômeno devido ao próprio conflito entre elas. A crise de 30 foi a evidência mais eloqüente desse deslo camento do terreno do privado para o público. Naquele mo mento, a esfera do privado revelou-se insuficiente para de alguma maneira processar o conflito na sociedade burguesa.
E por isso que, de certa forma, as ciasses aparecem como se não tivessem recortes, como - o que a sociologia americana disse de forma fácil e banal - se o operariado americano fosse classe média, medido pelos índices de consumo. Na verdade, é possível continuar a pensar que o conceito de classe é válido, à condição de fazer esse novo percurso que tentei fazer.
Com o a tecnolo gia entra nesse esquema ? A ciência como fator de produção tem algum estatuto?
Tem um estatuto, mas não autônomo. Na verdade, bene ficiei-me de uma reflexão do Luís Gonzaga Belluzo. Na sua tese, ele fez uma reflexão sobre a autonomização do capital constante. O que quer dizer isso? Segundo uma posição antigae forte em Marx, a burguesia, tentando superar continuamente os limites da exploração da força de trabalho, usa a ciência e tecnologia para baratear o custo da sua reprodução. Contudo, a partir dos anos 30, tomando-se em conta os países líderes do sistema, onde havia uma relativa homogeneização da pre vidência social, de seguro social, de outros antivalores em ge
ral, o que se viu foi que esse processo, com o fundo público, havia ganho outra forma, tinha passado a ser relativamente
OS DIREITOS DO ANTIVALOR
indiferenciado no sentido de que não era mais o custo da força
de trabalho que provocava a reação dialética da ciência e tec
nologia a serviço do capital. Isso deu lugar àquilo que Belluzo
chama de autonomização do capital constante.
Se o motor do processo de inovação tecnológica não era o esforço
para baratear o custo da mercadoria força de trabalho, o que veio a
ser então?
A mola propulsora desse processo continua a ser uma busca
de valorização, o que de alguma maneira é sempre a mesma
coisa. Mas o processo de extração de mais-valia e a sua relação
com os impulsos para os saltos tecnológicos e para a aplicação
da ciência e tecnologia passaram a ser mediados pelo fundo
público. De alguma maneira, não havia mais uma relação di
reta. Essa mediação liberou cada capitalista em particular de
olhar a relação com o custo da sua mercadoria força de traba
lho e provocou a autonomização. Na verdade, uma pletora de
inovações que encontram seu limite outra vez na forma mer
cadoria. No fundo, o sistema volta a bater no mesmo proble
ma, mas de uma maneira em que a dialética entre o custo da
força de trabalho e o progresso tecnológico passou a ser me
diada pelo fundo público. Isso deslocou e, de alguma maneira,
liberou as formas técnicas do capital constante.
Essamediação seriam, por exemplo, os gastos militares com
tecno-logia, os gastos públicos com as universidades, em pesquisa e
desen-volvimento etc.?
.
Exato. Se pesquisarmos, não encontraremos uma relação
direta disso com o custo da força de trabalho. Ela se perde,
mas não desaparece. O orçamento de uma grande universidade
não está ligado diretamente a salário nenhum. Provém do con
junto da sociedade, do imposto que cada um paga. Portanto,
a relação passa a ser mediada exatamente pelos fundos públi
cos, e isso é uma enorme apropriação. E nesse sentido que eu
falo de uma espécie de autonomização. Por exemplo, os Esta
dos Unidos jogam força em pesquisa bélica e isso tem impacto
POLÍTICAS DO ANTIVALOR, E OUTRAS POLÍTICAS na produção de bens de consumo, mas não pode ser ligado diretamente ao custo de reprodução da força de trabalho dos setores industriais. Sem essa mediação fica difícil entender.
Que papel você atribui à emergência do sistema soviético na confi guração desse modo de produção soc ial-dem o crata ?
Na própria sociai-democracia há uma enorme influência soviética. Há todo um grupo de planejadores social-democra-tas que tenta apreender dos soviéticos a possibilidade de fazer a passagem para o socialismo através de uma desmercantiliza-ção. E uma discussão bastante interessante. A sociai-democra cia aprendeu muito com a experiência soviética.
Mas as instituições capitalistas se remodelaram mais em função de constrangimentos internos ou devido à ameaça externa que repre sentava a União Soviética?
Fazendo um balanço, se essas coisas pudessem ser medidas em proporções, eu daria 60% de peso às condições internas dos países que hoje chamamos de desenvolvidos. Acredito mui to mais num tipo de interpretação marxista que concede muito valor ao movimento das lutas de classes. Até porque sabemos
historicamente que antecipações desse processo existiram na Alemanha e na Itália até como tentativa da burguesia de dis
putar a posse dos corações e das mentes da nova classe social. Tratando dessa forma esquemática, os outros 40% são devidos à revolução soviética, à medida que havia uma forte sedução das massas trabalhadoras pela URSS. A Grande Depressão, que desempregou 30% da força de trabalho, é outro fator que mobilizava e atualizava a ameaça soviética no interior dos paí ses ocidentais. Antes mesmo de Keynes tentar teorizar qual quer coisa, a maioria dos países estava tateando e buscando formas de sair do nó, por intermédio do que depois veio a ser sistematizado como medidas de bem-estar social. Em alguns casos, de forma já bastante sistemática - como foi a Suécia nos anos 20 - e em outros já premidos pelas circunstâncias, como foi o caso da França já na grande crise, correndo para descontar
OS DIREITOS DO ANTIVALOR
o prejuízo. A Revolução Russa estava presente por intermédio
das grandes massas desempregadas. Não acho, como muitas
interpretações, que foram apenas concessões das classes do
minantes. Estou mais numa linha de que o curso da luta de
classes já anunciava um desenvolvimento nesse sentido. E, so
bretudo, po rque - evidentemente sem nenhum eurocentrismo
- isso surgiu nas relações de luta de classes mais avançadas, e
não do tipo de luta de classes que se tratava em relações ainda
coloniais. Isto desagrada certos setores da esquerda que gos
tariam de pensar que toda revolução, toda transformação nos
países capitalistas centrais foram feitas a partir da periferia.
Em que medida a débâcle soviética torna inviável, do ponto de vista político, a apresentação de propostas de transformação mais radical da sociedade f
Durante boa parte da minha juventude e mesmo na matu
ridade, eu vivi a experiência soviética - como quase todo mun
do da esquerda
como uma grande referência. Nunca fui
membro do Partido Comunista, sempre tive bastante reservas
a respeito da sua forma de militância, mas sempre os encarei
como companheiros de luta, principalmente na minha cidade,
Recife, onde o partido tinha notável presença nas classes po
pulares. Só vim a tomar conhecimento dos problemas mais
graves da experiência soviética a partir da invasão da
Tchecos-lováquia, em 68. Nem mesmo quando do aparecimento do
relatório Krutchev, ainda em 56, a URSS era posta em dúvida.
Ninguém sabia muito bem o que era aquilo e a economia so
viética parecia que ainda funcionava bem, ia ganhando a com
petição com os EUA e nós não sabíamos dos horrores dos
campos de concentração. A partir da invasão da
Tchecoslová-quia minhas reservas em relação à União Soviética aumenta
ram muito, a ponto de eu não mais apoiá-la incondicio
nalmente. Quanto a experiências como a de Cuba, por exem
plo, sempre fui francamente favorável, ainda que deteste a
forma ditatorial que lá se exerce. A débâcle soviética é um
golpe muito forte na moral socialista e é uma derrota de
pro-OS DIREITpro-OS DO ANTIVALOR
perar. Parte do seu ocaso é devido também a uma transforma
ção ocorrida nos sujeitos que o construíram. E muito evidente
que mudou a constituição das classes sociais. Se antes havíamos
assistido a um deslocamento das classes, eu diria de privadas
para classes sociais públicas, no sentido da sua reprodução,
hoje estão ocorrendo fortes transformações. Por que se sur
preender com o fato da taxa de sindicalização cair nos países
mais desenvolvidos? Exatamente porque o Estado do bem-es
tar universalizou-se, aquilo que dependia da sua filiação ao
sindicato, de um certo partido que chegava ao poder, não de
pende mais disso. Qual o incentivo para ser sindicalizado hoje?
Há uma erosão pela base naqueles sujeitos que construíram o
próprio Estado do bem-estar, e daí vem parte do seu ocaso.
Mas, em grandes linhas, eu diria que esse ocaso é mais apa
rência do que realidade.
No que diz respeito à disputa pelos fundos públicos, a classe traba lhadora está perdendo terreno em relação aos direitos que havia as segurado antes?
Não. Essa derrota não é tão grande como a gente pensa.
Exatamente pelo fato de que essas coisas se universalizaram.
O que está havendo de fato - e daí a erosão das bases sociais
do Estado do bem-estar - é a desregulamentação do trabalho,
a destituição de direitos sociais e trabalhistas. Aí sim vai afetar
essas bases sociais.
O que voc ê está dizendo é que, do po nto de vista dos fund os públicos, os direitos de saúde, educação etc . perm anecem , mas no pla no priva do da prod uçã o a li sim est ão sendo destruídas as bases sociais do Esta do de bem-estar?
Sim. Mas, evidentemente, essa destruição no plano das
relações privadas vai atingir o público...
Ainda não atingiu?
Ainda não. Os gastos sociais continuam até a crescer como
parte do PIB nos principais países desenvolvidos, e a direita e
o capital tentam dar solução a isto através do corte desses
OS DIREITOS DO ANTIVALOR
meio caipira e mão-de-vaca, vai para casa. Se não, tem obri
gações sociais nas quais se encontra sempre com gente seme
lhante. Quando se trata de um tipo mais à última fase do Oíacyr
de Moraes, vai gastar o dinheiro nos grandes salões da alta
burguesia. De público e comum com o resto da sociedade, esse
cidadão não tem nenhuma experiência. Esse é o sentido radical
da privatização. Esta é a ameaça mais radical à esfera pública.
Daí entender, evidentemente discordando, essa fúria
privati-zante. Essa privatização não é só ideológica, é uma experiência
radical de vida. O fato de o transporte ser ruim em nada co
move um empresário desses. Antes, eles tinham que contrace
nar diariamente com experiências de subjetividade porque os
operários iam reivindicar diretamente. Hoje, ele vive num
mundo virtual, privado.
Do ponto de vista das relações internacionais, que tipo de transfor mações você vê?
Do ponto de vista das relações intercapitalistas, não vejo
nada de bom. De tanto desrégulamentar, os países capitalistas
vão se enfrentar brevemente com uma competição mortal e
vão se preparar para isso. A China já acabou com a indústria
de brinquedos no mundo inteiro, está acabando com a têxtil
e acabará com a indústria eletrônica de pequenos aparelhos.
Quando somar-se a isso a Rússia - com mão-de-obra barata
que tem - e o Brasil e a índia se juntarem, chegará a hora da
barbárie no comércio internacional. Eles desregulamentaram
e osdesregulamentados vão cobrar a fatura!
Os países desenvolvidos estão tentando se cercar das maio
res garantias e constituir nas nações subdesenvolvidas - para
usar um termo forte - uma espécie de sátrapas que governem
em nome deles. Mas isso não vai resolver por muito tempo.
Dentro dessa lógica, não seria irracional por parte dos países
avançados estar praticando essa desregulamentação , uma vez que eles próprios estariam promovendo algo que brevemente irá
POLÍTICAS DO ANTÍVALOR, E OUTRAS POLÍTICAS
A tendência é de queda do salário real a partir de agora?
A tendência do salário real é de cair ou crescer numa taxa muito pequena. Num país como este, com as enormes desi gualdades, a taxa de crescimento que a Salomon Brothers -que é uma corretora e um banco de investimentos -que segue de perto a economia brasileira porque tem altos interesses aqui - está projetando é de 2,2% para o ano de 97. Nã o é nada promissor. Um país como este tem de crescer, no mínimo, 5% a 6% ao ano com melhor distribuição de renda.
O que seria uma política de integração que contemplasse as suas preocupações?
E difícil precisar, mas creio no entanto que vigorosas políticas sociais ainda são a melhor forma de distribuição de renda. Evidentemente, se combinadas com uma boa taxa de crescimento econômico de 5% a6% ao ano. Nós sabemos que a melhor educação não depende do mercado. Portanto, uma política social vigorosa é insubstituível como elemento de distribuição de renda, mesmo quando o salário real está crescendo. O mercado só realiza muito parcialmente a me lhoria na distribuição de renda. Nos anos gloriosos do mi-lagre, quando se pensava que só o crescimento do salário
real era suficiente para redistribuir renda, a classe média abandonou o ensino público. Quando os salários da classe média se deterioraram, ela quis voltar para a escola pública, mas esta estava liquidada. Por isso, eu advogaria uma boa taxa de crescimento e vigorosas políticas sociais porque é por aí que passam educação, saúde, lazer e cultura de qua lidade.
Falando nos seus próprios termos, o salário direto está mais sujeito ao ciclo dos negócio s enquanto osalário indireto tem uma estabilidade que se sustenta no tempo e que serve de garantia inclusive para a cidadania?
Exatamente.
OS DIREITOS DO ANTIVALOR
Qual o papel da esquerda hoje no Brasil e no mundo? Qual o papel do intelectual, do militante, dentro desse cenário?
Eu sou um PT light. Acho que o PT não tem do que se
envergonhar nesse curto período de existência, em que con
tribuiu enormemente para a democratização da vida brasileira.
De imediato, a tarefa do PT é lutar bravamente para que a
hegemonia de FH C - que é virtual - não se consolide, isto é,
lutar para que este credo não se transforme em senso comum,
o que é o mais perigoso. Tentar construir uma alternativa sig
nifica combater em todas as frentes possíveis essa virtualidade
hegemônica muito forte que está se desenhando no Brasil.
Evidentemente, enfrentar o governo e todas as formações ad
versas em todas as frentes possíveis - prefeituras, eleições, sin
dicatos - é um trabalho que não é de curto prazo. O que o PT
não deve nunca tentar fazer é parecer bonzinho. Não no
sentido de uma velha discussão bizantina que houve no PT,
se nós vamos administrar o capitalismo ou não. Para mudar
o capitalismo é preciso primeiro saber administrá-lo. Não
é essa a questão. O PT não deve ser bonzinho no sentido de
tentar melhorar ess e progr ama aqui, aquele program a acolá.
Essa foi a tônica de certos discursos nas últimas eleições
municipais. O que está aí é muito forte e o PT se assustou.
Mas ele tem que continuar a dizer a esse país que ele precisa
de reformas vigorosas, profundas. Não como a vanguarda
iluminada que sabe mais do que o povo, mas como aquele
que é na essência diferente do senso comum. O partido deve
continuar essa batalha, a curto e médio prazos, para criar a
possibilidade de que a hegemonia virtual que se desenha não
se instaure. O projeto hegemônico que temos que combater
é talvez o mais consistente que os grupos, classes e blocos
dominantes no Brasil jamais tiveram. E esse é um desafio
que não pode ser subestimado.
PARTE II
A Q U A SE-H EG EM O N IA
A Metamorfose da Arribaçã
Fundo público e regulação autoritária na
expansão econômica do Nordeste*
O processo de integração sob a “regulação autoritária”
Desde a criação da Sudene, em 1959, e mais especifica mente, desde a entrada em ação dos mecanismos de deduçãofiscal para investimentos no Nordeste, conhecidos anterior mente como dispositivo 34/18 e hoje como Finor, a região nordestina vem sofrendo importantíssimas transformações econômicas e sociais. A inteligibilidade desses processos é aces sível nos quadros de sua progressiva integração à dinâmica da economia nacional, e por conseqüência, do processo de
acu-,l Publicado emN ovo s E studos, São Paulo, Cebrap, n. 27, julho de 1990, p. 67-91. Este texto sintetiza o relatório da pesquisa “Estrutura de Poder no Nordeste Pós-Su-dene”, encomendada pela diretoria de Programação Global-DPG, da Superintendên cia do Desenvolvimento do Nordeste-Sudene, ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento - Cebrap. Participaram da penador), os seguintes auxiliares de pesquisa: Carlos Alberto Beijo e Silva, Elson Lucianosquisa, além do autor do texto (coorde Silva Pires, Hélio Francisco Corrêa Lino e Marcelo César Gouvêa. O principal objetivo da pesquisa foi oferecer um quadro de referências atualizado para marcar as possibi lidades e os limites do planejamento regional. Neste sentido, o estudo das estruturas de poder engendradas e/ou reforçadas pelas transformações econômico-sociais em curso desde a criação da Sudene passa a ser o ponto focal para avaliação daquelas possibilidades. As fontes estatísticas utilizadas na pesquisa foram publicações de órgãos
públicos (BNDES, FIBGE, Sudene etc.), de entidades sindicais de trabalhadores (DIEE-SE) ou patronais (FIESl^ Febraban) e publicações econômicas especializadas(Visão, G uia Interinvest).
OS DIREITOS DO ANTÍVALOR
mulação de capitais, da ação do Estado, da
internacionali-zação produtiva e financeira, da anulação da presença
polí-tica de algumas classes e setores sociais, da repressão e
centralização políticas operadas pelo Esta do autoritário,
en-tre outros muitos fatores.
Um resultado talvez não esperado é, de certa forma, a
desregionalização da economia regional, que se coloca como
par num ambíguo processo que, do outro lado, reifica a região,.
já agora do ponto de vista da ação dos mecanismos financeiros
que o presidem.
Para verificar as transformações da base econômica nordestina, procedeu-se ao levantamento das informações sobre o PIB regional, determinando sua magni tude e composição e sua repercussão no emprego. O estudo do setor industrial possibilitou a análise desagregada em nível de gêneros: é o único setor da eco nomia para a qual se procedeu a uma análise a este nível. Os capitais envolvidos nas modificações da base econômica do Nordeste foram determinados através da identificação das 1.300 maiores empresas da região, segundo o faturamento e o patrimônio. Em seguida, procurou-se determinar a articulação e o grau de concentração destes capitais obtendo-se, desta forma, uma relação dos principais grupos econômicos que atuam na região e o impacto provocado pela sua atuação na economia regional. A determinação dos principais agentes financiadores da acumulação fez-se através do estudo do setor financeiro, das instituições públicas de financiamento e do principal incentivo fiscal aplicável à região, a saber, o Fundo de Investimentos do Nordeste - Finor.
A força de trabalho e as associações de classe foram estudadas com a intenção de perserutar sua influência na economia e nas relações sociais da região. Desta forma, procurou-se determinar o grau de organização dos trabalha dores e empresários, os níveis de rendimentos, a participação relativa dos trabalhadores com e sem carteira assinada no mercado de trabalho etc.; os resultados obtidos sobre a força de trabalho, salários, estrutura das ocupa ções e relações de trabalho são limitados, dngindo-se a informações das PNADS; quanto aos demais objetivos, a rigor são indicações para futuros aprofundamentos. Na ótica de privilegiar a ação concreta dos sujeitos e atores da transformação regional, procurou-se abrir uma via de investigação sobre a formação e circulação das elites empresariais, públicas, estatais e privadas. O entrelaçamento dos interesses, sua representação política, o grau de aderência entre esta e as novas estruturas de poder na região resultaram apenas sugeridos, necessitando-se, pois, de desdobramentos futuros para conhecerem-se, com maior veracidade, numa palavra, as relações entre eco nomia e política na região.
OS DIREITOS DO ANTIVALOR
estatais é privada. No outro lado da suposta fronteira, no setor
privado, a propriedade é privada, mas a argamassa, os fundos
para capitalização, são estatais. Na definição de Rangeon, ha
vería uma privatização do público, mas não há uma
publíci-zação do privado1.
Essa ausência de uma esfera pública reproduz, no Nordes
te, o vasto processo posto em marcha no Brasil desde a segunda
metade dos anos 50 e levado às últimas conseqüências pelo
Estado autoritário. Os efeitos concentracionistas da expansão
econômica não são, prima fade, pura derivação do crescimen
to econômico; poderíam sê-lo no século XIX, mas não hoje.
A má distribuição de renda, a aberrante estrutura de salários
ver-se-á como, no Nordeste, depois de trinta anos quase ininter
ruptos de crescimento econômico, 57% dos empregados rece
biam até 1 salário mínimo*2 - são inequívocos resultados da
ausência de uma esfera pública, e exatamente ao contrário do
que apregoam os neoliberais, da ausência do poder regulador do
Estado sobre os mecanismos do mercado; ou, especificando me
lhor, o público se privatiza apenas numa direção, na direção da
substituição dos fundos da acumulação privada pelos estatais,
mas não há contrapartida no sentido de corrigir o mercado em
termos de salários, distribuição de renda etc.
Os mecanismos financeiros que presidem à expansão ca
pitalista no Nordeste configuram o novo papel dos fundos
públicos nos processos de constituição do capitalismo contem
porâneo. Poderíam ser listados como estando na vanguarda,
precoce, deum capital financeiro em geral, que se arma a partir
dos fundos públicos, se concretiza e se torna capital privado
na órbita da produção, se traveja na mordernidade de uma
nova relação capital-trabalho, irriga o bem-estar na forma dos
gastos sociais públicos, escanteia o acaso e o aleatório dos
processos da reprodução econômica e social até o limite do
possível em contextos históricos determinados, e potência, de
Rangeon, F.,Lidéologie de Vinterêt général. Paris, 1986.
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇÃ
forma inimaginável para o século XIX, a própria capacidade de expansão e renovação do sistema.
Mas, no meio desse processo, algo ocorre: a contribuição financeira do Finor (que é uma dedução do imposto de renda) às empresas toma a forma de certificados de investimento de propriedade dos investidores/dedutores (empresas e pessoas físicas). Nos leilões do Finor, os certificados são transformados em ações das empresas nas quais se fizeram aplicações. Essa transformação, a rigor, interessa apenas às próprias empresas que utilizaram o Finor, pois tais ações são inegociáveis durante quatro anos. Além disso, compõem o capital de empresas de pouca visibilidade à percepção dos investidores de Bolsas de Valores. Nestas condições, as próprias empresas beneficiadas pelo Finor recompram suas ações (derivadas dos certificados), transformando o mercado acionário do Finor em um mercado cativo, na verdade uma ficção de mercado de capitais. A prática tem sido a de as empresas recomprarem suas próprias ações a preços que sequer atingem 10% de seu valor real'1; percebe-se a intransparência do sistema e a não-publicização do privado, na medida em que o Finor pagou pelas ações um valor 10 vezes maior do que o valor de venda. Neste percurso, perde-se in teiramente o controle dos apartes públicos à formação de ca pital das empresas; privatizam-se os fundos públicos e não se publiciza o privado. Eis o Estado do mal-estar.
Os congressistas do Nordeste foram uma das bases mais fortes de sustentação parlamentar do Estado autoritário. Não foram os únicos, nem os principais. A ação do Estado po dería parecer, à primeira vista, uma troca entre apoio polí tico e investimentos estatais. Mas, exatamente no núcleo da relação fundos públicos/acumulaçao privada, o Congresso castrado do regime autoritário não atuava, impedido de le gislar sobre orçamento e de interferir nas empresas estatais.
1Dc acordo com Tabela G.l, p. 141, do relatório “Avaliação dos Incentivos Fiscais Regidos pelo Decreto-Lei 1376”, IPEA, 1986.
OS DIREITOS DO ANTIVALOR
e) recursos na forma de participação acionária através do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) e/ou do Banco do Nordeste do Brasil (BNB);
f) financiamentos do BNDES e do BNB, a taxas favorecidas;
g) financiamentos doBancoNadonal de Habitação
(BNH)/Ban-co Mundial, para infra-estrutura industrial e saneamento.
Essa nutrida lista é a mesma para o Brasil como um todo,
revelando, pois, que o padrão de fínanciamentoAitilização de
recursos públicos que preside à expansão da economia nor
destina é o mesmo que foi utilizado pelo Estado autoritário
para a economia nacional, levando à exaustão e aos impasses
atuais de déficit e dívidas públicas interna e externa, à erosão
da carga tributária bruta, à incapacidade de investimento do
Estado e à inflação.
Os incentivos fiscais do tipo dedução do imposto de renda
foram exclusividade do Nord este; logo após foram estendidos
à Amazônia, às atividades de turismo e reflorestamento, aos
investimentos na Embraer e, através de legislação especial, ao
Estado do Espírito Santo. O que explica a tendência histórica
de baixa dos recursos do Finor. Vale dizer ainda, de passagem,
que os empréstimos concedidos pelo BNB e pelo BNDES às
empresas que investem no Nordeste são considerados, para
efeitos de aferição do montante de recursos do Finor a que
podem aspirar, como recursos próprios; desta “ inocente” ope
ração de ajuste e medição decorre a já mencionada desvalori
zação dos certificados de investimento do Finor, que dá lugar
ao “mercado de capitais cativo” dos investidores do Finor.
Em 1985, os recursos financeiros via Finor e BNDES re
presentaram 2,81% do PIB regional6, enquanto a formação
bruta de capital fixo (FBCF) total alcançou em 1983 (último
ano para o qual há dados disponíveis) 21,99% 7 . A primeira
6Idem, p. 62.
7 VideProduto e formação bruta de capital - Nordeste do BrasiL Recife, Sudene, 1987.
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇÀ
porcentagem pode parecer insignificante, mas deve-se relem brar que na FBCF se incluemtodos os investimentos, mesmo os não diretamente produtivos, do Estado (como estradas, es colas, hospitais, portos etc.). Além disso, pelas vias do Finor e do BNDES não correram fundamentalmente os investimen tos das estatais produtivas, que se financiam ou autonoma-mente ou por empréstimos externos, ou ainda via subscrições acionarias do BNDES, que não se incluem nos empréstimos. O Finor financiou apenas 1 0 % do capital total dos grupos estatais que atuam no Nordeste.
A face mais impactante do Finor se revela pelo lado de sua participação no capital total das 1.300 maiores empresas do Nordeste, que alcançou em 1985 a porcentagem de 35% para o setor industrial, e da ordem de 65% para o setor agropecuá rio8. A distribuição setorial dos recursos do Finor confirma sua importância como mecanismo financeiro da acumulação de capitais, pois são os seis gêneros industriais mais dinâmicos os que absorveram a maior parte dos recursos daquele fundo (excetuando-se as empresas estatais de serviços públicos, que se financiam diretamente junto aos tesouros, federal e esta duais, e em parte junto ao BNH).
O sistema Finor não funciona como instrumento financei ro ao alcance de médios e pequenos capitais, senão de maneira marginal. Ele se revela como financiador e potenciador de uma acumulação concentrada, quase oligopolista, pois os cinqüenta grupos econômicos mais importantes do Nordeste repre sentam cerca da metade do capital total das 1.300 maiores empresas e absorveram também a metade dos recursos totais do Finor em 19859. Se desglosadas as empresas e seus grupos por srcem/propriedade dos capitais, a análise revela que os grupos estatais absorveram recursos do Finor da ordem de 10% de seus patrimônios totais (uma vez mais, com exceção
KSobre os recursos do Finor, vide “Estruturas de poder...”,op.cit., tabelas
AII: 3a e 3e.
ySobre as relações entre Finor e grupos econômicos, videidem, tabelas Aíí:
3b e 3i.
A METAM ORFOSE DA ARRIBAÇA
I% do lucro das empresas atribuído aos trabalhadores e por alíquotas da remuneração dos funcionários públicos federais, enquanto o FGTS é calculado sobre a folha de salários e atri buído a cada assalariado. Os fundos do Banco Central são de natureza diversa, não se podendo identificar claramente suas fontes, mas em todo caso dependentes do governo federal. E os empréstimos de instituições internacionais são avalizados pelo governo federal, que, assim fazendo, assume o risco de câmbio implícito na operação, quando de sua quitação.
Todas essas fontes têm em comum seu caráter altamente subsidiado, e, nos casos especiais do PIS/Pasep e FGTS, cons tituem uma verdadeira expropriação sobre seus proprietários nominais, os assalariados em geral e os funcionários públicos. O BNDES e o BNFI remuneravam esses fundos historicamente a taxas de 3% ao ano, mais correção monetária. Ora, essas taxas não alcançam sequer a remuneração das cadernetas de poupança, que é de 6% ao ano mais correção monetária. O BNDES empresta a taxas maiores, apropriando-se da diferen ça entre o que paga e o que cobra, que reverte para seus próprios fundos. Este é um dos aspectos da “regulação autoritária”. Os proprietários desses fundos não têm qualquer ingerência nas suas aplicações. Ademais, a ação do BNDES e dos bancos es tatais de fomento, BNB e aqueles de propriedade dos governos estaduais, nãoé especificamente nordestina. Tanto a forma das aplicações quanto a natureza das fontes são fenômeno geral na atuação do principal banco de investimento nacional em todo o país; e os bancos estaduais de Estados fora da região Nordeste também atuam da mesma maneira e socorrem-se das mesmas fontes.
A soma de aplicações do Finor e do BNDES, que já se indicou, alcançou quase 3% do PIB regional em 19 85 e trouxe uma qualidade nova ao processo de expansão econômica nos quadros da “ regulação autoritária” . Genericamente, eles são parte da crescente interação entre Estado e economia, carac terística do capitalismo contemporâneo, em que os fundos públicos constituem um pressuposto de processo de
OS DIREITOS DO ANTIVALOR
,çãoJ1 A função do fundo público nesse processo consiste, em
geral, em potenciar a acumulação para além dos limites
postos pela geração do lucro,
utilizando uma riqueza pública
que não ê capital e que, portanto, na equação geral não é
remunerada. O fato de que os recursos do Finor são de custo
de oportunidade igual a zero, somado à alta taxa de subsídio
implícita nas aplicações dos bancos estatais, adapta-se a esse
paradigma.
Funcionando como um substituto do capital financeiro,
os fundos públicos concretizados no Finor e nos bancos estatais
cumprem vários requisitos. O primeiro deles é o de promover
uma centralização de capitais imediatamente desligados da
base produtiva, o que é clássico para o capital financeiro. De
fato, as deduções fiscais desligam-se momentaneamente da
base produtiva que gerou o imposto de renda, para só se liga
rem outra vez à mesma no interior de cada capital em parti
cular. A essa função própria do capital financeiro junta-se outra
que é peculiar aos fundos públicos, e que somente eles podem
cumprir: não estão sujeitos aos movimentos da taxa de lucro
de qualquer setor em particular, amarração esta que ainda pre
side o capital financeiro stricto sensu. Esta última condição
revelou-se absolutamente necessária para romper a inércia da
economia regional anteriormente regulada pela sua própria
produção de excedente: a taxa de investimento do Nordeste
não dependeu de sua base produtiva, isto é, da geração de
lucros interna, pois se verifica que o coeficiente de inversão
regional sobre o produto é bem superior ao da economia bra
sileira, tendo alcançado cerca de 22% em 19 8 3 1
112.
A primeira razão é a já indicada: elevar o coeficiente de
inversões acima da capacidade gerada pela própria economia,
A segunda razão é romper com a inércia de capitais que se
movimentavam em torno das taxas de lucro existentes nos
11 Ver Francisco de Oiiveria. “ O surgimento do antivalor”,Novos Estudos. Cebrap, n. 22, Sâo Paulo, out. 1988.
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA
Setorialmente, o predomínio dos capitais estatais se dá nos dois maiores segmentos da economia do Nordeste - Química e Serviços Públicos cujas empresas respondem por 46% do patrimônio líquido total das 1.300 maiores empresas17.
A qualidade da função das estatais na expansão econômica recente do Nordeste é insubstituível e forma o outro par da equação cujo primeiro termo são os fundos públicos do Finor e do BNDES. Esta qualidade vai muito além de seu significado quantitativo, cuja importância foi demonstrada nos parágrafos anteriores, e pode-se dizer que, sem a somatória Finor/BNDES mais estatais, não teria ocorrido a expansão recente, nem se quer como mera decorrênciaespacial do forte crescimento nacional desde o pós-guerra.
Em primeiro lugar, as empresas estatais no Nordeste de sempenham o mesmo papel que tiveram na industrialização nacional desde o segundo pós-guerra. Um papel paradigmático de proto-indústria, não no sentido de pré-indústria, mas no sentido de prévia e pio neira : é um desempenho afirmado quase trinta anos depois da arrancada industrial t^ue se deu nos anos 50, com Siderúrgica Nacional, Petrobrás, Alcalis, Vale do Rio Doce, em escala nacional.
As grandesholdings federais sãocapital financeiro po r ex-celência, pois no seu interior elas fundem a função produtiva c a função creditícia (quase bancária). Financiadas basicamente por fundos públicos de extração fiscal, seus recursos desligam-sc momentaneamente do movimento da taxa de lucro (ou de juros), e, aplicados produtivamente, perfazem uma equação
inteiramente inovadora em meio ao primitivo circuito regio nal. Quando associadas a capitais privados, de qualquer ori gem e natureza, exponenciam sua qualidade de capital financeiro sui generis, pois os capitais que se lhes associam passam, também, a gozar da prerrogativa de escapar às deter minações da taxa de lucro, em que viviam circunscritos en quanto permanecessem em suas formas srcinárias. 1
1Idem, tabela BI-2b
OS DIREITOS DO ANTÍVALOR
É por essa qualidade que estas
holdings
formam uma es
pécie de
argamassa de todos os capitais,
quando se associam.
Ancoradas nessa especificidade,
elas orientam
o movimento
de capitais: seus investimentos são altos comparativamente aos
demais; são simultâneos, oferecendo uma possibilidade de
complementaçao que, em meio ao movimento errático dos
capitais privados, aparece imediatamente como a melhor das
associações; pela sua elevada composição orgânica, puxam
para cima, radicalmente, a produtividade dos setores que li
deram. Em síntese, na ausência de uma tendência à equalização
das taxas de lucro, que dirigíria o movimento dos capitais no
modelo srcinal de Marx, são os capitais estatais que realizam
uma função análoga de orientação da taxa de lucro e, por
conseqüência, da taxa de acumulação: não pela equalização,
mas pelo seu quase-contrário: a des-equalização
compartimen-tada. Esta é sua principal função teórica, tanto no movimento
geral da industrialização brasileira, quanto no específico, re
cente, do Nordeste, recortado no interior do quadro brasileiro
pela presença de fundos públicos tais como o Finor, cujo custo
de oportunidade é zero.
A transformação das bases materiais da produção
A dinâmica econômica promovida pela nova armação de
fundos públicos e fundos privados inscreve o Nordeste, deci
sivamente, no processo mais geral de acumulação de capital
no país. Disso dão testemunho as inusitadas taxas de cresci
mento do PIB regional entre 1970 e 198318. Neste sentido,
apesar da pequena descentralização regional do PIB (Nordeste
x Brasil)19, é inegável a ampla incorporação do Nordeste à
lógica dos processos econômicos de âmbito nacional. O em
prego nos setores da indústria e de serviços cresceu ao ponto
18Idem, tabela AI: Id. 19Idem, tabela AI: la.
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇÃ
de que a população ocupada de base urbana saltou de 37% em 1970 para 53% da população ocupada total em 1985, íiinda distante da média nacional (72% em 1985). Isto se deve,
sobretudo, ao “calcanhar de aquiles” nordestino: 46% da po pulação ocupada total ainda estavam no campo em 1985, o que representa o elemento de continuidade de relações arcai cas de emprego, num conjunto em que os avanços são bem notáveis, apesar de tudo20.
No período 1970-1983, a economia nordestina cresceu, sistematicamente, acima da média nacional: 7,8% ao ano con tra 6,7%, segundo os dados da FIBGE e do Grupo de Contas Regionais da Sudene21. Mais ainda: esse crescimento se deve às taxas da indústria e dos serviços, anotando-se apenas para a agropecuária uma taxa inferior à nacional. Observados os períodos curtos dentro do longo período de treze anos, o com portamento é o mesmo, notando-se, marcadamente para o subperíodo 80-83 (de crise e recessão), que a economia do Nordeste mantém um comportamento positivo, enquanto a média nacional acusou taxas negativas de crescimento indus trial e total. A agropecuária, como “calcanhar de aquiles”, cresce sempre abaixo da média nacional, e no período reces sivo já sinalizado, que coincide com um pesado ciclo de secas no Nordeste, a agropecuária regional mostrou taxas negativas tlc -8,2 % ao ano. Para esse comportamento em geral superior às médias nacionais contribui, sem dúvida, a forma de finan ciamento público já analisada, o que reafirma o caráter excep cional do financiamento público e das empresas estatais na expansão econômica nordestina. Trata-se de um caráter anti-cíclico swi generis.
Do ponto de vista da srcem setorial do Produto Interno Bruto regional, há uma marcada diferença entre os anos ex tremos do período, 1970 e 1983. A mais notável mudança se dá no peso relativo da agropecuária que, de 22 %, em 1970,
’(1idem, tabela AI: lg. '' idem, tabela AI: ld.
OS DIREITOS DO ANTIVALOR
decresce para 1 3 ,1% do PIB em 19 83. O comportamento da
série longa mostra que aqui se trata de uma tendência, e não
apenas de um dado conjuntural. De outro lado, os serviços,
que em 19 70 já compareciam com 51,5% do PIB, chegam a
59,3% em 1983. O peso da indústria muda pouco se conside-
rado em si mesmo: 26,5% do PIB em 1970 para 27,6% em
198322.
Essas modificações parecem de pequena monta, a julgar
pelos pontos percentuais. Quando analisadas em malha fina,
elas revelam mais que à primeira vista. De fato, o aumento da
participação da indústria no PIB é atenuado pelo efeito
des-trutivo que a nova industrialização provoca23. O aumento da
produtividade do trabalho ditado pelos novos padrões de
acu-mulação reduziu a participação relativa da população ocupada
do Nordeste em relação ao Brasil em 5,5 pontos percentuais,
ao longo do período24.
Isto quer dizer que o aumento da produtividade se deu
paralelamente ou movido por um poderoso movimento de
concentração do capital, ao qual sucumbiram inúmeras
indús-trias regionais, nas quais a importância da força de trabalho
na geração do produto era bem maior. E na conta do produto
industrial o efeito líquido positivo teve que lutar contra o efeito
destrutivo; de modo que, tanto em nível do produto quanto
em nível do emprego, a aparência é de quase nenhuma
modi-ficação, o que consta, aliás, reiteradamente, das queixas
regio-nais sobre o recente desenvolvimento. Mas é na análise em
nível desglosado dos serviços que se observa, de forma
pe-remptória, o caráter capitalista das novas atividades e da nova
dinâmica econômica. De fato, a intermediação financeira,
componente dos serviços, passou de 5% do PIB em 1970 para
22 Idem, tabela AI-lc
23 Ver Francisco de Oliveira.Elegia para uma re(li)gião. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 3.ed., 1981.
24 De 33,0% em 1950 para 27,5 % em 1985. Ver “Estruturas de poder.
....
”, op.cit., tabela AI:le.A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA
õ,6% em 19 832\ Ora, intermediação financeira nas contas
nacionais é, sobretudo, uma medida do lucro das instituições
linanceiras. Ou seja, o caráter capitalista das novas atividades
tio Nordeste requer, como em qualquer economia, não apenas
uma monetização da atividade econômica, mas é ainda forte
mente exigente do ponto de vista da circulação de mercado
rias, através do crédito bancário.
Adicione-se a isso o crescimento das rendas e salários e
dos lucros industriais, e ter-se-á uma resposta parcial para um
incremento da intermediação financeira, a qual se relaciona
com o mercado de poupanças, um incipiente mercado de ca
pitais e mesmo com a circulação dos recursos públicos do Fi
no r, BNDES, Banco do Nordeste e estatais. É evidente também
que o subperíodo 1980-83 é aquele no qual as taxas de juros
começaram a crescer, sistematicamente, na economia brasilei
ra, coincidindo com a chamada “crise das dívidas externa e
interna”, o que poderia contribuir para inflar a intermediação
financeira no PIB nordestino. Entretanto, os estudos nacionais
a respeito anotaram que apenas em breves períodos conjun
turais a taxa de juros foi real e positiva, tendo sido, na maior
parte do longo período analisado, negativa. Essa anotação re
força a possibilidade de que o crescimento da intermediação
financeira no PIB nordestino reflita, de fato,
crescimentoreal,
devido às modificações da base produtiva e em geral ao caráter
nssumidamente capitalista da nova dinâmica regional.
O crescimento dos serviços poderia, de outro lado, ser
atribuído ao crescimento do chamado setor informal da eco
nomia. Isto é, aliás, uma constante nas análises sobre o cres
cimento do Nordeste, mesmo nas mais aparelhadas conceituai
e estatisticamente. Impressionisticamente, a paisagem das
principais cidades do Nordeste reforça essa interpretação:
qualquer grande cidade do Nordeste parece-se, hoje, mais com
um mercado persa do que com uma cidade ocidental. As es
tatísticas daP NAD reforçam essa impressão: em 19 85, do total
*
■’AVide nota 7.OS DIREITOS DO ANTFVALOR
de empregados, 60,1% eram trabalhadores sem carteira assi nada - o que é a melhor aproximação estatística do trabalho informal - e, destes, apenas 25% ganhavam acima de 1 salário mínimo20. Embora a paisagem das cidades-bazares seja confir mada do ponto de vista do emprego, pelas estatísticas da PNAD, o mesmo não ocorre no quadro das contas nacionais. Em outras palavras, o sistema de contas nacionais não mensura o setor informal, quase por definição, pois suas atividades são clandestinas, não do ponto de vista da visibilidade mas do ponto de vista jurídico-fiscal e econômico. No máximo, as estatísticas das contas nacionais conseguem registrar a produ ção de bens industrializados comercializados pelo setor infor mal, e assim mesmo de forma subestimada. Assim, pode-se afirmar que o crescimento econômico dos serviços, tal como aparece, captado e medido pelas contas nacionais, correspon de à realidade.
As estruturas do poder econômico na transformação da base material
A integração do Nordeste à dinâmica global da economia brasileira produziu importantes deslocamentos na estrutura da propriedade burguesa. Esses deslocamentos são verso e re verso dos mecanismos da expansão regional: de um lado, ofundo público atuando como argamassa principal dos capitais;
de outro, uma mobilidade de capitais permitida apenas pela alta concentração econômica em escala nacional, vale dizer, pelo poder oligopólico dos principais grupos. O processo pode ser sintetizado como o de uma des-regionalizaçao burguesa que se completa ou se perfaz por uma perequação da própria burguesia como classe social nacional, não apenas do ponto de vista de uma hegemonia abstrata, mas concretamente, isto é, seus capitais, seus interesses, seus investimentos, seus lucros26
26 Vide “Estruturas de poder...”,op.cit., tabelas BII: lc e le.
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA
estão fincados hoje na equação regional, também como formas iliferenciadas de seu poder nacional.
O primeiro e notável deslocamento se dá do ponto de vista da participação da agropecuária na formação do PIB regional. A queda da presença das atividades rurais quer dizer perda de poder econômico por parte dos grupos proprietários agrários;
a participação de 13% no PIB regional dá uma dimensão dessa perda27. Não se trata, no caso, de grupos burgueses, mas da velha forma latifúndio-minifúndío, tão característica do Nor
deste, e sobretudo dos grandes proprietários rurais. Essa perda não é, totalmente, transformação, metamorfose, no rumo do empresariamento das atividades rurais. Ela é mais perda mes mo, no sentido já indicado também naElegia de que a inte gração dos mercados nacionais iria solapar as velhas produções e suas estruturas correspondentes. Daí que na amostra utiliza da pelo estudo que fornece a base para este ensaio, apenas 175 empresas agropecuárias comparecem, respondendo por tão-somente 0,8% do faturamento total das 1.300 maiores em presas, em flagrante contradição com o peso da agropecuária na formação do PIB regional28.
Eppur se muove. A soma dos saldos dos financiamentos pelo Sistema Nacional de Crédito Rural para o Nordeste mais as aplicações do Finor agropecuário já alcançava, em 1985, 52% do Produto Agropecuário regional, o que significa dizer que a reprodução do capital já se dá, crescentemente, pela via do capital-dinheiro, substituindo as formas clássicas da relação latifúndio-minifúndio.Entretanto, percebe-se o peso ainda grandemente deter minante do setor agropecuário no Nordeste - se não do ponto de vista da antiga expressão do latifúndio, do poder econômico tio coronelato - mas de outro ângulo: na feitura do mercado de força de trabalho, na estrutura da distribuição de renda e, o que talvez seja ainda seu grande triunfo e ao mesmo tempo
' Idem, tabela AI: le.
"NSobre agropecuária, videidem, tabelas BI: 4a a 4d.
OS DIREITOS DO ANTIVALOR