Um teste para verificar se o respondente possui concepções
científicas sobre corrente elétrica em circuitos simples
Publicado em Física no ensino médio : falhas e soluções. Organizador: Rocha Filho, J. B. Porto Alegre : Edipucrs, 2011. p. 61-67 - ISBN: 9788539700967.
Fernando Lang da Silveira IF-UFRGS
lang@if.ufrgs.br
I. - Introdução
Resultados de pesquisa em ensino apontaram que em diversas áreas de física os alunos (e os professores também!) apresentam concepções alternativas (CA), isto é, concepções com significados errôneos, em conflito com o conhecimento aceito pela comunidade científica. Particularmente na área de circuitos elétricos simples foram detectadas CA que a tomam a corrente elétrica como uma característica primária das fontes ou geradores elétricos, lhe atribuindo propriedades de substância e de energia, a considerando como uma espécie de fluido que é consumido nos circuitos.
Com o objetivo de verificar se um respondente possui ou não as concepções científicas sobre corrente elétrica em circuitos simples foi idealizado e validado o teste que se encontra no apêndice deste artigo (Silveira, Moreira e Axt, 1989). O estudo original de validade do teste, contendo também as respostas de alunos universitários, pode ser encontrado em http://www.if.ufrgs.br/~lang/Textos/Teste_corrente_eletrica.pdf (acessado em 18/10/2010).
II. - Contrapondo as concepções alternativas às concepções científicas
O professor interessado não apenas em verificar se os seus alunos possuem as concepções científicas mas, caso não as tenham, ajudá-los a aprender sobre circuitos elétricos simples, poderá se valer do teste e depois de aplicá-lo, realizar uma profícua discussão sobre o tema. Para tal discussão é importante em um primeiro momento a explicitação clara e definida das CA, articuladas em um conjunto de enunciados.
A tabela 1 apresenta de forma sucinta as principais idéias sobre corrente elétrica. A tabela foi construída de maneira a contrapor lado a lado os enunciados que descrevem as CA e os enunciados científicos. A tabela pode ser utilizada para prever que tipo de resposta um aluno dá a uma questão do teste quando possui a CA. Exemplifiquemos com as duas primeiras questões do teste:
Se o aluno acredita que a corrente se “desgasta” ao passar por um elemento, como, por exemplo, no filamento de um lâmpada ou em um resistor, então certamente responderá que alguma das lâmpadas dos circuitos das figuras 1 e 2 apresentará brilho diferente das
demais lâmpadas. Entretanto é interessante também notar que esta idéia errada de que a corrente se “desgasta”, é “consumida”, se “dissipa”, diminui de intensidade, pode explicar porque em uma associação em série de lâmpadas diferentes (com diferentes resistências elétricas) uma lâmpada de fato brilha de forma diferente das demais. De fato aexplicação científica para tal evento nada tem a ver com um possível “desgaste” da corrente elétrica. Quando o professor discutir as CA e as concepções científicas deverá ter o cuidado de alertar para esses casos aparentemente corroboradores da CA, demonstrando que as concepções científicas os permitem entender também e com vantagem.
Tabela 1 - Concepções sobre corrente elétrica em circuitos simples.
Concepções sobre corrente elétrica em circuitos simples de corrente contínua
Alternativas Científicas
1. A corrente é uma forma de fluído produzido pela fonte ou gerador. A fonte é um depósito deste fluído, liberando-o para o circuito. A fonte produz ou armazena
cargas para fornecê-las ao circuito.
1 A corrente elétrica é o movimento
"ordenado" das cargas livres que pré-existem nos condutores. A fonte é responsável pelo campo elétrico que, exercido internamente aos
condutores do circuito, coloca as cargas livres nos condutores movimento "ordenado". A fonte não produz ou armazena cargas; a
fonte libera energia para produzir o movimento "ordenado" das cargas livres que sempre existem nas diversas partes do circuito. 2 A corrente que "sai", que é "emitida"
pela fonte (gerador) é uma propriedade exclusiva desta, não sendo afetada pelos
demais elementos do circuito.
2 A intensidade da corrente produzida pela fonte não depende apenas da fonte. A parte do
circuito externa à fonte também influencia a intensidade da corrente na fonte. A mesma fonte pode produzir correntes elétricas com intensidades diferentes, dependendo do que foi
conectado entre seus terminais.
Microscopicamente as cargas livres estão sempre em movimento desordenado, aleatório (agitação térmica). Superposto a este movimento desordenado, quando aplicado um campo elétrico (
E
) no condutor, ocorre um movimento preferencial (movimento de deriva). Esse movimento dederiva, que tem em nível macroscópico efeitos facilmente perceptíveis (aquecimento do condutor,
aparecimento de campo magnético no entorno do condutor, ...), se estabelece na direção do vetor E aplicado ao condutor; o sentido do movimento de deriva depende do sinal das cargas livres. Em condutores metálicos o sentido do movimento de deriva é contrário ao vetor E pois as cargas livres são elétrons; entretanto, em condutores iônicos o movimento de deriva dos íons positivos é no sentido do vetor E e o movimento de deriva dos íons negativos é em sentido contrário ao sentido do vetor E. Desta forma também é equivocada a afirmação reproduzida em muitos livros de eletricidade, qual seja, a de que o sentido convencional da corrente é contrário ao sentido real da corrente. Tal a afirmação, ainda que válida para condutores metálicos, é falsa quando aplicada ao interior de uma pilha ou bateria eletroquímica por exemplo.
3 A corrente “desgasta-se”, “dissipa-se” ao passar por "obstáculos" no circuito (lâmpadas, resistores, etc.), podendo até
ser extinta caso passe por muitos "obstáculos". Conforme a corrente vai
“passando” pelos "obstáculos”, vai se
tornando mais fraca.
3 A corrente conserva-se espacialmente. Não importando quantos elementos exista associados em série, a intensidade da corrente
é a mesma em todos eles.
Para que a intensidade da corrente elétrica seja diferente em regiões diversas de um circuito, deve existir um ou mais nodos ou divisores de
corrente (associações em paralelo) entre essas
regiões. Quando isto ocorre, a corrente se divide, entretanto a soma das intensidades da corrente nas diversas partes é necessariamente
igual à corrente total. 4 A intensidade da corrente elétrica é
determinada pelo local em que ela "está
passando" e pelos locais onde já "passou".
Ela não pode ser influenciada pelos elementos onde ainda "não passou".
4 A intensidade da corrente elétrica em uma região do circuito depende de todo o circuito. O circuito é um sistema, isto é, modificando-se
uma parte do circuito, altera-se a corrente em outras partes.
Somente em situações muito especiais e idealizadas é possível alterar a intensidade da corrente elétrica em uma parte de um circuito sem alterar a intensidade em outras partes.
Vejamos mais um exemplo. Se um aluno acredita que a corrente elétrica é propriedade exclusiva da fonte (isto é, não depende de todo o circuito elétrico externo à fonte), então na questão 4 indicará que o fechamento da chave na figura 4 não alterará o brilho da lâmpada 1.
A última questão do teste, a questão 14, resultou de um experimento realizado por um grupo de alunos da Licenciatura em Física da UFRGS. Notaram o “surpreendente” efeito de observar duas lâmpadas do circuito apagar (deixar de brilhar) enquanto que as demais lâmpadas ainda brilhavam. Como as lâmpadas apagadas se encontravam “no meio” do circuito, o efeito foi mais instigador do que se elas estivessem “na extremidade” do circuito. Certamente para um aluno que possua CA, a primeira lâmpada até poderia estar acesa mas a última de maneira alguma, pois as lâmpadas “intermediárias” se encontravam apagadas.
Esta questão (assim como outras do teste) permite uma rica discussão conceitual sobre circuitos elétricos pois a resposta correta é derivada do entendimento de que a corrente elétrica se conserva mas pode se dividir (sem entretanto nunca “gastar” ou ser “dissipada”). Há que se considerar também que o brilho do filamento da lâmpada (emissão de radiação eletromagnética na faixa do visível, luz) ocorre a partir de uma temperatura elevada do filamento e que tal temperatura somente acontece quando a intensidade da corrente atinge no filamento um determinado valor crítico. Assim, as lâmpadas apagadas na verdade estão também irradiando mas apenas na faixa de infravermelho.
As alternativas consistentes com as concepções científicas sobre corrente elétrica no teste são as seguintes: 1 - c; 2 - a; 3 - b; 4 - a; 5 - b; 6 - b; 7 - c; 8 - c; 9 - a; 10 - c; 11 - b; 12 - b; 13 - a; 14 - c.
III. - Conclusão
Neste artigo apresentamos um teste que permite investigar se um respondente possui ou não possui as concepções científicas sobre corrente elétrica em circuitos simples. Conforme argumentamos, o teste se presta também para uma frutífera discussão conceitual, contrapondo as CA com as concepções científicas. Os aspectos teóricos e conceituais de qualquer corpo de conhecimento em Física devem ser sempre valorizados e anteceder a discussão quantitativa, baseada em “fórmulas” ou “equações”, sob pena de o corpo de conhecimentos não fazer sentido para os aprendizes.
Referências
SILVEIRA, F. L., MOREIRA, M. A. e AXT, R. Validação de um teste para verificar se o aluno possui concepções científicas sobre corrente elétrica em circuitos simples. Ciência e