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Escolas de samba, indústria cultural e gnosiologia diaspórica africana 1

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Escolas de samba, indústria cultural e gnosiologia diaspórica

africana

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Tiago Haymussi Sales (PPGRI – UERJ)

Resumo: Este trabalho tem como objetivo discutir de que maneira as escolas de samba do Rio de Janeiro se constituíram ao longo do tempo como espaços de disputa situados entre a modernidade e o pensamento fronteiriço. A modernidade está expressa na manutenção do colonialismo interno e na maneira pela qual as escolas, a partir da década de 1960, passam a se organizar como indústria cultural levando a um crescente processo de mercantilização. Já o pensamento fronteiriço, por sua vez, apresenta-se como práticas e saberes subalternizados fundamentados nas gnosiologias afrodiaspóricas ainda hoje presentes nas agremiações. Para tanto, recorre-se tanto às críticas do Sul Global em Relações Internacionais quanto ao pensamento decolonial proposto por autores do Grupo Modernidade/Colonialidade.

Introdução

A partir dos anos 1990, a disciplina de Relações Internacionais passou por um período de abertura que permitiu à área olhar para novos processos a partir de novas abordagens. Estas novas perspectivas, em sua maioria, denunciavam a predomínio das abordagens ocidentais na disciplina, centradas no Estado e nas questões da violência e cooperação no campo internacional. A crítica de que os debates em Relações Internacionais seriam feitos pelo e para o Ocidente (TICKNER, 2003; ACHARYA, 2016) aponta para diferentes maneiras pelas quais são criados silêncios na disciplina, restringindo seu escopo e dificultando um diálogo com outras áreas do conhecimento. É nesse sentido que novas abordagens teóricas apontam para a existência de outros agentes e processos possíveis de serem estudados no campo das Relações Internacionais.

Entre as teorias que desafiam o predomínio ocidental das Relações Internacionais e procuram apontar outras questões sobre como o local e o global dialogam está o pensamento decolonial. Esta perspectiva parte do diagnóstico de que o fim do colonialismo não significou

1 44º Encontro Nacional da ANPOCS. GT 27 – Músicas e Processos Sociais: reflexões sobre métodos, conceitos

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um encerramento das relações de colonialidade nas esferas política e econômica (BALLESTRIN, 2013). Haveria, ainda hoje, a reprodução de formas de controle e hierarquização a partir da noção de modernidade, cujo efeito não reconhecido seria o epistemicídio e na criação de indivíduos, instituições, práticas e saberes subalternizados. Sem incorrer em um argumento essencialista, Walter Mignolo aponta que este projeto colonial não ocorre sem que haja resistências havendo, portanto, espaço para “pensamentos fronteiriços” situados na margem do sistema mundial colonial/moderno. Segundo o autor, “o pensamento fronteiriço, desde a perspectiva da subalternidade colonial, é um pensamento que não pode ignorar o pensamento da modernidade, mas não pode tampouco subjugar-se a ele” (MIGNOLO, 2003, p. 52).

É nesse sentido que se coloca a proposta deste trabalho: podem as escolas de samba serem entendidas como fenômenos onde estão presentes pensamentos fronteiriços, localizados entre a modernidade e saberes subalternos? O argumento sustentado aponta que sim. As escolas de samba são espaços de disputa situados na margem deste sistema mundial colonial/moderno: enquanto a modernidade se expressaria a partir do colonialismo interno e de sua transformação em indústria cultural, haveria também a permanência de práticas e pensamentos referentes às gnosiologias e cosmovisões das populações afro diaspóricas.

Pensamento Decolonial em Relações Internacionais

O referencial teórico parte principalmente das discussões e conceituações elaboradas pelo Grupo Modernidade/Colonialidade (GMC). Este grupo surgiu no final dos anos 1990 como desdobramento do pensamento pós-colonial na América Latina. Esse desdobramento tinha por objetivo alterar o locus de enunciação das teorias pós-colonais das heranças do império britânico, buscando construir uma categorização crítica do ocidentalismo que radicalizasse o argumento pós-colonial e que tivesse como locus de enunciação a própria América Latina. A seguir são apresentados alguns conceitos chave desenvolvidos por intelectuais ligados ao grupo. O primeiro deles é o conceito de colonialidade do poder. Proposto inicialmente por Quijano (2000) e posteriormente desenvolvido por outros teóricos decoloniais, o conceito de colonialidade do poder denuncia “a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo capitalista/moderno” (GROSFOGUEL, 2008, p. 126). Mignolo (2010) estende o conceito para outros âmbitos, propondo que a colonialidade se reinventa, abarcando não apenas o controle sobre a economia, mas também sobre os corpos, saberes e práticas subalternizados.

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Se expressa, portanto, como forma de controle da economia, da autoridade, da natureza e dos recursos naturais, do gênero e da sexualidade e da subjetividade e do conhecimento.

Outro conceito relevante é o de saberes subalternos. O projeto global de expansão do sistema mundial colonial/moderno teria traçado critérios únicos que hierarquizam os povos colonizados e estabelecem para si o papel de civilizadores enquanto reserva àqueles um papel de passividade. Com o intento de reconhecer que os povos colonizados possuem conhecimentos advindos de outras epistemologias e que fogem dessa proposta universal, Mignolo opta pelo termo gnosiologia como forma de se distanciar da noção etnocentrada de epistemologia. Deste ponto surge a crítica contra a primazia imposta pelo Ocidente da linguagem escrita sobre as demais formas de expressão. Como movimento de “desobediência epistêmica”, Mignolo (2010) propõe não apenas a escrita, mas também a oralidade, a memória e a corporeidade como formas de manutenção de saberes silenciadas pela colonialidade.

A partir do conceito de saberes subalternos, desdobra-se outro: pensamento liminar. O pensamento liminar seria aquele localizado na fronteira externa do sistema mundial colonial/moderno, e partir do qual seria possível vislumbrar alternativas a esse projeto global. No caso latino-americano, esse pensamento liminar estaria localizado nas populações ameríndias dos Andes e da América Central, e nas populações afro-americanas do Caribe e do Brasil. Nessa fronteira, haveria o estabelecimento de uma tensão entre o projeto global que avança e as cosmologias locais que resistem. Assim, Mignolo também entende que a localidade importa para a produção intelectual e para o estabelecimento de visões de mundo: somente a partir do pensamento localizado na margem do sistema mundial colonial/moderno é que seria possível estabelecer alternativas a esse projeto.

Nesse sentido, a opção decolonial mostra-se como um posicionamento político não apenas realocando o locus de enunciação da Europa para a América Latina, mas também redirecionando o olhar também para outras gnosiologias, mostrando como os corpos e práticas subalternizadas são constitutivos de uma práxis de resistência e reexistência à expansão do sistema mundial colonial/moderno.

Ao fazer esse movimento de alteração do locus de enunciação não apenas para a América Latina, mas para os subalternizados pelos processos de modernização, Mignolo identifica alguns grupos onde estão presentes o pensamento e o fazer decoloniais:

Na América do Sul, na América Central e no Caribe, o pensamento descolonial vive nas mentes e nos corpos de indígenas bem como nas de afro-descendência (...). As opções descoloniais e o pensamento descolonial têm uma genealogia de pensamento que não fundamentada no grego e no latim, mas no quéchua e no aymara, nos nahualts e tojolabal, nas línguas dos povos africanos escravizados que foram agrupadas na

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língua imperial da região, e que reemergiram no pensamento e no fazer descolonial verdadeiro: candomblés, santeria, vudú, rastafarianismo, capoeira etc (MIGNOLO, 2008, p. 291-292)

A partir desta afirmação de Mignolo coloca-se o objeto de estudo: as escolas de samba como espaços de disputa entre a permanência de saberes e fazeres decoloniais e pressões vindas da modernidade. Estes saberes e fazeres decoloniais presentes nas escolas de samba dialogam com as gnosiologias da diáspora africana no Brasil e apresentam-se como uma reorganização de práticas e sociabilidades fundamentadas nos povos negros escravizados. A seguir, apresenta-se de maneira breve a trajetória das escolas de samba, desde apresenta-seu surgimento na década de 1920 até os dias atuais.

Breve histórico das escolas de samba

As escolas de samba surgem na década de 1920 a partir da reunião de uma série de tradições festivas e religiosas presentes no Rio de Janeiro. O momento histórico pelo qual passava a cidade do Rio de Janeiro é importante para a compreensão do nascimento das escolas. Poucas décadas antes, a abolição da escravidão levou à migração de ex escravos do Vale do Paraíba e do Nordeste para a então capital federal. Parte considerável desta população se estabeleceu de forma desordenada onde hoje são os bairros de Santo Cristo e Gamboa, trazendo consigo práticas, saberes e formas de sociabilidade oriundas da diáspora africana. A crescente presença negra nesta região, o fato de as línguas ali faladas serem de origem Iorubá e Bantu, a religiosidade baseada no culto aos orixás, de o senso de comunidade se basear em valores trazidos ao Brasil pelos negros escravizados, são todos elementos que levaram o historiador Roberto Moura a denominar a região de “Pequena África”. Nas palavras de Moura:

lá (na Pequena África) começavam a ser elaboradas novas possibilidades para esse grupo excluído das grandes decisões e das propostas modernizadoras da cidade (...). Da Pequena África no Rio de Janeiro surgiriam alternativas concretas de vizinhança, de vida religiosa, de arte, trabalho, solidariedade e consciência, onde predominaria a cultura do negro vindo da experiência da escravatura. (MOURA, 1995, p. 152-153)

Cabem alguns comentários a respeito deste trecho. Além de ser revelador da existência de outras formas de organização social, de manutenção de práticas e saberes, este trecho expõe como a existência da Pequena África era vista como um atraso pelo poder público. É desse entendimento que surge, por exemplo, o projeto de modernização da cidade realizado por Pereira Passos, cujo objetivo era a transformação da capital federal em uma Paris tropical. A

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realização das reformas urbanas no Rio de Janeiro do começo do século XX realocou essas populações em outros bairros periféricos como a Praça Onze e o Estácio, o que não desmobilizou o poder público de sua percepção de civilizador daquilo tomado como bárbaro e atrasado e, por isso, passível de ser disciplinado.

Manteve-se, por exemplo, um aparato jurídico que constrangia as populações negras da cidade quanto às suas práticas: a Lei de Vadiagem de 1890 foi amplamente utilizada para coibir as manifestações culturais destas populações, condenando todo aquele que “prover a subsistência por meio de ocupação proibida por lei e manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes” (SOARES, 1994). De modo similar, os terreiros foram sistematicamente perseguidos, alvos de apreensões policiais e proibição de seus ritos sob a justificativa de prática de curandeirismo, desconsiderando a importância destes espaços na sociabilidade das populações subalternizadas. Mesmo o uso de instrumentos de percussão era proibido pelo Estado, pois eram vistos como potenciais armas pelas autoridades públicas (SODRÉ, 2002). Pablo Casanova (2002) identifica esse período como de “colonialismo interno”, apontando para a continuidade das políticas coloniais reproduzidas pelos Estados e elites latino-americanas sobre as populações descendentes de indígenas e de negros escravizados. Sintomático que até hoje o maior acervo brasileiro de cultura afro diaspórica ainda seja o da Polícia Civil do Rio de Janeiro.

É neste cenário de silenciamento das práticas e de subalternização dos saberes e corpos não-europeus que as escolas de samba surgem, absorvendo uma série de influência de outras manifestações culturais presentes na cidade do Rio de Janeiro: das congadas e maracatus, foi pega ideia de um cortejo cantado, dançado e tocado (GALVÃO, 2009); dos corsos e grandes sociedades, a influência europeia e o uso de alegorias; dos ranchos, o uso de fantasias e a divisão do cortejo em setores (FERNANDES, 2001); do candomblé, as batidas de percussão e os instrumentos das baterias (MUKUNA, 2000). A partir desse novo formato, as populações historicamente subalternizadas e violentadas conseguiram intermediação com o poder público e com a classe média urbana, podendo se expressar culturalmente sem sofrer perseguição.

O primeiro desfile oficial das escolas foi realizado em 1935. Entre as décadas de 1930 e 1960, as escolas de samba foram instrumentalizadas pelo poder público para a construção de uma nova identidade nacional, para a valorização de uma ideologia do trabalho e para reforçar o mito das três raças como fundador de uma brasilidade (MUNANGA, 1999; ORTIZ, 2006). A identidade nacional, aqui, não mais estaria num projeto eurocentrado, mas buscaria a valorização da miscigenação nacional a partir do convívio pacífico entre brancos, negros e indígenas. Nesse sentido, as escolas se apresentavam exaltando heróis nacionais, narrando

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passagens históricas e cantando temas ufanistas. Ao contrário de isso significar uma cooptação das escolas pelo poder público, foi mais uma estratégia dos próprios dirigentes das escolas com vistas a se confirmarem como instituições e aumentarem sua projeção (LOPES; SIMAS, 2017). Ao mesmo tempo em que há exaltação à história oficial, há a presença de elementos até então tidos como expressões da barbárie e do atraso.

A partir da década de 1960, inicia-se um processo gradual de transição das escolas de samba de uma estrutura amadora para uma organização como indústria cultural. Há, nesse sentido, um crescente processo de mercantilização das manifestações culturais cujos resultados são a estruturação da produção e distribuição de bens culturais de uma forma industrial e a imposição de uma lógica do capital sobre a cultura que a colocaria como um elemento de sustentação de uma ordem social capitalista (DUARTE, 2010).

É nesse sentido que se pode observar, por exemplo: um incipiente processo de profissionalização nas escolas de samba; a conformação da musicalidade das escolas à indústria fonográfica; a maior presença da classe média nas escolas não apenas como espectadores, mas também como produtores dos desfiles a partir da figura do carnavalesco; a cobrança de ingressos para assistir aos desfiles; um processo de concentração de capital expresso na união entre diferentes escolas, entre outros (FERREIRA, 2012).

Contraditoriamente, é também neste período que as escolas perdem espaço como símbolos nacionais e passam a tratar de temas negros, fazendo uso de histórias de personagens subalternos, de vocábulos originários do continente africano e narrando passagens da cosmogonia africana. Este é o momento em que se observa uma dualidade das escolas de samba passando por uma modernização a partir da indústria cultural e, ao mesmo tempo, preservando sociabilidades, práticas e saberes fundados na diáspora africana.

Na década de 1970, acelera-se a estruturação das escolas como indústrias culturais. No processo de criação, é firmada a figura do carnavalesco e dos compositores de samba-enredo (ambos amparados por direitos de propriedade intelectual); a produção passa a ser centralizada em um só espaço, com um corpo de profissionais responsável pela parte plástica do desfile. A distribuição é feita por meio da indústria musical, no caso da produção de discos com os sambas-enredos, e da indústria radiofônica. O consumo, por sua vez, ou é feito mediante a compra de ingresso para assistir aos desfiles, ou pela transmissão televisiva, o que coloca as escolas no circuito internacional de bens culturais. Todos estes elementos resultaram em um aumento dos custos de produção deste bem cultural que não eram cobertos pelos ganhos com vendagem de ingressos e concessão de direitos de transmissão. Importante destacar que este

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processo corresponde a um movimento mais amplo, situado no campo nacional, de entrada do Brasil em um mercado organizado de bens culturais. Sobre isso, Ortiz afirma que

a consolidação de um mercado interno de bens culturais nas décadas de 1960 e 1970, processo que integra a organização capitalista da cultura no país em sua etapa contemporânea, influenciou as transformações pelas quais passou o desfile a partir de então. Uma série de mudanças associadas à mediatização da festa, à crescente participação da classe média (inclusive na sua confecção) e a sua intensa comercialização foi desencadeada, determinando um novo modo de produção, circulação e consumo do desfile das escolas de samba enquanto bem cultural (ORTIZ, 1988, p. 112).

Este processo resulta em mudanças na década de 1980. Em primeiro lugar, as escolas de samba se organizam como forma de aumentar seu poder de barganha em relação à indústria televisiva e fonográfica. É nesse sentido que foi criada a Liga das Escolas de Samba (Liesa) com o objetivo de institucionalizar uma mediação entre os interesses das escolas, os interesses da indústria cultural e da mídia, e os interesses do poder público. Outra mudança foi a autorização para que a Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro (Riotur) organize os desfiles, o que destaca seu papel como empreendimento comercial, renegando seu caráter cultural a segundo plano. Ainda se pode colocar a construção do sambódromo como um marco da transformação dos desfiles em mercadorias culturais e a influência que este aparelho urbano teve (e ainda tem) na valorização dos aspectos visuais das escolas sobre outros aspectos a partir das transmissões televisivas (RODRIGUES, 1984).

Ao longo dos anos 1990 e 2000, havia a percepção de que a indústria cultural tinha se imposto sobre as escolas de samba de maneira inexorável, reduzindo-as a um produto comercial. Parte desta percepção se deve à uniformização da musicalidade das escolas cada vez mais adequadas às necessidades da indústria fonográfica e feita por profissionais sem relação com as agremiações; à busca por patrocínios que viabilizassem os desfiles, mas cujo efeito era sua descaracterização como um meio de exposição de marcas; o afastamento das escolas em relação ao seu entorno social; a adequação dos desfiles às imposições de transmissão televisiva, entre outros (GALVÃO, 2009).

A partir da década de 2010, no entanto, é possível observar uma reversão desta tendência. As dificuldades de obtenção de patrocínio, a redução da subvenção por parte da prefeitura do Rio de Janeiro e a diminuição das cotas de transmissão levaram muitas escolas a repensarem seu papel e a promoverem um resgate de suas características fundadoras. Soma-se a isso, o esforço promovido nos últimos anos por pesquisadores em compreender as escolas de

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samba como manifestações culturais para além do capital, valorizando-as como espaços de saberes e práticas oriundos da diáspora africana no Brasil.

Escolas de samba e elementos da diáspora africana no Brasil

Ainda que haja essa tendência à espetacularização das escolas de samba, é possível observar elementos presentes ainda hoje que remetem às práticas, saberes e sociabilidades afro diaspóricas. Um primeiro elemento se refere ao formato próprio de apresentação das escolas. Os desfiles se organizam a partir de um cortejo, que remete a festividades religiosas centro-africanas presentes no Brasil desde o século XVIII como as congadas (CASCUDO,2012). Já colocado na apresentação, mas aqui retomado, o fato de os desfiles serem baseados em um enredo organizado por setores são absorvidas dos ranchos característicos da Pequena África.

As baterias das escolas de samba são outro exemplo. Os primeiros ritmistas das agremiações eram oriundos dos Candomblés e exerciam a função de Ogans (no caso das etnias Bantu) ou Alagbês (nos casos das etnias de tradições Iorubá), responsáveis pela sustentação dos toques de tambor nas cerimônias e ritos religiosos. Ainda hoje, algumas baterias de escolas mantém a tradição de executarem ao longo do desfile os toques dos orixás que as apadrinharam como uma forma de manutenção da tradição e preservação de suas cosmogonias. Esse é o caso da Portela e da Mocidade, que tocam o agueré de Oxóssi, do Salgueiro que toca o aluxá de Xangô e da Mangueira que toca ilú ou daró de Iansã (MONSON, 2003).

Não apenas as formas de toques, mas os próprios instrumentos utilizados nas baterias foram absorvidos dos candomblés. Os surdos, por exemplo, têm suas origens nos tambores dos rituais de Candomblé, com dois mais grave, chamados rum e rumpi, fazendo a marcação do tempo e um mais agudo, lê, fazendo improvisos. Da mesma forma, o agogô (que pode ser de duas ou quatro bocas) é oriundo das práticas religiosas iorubanas e chegou ao Brasil pelos escravizados das regiões de Daomé (atual Benim) e Oió (atual Nigéria). A cuíca é outro instrumento utilizado pelas baterias das escolas de samba cuja introdução no Brasil se deu com a chegada de escravos bantu, vindos sobretudo do complexo Congo-Angola (MUKUNA, 2000).

As baianas das escolas de samba, por sua vez, trazem a representação das antigas mães de santo que abrigavam em seus terreiros as primeiras rodas de samba nas primeiras décadas do século XX, quando o ritmo ainda era criminalizado. Segmento obrigatória para todas as escolas, é composta exclusivamente por mulheres que se vestem com a roupagem tradicional: saia rodada, bata, torso e pano-da-costa, itens representativos das Yamis, responsáveis nos

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terreiros por resguardar a tradição cerimonial. A referência às práticas afrodiaspóricas também está presente nos corpos das baianas, cuja dança remete às tradições religiosas dos negros escravizados, sendo característico o giro em sentido anti-horário, tal qual nos rituais religiosos (SODRÉ, 1998).

Outro setor e que é herdeira das tradições das cosmogonias afro-brasileiras é a Velha Guarda. Geralmente composta pelos membros mais velhos da escola, ela é responsável pela manutenção das tradições das agremiações, suas histórias e fundamentos, tendo a missão de transmitir às gerações mais novas os saberes guardados pela tradição oral (BRAZ, 2013). A presença da Velha Guarda remonta à figura dos Griôs, que nas nações da África Ocidental eram responsáveis pela transmissão oral dos saberes e históricas locais que mantinham a identidade das comunidades através das gerações.

Por fim, os próprios enredos das escolas muitas vezes retratam os Itans, histórias e fábulas ligadas à diáspora que transmitem ensinamentos a seus seguidores e ajudam na manutenção da gnosiologia e da cosmogonia no Brasil, podendo por vezes fazer uso das próprias línguas africanas como iorubá ou bantu nas composições de seus sambas-enredo. Como exemplos temos: Nos tempos da mãe do ouro (Mangueira, 1976), Oxumaré, a lenda o arco-íris (Imperatriz, 1979), A dança da lua (Estácio de Sá, 1993), o sonho de Ilê Ifé (Unidos da Tijuca, 1984), Tatá Londirá, o canto do caboclo no quilombo de Caxias (Grande Rio, 2020), Nzara Ndembu, o senhor do tempo (União da Ilha, 2017), Ilu Ayê (Portela, 1972), Kizomba, a festa da raça (Vila Isabel, 1988), Do Yorubá à luz, a aurora dos deuses (Salgueiro, 1978), Ganga Zumbi, a expressão de uma raça (Unidos da Tijuca, 1996), Mãe Menininha do Gantois (Mocidade, 1976), A criação do mundo na tradição nagô (Beija-Flor, 1978) e Tereza de Benguela, uma rainha africana no Pantanal (Viradouro, 1994) (FABATO; SIMAS, 2015).

Conclusão

A partir das discussões realizadas ao longo do texto, é possível observar que as escolas de samba do Rio de Janeiro podem ser lidas como fenômenos fronteiriços, situados entre uma modernidade dada pela sua estruturação como indústria cultural e a permanência de práticas e saberes subalternos. O pensamento decolonial, ao propor reflexões a partir desta margem, permite que haja um olhar qualificado sobre como o processo de epistemicídio e colonialismo interno tentaram em diferentes momentos civilizar as manifestações culturais negras no Brasil.

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No entanto, estratégias também foram traçadas para que se perpetuassem as gnosiologias afrodiaspóricas.

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