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Olhares discursivos sobre o corpo

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Academic year: 2021

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Olhares discursivos sobre o corpo

Danilo Corrêa Pinto Universidade Federal de Uberlândia (PPGEL) Resumo: O presente texto faz, a partir da Análise de Discurso, uma leitura sobre o corpo, considerando que aquilo que nos reveste enquanto seres biológicos também nos revela sentidos sobre as posições que ocupamos em determinado tempo e espaço. O corpo se apresenta como objeto histórico, justamente porque ele possui uma realidade historicamente demarcada; socialmente construída; discursivamente delineada, ou seja, não há corpo sem história. A partir disso, buscamos compreender discursivamente a produção de sentidos pelo e para o corpo, pois o corpo tem sua história e sua singularidade perpassadas por acontecimentos discursivos que, para nós, são relevantes para a constituição do sujeito.

Palavras-chave: Análise de discurso. Corpo. Memória discursiva.

Abstract: This text is from the Discourse Analysis, a reading of the body, whereas that which takes us as biological beings also reveals meanings about the positions they occupy at any given time and space. The body is presented as a historical object, precisely because it has historically marked a reality, socially constructed, discursively delineated, ie, he is concurrently suffering the effects of their time that passes out of it: there is no body without history. From this, we understand the meaning production by the body, because the body has its history and its uniqueness laden with discursive events that we hold to be relevant to the subject constitution.

Keywords: discourses analysis, body, discourse memory

Um dispositivo

Somos o corpo que temos ou temos o corpo que somos? Não teríamos nem pretendemos esboçar aqui uma resposta imediata para a pergunta acima. Não servirá a nós uma análise hermética bem como uma análise generalizada dos sentidos possíveis (e impossíveis) para determinada materialidade, sendo esta verbal ou não-verbal. Entende-se que, pela via do discurso, lemos tais materialidades não sendo o que são, mas como são, isto é, como elas produzem sentidos. Porém, acreditamos que, na produção de sentidos, uma materialidade não se auto-significa, mas é levada, pelo gesto do analista/sujeito, à se constituir enquanto objeto significante e ter seus sentidos construídos. Assim duas instâncias são intrínsecas à prática de leitura pelos olhos da Análise de Discurso: o objeto e o analista. Ora, não nos cabe criar um método de análise pela via discursiva, menos ainda repensar os passos

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científicos da disciplina1 analítica do discurso, fundada em meados da década de 60, pelo filósofo Michel Pêcheux; mas buscar uma descrição, justamente por ser a Análise de Discurso a possibilidade de outros olhares; um olhar que elucida história e memória quando observamos o corpo funcionando pela/na linguagem.

Podemos pensar o corpo como a junção da alma e da carne; aquilo que nos faz humanos e divinos, ao mesmo tempo; aquilo que, no discurso da religião, nos faz obra de Deus. O corpo biológico, organismo vivo mecanicamente estruturado, possui suas condições e exigências básicas de existência humana como comer, beber, dormir, no entanto, o corpo possui algo diferencial quando o vemos no animal homem: esse corpo possui a linguagem e se há linguagem há sentidos. Portanto, pretende-se aqui desenvolver a hipótese de que o corpo do homem se desloca quando interpelado pelos e nos discursos e, assim, constitui um corpo de linguagem; lugar de simbólico e espaço de movimento da história e das ideologias.

O gesto do analista de discurso é fundamental para que haja a percepção do deslocamento dos corpos na história e, para nós, exemplifica também que a relação analista e objeto possibilitou constituir uma materialidade passível de análise, ou seja, o corpo. A maneira como o analista - mesmo os que não se nomeiam assim e que é possível que não estivessem cientes do que faziam - olhou para o corpo em sua relação mundana, o constituiu dentro da própria história, isto é, o corpo estava lá, mas precisava dos olhares discursivos para pensá-lo como estava lá. Milanez (2006, p. 13) afirma que “o corpo está no centro das relações que envolvem o sujeito, o discurso e as instituições fazendo a história do cotidiano por meio das posições que ocupa, dos desejos que suscita, do imaginário que dá os contornos do homem de hoje em dia, seja na rua, seja na escola, seja em casa, seja na mídia”. Assim, o corpo tem sua história e sua singularidade perpassadas por acontecimentos discursivos, além disso, o corpo é uma materialidade histórica, pois não existe história sem homens e, consequentemente, sem corpos. Um olhar para o corpo na história dos homens nos possibilita refletir, a partir das condições de produção, sobre como essa materialidade histórica é passível de análise discursiva. Pesquisar embasados pela Análise de Discurso nos permite compreender, de uma maneira particular e não generalizada, como um objeto simbólico, neste caso, o corpo, produz sentidos.

Para tanto, é preciso entender alguns conceitos do campo da Análise de Discurso para nos apoiar nessa tentativa de, mais uma vez, deslocar o corpo e descrever seus sentidos que

1 Françoise Gadet, no prefácio de Por uma análise automática do discurso (1990, p.07), chama a atenção para as “condições nas quais essa disciplina surgiu”, ou seja, a Análise de Discurso.

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são constituídos e marcados ideologicamente. Ou seja, pela linha da AD, vemos o corpo sendo uma materialidade não-verbal não por essência, mas por ser construído pelo olhar do analista do discurso que, a partir da compreensão de seus sentidos na história, o vê como um espaço de funcionamento da linguagem. Portanto, a partir de uma análise discursiva podemos entender o corpo não só como um lugar biológico, mas também como espaço de constituição de sujeitos interpelados pela linguagem, pela história e pela ideologia, intrinsecamente relacionadas e dependentes.

Primeiramente, precisamos entender esse efeito de sentido que é o discurso, dentro do seu campo de funcionamento, já que este é o objeto da AD. Estaríamos, então, trabalhando com dois objetos – o corpo e o discurso - ? Da maneira que aqui pensamos e da forma que se pensa na Análise de Discurso, isso seria impossível. É justamente por o discurso se materializar no corpo que podemos deslocar essa materialidade na/pela linguagem e, consequentemente, visualizar o funcionamento do objeto da Análise de Discurso. Mas como tal objeto foi tomado como lugar de investigação científica?

Michel Pêcheux, a partir de um questionamento crítico sobre a Linguística (Pêcheux, 1975/1988), concebe que o estudo do discurso exige uma ruptura epistemológica que o coloque em um outro terreno, em que intervêm questões teóricas relativas à ideologia e ao sujeito. De acordo com o autor, a Linguística saussuriana, fundada sobre a dicotomia língua/fala permitiu a constituição da Fonologia, da Morfologia e da Sintaxe, mas não foi suficiente para permitir a constituição da Semântica, lugar das contradições da linguística. Para ele, o sentido, objeto da Semântica, escapa às abordagens de uma linguística da língua, já que a significação não pode ser sistematicamente apreendida. Propõe, então, ao invés de uma semântica linguística, uma semântica do discurso (Pêcheux, 1975/1988), lugar teórico em que as condições sócio-históricas de produção de um discurso são tomadas como constitutivas de suas significações. (MUSSALIM, 2004, p. 82)

Por este caminho, Pêcheux vê o discurso um lugar específico para a constituição da AD, isto é, um campo do sentido. “O discurso me parece, em Michel Pêcheux, um verdadeiro nó. Não é jamais um objeto primeiro ou empírico. É o lugar teórico em que se imbricam literalmente todas suas grandes questões sobre a língua, a história, o sujeito” (MALDIDIER, D. A inquietação do discurso: reler Michel Pêcheux hoje, 2003). Além disso, pensando a semântica do discurso como um espaço teórico imbricado de condições histórico-ideológicas, o discurso passa a ser o lugar de materialização da ideologia dos sujeitos, ou seja, na abordagem, sujeito, língua e história, pensando em instâncias constitutivas, a Análise de Discurso trabalha com a materialização da ideologia, e assim, o discurso passa ser o lugar onde intervêm questões relativas à ideologia e ao sujeito.

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O conceito de discurso não se equipara à noção de fala de Saussure, nem se confunde ao sentido de que entre dois falantes tem-se uma noção linear de sentidos; transmissão direta e transparente. “O discurso tem sua regularidade, tem seu funcionamento que é possível apreender se não opomos o social e o histórico, o sistema e a realização, o subjetivo ao objetivo, o processo ao produto” (Orlandi, 2009, p.22). E mais, “é a língua na sua relação com a história, atravessada pela ideologia e falada por sujeitos que são posições discursivas, e não indivíduos do cogito” (Hashiguti, 2008). É por ocupar e falar de um lugar que o analista pode dar ao corpo sentidos nunca antes significados, uma vez que, assim como a língua acompanha o fio da história dos homens, o corpo permanece sobre esse fio de relação e constituição. Diante disso, nos interessa dissertar sobre o funcionamento do corpo como espaço de contradições e complexidade dos homens, sobre como, discursivamente, é espaço de memória e se torna suporte para reler sentidos antes esquecidos. Através do interdiscurso, isto é, a memória discursiva, o corpo biológico ganha novas leituras; leituras estas movimentadas pelo discurso. E mais,

a memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pre-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. (ORLANDI, 2009, p.31)

Na tentativa do analista apreender sentidos aos dizeres sobre os corpos na história da humanidade, acreditamos que o próprio gesto de leitura do analista constitui o objeto corpo de linguagem, ou seja, o corpo funcionando pela linguagem e se significando e constituindo sentidos para os homens. Consequentemente, esse gesto vem imbricado pela memória discursiva dos ditos sobre os corpos, dizeres estes que perpassam o campo científico, artístico, social e demais áreas que viam no corpo algo superior e mais intrigante do que um complexo organismo de carne, músculos e órgãos.

Pela teoria do discurso, o corpo ocupa uma posição discursiva, ou melhor, ele é deslocado para essa posição pelo olhar de quem o interpreta. Para Hashiguti (2008) “há diferentes identificações sociais em movimento no discurso, bem como em diferentes discursos, diferentes são as formas de olhar os corpos e posicioná-los”. Portanto, acreditamos que a forma de olhar os corpos é onde mora o gesto do analista do discurso. Segundo Hashiguti (2008), diferentemente do ver, que seria a capacidade biofísica dos olhos, ou seja, a visão, enxergar algo, o olhar, para nós, seria o gesto de interpretação possível no/pelo

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discurso, o que, consequentemente diferencia do que é visível, isto é, aquilo que possui uma relação historicamente possível entre o olhar e a materialidade simbólica olhada dentro das condições de produção. Estas

compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação. (...) Podemos considerar as condições de produção em sentido estrito e temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se a considerarmos em sentido amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio- histórico, ideológico. (ORLANDI, 2009, p.30)

O corpo constituído como objeto do discurso está relacionado à posição discursiva que o próprio analista ocupa, além das condições de produção que interpelam os olhares discursivos que são direcionados aos corpos em que, materializam os discursos e deslocam-se constituindo e contribuindo com a história. Estudar os corpos em uma sociedade feita por e para os corpos, não é uma tarefa simples e com caráter classificatório. Trabalhar com os corpos é colocar o próprio corpo em movimento e em contradição com à história que a ele é relacionada; é olhá-lo de uma maneira particular; assim como no século XX, declarou Courtine (2008), os corpos passaram de um lugar desconhecido para o lugar do conhecido; um espaço de desejos e procura para as angústias dos homens.

Ah, o corpo, meu corpo, que será do corpo?2

No século XX, com a efervescência do pensamento científico e tecnológico e, principalmente, com o advento da Psicanálise, o corpo sofreu deslocamentos no sentido de que era preciso entender essa máquina que nos constituia. Dessa forma, Courtine (2008, p.10) destacou que “jamais o corpo humano conheceu transformações de uma grandeza e de uma profundidade semelhantes às encontradas no decurso do século que acaba de terminar”. Com o “poder” da mídia sobre o cotidiano humano percebeu-se a discursivização sobre o corpo, isto é, o corpo que a mídia vende é o corpo socialmente aceito e tomado como lugar de recompensas, desejos e, consequentemente, pecados. No entanto, a mídia fala de uma posição discursiva ideologicamente constituída. Assim, “(...) O corpo não cessa de ser (re)fabricado ao longo do tempo” principalmente ao considerar-se os discursos veiculados pela mídia (SANT'ANNA, 2005, p.10). Vemos, com isso, a predominância do discurso estético e, consequentemente, sua interpelação no/pelo corpo. Fischler (2005) afirma que “ o corpo

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transgressor não é necessariamente um corpo monstruoso, de formas não-humanas, mas um corpo que parece não se adequar à determinadas leis sociais” e, portanto, os olhares que são interpelados pela história, linguagem e ideologia, constituem esses corpos “inadimplentes”. Ilustremos uma materialidade e sua produção de sentido: o cinema é um campo interessante para observarmos os discursos no/pelo corpo e, consequentemente, o deslocamento dessa materialidade pela história e pela linguagem.

Nas imagens podemos observar, a partir do nosso lugar de analista do discurso, como que os corpos, ali representados, foram deslocados e “constituídos” pelo discurso do socialmente vigente, isto é, um corpo esteticamente vinculado ao imaginário do bem estar e outro do repúdio e do medo, isto é, o corpo monstro.

Figura 1

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Figura 2

Fonte: Trilogia Crepúsculo, captação de imagem www.google.com

Para nós, esses corpos são constituídos e deslocados por discursos que, consequetemente, são interpelados pela memória discursiva, isto é, a figura do corpo do vampiro nas literaturas é associada a um morto-vivo; um ser que perambula pela noite em busca de vítimas que possam lhe dar o sangue de sua subsistência. Na primeira figura, o corpo representado é este corpo associado à figura de um monstro que aterroriza a vítima e, por conseguinte, é desprezado pela sociedade. Já na segunda, embora esse corpo também seja um morto-vivo, o discurso que o interpela é o estético e assim, ele passa a ser “socilamente” aceito; um corpo monstro que é humanizado e se desloca, no/pelo discurso, da posição sujeito monstro para a posição sujeito herói, passível até de ser enamorado por um bela jovem humana. Esta é uma possibilidade de leitura entre variadas interpretações desses corpos historicamente constituídos. “A leitura do corpo como linguagem possibilita e reafirma o deslocamento do corpo biológico, natural, para o corpo simbólico, cujos sentidos se constituem na e pela história em sua origem ideológica”. (HASHIGUTI, 2008)

O corpo como espaço da memória produz efeitos que historicamente posicionam um sujeito em relação ao outro, nesse caso, como exemplo de pesquisa, podemos pensar em o olhar que se lança para o corpo do imigrante japonês. Este é um estudo, no qual temos o corpo visualizado como espaço de injunção dos discursos do sujeito a partir da própria posição

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discursiva em que o sujeito se encontra. Para Hashiguti (2008, p.04), “na linguagem, o corpo é espessura material significante, é o sujeito inscrito no/pelo discurso a partir de seu corpo, corpo que significa para si e para o outro na relação com o olhar” e, assim, tal materialidade ganha representações, estranhamentos, gestos e olhares pelo/no discurso. Ora, se tal materialidade histórica produz sentidos que são interpelados por posições discursivas, podemos dizer, assim como fez Hashiguti (2008), que o corpo é um espaço de contradição.

Ao analisar o corpo do imigrante japonês e como tal materialidade historicamente possui sentidos dentro de diferentes posições discursivas, como o ser brasileiro e/ou ser japonês, Hashiguti (2008) nos aponta que o corpo é um corpo de memória; e mais, uma vez que o corpo do brasileiro imigrante japonês vive em contradição, pois ele é sempre olhado como estrangeiro (a japonesa, o japinha, você não fala japonês?), o deslocamento de posições discursivas se faz necessário para que haja sentidos para esse sujeito.

O corpo em questão é o corpo simbólico e histórico, constituído por e na linguagem, atravessado por diferentes sentidos que dizem respeito à sua inscrição em diferentes discursos e através do olhar. Corpo que é olhado e verbalizado, identificado por nomes, adjetivos, apelidos. É assim, sempre um corpo do e no discurso. Seu funcionamento na linguagem ultrapassa o que de sua materialidade é o estrutural, biológico, para chegar ao imaginário e ao simbólico, todas elas dimensões interconstitutivas. (HASHIGUTI, 2008, p.99)

Cabe lembrar que Foucault (1999) apontou que o corpo, em sua importância social e na manutenção de sistemas políticos, surgiu a partir do poder das instituições e do conhecimento científico exercido sobre os indivíduos. Foucault nos diz que é a partir de um poder sobre o corpo, de técnicas institucionais e de docilização, relacionado ao desenvolvimento de disciplinas tais a Medicina, que foi possível a constituição de um saber fisiológico, orgânico e disciplinar sobre o corpo. Ou seja, aspectos estéticos e de significação dos corpos não podem ser considerados como escolhas pessoais direcionadas por gostos, mas como resultados também de técnicas de poder e controle dos indivíduos em uma formação social. Considerando aí, o efeito da relação dos dizeres dos sujeitos, o corpo se apresenta como uma possibilidade de fonte e objeto de inscrição das relações de poder e da memória. Entendemos que a história dos corpos requer análises diacrônicas e sincrônicas, mas fica aqui impossível de abordar como que o corpo tem sido apresentado, transformado, produzido e resignificado ao longo da história da humanidade, no entanto, uma época nos chama a atenção; uma época em que os corpos pareciam mais expostos como numa haviam sido. Embora o corpo pareça ter sido sempre um objeto para reflexão e análise, há de se

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considerar que dentro da pesquisa científica e de um olhar mais teorizado para ele, a importância de estudá-lo, iniciou-se, principalmente, no século XX.

Em termos de pesquisa teórica, por exemplo, nota-se uma diferença gritante no que diz respeito ao entendimento e aos modos de descrição do corpo, sobretudo a partir do começo do século XX. Mas a história do corpo, como todas as outras, não é seqüencial (...) isto porque, o modo como um corpo é descrito e analisado não está separado do que ele apresenta como possibilidade de ser quando está em ação no mundo. Além disso, torna-se cada vez mais evidente que o próprio exercício de teorizar também é uma experiência corpórea (...). (GREINER, 2008, p. 15-16)

Os estudos sobre o corpo ganharam proporções variadas durante o século XX. Muitas disciplinas o tomaram como material de análise e como objeto de investigação histórica e, conseqüentemente, o corpo passou a ser olhado com mais cuidado por estudiosos, artistas e por todos aqueles que o teorizavam e o transformavam. O corpo foi concebido, então, como uma materialidade de estudo e de atenção, passando por diferentes campos, disciplinas e espaços que o compreendem, o explicam, o representam de várias maneiras e com diferentes objetivos. O corpo é uma materialidade-plural.

(...) o corpo não cessa de ser (re)significado ao longo do tempo. Seria, portanto, empobrecedor analisá-lo, tornando-o como algo já pronto e constituído para, em seguida, privilegiar suas representações ou o imaginário da época onde ele está submerso. Torna-se fundamental localizar, primeiramente, as problematizações que tornavam possível uma série de práticas e de representações corporais. Desse modo, não se trata de realizar uma listagem das maneiras supostamente exóticas de lidar com o corpo em outras épocas, mas sim de tornar questionáveis os gestos e as atitudes que ontem e hoje nos parecem familiares ou não. Pois o corpo é, ele próprio, um processo. Resultado provisório das convergências entre técnica e sociedade, sentimentos e objetos, ele pertence menos à natureza do que à história. O que torna inútil retroceder a um suposto grau zero das civilizações para encontrar um corpo impermeável às marcas da cultura. (SANT’ANNA, D. B., 2005, p.12)

É na sua pluralidade que ele se apresenta como objeto histórico, justamente porque o corpo possui uma realidade historicamente demarcada; socialmente construída, ou seja, ele está, concomitantemente, sofrendo os efeitos do próprio tempo que se passa fora dele, por isso o dialogismo essencial para com os acontecimentos históricos; diríamos mais, pela via da linguagem, é imprescindível notar que não há corpo sem história e que a história passa e se simboliza no próprio corpo, traçando aí, a memória da vida humana.

O corpo biológico assume um papel fundamental a partir do momento em que a inteligência científica se instaura como campo do saber da condição de existência. O que prejudica sua materialidade orgânica é motivo para estudos e busca por soluções que prolongue e realce a saúde deste corpo. Em um longo percalço histórico, a se saber, as pragas,

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doenças e epidemias trouxeram para a humanidade, além de tristeza e dizimação de pessoas, a possibilidade de despir literalmente o corpo humano, corpo este que se transformava materialmente conforme a necessidade de vida do indivíduo.

Foi mais ou menos no fim da Idade Média que se começou, na Europa, a abrir cadáveres humanos para o estudo da anatomia. Isto não se fazia desde o século III a.C, quando dissecações humanas – as únicas que o mundo antigo conheceu – foram feitas em Alexandria. Seguiu-se um período muito longo de uns quinze séculos sem dissecações que uma opinião muito difundida atribui a uma proibição da Igreja católica.3

A tentativa de entender ou mesmo evitar a morte, fez com que os estudos sobre/no corpo dessem ao homem diferentes formas de abordá-lo. Tais abordagens, ou melhor, tais maneiras de se relacionar com o corpo, é, para nós, uma necessidade do homem em querer ter o domínio sobre seu corpo, evitando aí, marcas, dores do tempo, e hoje, deslocando-o para uma espécie de objeto do bem estar estético-social. Vemos aí uma forte relação recíproca entre o corpo e o olhar clínico; entre o corpo e as práticas médicas que o tornam infinitamente explorado e sendo tomado por discursos que trabalham com uma noção fiel e de verdade absoluta.

A experiência clínica se prepara para a exploração de um novo espaço. O espaço do corpo, lugar de ocultação de segredos, lesões invisíveis e o mistério das origens, proclamadas por uma clínica cujas ordens seguem a anatomia patológica, cuja experiência e observação se traduzem no retrato dos sentidos, fazendo com que toda verdade seja uma verdade sensível. (MILANEZ, 2006, p.160)

Assim, na medicina, podemos entender o corpo como espaço de cura e pesquisa que tem como finalidade o bem-estar, a funcionalidade como corpo orgânico e a condição de vida humana. O discurso médico, portanto, é o que permite ao corpo disciplinas e indisciplinas, isto é, proibições médicas que nos fazem pensar qual é o corpo que temos nesse mundo.

Hoje em dia, a medicina colocou claramente a “doença” no quadro de paradigmas científicos. Daí a necessidade de se estudar as mudanças de atitude em relação à doença e à conservação da saúde. E também a necessidade de examinar o medo da doença, as estratégias destinadas a enfrentar a dor e os remédios e as tentativas de elucidar os significados da

3 MANDRESSI, apud Vigarello, p. 411.In: História do Corpo: As mutações do olhar. Petrópolis-RJ, Vozes: 2008.

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doença. Um dos papéis desencadeados pela medicina, ao longo dos séculos, possibilitou que o corpo do homem, estes que fazem a história, passasse de singular à condição social, isto é, a inferência científica do homem sobre o corpo, fez dele um campo para se pensar o que é visto como aceitação do belo e revogação do diferente. Assim, os padrões de beleza variam no processo histórico, e o corpo vai sendo determinado nesse processo, a partir das condições de produção. A estética corporal tem ganhado, ao longo dos anos, espaço cada vez maior, com preocupações, delimitações e estudos que são reforçados pela necessidade de se entender os efeitos que ela provoca na sociedade. Assim, “o sujeito de hoje mantém o desejo de construção de seu corpo. Um corpo que enfrenta empreitadas imaginárias ou reais, buscando refazê-lo seja para mudar sua identidade seja para encontrá-la”. (MILANEZ, 2006, p.51)

O corpo é o meio pelo qual o ser humano pode problematizar o que ele é e o que o movimenta no mundo em que vive. Essas práticas, acima de tudo, corporais é o que poderia se chamar de “artes de existência”, ou seja, práticas reflexivas e voluntárias por meio das quais os homens tanto se fixam regras de condutas quanto buscam transformar-se a si mesmos, modificando – se no que eles têm de mais singular ao seguir uma obra no qual se inserem determinados valores estéticos que respondem a certos critérios de estilo (ibidem, 188-189)

Outro ponto relevante para a discussão teórica sobre o corpo a partir da análise discursiva é considerar que, segundo Hashiguti (2008, p.71), “não se é sujeito sem ser um corpo que se localiza num espaço e numa história de identificações, estabilizações e deslizes de sentido”. A mesma autora também considera que o corpo sobredetermina o dizer, isto é, sobredetermina os sentidos já que ele é um espaço e efeito da linguagem, e isto possibilita que o sujeito e o corpo sejam atravessados por diferentes discursos.

Considerações finais

Portanto, pensamos o corpo, suas especificidades, suas inscrições em diferentes discursos e instituições, a partir das diferentes condições de produção e, ainda, é pela Análise de Discurso que vemos o corpo como nunca o vimos, ou seja, é com uma análise discursiva que podemos deslocar e resignificar os corpos, assim como, sua história e suas memórias.

Olhar para o corpo funcionando como linguagem é um gesto de interpretação do analista. O corpo é um espaço de memória discursiva, pois, ao ser interpelado pelo gesto do analista, ele se resignifica (já-dito) e se constitui (dito) no e pelo discurso, deslocando e construindo sentidos que incluem o contexto histórico, social e ideológico. Portanto, os

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olhares discursivos sobre o corpo o constituíram, nos diferentes discursos, em um objeto do discursivo.

Referências bibliográficas

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FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.

GILES, J. O corpo, a Igreja e o sagrado. In: História do corpo: Da Renascença às Luzes. Vol.I. Petrópolis – RJ: Vozes, 2008, p. 19-130.

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HASHIGUTI, S. T. Corpo de memória. Tese de doutorado. Universidade Estadual de Campinas: Campinas-SP, 2008.

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MUSSALIN, F. Análise do discurso: da objetividade científica ao terreno fluído da interpretação. In: FERNANDES, C.A., & SANTOS, J.B.C.dos (orgs). Análise do Discurso: unidade e dispersão. Uberlândia: Entremeios, 2004, p. 71-94.

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Referências

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