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A questão dos medicamentos de alto custo fornecidos pelo SUS: uma difícil decisão

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Academic year: 2021

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A QUESTÃO DOS MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO FORNECIDOS PELO SUS: UMA DIFÍCIL DECISÃO

THE ISSUE OF HIGH COST MEDICINE SUPPLIED BY THE BRAZILIAN PUBLIC HEALTH SYSTEM: A TOUGH DECISION

Clarice Castello Costa

RESUMO

O presente artigo busca expor a abrangência da discussão sobre a dispensação de medicamentos de alto custo no âmbito do SUS. Avaliam-se posicionamentos antagônicos, contrapondo o princípio da reserva do possível dentro do orçamento público destinado à saúde ao mínimo existencial. Busca-se uma melhor compreensão sobre o que é a saúde como preconizada pela Constituição, ponderando sobre o papel do judiciário na persecução desse direito em meio a um cenário de excessiva judicialização. Critica-se a justiça distributiva (dispensação de fármacos) sendo aplicada através da jurisdição.

PALAVRAS-CHAVE: medicamentos de alto custo; judicialização da saúde; justiça distributiva.

ABSTRACT

The current article aims to present the comprehensiveness of the discussion that involves the high cost medicine distribution within the public health system of Brazil. Antagonistic statements are evaluated, in one side we have the principal of preservation of contingences based on the public budget that is destined for public health care and in the other we have the minimum existential theory. A better comprehension about what is health as written in the Constitution is sought, by considering the role of judicial power among a scenario of excessive litigation. We criticize the distributive justice being operated within the juridical logic. KEYWORDS: high cost medicine; judicialization of health; distributive justice.

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1 INTRODUÇÃO

Ser bom é fácil. O difícil é ser justo. Victor Hugo

O presente artigo aborda a questão da dispensação de medicamentos de alto custo gratuitamente pela Administração Pública. A ênfase concentra-se na disponibilização dos medicamentos alcançada através de decisões judiciais, tendo em vista a enorme discussão que isso suscita, envolvendo diversos mecanismos democráticos, como a separação dos Poderes, a reserva parlamentar em matéria orçamentária, a necessidade de preservação do núcleo de direitos essenciais à vida humana digna e a teoria da reserva do possível, que não deixa de ser uma questão de viabilidade orçamentária frente à concretização de políticas públicas.

Ao apresentar o tema, faz-se uma consideração sobre o direito à saúde, a sobre a maneira como ele é apresentado na Constituição de 1988, como ele é resguardado internacionalmente, em diplomas que garantem os direitos humanos e como isso se consolidou de maneira recente no século XX.

Em seguida aborda-se a persecução do direito à saúde através do ordenamento brasileiro, tendo em vista que o mesmo tem um caráter público subjetivo e que a Constituição da República é expressa em apregoar que preferencialmente ele será realizado por políticas públicas e se pauta em um acesso igualitário.

Faz-se também a consideração acerca da tendência crescente que se observa em relação às demandas judiciais por medicamentos perante o Poder Judiciário, como isso pode desequilibrar o sistema público de saúde, atingindo, em última análise a isonomia que é tida como preceito básico do direito à saúde no Brasil. Isso esbarra na realidade de finidade de recursos destinados ao SUS e no perigo da repercussão coletiva que tem cada escolha individual.

Discute-se também brevemente a suposta substituição dos demais poderes pelo Poder Judiciário quando ele vincula a Administração Pública em determinadas decisões, impelindo-a a realizar determinada prestação. Rebatendo esse argumento, apresenta-se a teoria de que em determinadas situações o Poder Executivo omite-se conscientemente na elaboração de políticas públicas (em uma escolha política), restando ao Judiciário o papel de fornecer efetividade às

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normas constitucionais de caráter prestativo, em grande parte em decorrência da necessidade de solucionar o caso concreto (princípio da inafastabilidade jurisdicional).

Conferindo ao artigo um tom mais explicativo e pragmático, buscou-se, no tópico sobre a proveniência das verbas destinadas à saúde, demonstrar, ainda que de maneira incipiente, que existe um planejamento antecipado dos gastos que o Estado terá com a efetivação de políticas públicas (orçamento público), de competência do Poder Legislativo. Relaciona-se ao orçamento público, limitado por sua natureza, à teoria de origem alemã da reserva do possível, fazendo um contraste da mesma com a necessidade da efetivação do mínimo existencial, que constitui uma camada de proteção imprescindível do ser humano quando se busca assegurar-lhe uma vida digna.

Em um viés crítico indaga-se acerca da legitimidade da administração pública para negar medicamentos pautando-se na justificativa de insuficiência de recursos quando gastos exorbitantes são feitos com desperdícios e campanhas publicitárias desnecessárias.

Pareceu-nos importante discorrer brevemente acerca da introdução de medicamentos às listas oficiais do sistema público de saúde, tendo em vista que antes de ingressar com uma demanda judicial o interessado apresenta, via de regra, uma solicitação administrativa (sob pena de o processo ser encerrado precocemente em decorrência da falta de interesse processual e de necessidade do pedido). Chega-se à conclusão de que o processo de inserção de uma droga nova nas listas de dispensação do governo é complexo, pois envolve tecnologia, proteção da saúde pública e ponderação sobre custo/benefício do fármaco. E assim deve ser para utilizar a verba pública com parcimônia, bem como para preservar a saúde pública.

Em seguida, discute-se o projeto ligado ao direito à saúde, previsto no Programa “Agenda Brasil”, de autoria do Senado, que pretende proibir liminares judiciais que determinam o tratamento com procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS. Para isso, discute-se a diferença entre justiça retributiva e distributiva, tendo em vista que o Judiciário não é o melhor campo para tratar de questões de justiça distributiva. Mas registra-se, em contrapartida, a imprescindibilidade desse Poder, tendo em vista a deficiência do Executivo em atender prontamente às necessidades de prestação de saúde com políticas públicas eficientes.

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1. PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES: DO DIREITO À SAÚDE

A manutenção da vida é uma preocupação de toda civilização humana, desde os primórdios.

No Brasil, o direito à saúde é constitucionalmente assegurado pela Carta Magna brasileira de 1988, e podemos dizer que a concretização dele é um enorme desafio para a sociedade contemporânea. Sua prestação exige um grande dispêndio para a Administração Pública, uma vez que o Estado democrático brasileiro escolheu uma assistência integral, universal e gratuita para toda a população do país. Podemos dizer que esse modelo está em oposição ao tratamento do acesso à saúde como preconizado na Constituição anterior, de 1946, que trazia como condição sine qua non para que uma pessoa fosse atendida pela rede pública de saúde que a mesma contribuísse para a previdência1. Nesse novo panorama, o Estado trouxe para si o dever, realizado através de políticas sociais e econômicas, de serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde dos brasileiros.

A consagração do Direito à saúde se deu no século XX, mas surgiu antes disso, gradualmente, com a passagem do Estado puramente liberal para um Estado social, com direitos que se norteiam no princípio da igualdade e exigem, para a sua consecução, uma postura ativa do Estado. Na Constituição de 1988, tais direitos estão descritos como “sociais, econômicos e culturais”, e são precipuamente coletivos, não obstante seu núcleo relativo à dignidade da pessoa humana. Partindo para um panorama global, vejamos como esse direito foi estabelecido em tratados internacionais.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, proclamou em seu art. 25:

Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

1 TRAVASSOS GAMA, Den., Por uma Releitura Principiológica do Direito à Saúde: da Relação entre Direito

individual a Medicamentos nas Decisões Judiciais e as Políticas Públicas de Saúde. 2007. 148 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito da Universidade de Brasília , Brasília. 2007.

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No mesmo sentido seguiu o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, firmado em 1966 na Assembleia Geral das Nações Unidas:

ARTIGO 12

1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental.

2. As medidas que os estados-partes no presente Pacto deverão adotar, com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito, incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar:

(...)

c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças.

d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.

Para além de ambos os diplomas internacionais, citaremos também, a título de curiosidade, a Carta Europeia de Direitos Sociais e o Pacto de San Salvador, que igualmente contribuíram para dar visibilidade a esse direito humano, e influenciaram diversos países a resguardá-lo formalmente em seus ordenamentos jurídicos.

Consequentemente, o direito à saúde passou a integrar as normas constitucionais relacionadas a direitos sociais em diversos países, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, com o surgimento do Estado de Bem-Estar Social.

Concomitantemente à atenção especial e proteção que foi dada a esse direito, esse século foi marcado por um enorme avanço no conhecimento médico científico. Isso, entretanto, não gerou necessariamente uma redução no custo de tratamentos médicos, que se tornaram mais sofisticados, portanto, em alguns casos, ainda mais custosos. O dispêndio com saúde aumentou em todo o mundo. A tecnologia que se incorporou na pesquisa, na prevenção de doenças, nas técnicas diagnósticas laboratoriais e de imagens, enfim, em toda a medicina ocasionou um aumento galopante de custo. No caso específico dos medicamentos, as leis de propriedade imaterial (patente) contribuem para a elevação de seus custos2. Saliente-se também um fator

2 Disponível em

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Medicamentos_de_Alto_Custo__Que m_paga_a_conta_.pdf Acesso em 10 de março de 2016.

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biológico que acaba por aumentar os gastos públicos com remédios: a mudança na formatação da pirâmide etária, com uma população cada vez mais longeva.

O Direito à saúde não pode ser entendido como direito a ser saudável, mas sim um direito de proteção à saúde, que envolve diversos fatores, tais como, direito de defesa, que consiste em não sofrer violações por parte de terceiros e o direito social de obter ações e serviços voltados à prevenção de doenças e à promoção, proteção e recuperação da saúde (prestação em sentido estrito). Esse segundo direito está ligado à prestação de saúde através de serviços públicos3.

Saliente-se que o direito à saúde, no ordenamento pátrio, está regulado tanto de maneira Constitucional quanto na legislação infraconstitucional, o que o torna um direito fundamental originário e um direito fundamental derivado. Por ser direito fundamental originário, ou seja, com previsão expressa na Constituição vigente, ele está apto a gerar efeitos imediatamente, independente de complementação legislativa.

2. DA PERSECUÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

Importa ressaltar, no ordenamento pátrio, onde se encontram positivados esses direitos. Primeiramente, recorramos à Constituição. Lá observaremos o direito à saúde sendo tratado extensivamente pelos artigos 196 a 200.

Uma análise inescapável deve ser feita ao artigo 196 da Constituição Federal de 1988, por isso a necessidade de colacioná-lo.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas públicas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Em nosso ordenamento, como se observa, a atenção à saúde deve ser buscada mediante políticas públicas sociais e econômicas, e a realização dessas deve apresentar um acesso

3 MÂNICA, Fernando Borges. "Saúde: um direito fundamental social individual." Revista Brasileira de Direito

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igualitário. O assunto está tratado na Carta Magna de uma maneira indubitavelmente social e coletiva, embora na prática forense isso não ocorra dessa forma. Na mesma esteira, Ricardo Perlingeiro4 explica que no Brasil a saúde é considerada um direito público subjetivo com fundamento expresso nesse artigo.

Nos primeiros anos de vigência da atual Constituição, as demandas por medicamentos eram em regra provenientes de doentes portadores do vírus da AIDS, e eram, em sua maioria, denegadas sob o argumento de o direito a saúde ser um direito respaldado em normas programáticas, desprovidas, portanto, de eficácia plena. Todavia, tal quadro modificou-se sem a atuação do Poder Judiciário porque associações de doentes se organizaram para pressionar o Poder Público, impelindo-o a adotar uma postura favorável ao seu pleito, o que gerou inclusive a Lei 9.313/1996 sobre tratamento e fornecimento de medicamentos aos portadores do vírus.

É notório que o entendimento jurisprudencial transmigrou e recentemente os órgãos julgadores vêm concedendo tutelas individuais para fornecer praticamente qualquer tipo de medicamento (embora isso tenha sofrido alterações sutis após a Audiência Pública n. 4), muitas vezes sem a precedente análise de sua eficácia ou comprovação científica, de maneira irrestrita, em nome do direito a vida.

No plano infraconstitucional, observaremos a disciplina da Lei 8.080/90, Lei Orgânica da Saúde, que de acordo com seu preâmbulo, “dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”.

Fernando Mânica5, em didática análise, afirma que o Poder Judiciário pode ser ativado em três diversas hipóteses para efetivar o direito à saúde em sua perspectiva prestacional, quais sejam, in verbis:

i. na inércia do Poder Legislativo em regulamentar questão específica ligada ao direito em referência (omissão legislativa); ii. no descumprimento pela Administração Pública, da legislação que

regulamenta o referido direito (omissão administrativa) e;

iii. no caso em que a regulamentação do direito à saúde (de)limite de modo não constitucionalmente fundamentado o direito originário à saúde (obscuridade, contradição ou excesso, tanto em sede legislativa quanto em sede administrativa).

4 PERLINGEIRO, Ricardo. A Tutela Judicial do Direito Público à Saúde no Brasil. 2013. 4-6 5 MÂNICA, op. cit., p. 7.

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Evidente é a necessidade do Poder Judiciário na busca da implementação de tal direito. As ações que buscam concessão de medicamentos e internações para determinado paciente são abundantes, e tendem a crescer ainda mais, como aponta Danielle da Costa Leite Borges, em dissertação6. Entretanto, é notório que nenhum direito é absoluto, e não se pode desconsiderar, nos casos concretos da aplicação do direito pelos órgãos desse Poder, toda a organização do sistema público de saúde. Isso levaria, em última análise, à agressão ao princípio da isonomia.

Não obstante o direito à saúde comporte uma dimensão coletiva, ele também deve ser compreendido sob o prisma de um direito subjetivo em que cada pessoa receberá uma assistência individualizada e específica.

Mantendo em mente o Sistema Único de Saúde e a finidade de seus recursos, devemos pensar também que cada escolha individual tem uma repercussão coletiva. Segundo Barroso7, não se pondera o direito à saúde com o princípio da legalidade e da separação de poderes, mas se pondera o direito à vida e à saúde de determinadas pessoas em face do direito à vida e à saúde de outras pessoas.

Aqui se chega ao ponto crucial do debate. Alguém poderia supor, a um primeiro lance de vista, que se está diante de uma colisão de valores ou de interesses que contrapõe, de um lado, o direito à vida e à saúde e, de outro, a separação de Poderes, os princípios orçamentários e a reserva do possível. A realidade, contudo, é mais dramática. O que está em jogo na complexa ponderação analisada, é o direito a vida e a saúde de uns versus o direito à vida e à saúde de outros. Não há solução juridicamente fácil nem moralmente simples nessa situação.

Tendo em mente que a saúde, como direito subjetivo que é, individualmente exigível, confere a todos os cidadãos a prerrogativa de exigi-lo judicialmente, fundamentando-se nos artigos 6º, 196 e seguintes da Constituição, perseguindo assim o bem jurídico tutelado por tais dispositivos constitucionais: o direito à saúde.

6BORGES, Danielle da Costa Leite. Uma análise das ações judiciais para o fornecimento de medicamentos no

âmbito do SUS: o caso do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2005. Rio de Janeiro, 2007. Diss. Dissertação (Mestrado)—Programa de Mestrado em Saúde Pública da Escola Nacional de Sáude Pública Sergio Arouca (ENSP)/FIOCRUZ. Disponível em:< http://bvssp. cict. fiocruz. br/lildbi/docsonline/3/3/1233-borgesdclm. pdf>. Acesso em: 26 maio, 2008.

7 BARROSO, 2007 apud PEREIRA, Delvechio de Souza. "O orçamento público e o processo de judicialização

da saúde. 2010. 30 f." Artigo (Especialização). Especialização em orçamento público do Instituto Serzedello Corrêa–ISC/TCU. Brasília–DF. Disponível em:. Acesso em 3 (2015).

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Entretanto, tais dispositivos constitucionais são sobremaneira amplos, assim como é o próprio conceito de saúde, dificultando saber o que efetivamente pode ser cobrado através do Poder Judiciário do Estado.

Há certo estranhamento em considerar a saúde como um bem, apesar de não haver outra forma de caracterizá-la. Nesse sentido, explica Ronaldo Lobão que ”na cosmologia do capitalismo contemporâneo, a noção de ‘bem’ está associada à ideia de interesse, ou seja, um bem deve corresponder àquilo que homens ou instituições desejem e ajam no sentido de obtê-los”8. Em determinadas situações a saúde aparece como um bem público, ou comum. Com isso queremos dizer que numa perspectiva econômica, ela pode ser um bem de consumo não rival, não exclusivo e não disputável. Ou seja, sendo consumido por determinada pessoa, ele não pode praticamente ser excluído do consumo de outra pessoa. Nessa perspectiva ele é um bem de fornecimento solidário, fornecido a muitos a um custo muito baixo. São bens fornecidos uti universi, em oposição aos fornecidos uti singuli.

Podemos perceber tal característica em fornecimentos como o de iluminação pública ou vigilância sanitária, que uma vez organizados podem ser utilizados por todo e qualquer indivíduo de certo grupo, como um município, e os custos desse fornecimento não são multiplicados pelo número de beneficiários simplesmente.

Em contrapartida, a saúde também se apresenta, em grande parte das situações, como um bem individual, de uso exclusivo e consumo rival. Infelizmente, nesses casos, o consumo do bem por um indivíduo significará a exclusão de outros.

No caso específico que está sendo trabalhado, esse será o aspecto abordado, pois é desta forma que as prestações de saúde se apresentam quando os indivíduos necessitam do fornecimento de medicamentos junto ao SUS. Estamos tratando do direito do indivíduo receber determinado bem do Estado, e nesse caso o custo de seu fornecimento se multiplica pelo número de cidadãos que se utilizarão do mesmo. Para Ronaldo Lobão, no caso dos medicamentos, teoriza que o bem público em questão não será particular, tampouco público, mas será um bem coletivo, que são por ele conceituados como sendo bens produzidos em decorrência da ação ou da demanda de determinados grupos no espaço público, mas o acesso pelo grupo, ou outro grupo equivalente, pode impedir ou reduzir as oportunidades de outro grupo acessar o mesmo

8 LOBÃO, Ronaldo. "DESAFIOS À CAPACIDADE REDISTRIBUTIVA DO DIREITO EM CONTEXTOS

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bem. Conclui ainda que a distribuição de medicamentos ou procedimentos cirúrgicos não são equiparáveis ao acesso à saúde, porque não entende a relação causal de medicamento com saúde e também porque em decorrência da organização do sistema de saúde no Brasil (de estrutura municipalizada e descentralizada), o direito a medicamento de alto custo poder impedir outros indivíduos de exercerem seu direito a saúde. Saliente-se que o autor diferencia, portanto, o direito a saúde, que considera como bem público, e o direito a medicamentos, que considera como bem coletivo.

Em dissertação9, Denise Travassos Gama aduz que a mudança de sistema de saúde pública a partir da Constituição de 1988 fez emergir problemas de toda ordem em relação à implementação do direito de acesso a saúde. Dependente de políticas públicas consistentes, o direito a saúde sempre dependerá da definição democrática da destinação de recursos escassos para a sua realização. Assumindo uma postura típica dos Estados de Bem Estar Social, alguns magistrados preocupam-se em realizar o direito a saúde, substituindo, muitas vezes, os outros poderes ao realizar essa tarefa. Decisões mais “ativistas” compreendem axiologicamente as normas jurídicas desrespeitando a separação de poderes, tornando-se incompatível ao paradigma do Estado Democrático de Direito.

A referida autora não nega a boa intenção dos magistrados que pretendem a qualquer custo a materialização de direitos, mas aponta para um preço demasiado elevado que se tem a pagar devido a essas decisões: a ofensa ao princípio democrático. Em certas decisões os tribunais passam a operar na mesma lógica do legislativo, sem, no entanto, ter legitimação para tanto.

Em outro sentido, sentimos a importância do papel do Poder Judiciário na perseguição do direito a saúde na medida em que as decisões por medicamento proferidas por juízes e tribunais pressionam os órgãos democraticamente legitimados a instituírem políticas públicas consistentes, mesmo que agindo em situação individual e exercendo essa pressão por vias indiretas.

É defensável a postura de reconhecer a saúde como um direito ao qual é legítima a exigência perante o Poder Judiciário, e não como um mero valor. Isso gera a preocupação com a fundamentação da jurisdição, que, nas palavras de Denise Gama, preserva

9 TRAVASSOS GAMA, Den., Por uma Releitura Principiológica do Direito à Saúde: da Relação entre Direito

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(...) a separação de poderes e, consequentemente o princípio democrático que, de forma nenhuma pode mais ser compreendido como simples “vontade da maioria”. Ao contrário, hoje democracia só existe se levar em consideração a diferença de todos e cada um. Por isso a proteção de minorias e o respeito a direitos fundamentais se afiguram primordiais.

No entanto, quando o Poder Executivo se omite conscientemente na implementação de políticas públicas voltadas à saúde, o ônus de concretizar ou não esse direito é transferido ao Poder Judiciário na decisão do caso concreto, situação que não deveria ocorrer.

O direito a saúde no Poder Judiciário não pode ser concebido sob a luz de uma política social consciente dos custos e benefícios que serão socialmente gerados, ou seja, não se pode atribuir a esse Poder o dever de implementar uma política pública que não foi efetivada pelo Poder Executivo. Diante da necessidade de solucionar o caso concreto o magistrado não pode ser responsável por considerar o sistema social como um todo, avaliando a repercussão orçamentária que sua decisão terá.

A tarefa do Poder Judiciário é aplicar a norma jurídica de maneira coerente e adequada em relação ao caso que se lhe apresenta. Na dicotomia entre proteger o direito à saúde e à vida, que se traduz como direito inalienável assegurado pela constituição, e defender um direito financeiro do Estado, impõe-se ao intérprete a solução que privilegia o direito a vida, afinal, não deve-se esperar que o magistrado se incumba em um papel de juiz Hércules, consciente de todas as circunstancias possíveis em um panorama global. Sua decisão não seria capaz de prever o efeito borboleta que poderia dela irradiar. A decisão se baseia em saberes incompletos e limitados, portanto, no processo decisório a limitação orçamentária como um argumento restritivo de direitos não passa de uma elucubração.

A mera possibilidade de que uma decisão judicial venha a inviabilizar o sistema público de saúde não pode dissipar a tutela jurisdicional do direito a saúde, pois a ameaça é concreta e real, a situação que se lhe apresenta, diferentemente de ponderações orçamentárias, são urgentes e tangíveis.

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3. A PROVENIÊNCIA DAS VERBAS DESTINADAS À SAÚDE

A escassez dos recursos exige ponderação sobre sua melhor distribuição. Os recursos existentes dentro de um sistema econômico devem ser distribuídos de modo a produzir o maior bem estar possível ao maior número de pessoas. Admitindo-se a inviabilidade da satisfação geral, deve haver um rateio do sacrifício, cuja solução está ancorada no binômio eficiência/equidade10.

Os gastos do Estado são pagos com verbas auferidas preponderantemente através de tributos cobrados da população, tendo em vista que a receita originária – ou seja, os rendimentos que os governos auferem utilizando os seus próprios recursos patrimoniais industriais (rendas, foros, laudêmios, alugueis, dividendos, participações, royalties do petróleo, entre outros) – do Estado é feita em caráter de exceção e, comparativamente à receita derivada (auferida através de tributos) tem um valor irrisório.

As receitas não são utilizadas de qualquer maneira, pois isso permitiria arbitrariedade por parte do gestor público, que teria a liberdade de utilizá-la irresponsavelmente, gerando imprevisibilidade e inviabilizando o serviço público e um adequado funcionamento do Estado. Para disciplinar os gastos públicos, eles serão previstos em orçamento público, cujas origens se confundem com as do Estado de Direito.

O orçamento público tornou-se um instrumento absolutamente necessário para a otimização da organização de receitas e despesas do Estado e para o equilíbrio dos interesses antagônicos que permeiam disputas pelo poder. Seu processo alocativo está sob a proteção da lei, e todas as despesas públicas imprescindem de autorização legislativa, regulados pelas espécies que são o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais, sobre os quais não vamos nos debruçar, pois não são relevantes para esse estudo. Insta salientar que é preciso assegurar destinações sociais dos tributos arrecadados, dentre as quais encontra-se a destinação para a saúde, dando ao orçamento público a dimensão cidadã que resguarda o cumprimento de direitos ligados a dignidade da pessoa humana, protegidos constitucionalmente11.

10 SCHOUERI, Luís Eduardo. "Direito tributário." (2014). passim

11SANTO DAL BEM PIRES, José, and Walmir Francelino Motta. "A evolução histórica do orçamento público

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As verbas destinadas ao financiamento do SUS são de responsabilidade das três esferas de governo, sendo que a Constituição estipula que o sistema único de saúde será financiado do orçamento da seguridade social da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, além de outras fontes. A nova visão de proteção social integra padrões de financiamentos distintos, como impostos e contribuições sociais e recursos do Orçamento Geral da União (OGU) e do Orçamento da Seguridade Social (OSS). Os recursos da seguridade social incluem, além das contribuições sobre folha salarial, o faturamento empresarial (Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social), o lucro líquido das empresas (Contribuição sobre o Lucro Líquido) e o PIS-PASEP (Programa de Integração Social/Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público)12.

Uma importante decisão legislativa na área de saúde foi a introdução da Emenda Constitucional 29, aprovada no ano 2000 após intensa negociação e discussão sobre a garantia de fontes estáveis ao financiamento do SUS. Vinculou-se, a partir de então, no orçamento da União, Estados, Distrito Federal e Municípios um percentual mínimo destinado a ser aplicado na área da saúde, apontando para um maior comprometimento na universalização da saúde.

A partir desse aparato, após expor que a organização dos gastos públicos com saúde é vinculada aos planos traçados pelo Poder Legislativo, adentraremos a contraposição da necessidade de garantia do mínimo existencial que tenta ser afastado pelas procuradorias evocando-se a tese da reserva do possível.

4. MÍNIMO EXISTENCIAL EM CONTRAPONTO À RESERVA DO POSSÍVEL

Em linhas gerais, o princípio da reserva do possível regula a possibilidade e a extensão da atuação do Estado no que tange à concretização de alguns direitos sociais e fundamentais (no caso estudado, o direito à saúde materializado através da prestação de fármacos pelo SUS). Costuma-se condicionar a prestação do Estado à existência de recursos públicos disponíveis. Em suas raízes observamos uma construção iniciada na Corte Constitucional Alemã e

12DA SILVA, Juliana Gomes. Orçamento público em saúde: Uma análise do cumprimento da Emenda

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importada ao Brasil, apesar de aquele ser um país com estruturas sociais, econômicas e cultuais muito diversas das nossas.

Esse entendimento iniciou-se em decisão paradigmática que versou sobre o acesso ao ensino público superior, atinente a ideias resguardadas naquele ordenamento de que é garantida a liberdade de escolha da profissão. Firmou-se jurisprudência no sentido de que a prestação reclamada deve equivaler ao que pode o indivíduo exigir da sociedade através de uma ponderação do que seria razoável. Dessa maneira, mesmo se o Estado dispusesse dos recursos, não se poderia falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável13. Ou seja, resumidamente, a efetivação de direitos subjetivos de prestação material de serviços públicos pelo Estado está relacionada à disponibilidade de recursos. Por sua vez, a decisão sobre a alocação de recursos localiza-se no campo discricionário das decisões governamentais por intermédio da composição dos orçamentos públicos (princípio democrático da reserva parlamentar em matéria orçamentária).

Entende Ingo Sarlet14 que os direitos que exigem uma atuação negativa do Estado, relacionados convencionalmente a ideia de liberdade, desencadeiam plenitude eficacial, com situações prontamente desfrutáveis, que dependem simplesmente de uma abstenção. Já com relação aos direitos sociais prestacionais (de cunho positivo), ressalta-se que, por mais programáticas que as normas sejam, também são dotadas de eficácia diretamente retirada da Constituição da República independentemente de intermediação legislativa. Impõe-se uma relativização da noção de direito subjetivo em relação aos mesmos. Assevera o autor que

(...) cremos ser possível afirmar que os direitos fundamentais sociais, mais do que nunca, não constituem mero capricho, privilégio ou liberalidade, mas sim, premente necessidade, já que a sua supressão ou desconsideração fere de morte os mais elementares valores da vida, liberdade e igualdade. A eficácia (jurídica e social) dos direitos fundamentais sociais deverá ser objeto de permanente otimização, na medida em que levar a sério os direitos (e princípios) fundamentais corresponde, em última análise, a ter como objetivo permanente a otimização do princípio da dignidade da pessoa humana, por sua vez, a mais sublime expressão da própria ideia de Justiça.

13SARLET, Ingo Wolfgang. "Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988." Revista Diálogo

Jurídico, Salvador, CAJ-Centro de Atualização Jurídica 1.1 (2001): 65-119. passim.

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Existem exigências inafastáveis que correspondem a um padrão mínimo essencial para a manutenção de uma vida digna que devem ser asseguradas inclusive para resguardar aquele núcleo mais intangível dos direitos inerentes à condição humana.

Em relação à disponibilização de medicamentos de alto custo, podemos ponderar sobre dois argumentos antagônicos

a) As prestações de saúde que se dispõem a fornecer medicamentos de custo inviável para o Poder Público (assevera-se a dimensão da inviabilidade em um panorama de igualdade prestacional para outros em condições análogas) bancar não se relacionam com esse mínimo existencial, por entender que o mínimo existencial em matéria de saúde está mais ligado aos cuidados básicos e também às medidas profiláticas;

b) No caso particular de determinada doença cujo enfermo pleiteia por medicamento de alto custo, seria inviável a manutenção de sua vida, ou de sua vida digna sem o medicamento em questão; não disponibilizá-lo seria tolher-lhe o direito a vida (de que emanam todos os demais direitos).

Às ponderações apresentadas soma-se ainda uma terceira, de suma importância, mas sobre a qual não se poderá debruçar sob pena de ampliar-se sobremaneira o objeto de estudo. Indaga-se: que legitimidade tem um Estado democrático para negar a disponibilização de medicamentos fundamentando-se na reserva do possível quando é capaz de gastar milhões com campanhas publicitárias que promovem empresas de monopólio estatal, que delega ao particular a responsabilidade pela conservação de medicamentos e, por não fiscalizá-lo (entende-se que a culpa não é exclusiva da Administração Pública que não exercia por conta própria o serviço), permite que ocorram escândalos de milhares de medicamentos vencidos sem jamais chegarem ao destinatário final que necessitava dos mesmos para promover tratamentos? Certo é que não se pode justificar uma decisão tão importante legitimando qualquer atitude do Estado em ingerências e arbitrariedades no gasto do dinheiro público, mas isso gera para aquele que é alvo das prestações estatais uma indignação e corrobora na mitigação da legitimidade do discurso estatal de insuficiência de verbas. Afinal, como pode se considerar legítimo que o Estado evoque o princípio da reserva do possível para limitar o campo do mínimo existencial quando há um desequilíbrio permanente equitativo na alocação social de verbas orçamentárias?

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5. A INCORPORAÇÃO DE MEDICAMENTOS A LISTA DO SUS

A questão da incorporação de medicamentos novos as listas do SUS é controversa, portanto a necessidade de nos atermos a ela. Ela foi alvo de acalorados e constantes debates em diversos segmentos da sociedade, e, devido a sua importância para a mesma, foi objeto da Audiência Pública n. 4 de 2009, no Supremo Tribunal Federal, convocada pelo Ministro Gilmar Mendes, onde ouviram-se cinquenta especialistas, entre defensores públicos, promotores e procuradores de saúde, advogados, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários da saúde pública.

Na referida audiência, foram rechaçadas posições radicais em relação à judicialização da saúde, discutiu-se a atuação do Poder Judiciário na efetivação do direito a saúde e concluíram, pela maioria dos que abordaram a questão pela legitimidade de sua atuação no âmbito das demandas individuais. Ademais, laudos de médicos estranhos aos quadros do SUS foram tidos, por unanimidade, como ilegítimos. Discutiu-se também: a responsabilidade dos entes federados; o dever de o poder público custear prestações de saúde não abrangidas nas políticas públicas existentes; a questão do bloqueio de verbas públicas decorrente de decisão judicial; a pertinência, em matéria de saúde, do princípio da reserva do possível; e o condicionamento do acesso ao Poder Judiciário à submissão prévia do interessado à instância administrativa, não sendo possível, nesses pontos, identificar posições majoritárias.

Dentre outros temas, discutiu-se, através de abordagens isoladas, questões do fornecimento de medicamentos sem registro no Brasil; serviços médicos experimentais e aprimoramento das políticas públicas do setor; destacou-se que a responsabilização solidária dos entes gera um grande transtorno, ocasionando muitas vezes a duplicidade no cumprimento da determinação judicial; desaconselharam os magistrados a deferirem todo e qualquer pedido para fornecimento de medicamentos ou tratamentos. Salientou-se, ademais, a importância das ações civis públicas.

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Após a realização da referida audiência pública, atuando como relator das Suspensões de Tutela n. 175, 211, e 278, das Suspensões de Segurança ns. 3724, 2944, 2361, 3345 e 3355; e da Suspensão de Liminar n. 47, o Ministro Gilmar Mendes assinalou que:

Após ouvir os depoimentos prestados pelos representantes dos diversos setores envolvidos, ficou constatada a necessidade de se redimensionar a questão da judicialização do direito à saúde no Brasil. Isso porque, na maioria dos casos, a intervenção judicial não ocorre em razão de uma omissão absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas tendo em vista uma necessária determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas.

Ao proferir sua decisão, Sua Excelência utilizou como principal critério o da necessidade, tendo em vista a possibilidade de grave lesão à ordem administrativa, causando um prejuízo no atendimento médico da população mais necessitada. Claramente as considerações veiculadas na Audiência Pública n.4 foram consideradas.

A problemática não se restringe a questões econômicas e orçamentárias calcadas na insuficiência dos recursos, vai além: visa a discutir a implementação de critérios claros para a incorporação de novas tecnologias, baseados em evidências científicas de validade.

A primeira etapa para a incorporação de medicamentos ao Sistema Único de Saúde é o registro da droga junto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Antes do citado registro, sequer o medicamento será considerado legalmente existente no Brasil, consoante depreendemos do art. 12 da Lei. 6.360/76.

A ANVISA avalia critérios de eficácia e segurança dos medicamentos, e em seguida, para a incorporação dos mesmos nas listas oficiais de dispensação, como o RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais) a nível federal e outras específicas a nível estadual e municipal, há que se proceder também à análise de custo benefício do produto. Tais análises são, por último, decisões discricionárias do administrador, ou seja, decisões políticas. Sobre o processo de incorporação, O Coordenador da Comissão de Incorporação de Tecnologias do Ministério da Saúde – CITEC, Cláudio Maierovich15, acrescenta:

A novidade proposta é comparada a outros produtos ou técnicas disponíveis para a mesma finalidade quanto ao desempenho, à possibilidade de adoção segura pelos serviços públicos e aos custos estimados. Esta também pode ser a oportunidade para excluir ou substituir produtos e métodos obsoletos ou que

15 Apud PEREIRA, Delvechio de Souza. "O orçamento público e o processo de judicialização da saúde. 2010.

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não têm o necessário lastro científico. Novas tecnologias exigem reformas, equipamentos, treinamento dos profissionais e incorporação de exames laboratoriais. Por isso é difícil avaliar propostas baseadas apenas em estudos com populações e condições de atenção muito diferentes das brasileiras.

Ademais, Delvechio de Souza Pereira16, aponta ainda para um lobbie da indústria farmacêutica exercido sobre pacientes, médicos e gestores de saúde visando a fomentar a prescrição de medicamentos inovadores e, via de regra, de alto custo.

Diante da complexidade do processo de incorporação de medicamentos e da necessidade de promoção de uma saúde universal e equânime – que não comporta a assistência somente de determinado indivíduo com o medicamento pleiteado, devendo o pleito de um ser passível de extensão aos demais em situações análogas – existe lógica em pensar na proibição das liminares judiciais que determinam o tratamento com procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS.

Por óbvio, esse assunto ainda deve ser alvo de muita discussão, mas, ao nos indagarmos sobre a necessidade dos procedimentos de incorporação dos medicamentos em listagens oficiais (já que diante da integralidade do serviço de saúde pública, em uma primeira análise poderíamos inferir que todo procedimento e fornecimento para reestabelecimento da saúde deveriam ser fornecidos), concluiremos que o controle pelo qual devem passar os fármacos que serão disponibilizados necessita ser rígido tanto para utilizar a verba pública com parcimônia quanto para preservar a saúde pública. Dessa maneira vislumbramos o quanto as liminares colocam nas mãos dos magistrados questões que transcendem sobremaneira seu discernimento. A adoção desses medicamentos deve ser feita por equipes capacitadas e interdisciplinares, deve envolver pesquisa e ter em mente o melhor para a coletividade.

6. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E A AGENDA BRASIL

Diante de um cenário em que as questões de prestação de saúde são discutidas precipuamente no judiciário, e em que observamos que os indivíduos passaram a utilizarem-se cada vez mais do judiciário para terem seus pleitos atendidos, surge uma proposta da Agenda

16PEREIRA, Delvechio de Souza. "O orçamento público e o processo de judicialização da saúde. 2010. Op. cit.,

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Brasil17 do Senado que pretende proibir liminares judiciais que determinam o tratamento com procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS.

Tal proposta não está sendo bem recebida por muitos juristas, inclusive pela citada Associação dos Magistrados Brasileiros. Isso não poderia ser diferente, uma vez que a proposta é revolucionária e mitiga a atuação do Poder Judiciário, tendo em vista a necessidade de urgência em grande parte das ações judiciais envolvendo o direito a saúde. Nasce a ideia de desamparo da população e pode-se cogitar um desrespeito a um direito assegurado constitucionalmente.

A medida liminar é uma ordem que assegura o cumprimento do direito alegado pela parte antes da discussão de mérito da causa. Nas questões de saúde está claro que a demora na decisão acarretará danos ao direito pretendido. Raro é uma petição por medicamentos em que não se caracterizaria o fumus boni iuris e o periculum in mora. Por um lado, coibir tal instituto processual é o mesmo que não atender o pleito.

Devemos analisar, porém, o cerne da questão. Se a proposta do atual presidente do Senado, Renan Calheiros, fosse aprovada e alguém propusesse junto ao Poder Judiciário uma demanda de saúde com pedido de liminar de um medicamento que estivesse nas listagens do SUS, mas estivesse tendo atraso em seu recebimento, não haveria problema algum, a liminar seria possível e provavelmente atendida. Nesse novo cenário hipotético somente as liminares que demandassem por procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS seriam proibidas. Seria leviano pensar que um juiz poderia vislumbrar as consequências de decidir liminarmente sobre um assunto tão complexo, que exige, muitas vezes, pesquisa da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS.

Ao pensarmos no aspecto da coletividade, percebemos que liminares nesse sentido são perigosas porque drogas sem eficácia comprovada poderiam ser dispensadas a todos. O atendimento da prestação de um indivíduo seria injusto se não pudesse se estender a todos que estão na mesma situação. Podemos pensar também que em muitos casos o sistema público de saúde tem fármacos que exercem a mesma função a custos mais acessíveis. Há quem afirme também que grande parte dessas ações são estratégias para inserção de medicamentos que não tem comprovação científica, segurança ou eficácia comprovada.

17 Disponível em

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A proposta contida na Agenda Brasil foi pensada no legislativo diante de uma situação caótica e que necessita de soluções imediatas. A judicialização da saúde está comprometendo o orçamento público, e com isso até mesmo os magistrados, que diariamente têm que lidar com escolhas de Sofia em questões de vida ou morte, passaram a se preocupar. Especialistas preocupados com a judicialização da saúde apontam que esse processo é crescente e que ele desorganiza o sistema de planejamento e finanças dos entes federados, pois as ações e os custos decorrentes de suas decisões são imprevisíveis.

Segundo o Ministério da Saúde, em 2014 foram gastos cerca de 839 milhões de reais em ações judiciais para atender a saúde, sendo que desse total, 259 milhões foram destinados para remédios que não estão em listas oficiais de dispensação. Desde 2010 houve um aumento de 500% nos gastos com ações judiciais de saúde.

No Rio de Janeiro, 60% das demandas de saúde são para medicamentos, e dentre os 20 mais pedidos, 13 não estão em listas disponibilizadas pelo governo e 10 tiveram incorporação negada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS por não apresentarem benefícios superiores aos medicamentos já disponibilizados pelo sistema público18.

Os números revelam falhas nas políticas públicas de saúde e gritam por uma solução. Sérgio Junkes19, vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, toma a proposta apresentada pelo Senado como inconstitucional, afirmando ainda que a proposta tenta tratar os sintomas, mas não a causa do problema.

7. A SAÚDE COMO QUESTÃO DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA

A saúde dentro da sociedade deve ser pensada principalmente como um interesse coletivo, sem que se perca de vista, por óbvio, que cada indivíduo possui um organismo único, devendo, portanto, receber um tratamento individualizado. O mais desejável é que haja um

18 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE. Sala Debate. Rio de Janeiro: Canal Futura, 28 de agosto de 2015. Programa

de TV.

19 Entrevistado. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE. Sala Debate. Rio de Janeiro: Canal Futura, 28 de agosto de

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maior número de pessoas saudáveis, recebendo eventuais tratamentos que venham a ser necessários.

Para decidir sobre o fornecimento de medicamentos e tratamentos são necessárias decisões sobre alocação de recursos, que apresentam um teor discricionário e político. Os atores de tais decisões são por excelência o Executivo e o Legislativo, mas na prática é o Judiciário que está sendo responsável pelas mesmas.

Isso não poderia ser diferente diante da demanda social, uma vez que não há possibilidade de serem os magistrados silentes quando uma demanda, qualquer que seja seu conteúdo, se lhes apresenta. Isso seria mesmo inconstitucional, tendo em vista o inciso XXXV do importantíssimo artigo quinto constitucional.

Para Beauchamp e Childress (1994, p. 327) o termo justiça distributiva:

Refere-se à distribuição justa, equitativa e apropriada na sociedade determinada para justificar normas que estruturam os termos da cooperação social. Seu âmbito inclui as políticas que distribuem benefícios e responsabilidades diversas tais como a propriedade, os recursos, os impostos, os privilégios, e as oportunidades. As várias instituições públicas e privadas são envolvidas, incluindo o governo e o sistema de saúde. O termo justiça distributiva é usado às vezes amplamente para se referir à distribuição de todos os direitos e responsabilidades na sociedade.

Não é difícil perceber o quanto o fornecimento de medicamentos pelo SUS para a sociedade brasileira encaixa-se nesse tipo de justiça. Todavia, o Poder Judiciário que hodiernamente se depara com incontáveis casos que demandam o fornecimento de fármacos, sempre esteve acostumado a decidir sobre conflitos retributivos ou bipolares, nos quais uma parte irá ganhar e a outra perder (em regra), devendo o julgador dizer o que é legal ou ilegal a respeito de um delito, uma relação jurídica, um contrato ou uma indenização. Entretanto, conflitos de natureza distributiva, que envolvem bens como os relacionados ao direito à saúde, estão sendo levados ao Judiciário no mesmo formato daqueles sobre justiça retributiva.

O que se percebe é que quando é dado o mesmo tratamento a questões de justiça distributiva àquelas de justiça retributiva (reparação individual de danos), corre-se o risco de

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dar-se tratamento desigual, excluindo alguns indivíduos da distribuição dos bens fornecidos pelo Estado20.

Evidentemente a população tem a experiência de necessitar recorrer ao Judiciário litigando contra o Estado devido à deficiência do Executivo em atender prontamente as necessidades de prestação de saúde com políticas públicas eficientes. Sabemos que o tempo político legislativo é diferente do tempo das demandas sociais. Quando se emitem decisões políticas há necessidade de uma análise de custos e benefícios da elaboração de políticas públicas. Se valer do Judiciário é mais ágil a quem busca uma prestação de saúde, principalmente quando há possibilidade de utilização de institutos como o da tutela antecipada que mitiga a morosidade desse Poder.

O que muitas vezes não percebem os litigantes e porventura nem mesmo os magistrados é o risco de resolver individualmente, apenas no caso concreto, uma situação que deveria ser tratada coletivamente e pelos órgãos competentes. A alocação de recursos e fornecimento de medicamentos quando decidida por juízes monocráticos e tribunais realizam eficientemente a justiça para o caso de certo indivíduo (microjustiça) desprezando os aspectos coletivos de distribuição de recursos para a sociedade como um todo (macrojustiça).

Concluímos que muitas vezes, quando decidido individualmente, o direito à saúde pode ser um empecilho à justiça social, pois pessoas em idêntica situação de saúde (equidade horizontal) terão tratamento desigual em seu atendimento de saúde se uma delas recorrer ao judiciário e outra não, uma vez que esse Poder tem a inércia como atributo, ou seja, só agirá mediante provocação. Dessa maneira, seria impossível promover uma isonomia de tratamento através dessa via, pois o judiciário não poderá por si só intervir para providenciar tratamento para aquele que não o buscou através dele, mas apenas na via administrativa. Nessa esteira conclui-se que a iniciativa de uns pode significar a lesão de outros.

Para que a saúde seja pensada para todos devem ser considerados critérios técnicos, permitindo assim uma eficiência dos gastos. Os princípios do SUS precisam ser observados, por isso as escolhas devem maximizar o resultado nos termos de acesso aos serviços de saúde e melhora nas condições de saúde da sociedade. Muitas vezes o Poder Judiciário vai na

20BORGES, Danielle da Costa Leite. Uma análise das ações judiciais para o fornecimento de medicamentos no

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contramão dessas premissas. Fabíola Supino Vieira21 sustenta que “a integralidade para os tribunais está mais associada à noção de consumo, haja vista o deferimento de demandas sem ressalvas sobre a existência de política pública para tratar as doenças”. A crítica que a citada autora faz é que o direito a saúde não se resume a oferta de medicamentos, e conceder fármacos a todo custo, atropelando mesmo os controles estatais que são necessários para a importação de novas drogas. Essa prática, inclusive, pode ser mais um risco do que um benefício ao doente. O sentido de integralidade para o SUS é mais abrangente. Significa empregar os meios necessários para a efetivação do cuidado, como: atendimento médico, exames, internação, tratamento, entre outros. Implica dispor tipos diferentes desses meios segundo o grau de complexidade da atenção à saúde, ou seja, exames para a atenção básica, para a média e alta complexidade; da mesma forma os medicamentos: uso ambulatorial e na atenção hospitalar.

No prisma do neoconstitucionalismo, aponta Savio de Aguiar Soares22 que com a virada hermenêutica do Direito, inspirada em Hans Georg Gadamer, o prisma simplesmente normativo não pode aprisionar o intérprete do direito. Faz-se imperioso operar em um processo de autoconstrução visando à efetivação do discurso jurídico prático no que concernem as consequências das regras jurídicas no plano físico. Articula o autor que “na democracia juridicamente institucionalizada cabe uma interpretação hermenêutica dos intérpretes, sobretudo do juiz, que não se imiscui com discricionariedade judicial”.

Houve também um processo de humanização do direito, a partir da instituição da dignidade da pessoa como um dos pilares da República, na ordem constitucional brasileira. A partir de então, interesses não patrimoniais da pessoa se sobrepuseram aos patrimoniais. Em outras palavras, a pessoa humana tornou-se o centro do ordenamento e as situações patrimoniais devem se subordinar as situações existenciais.

Entretanto, a escassez da disponibilidade de recursos obriga a Administração Pública a adotar mecanismos de gestão democrática e responsável, com um suposto controle social através de participação popular e cidadã e adotando critérios objetivos para priorizar as destinações orçamentárias.

21VIEIRA, Fabiola Sulpino. Ações judiciais e direito à saúde: reflexão sobre a observância aos princípios do

SUS. Rev Saude Publica, v. 42, n. 2, p. 365-9, 2008.

22 DE AGUIAR SOARES, Savio. Judicialização das políticas de saúde: apontamentos a luz da Audiência

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Há quem afirme que no Brasil a judicialização é uma extensão da democracia e um alargamento da cidadania, pois o Poder Judiciário possibilita a garantia aos grupos minoritários aos meios de acesso aos poderes políticos na consecução do mínimo existencial.

Toda discussão até aqui travada pode ser mais bem ilustrada a partir da análise de um caso concreto23. Trata-se de uma ação ordinária ajuizada no Rio de Janeiro em 2010, em

que a parte autora aduz ser portadora de uma rara doença denominada hemoglobinúria paroxística noturna, que consiste na presença de hemácias na urina. Segundo a autora, o tratamento mais adequado a sua enfermidade dependeria do medicamento Soliris (Eculizumab), avaliado como o mais caro do mundo, de acordo com a revista Forbes, de modo que o valor estimado para todo o tratamento alcançaria o montante de 1.000.000,00 (um milhão) de reais24. Através da apresentação de prova documental sobre sua doença, respaldando suas alegações, bem como afirmando não possuir condição para arcar com o tratamento milionário, a autora acionou a justiça estadual para que o Município ou o Estado do Rio de Janeiro fornecessem, solidariamente, o medicamento, tendo em vista a garantia do acesso à saúde prevista como direito fundamental na Constituição Federal.

Em síntese, o Município e o Estado do Rio de Janeiro sustentaram, no mérito, a tese de que não poderiam ser condenados, apresentando como argumento de defesa as seguintes alegações: i) que o medicamento Solirirs não seria registrado na ANVISA e tampouco integraria as listas municiais e estaduais de medicamentos essenciais; ii) a responsabilidade da União Federal pela aquisição e distribuição; iii) não existência dados que comprovavam ser o único tratamento adequado a paciente; iv) a existência de outros tratamentos terapêuticos fornecidos gratuitamente pelo SUS para o caso.

A autora, em contrapartida, a despeito da indicação do tratamento alternativo indicado, alegou que o transplante de medula óssea ou o tratamento com uso de corticoides, sugeridos pelo ente estatal, piorariam seu estado clínico com risco de vida.

Em decisão, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, deu provimento ao pleito, afirmando que o quadro de saúde da requerente era grave e precário, sendo o fármaco necessário

23 Processo No: 0103912-59.2010.8.19.0001, atualmente pendente de recurso no STF, sobrestado aguardando

julgamento de incidente de demanda repetitiva.

24TEIXEIRA, Pedro Freitas; SINAY, Rafael; BORBA, Rodrigo Rabelo Tavares. A análise econômica do direito

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e eficaz para o controle da doença. Outrossim, asseverou que “as normas administrativas e orçamentárias não se sobrepõem aos ditames máximos da sociedade inscritos na Carta Maior, que visam garantir os direitos fundamentais à pessoa humana”.

Ademais, recorreu a precedente do Supremo Tribunal Federal, em que foi estabelecido entendimento no sentido de que é possível "o Poder Judiciário vir a garantir o direito à saúde, por meio do fornecimento de medicamento ou de tratamento imprescindível para o aumento da sobrevida e a melhoria na qualidade de vida da paciente" (STA 175 AgR/CE, Tribunal Pleno, Rel. Min Gilmar Mendes, DJe 30.4.2010). Dessa forma, o fato da ausência de registro na ANVISA não afasta o direito do portador de doença grave ao recebimento do remédio (SS 4316, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO (Presidente), julgado em 07/06/2011, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-112 DIVULG 10/06/2011 PUBLIC 13/06/2011).

Procedendo então a análise do caso suprarreferido, insta tecer as seguintes considerações. Partindo-se de uma perspectiva consequencialista e econômica do direito, a decisão pode ser questionada quanto a sua eficácia, considerando o impacto do alto custo do medicamento no orçamento da administração pública em benefício de uma só pessoa.

CONCLUSÃO

Há que se ponderar a escassez de recursos orçamentários no Brasil que afeta milhares de pessoas hipossuficientes que sofrem todos os dias nas filas dos hospitais e postos de saúde públicos, em razão de falta de estrutura e profissionais para atender a todas as demandas. Em um viés utilitarista careceria de legitimidade as decisões proferidas no Poder Judiciário ignorando e negligenciando a realidade de pessoas ainda à margem do real acesso à justiça. Dessa forma, caberia ao intérprete buscar uma solução mais eficiente e mais justa do ponto de vista da macrojustiça e não simplesmente proferir uma decisão encapsulada, desconsiderando os desdobramentos e a repercussão social de seu ato.

Por outra via, o discurso puramente consequencialista que ampara o argumento na negativa de concessão do fármaco de alto custo, subverte a supremacia dos princípios e valores incrustrados na Constituição Federal, que estabelece a proeminência da dignidade da pessoa

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humana frente aos gastos econômicos do Estado. Enquanto a ameaça do direito a vida é iminente e real, a previsão das consequências econômicas opera num nível especulativo.

Devemos manter em mente que nenhum direito fundamental é absoluto e que o direito não deve, sob um paradigma hermenêutico, ser um sistema fechado em si mesmo, onde as decisões encontram seu fundamento de validade apenas a partir da própria juridicidade que a sustenta.

Da análise pormenorizada do caso concreto aqui levantado nascem as possibilidades de uma melhor decisão: o direito a vida é inexoravelmente o valor supremo de nosso ordenamento jurídico, uma vez comprovado que o medicamento de alto custo é o meio mais eficaz a garantia desse direito, como ponderar que a vida de um paciente deve estar aquém de uma contingencia econômica do Estado que pode ser solucionada através de realocação e manejo adequado dos recursos orçamentários? Por outro lado, até que ponto o alto dispêndio de recursos públicos em prol de uma só pessoa não afeta a concretização do próprio direito a saúde sob um prisma de um direito social a ser implementado através de políticas públicas universalizadas. É pesado o papel do intérprete ao ter que se debruçar num campo tão nebuloso em que não fica claro até onde o tratamento gratuito fornecido pelo SUS é realmente menos eficaz do que o tratamento de alto custo pleiteado pela via judicial. Até que ponto o laudo de um médico deve ser vinculante ao magistrado? Como dimensionar as consequências do ato decisório?

É impossível mensurar um equilíbrio ideal na concretização da justiça quando um desses direitos está em rota de colisão com o outro: o direito a saúde como microjustiça – prestação judicial – e o direito como macrojustiça na implementação de políticas públicas. A resposta a essa controvérsia só poderá ser dada através da interpretação acerca das especificidades do caso concreto sob a luz dos princípios constitucionais. Não há uma resposta prima facie para essa dicotomia.

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26 BIBLIOGRAFIA

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