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O acolhimento silencioso: ética e alteridade em Ser e Tempo

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Academic year: 2021

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From the SelectedWorks of Andre de Macedo Duarte

2008

O acolhimento silencioso: ética e alteridade em Ser e Tempo

Andre de Macedo Duarte

Available at: https://works.bepress.com/andre_duarte/16/

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O acolhimento silencioso: ética e alteridade em Ser e Tempo

André Duarte UFPR/CNPq Eu não sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermédio.

(Mário de Sá Carneiro) Ser outro, outro, outro. Cada um também deveria voltar a ver-se como outro.

(Elias Canetti)

O problema filosófico do reconhecimento da alteridade em Ser e Tempo dá margem a inúmeras controvérsias e discussões, as quais, por sua vez, repercutem na avaliação da ontologia fundamental, sobretudo em relação a sua possível dimensão ética. Para muitos intérpretes, Habermas à frente, a despeito de Heidegger ter re-elaborado a sua herança husserliana, ele ainda teria permanecido prisioneiro das aporias da moderna filosofia da subjetividade, aspecto que se evidenciaria em sua rígida e insolúvel contraposição entre o isolamento solipsista do si mesmo autêntico e a dispersão cotidiana do si-mesmo inautêntico em meio aos outros. Segundo o veredicto habermasiano, Heidegger teria

degradado, desde o princípio, as estruturas fundamentais do mundo da vida que transcendem o Dasein isolado, ao tomá-las como estruturas da existência cotidiana média, ou seja, do Dasein inautêntico. Por certo, a coexistência dos outros parece ser, a princípio, um traço constitutivo do ser-no-mundo. Mas a prioridade da intersubjetividade do mundo da vida sobre o caráter de ser meu do Dasein escapa a todo aparato conceitual ainda tingido pelo solipsismo da fenomenologia husserliana. (Habermas 1995, p. 149)

Tal deficiência teórica lhe teria vedado o acesso a uma genuína consideração do outro e da intersubjetividade, obstruindo a via de uma reconstrução pós-metafísica da ética.

Há inclusive quem pense tratar-se aí de um indício suficiente a respeito dos motivos

teóricos que teriam levado Heidegger a envolver-se com o regime político que melhor

demonstrou o esgarçamento e a supressão da ética no cenário político do século XX, o

Nacional-Socialismo. Nesta linha de raciocínio, Richard Wolin afirma que se Heidegger

não elaborou uma ética é porque seu pensamento retrocedeu aquém do campo conceitual a

partir do qual a filosofia moderna confrontou a dimensão ética da existência humana, o

campo da autonomia do sujeito moral, redefinido, na filosofia contemporânea, de modo a

incorporar o caráter intersubjetivo do exercício dialógico dessa autonomia. Ao recusar esta

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ética, daí resultando, também, o comprometimento político de sua filosofia (Wolin 1990, pp. 53,65,149-50).

A presente investigação, por sua vez, questiona exatamente as interpretações que enfatizam o “solipsismo existencial” do Dasein resoluto e o tomam como sintoma de que Heidegger teria desconsiderado o problema ético do reconhecimento do outro e da alteridade em sua analítica existencial. A fim de liberar o potencial ético implícito na analítica da existência será preciso instaurar uma dupla argumentação: em primeiro lugar, se trata de problematizar a tese de que a ausência de uma fundamentação ética ou epistemológica implique a ausência de uma consideração do problema ético na fenomenologia ontológica de Heidegger. Em segundo lugar, trata-se de questionar o entendimento tradicional de que o Dasein resoluto enclausura-se em si mesmo e perde o outro de vista.

Quanto ao primeiro aspecto do problema, não penso que a recusa heideggeriana em considerar a intersubjetividade como o fundamento racional-lingüístico da ética constitua uma razão suficiente para se afirmar que Heidegger confinou sua filosofia no domínio do anti-ético. Se penso que Ser e tempo contém os traços de uma certa ética, então, tratar-se-á aí de uma ética pós-metafísica, que prescinde do recurso a qualquer fundamentação última, ao mesmo tempo em que permite vislumbrar a possibilidade de um modo determinado de ser com o outro, aquele que deixa o outro ser outro, inspirado no acolhimento gratuito, silencioso e agradecido, alheio à violência cotidiana. Uma ética pós-metafísica é destituída de fundamentos últimos destinados a assegurar o comportamento ético no mundo por meio de um conjunto de procedimentos lingüísticos intersubjetivos e universalizáveis, mas, nem por isto, mostra-se como impossível ou quimérica. Antes, trata-se de detectar em Ser e tempo as sutis implicações, desprovidas de quaisquer garantias teóricas, da possibilidade de reconhecer a alteridade do outro a partir do reconhecimento e assunção da finitude própria.

Na medida em que referida ao desamparo fundamental (Hilflosigkeit) do Dasein (Heidegger 1988, p. 401), uma ética pós-metafísica tem de deixá-lo entregue a si mesmo, no sentido de entregá-lo à responsabilidade própria de existir sem recorrer a quaisquer critérios prévios de determinação do caráter ético de sua conduta em relação aos outros.

Superada a concepção de que a ausência de uma tematização e fundamentação da ética no

escopo de Ser e tempo sinalizariam a indiferença ética de Heidegger, então se abre o

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caminho para a consideração das implicações éticas pós-metafísicas da ontologia fundamental e do pensamento heideggeriano em sua totalidade. Se Heidegger jamais concedeu primazia à ética em relação à Seinsfrage, a questão do ser, isto não significa que Ser e Tempo não contenha importantes “implicações de ordem ética” (Nunes, 1992, p. 121), nem tampouco impede a formulação de uma tese ainda mais forte, a de que “a filosofia de Heidegger, tanto a de Ser e Tempo, como a da segunda fase, é, em si mesma, uma ética”

(Loparic, 1995, p. 58).

Em relação ao segundo aspecto do problema, relativo ao suposto solipsismo do Dasein resoluto e apropriado de seu “ser para a morte”, gostaria de argumentar que tais existenciais não favorecem o isolamento ou a irresponsabilidade. Antes, e por outro lado, o ser para a morte enquanto resolução antecipatória instaura a possibilidade de uma abertura genuína e acolhedora em relação ao outro, tendo como sua possível conseqüência a liberação da amizade autêntica, compreendida como o modo próprio da relação ética que reconhece a si mesmo e ao outro enquanto alteridade. A chave para uma leitura ética da analítica existencial se encontra, portanto, na discreta articulação estabelecida por Heidegger entre os parágrafos 26 e 34, nos quais se discutem os existenciais da coexistência e do discurso, e os parágrafos 40 e 54-60, nos quais se revela o estranho apelo da alteridade que já habita cada um. Esta, por sua vez, é a condição ontológica do reconhecimento de si e do outro enquanto singularidades irredutíveis. Trata-se de demonstrar, pois, que Heidegger pensou o enraizamento da alteridade na própria ipseidade (Selbstheit), recusando-se a encerrar o si-mesmo (Selbst) no plano conceitual da identidade (Identität), pensada enquanto permanência do ‘mesmo’ ou do ‘idêntico’ no tempo. Luiz Bicca expressou um argumento semelhante ao afirmar que, “em Heidegger, manifesta-se uma diferença entre a identidade que supõe permanência (ou substancialização) e a ipseidade, diferença esta que é uma diferença de modos de ser” (Bicca 1999, p. 8).

Para os propósitos deste texto, importa salientar a redefinição heideggeriana das

bases teóricas em que a questão do outro vinha sendo discutida no âmbito da

fenomenologia e da hermenêutica clássica. Em relação a Husserl, já não se tratava mais de

estabelecer a fundação filosófica primeira por meio da redução transcendental, para, então,

compatibilizar o eu transcendental com um outro ego constituinte no contexto

intersubjetivo do mundo da vida. Em relação a Dilthey, já não se tratava mais de

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compreender as objetivações humanas em termos da transposição do eu para as vivências do outro, segundo o pressuposto de que todo encontro com o outro é também um encontro do espírito consigo mesmo. Segundo a formulação de Gadamer, tanto em Dilthey quanto em Husserl o problema da intersubjetividade e da compreensão do outro requeriam um pensamento analógico: o outro era sempre pensado como um “alter-ego” apreendido teoricamente, isto é, “como uma coisa da percepção, que, então, por meio da empatia, torna-se um ‘tu’” (Gadamer 1990, pp. 254-5). Anos mais tarde, nos famosos seminários de Zollikon, Heidegger afirmaria que “a teoria psicológica usual segundo a qual se percebe o outro pela ‘empatia’, pela ‘projeção’ de si mesmo no outro, não significa nada, porque a representação de uma empatia e de uma projeção sempre já pressupõem o ter compreendido o outro como outra pessoa, senão eu estaria projetando para dentro do vazio” (Heidegger 2001, p. 184). Para Heidegger, já não se deveria mais perguntar pelo fundamento epistemológico que garantiria a unidade essencial intersubjetiva entre duas consciências que se encontram lado a lado, mas isoladas entre si no mundo. Na analítica ontológica da existência, o outro deixa de ser apreendido como um “duplo do si-mesmo” (eine Dublette des Selbst, §26) para ser concebido como aquele ‘com’ o qual já coexisto no mundo comum das ocupações e preocupações cotidianas, segundo o modo de ser da abertura que compreende ser. Com a ruptura definitiva da cápsula epistemológica da consciência, o outro e o mundo deixaram de ser pensados como se fossem territórios alienígenas e alheios ao eu: o mundo se transformou num horizonte de sentidos compartilhados por entes que se compreendem e que, portanto, se encontram sempre uns com os outros, e não uns “ao lado dos outros” no “mundo exterior”.

Em Ser e Tempo, a desmontagem desses dilemas teóricos se torna claramente

identificável no §26, no qual se tematiza o ser-no-mundo como ser-com os outros. Ali se

demonstra que o encontro do outro já tem de ser considerado no âmbito de uma análise

ontológica da lida cotidiana das “ocupações” (Besorgen) e “preocupações” (Fürsorge)

mundanas, instância que é ontologicamente anterior em relação ao questionamento teórico

pela natureza do outro Dasein. Para que eu possa me interrogar se aquele que se assemelha

a mim apresenta uma constituição ontológica idêntica à minha, já é preciso que eu o tenha

descoberto previamente como um outro ser-aí num mundo circundante comum. Afinal,

como argumentou Olafson, “quando, já adultos, simulamos interrogar se existem outras

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mentes além da nossa, estamos na realidade tentando colocar em questão algo que nos permitiu chegar àquele ponto a partir do qual pudemos propor essa questão” (Olafson 1999, p. 25). Heidegger insiste em que os outros não são algo que se acrescenta a uma coisa- sujeito dada em isolamento por intermédio de suas representações, nem tampouco são todos aqueles, além de mim, em relação aos quais eu me encontro isolado. O que importa salientar é que ser-com os outros não significa a somatória ou a mera justaposição de um existente ao lado de outro, e assim sucessivamente, do mesmo modo como ser-no-mundo não significa que algo meramente subsistente (vorhandene) esteja inserido em um continente dado. Antes, ser-no-mundo é ser-com os outros com os quais se coexiste em um mundo comum, cuja totalidade originária dos nexos de referência significativa já está sempre e de antemão aberta, isto é, compreendida na linguagem e mesmo pré- lingüisticamente.

Os outros são todos aqueles em meio aos quais já sempre se está, e em relação aos

quais, o mais das vezes, ninguém se diferencia. Não por acaso, neste momento inicial da

analítica a própria menção aos outros se torna ambígua e eles são mencionados, algumas

vezes, entre aspas, pois se trata aí de outros que podem ser substituídos por quaisquer

outros, dos quais eu não me distingo e que não se distinguem de mim mesmo. Heidegger

chega mesmo a afirmar que “esse conviver dissolve inteiramente o próprio Dasein no modo

de ser ‘dos outros’, de tal modo que os outros em sua diferença e expressividade

desaparecem ainda mais” (Heidegger 1986, p. 126). Também não é gratuito, portanto, que a

preocupação para com os outros que caracteriza a convivência cotidiana e mediana se dê,

predominantemente, nos modos da “deficiência” e “indiferença”, descritos genericamente

em termos do “ser por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado um do

outro, o não se sentir tocado pelos outros” (Heidegger 1986, p. 121). Deste modo, Michel

Haar tem razão ao afirmar que “não há cotidianidade sem que a alteridade do outro já não

esteja implicada, invocada, utilizada, mas, ao mesmo tempo, recalcada, negligenciada e,

finalmente, negada. A cotidianidade se funda sobre o modo ‘deficiente’ do ser da

convivência” (Haar 1994, p. 67). O mais das vezes e em primeiro lugar o outro não me é

em nada estranho, não o compreendo enquanto alteridade irredutível, pois ele já foi sempre

reconhecido como um semelhante em relação ao qual sou indiferente, desconfiado, hostil,

bajulador, companheiro etc. Em meio à neutralidade genérica e indiferenciada do cotidiano,

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em que o eu e o outro se tornam indistintos, ainda que busquem interpor continuamente pequenas diferenças entre si, impõe-se a conclusão de que “cada um é o outro e nenhum é ele mesmo”, como afirmado no § 27. Eis porque Levinas acusou Heidegger de privar o Dasein do acesso ao ‘rosto’ do outro, encobrindo-o por detrás da interpretação pública que predefine quem são eles à luz das mais variadas codificações sociais, culturais e históricas.

Para Levinas, compreender o outro é já não tê-lo encontrado como “rosto”, pois “o humano só se oferece a uma relação que não é poder” (Levinas 1997, pp. 26-33, passim). Em uma passagem que parece confirmar o veredicto de Levinas, Heidegger chega mesmo a afirmar que,

de início, o outro está ‘aí’ pelo que se ouviu impessoalmente dele, pelo que se sabe e se fala a seu respeito. O falatório logo se insinua dentre as formas de convivência originária. Todo mundo presta primeiro atenção em como o outro se comporta, no que ele irá dizer. A convivência no impessoal não é, de forma alguma, uma justaposição acabada e indiferente, mas um prestar atenção uns nos outros, ambíguo e tenso. Trata-se de um escutar uns aos outros secretamente. Sob a máscara do por um outro, o que realmente acontece é a oposição entre um e outro (Heidegger 1986, p. 174-5).

Entretanto, não esqueçamos de que esta é apenas a metade do percurso da analítica existencial, que prossegue justamente na direção de um questionamento que se revelará profundamente ético, pois capaz de reconhecer o outro em sua alteridade. Neste momento, entretanto, cabe enfatizar que, compreendendo a si e aos demais a partir do mundo compartilhado nas ocupações do mundo circundante, o Dasein existe segundo o modo de ser em que o “eu” pode vir a se manifestar como “o seu ‘contrário’”, isto é, a partir de um

“modo de ser determinado do próprio ‘Eu’”, denominado como a “perda de si mesmo”

(Selbstverlorenheit, § 25). Isto significa que o eu e o sujeito não são mais pensados como isolados dos outros e do mundo, pois não são concebidos como o substrato da auto- reflexão, como o subjectum transcendental que se pensa e acompanha seus atos, permanecendo sempre o mesmo no tempo, a despeito da variação de suas representações.

Como observou Jean Greish, aventar a possibilidade de que o Dasein não seja ele próprio

na cotidianidade não significa roubar-lhe a ipseidade, mas sim confirmá-la: afinal, não ser

si mesmo é ser no modo da impropriedade, o que não é o mesmo que ser no modo da pura

subsistência (Greish 1994, p. 158). Para cortar pela raiz o perigo da coisificação do eu ou

do sujeito, Heidegger redefiniu o conceito de “existência” (Existenz), que já não designava

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mais o conteúdo qüididativo, a essentia do ente que sou, mas constituía a “indicação formal” de que, na medida em que sou, comporto-me em relação ao ser que é “sempre meu” (Jemeinigkeit), e que “tenho de ser” segundo as possibilidades fundamentais de ser ou não ser si-mesmo, isto é, de ser no modo da “propriedade” (Eigentlichkeit) ou da

“impropriedade” (Uneigentlichkeit §9). Sobre a base dessa distinção, abriu-se a via de acesso à cisão ontológica constitutiva da existência, bifurcada em seus dois modos fundamentais de ser, o que, por sua vez, suscita a questão a respeito da modificação existenciária da impropriedade em propriedade do Dasein. No entanto, antes de passarmos a essa discussão, vejamos como Heidegger caracteriza o ser-no-mundo em sua cotidianidade mediana.

Heidegger responde à questão a respeito do “quem” do Dasein cotidiano no famoso parágrafo 27, definindo-o como o “impessoal” (das Man) ou o “ninguém”. Absorto em seus afazeres mundanos, em meio à ubiqüidade da coexistência com os outros e em meio à

“interpretação pública” de tudo o que é, o si-mesmo do Dasein cotidiano torna-se indistinguível do de qualquer outro, a tal ponto em que os outros lhe tomam o próprio ser, retirando-lhe o “peso” da responsabilidade de existir. Em outras palavras, ele se interpreta a partir dos preconceitos já sempre instituídos historicamente, os quais prefiguram, regulam e retroagem sobre sua interpretação de si mesmo e de tudo o que há, de sorte que as suas escolhas e decisões são determinadas pelo si-impessoal que ele já é na cotidianidade.

Coexistir é já estar sempre entregue a um poder anônimo e anódino, aquele que pré-define as regras, padrões e parâmetros históricos de regulação cotidiana da abertura que somos, donde a primazia da interpretação pública da totalidade dos entes, fundada no discurso como existencial constitutivo do ser do Dasein. Segundo Taylor Carman, o discurso estabelece uma ponte entre “a normatividade social anônima do das Man e as práticas interpretativas concretas dos agentes humanos individuais” (Carman 2000, p. 20). A fórmula heideggeriana do § 27 é lapidar e merece ser citada na íntegra:

O si-mesmo do Dasein cotidiano é o si-impessoal, que nós diferenciamos do si-

mesmo próprio, isto é, do si-mesmo apreendido propriamente. Enquanto si-impessoal, cada

Dasein está disperso no impessoal e tem, primeiramente, que se encontrar. Essa dispersão

caracteriza o “sujeito” do modo de ser que nós conhecemos como a ocupação absorvida no

mundo que vem imediatamente ao encontro. Se o Dasein está familiarizado consigo mesmo

enquanto si-impessoal, então isso também significa que o impessoal prelineia a

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sentido do si-mesmo próprio, mas sou os outros no modo do impessoal. É a partir deste, e enquanto este, que eu sou “dado” primeiramente a “mim mesmo”. De início o Dasein é impessoal e assim permanece o mais das vezes. (Heidegger 1986, p. 129).

No entanto, afirmar que a publicidade age no sentido de nivelar todas as possibilidades de ser do Dasein não é o mesmo que afirmar a impossibilidade de uma apropriação de si, como se verá mais adiante. O que se enuncia, aqui, é apenas a possibilidade existencial de que o poder-ser que o Dasein ‘é’ se feche numa interpretação de si que apenas se compreende enquanto realidade mundana que se esgota nos seus afazeres e preocupações diárias consigo e com os outros. Esse modo fundamental de ser do Dasein cotidiano, que submerge no mundo das ocupações preocupadas, é definido, no parágrafo 38, como o “estar perdido” (Verlorensein) na publicidade do impessoal, condição existencial positiva denominada por Heidegger como a “decadência” (Verfallen) do Dasein.

O parágrafo 38 apresenta várias ciladas interpretativas, as quais distorcem e mesmo impossibilitam uma compreensão adequada da analítica. Se, por um lado, o Dasein já se encontra cotidianamente caído de si mesmo enquanto poder-ser próprio, e se, por outro, a decadência não é uma mera circunstância ôntica que pudesse ser suprimida, então, como pensar que ele possa se apropriar de si mesmo? Uma das respostas mais freqüentes é a de que o Dasein apropriado de si não passa de uma quimera, pois ele teria se arrancado do mundo comum compartilhado para experimentar uma existência impossível, visto que radicalmente isolada em relação aos demais: temos aí a origem da crítica ao suposto solipsismo existencial da analítica. O que se faz preciso mostrar é que a condição existencial da decadência não é contraditória com a possibilidade da “modificação existenciária” que desencobre a propriedade de si mesmo, visto que a “singularização”

(Vereinzelung, § 40) proposta por Heidegger não isola o Dasein do mundo comum

compartilhado e da coexistência com os outros. Afinal, a “existência própria não é algo que

paire por sobre a cotidianidade cadente, mas, em sua estrutura existencial, apenas uma

apreensão modificada desta” (Heidegger 1986, p. 179). Em suma, trata-se de demonstrar

que se a decadência define o manter-se no “fechamento” (Verschlossenheit) do poder-ser

mais próprio enquanto modalidade privativa da abertura (§ 44), tal condição existencial

pode ser modulada e modificada de modo a possibilitar que, na queda, o Dasein salte da

impropriedade para a propriedade de si mesmo, para logo recair na impropriedade. Se deste

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salto advém um ganho, este se manifesta na abertura das “relações de ser primárias e autenticamente originárias para com o mundo, a coexistência e o ser-em” (Heidegger 1986, p. 170). Do mesmo modo, é preciso ressalvar que se a publicidade age no sentido de nivelar todas as possibilidades de ser do Dasein, isto não implica a impossibilidade de uma apropriação de si e da linguagem. Afinal, não está descartada por princípio a possibilidade de que o Dasein apropriado de si possa exprimir publicamente uma interpretação não mediana de si, dos outros e dos entes intramundanos, confrontando-se, no interior mesmo da publicidade cotidiana, com aquilo que desde sempre já se diz e já se disse a respeito do que quer que seja.

A apropriação de si que abre a possibilidade da modificação da impropriedade do si mesmo impessoal tem de ser compreendida como uma modificação existenciária (existenziell modifikation) da “total absorção” (völlig benomen) do Dasein no mundo das ocupações e preocupações comuns. Se tal modificação não pode eliminar as determinações existenciais niveladoras como o “falatório”, a “curiosidade” e a “ambigüidade”, pode ao menos transformar o caráter “tentador” e “tranqüilizador” implicado na entrega absoluta do Dasein à rigidez da interpretação pública de si e de tudo mais, em meio à qual se encobre a facticidade de um ente que é aquilo que pode-ser. Se o ritmo agitado do “turbilhão”

cotidiano não pode ser estancado de uma vez por todas, nem por isso Heidegger deixou de

conceber a possibilidade existenciária de que o Dasein atenue as tentações tranqüilizantes

que “agravam” (steigert) a decadência, alienando-o em relação à sua precariedade

ontológica constitutiva. O aspecto importante aqui é a menção heideggeriana de que o

Dasein prepara para si as condições que, acentuando a decadência, mergulham-no em um

estado de alienação (Entfremdung) que o aprisiona no modo de ser da impropriedade

cotidiana, aferrando-o a uma identidade mundana que corresponde à perda de si mesmo. Se

a impropriedade é o modo de ser em que o Dasein existe o mais das vezes e em primeira

aproximação, isto, entretanto, não significa que ela seja seu modo de ser mais próprio e

originário. Ademais, se a publicidade e o falatório atuam de maneira a nivelar as

possibilidades mais próprias do Dasein, isto também não quer dizer a impossibilidade de

uma apropriação genuína de si mesmo e do discurso, compreendido como articulação

significativa da fala, da escuta e, sobretudo, do silêncio. A fim de compreender o caráter

sutil e silencioso dessa transformação modificadora de si mesmo, gostaria de argumentar

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que o Dasein resoluto não rompe seus laços essenciais com o mundo e com os demais, pois há uma diferença fundamental entre singularização e solipsismo. Ademais, como argumenta Heidegger, o Dasein resoluto abre para si a possibilidade de ser a “consciência dos outros” (§60), possibilidade de ser que lhe permite saltar para diante do rosto do outro no modo extremo da preocupação antecipadora que libera o outro para o seu poder-ser mais próprio (§26), modo particular da coexistência que bem poderia ser caracterizado em termos da amizade genuína.

A modificação existenciária da condição existencial da decadência, em que o Dasein se encontra perdido e decaído de seu si mesmo próprio, é concebida por Heidegger como uma modificação da fuga cotidiana em relação a seu poder-ser mais próprio. Tal modificação começa a ser explicitada na análise fenomenológica da angústia, disposição que, por não possuir qualquer referente mundano detectável que pudesse inspirar temor, tem de ser compreendida como angústia em face da inexplicável facticidade de um ente lançado no ser sem mais nem porquê: o Dasein angustia-se com a manifestação súbita do vazio de significação de sua existência lançada no mundo e entregue à sua própria morte.

Angustiar-se é tornar-se “estranho” (unheimlich, §40) e expatriado em sua própria casa, o mundo, solapando-se a falsa certeza cotidiana a respeito de nossa identidade mundana, estruturada na teia da significância compartilhada, cuja compreensão prévia permite nosso ocupar-se e preocupar-se com os outros no modo da impropriedade decadente. Na angústia, o Dasein sucumbe ao estranhamento diante da súbita irrelevância dos entes intramundanos e o mundo comum das ocupações preocupadas assume o “caráter da total insignificância”

(Heidegger 1986, p. 186). A rede total da significância previamente aberta na compreensão

de ser “afunda em si mesma” para aparecer ao Dasein como trama de sentidos desprovida

de qualquer amparo ou fundamento identificável, ao mesmo tempo em que a premência das

ocupações preocupadas também acaba por se mostrar como uma frágil proteção identitária,

que então se esfacela. É justamente em meio à perturbação da interpretação pública de si e

de tudo mais que se entreabre, num vislumbre, a possibilidade do reconhecimento do outro

de nossa identidade cotidiana, isto é, do outro que já portamos conosco e do qual fugimos

sem saber, mas, de certo modo, dele sabendo. Compreende-se, então, que o esquecimento

de si na decadência impessoal das ocupações e preocupações resulta de uma possibilidade

mais fundamental que se mantém o mais das vezes encoberta, mas que é constitutiva da

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nossa cisão existencial. A familiaridade com o mundo comum proporcionada pela publicidade impessoal do cotidiano decadente não é a instância primeira e mais originária do ser-no-mundo, mas é ela mesma derivada, resultando de uma fuga da estranheza (Unheimlichkeit) e do não estar em casa (Nicht-zuhause-sein) no mundo comum das ocupações cotidianas compartilhadas, marca singular de uma existência que, sendo no mundo, não pertence inteiramente a ele de direito. O Dasein foge de si para a perdição no impessoal na medida em que se desvia da estranheza originária, a qual desestabiliza a certeza de si (Selbstsicherheit) do Dasein familiarizado consigo e com tudo o que é por meio da interpretação pública. A fuga diante de si é, portanto, um desvio em relação ao abismo (Abgrund) da “positividade existencial do nada da angústia”, isto é, em relação ao poder-ser livre para a propriedade de si mesmo, aberto na angústia como “disposição fundamental da estranheza” (Heidegger 1988, GA 20, p. 402.).

A angústia é definida como uma disposição fundamental porque é nela que o Dasein se descobre como o poder-ser próprio ou impróprio que ele sempre já é, ao mesmo tempo em que ela desvela a impropriedade como modo derivado de ser, enraizado na estranheza originária de um ente que é sem porquê. Ao contrário das interpretações que distinguem e isolam a propriedade da impropriedade da existência, Heidegger enfatiza que apenas um

“muro tênue separa o impessoal da estranheza de seu ser” (Heidegger 1986, p. 278), o que,

por sua vez, tem por conseqüência afirmar que o Dasein apropriado de si não pode ser

entendido como um ente alheio aos rumos e ritmos da ocupação e da preocupação

compartilhados no mundo comum. Por isto, Heidegger também afirma que o “solipsismo

existencial” implicado na singularização proporcionada pela angústia não converte o

Dasein numa “coisa-sujeito isolada no vazio inofensivo de uma ocorrência desprovida de

mundo” (Heidegger 1986, pp. 188-9). Por certo, os outros não participam desse processo de

singularização; no entanto, não há aí qualquer recusa da originariedade constitutiva do ser-

com os outros, nem qualquer isolamento ou egoísmo metafísico implicados no principium

individuationis descrito por Heidegger. Afinal, se é certo que “a angústia ... retira o Dasein

de sua imersão decadente no ‘mundo’” (Heidegger 1986, p. 189), é preciso não esquecer

que tal singularização pode ter importantes conseqüências éticas, pois ela pode tornar o

Dasein “compreensivo para o poder-ser dos outros, na condição do ser-com” (Heidegger

1986, p. 264).

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Entretanto, a angústia não é a instância suficiente da apropriação de si mesmo, pensada como apropriação do outro que trago junto a mim e que me abre para o reconhecimento do outro em sua alteridade. Aquilo que a angústia desvela ainda tem de ser atestado e querido pelo Dasein, e este é o tema discutido na análise fenomenológica do chamado da consciência. A despeito das aparências, Heidegger abandona a ficção moderna do sujeito soberano capaz de uma deliberação racionalmente fundada, isto é, capaz de calcular o que é melhor para si. Em seu lugar, surgirá uma figura do humano que prima por sua extrema humildade e passividade, sinal fundamental da irrupção do outro em si mesmo, desfazendo-se, assim, o primado da impropriedade cotidiana. Na medida em que o chamado da consciência atesta a possibilidade da singularização do Dasein, ele mesmo é aquele que chama e que é chamado. Heidegger insiste que o chamado interpela o si- impessoal e o traz para a propriedade de si mesmo, interrompendo a escuta ambígua e curiosa ao falatório, de maneira a instaurar uma outra escuta de si mesmo, que abra a sua compreensão para o seu poder-ser mais próprio.

O clamor da consciência atinge o si-impessoal em seu “já-se-ter-compreendido” na cotidianidade mediana das ocupações e preocupações, tornando-o “insignificante”. A interrupção do ruído ambíguo e curioso do falatório público dá-se por meio de um modo do discurso que prescinde da verbalização, de maneira que tal clamor opera “sempre e apenas no modus do silêncio” (§ 56). Esta “voz estranha”, com a qual “o si-impessoal cotidiano não está familiarizado” (§ 57), prescinde do falatório da publicidade e desafia o alarido incessante da interpretação pública, levando o Dasein a “aquietar-se na quietude de si mesmo” (§ 60). Tal voz “provém de mim e, no entanto, por sobre mim” (§ 57), com o que se quer sugerir que o clamor me atinge de maneira indubitável e sem qualquer mediação, dando-me a compreender o débito de fundamento que sou (Schuldigsein), sem, no entanto, que ‘eu’ seja o agente racional e consciente deste efeito. O chamado ‘se’ impõe (‘Es’ ruft,

§57) a mim num “momento de impacto, de sobressalto brusco” (§ 55), de modo que não

posso esperá-lo, planejá-lo ou desejá-lo. No entanto, nada há neste chamado que seja

misterioso, pois quem “quer ter consciência” (Gewissen-haben-wollen) compreende o que

aí se enuncia e responde na resolução existencial, que não possui qualquer conteúdo, mas

apenas modifica formalmente nossa compreensão de nós mesmos, dos outros e dos demais

entes encontrados no mundo. Como afirmou Françoise Dastur, “voz aqui não significa

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auto-presença imediata: pelo contrário, ela revela que o eu não é íntimo consigo, ou, melhor ainda, que o eu somente existe na não coincidência entre duas vozes, cotidianidade e consciência ...” (Dastur 2002, p. 94).

O chamado da consciência dá a compreender a estranheza fundamental do existente lançado que se projeta cotidianamente para as possibilidades mundanas de seu ser, mas que, entretanto, tem na morte a sua possibilidade mais própria e o seu nada positivo de fundamento. Compreender-se a si mesmo enquanto poder-ser próprio é reconhecer-se como o mortal que se é, ou seja, reconhecer a finitude ontológica como a instância possibilitadora de toda e qualquer possibilidade mundana, escolhida a partir da propriedade de si. A morte, compreendida existencialmente, não é um evento exterior ao Dasein, nem tampouco pode ser pensada como o encerramento das suas funções biológicas, como a realidade do colapso vital que apenas um dia, mas não agora, lhe irá sobrevir. Segundo o conceito existencial da morte, o Dasein “morre continuamente durante o tempo em que ainda não deixou de viver”

(Heidegger 1986, p. 259), de sorte que se trata sempre de pensar o “ser-para-a-morte” como a antecipação de uma possibilidade extrema, a qual, entretanto, tem de permanecer apenas enquanto a possibilidade possibilitadora de tudo o mais. Assim, o existente que foge e se esquiva continuamente do seu “ser-para-a-morte” não foge de um evento real e fatídico que, um dia, finalmente há de se impor, mas se desvia do seu ser-possível e, assim, da sua possibilidade de ser-outro. Esta renúncia resoluta da impessoalidade é, simultaneamente, o reconhecimento das suas possibilidades mundanas finitas (endliche) e situadas, bem como o seu tornar-se livre para a liberação das possibilidades de ser dos outros. Estes argumentos encontram sua síntese mais enfática no § 60, no qual se explicita a dimensão ética da analítica, ao menos a quem souber escutá-la:

A decisão não desprende o Dasein, enquanto ser-si-mesmo mais próprio, de seu mundo, ela não o isola num eu solto no ar. E como poderia se o Dasein, no sentido da abertura própria, nada mais é propriamente do que ser-no-mundo? (...) Somente a decisão de si mesmo coloca o Dasein na possibilidade de, sendo com os outros, se deixar ‘ser’ em seu poder-ser mais próprio e, juntamente com este, abrir a preocupação que libera numa antecipação. O Dasein decidido pode se tornar a ‘consciência’ dos outros. Somente a partir do ser si mesmo mais próprio da decisão é que brota a convivência própria, e não dos compromissos ambíguos e invejosos das alianças tagarelas características do impessoal, e nem de qualquer coisa que, impessoalmente, se queira empreender (Heidegger 1986, pp.

297-98, minha ênfase).

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Tais considerações permitiriam reconhecer que Heidegger, ao pensar a assunção do ser para a morte como o princípio supremo de individuação, não manteve a ipseidade singular assim desvelada em radical isolamento em relação aos outros. Se uma tal hipótese interpretativa estiver correta, então também será possível compreender o sentido de uma enigmática afirmação heideggeriana do parágrafo 34, segundo a qual “escutar é o estar aberto existencial do Dasein enquanto ser-com para os outros. O escutar constitui até mesmo a abertura primeira e própria do Dasein para o seu poder-ser mais próprio, enquanto escuta da voz do amigo que todo Dasein traz junto a si” (Heidegger 1986, p. 163). 1 É certamente possível pensar este apelo como a “voz anônima – neutra ou branca” – da

“alteridade do ser ou do nada” em relação ao todo dos entes, conforme a sugestão de J.-F.

Courtine (Courtine 1990, pp. 350 e 343). Aqui, entretanto, seguimos outra sugestão, orientada pela concepção de que a individuação heideggeriana, a despeito de marcada pelo solipsismo existencial, não é necessariamente avessa ao reconhecimento da alteridade do outro fático em sua existência mundana. A hipótese interpretativa aqui defendida é corroborada pela interpretação do chamado da consciência proposta por Paul Ricoeur, para quem “a alteridade não se acrescenta a partir de fora à ipseidade, como que para prevenir a deriva solipsista, mas pertence ao conteúdo de sentido e à constituição ontológica da ipseidade” (Ricoeur 1990, p. 367).

É por meio da escuta e resposta decidida à voz do outro que já trago junto a mim que eu me torno responsável, não apenas por quem sou e pelo que faço no mundo, mas também pelos outros em sua alteridade, no modo específico da preocupação liberadora, anunciada no § 26 (vorspringend-befreienden Fürsorge). Tal preocupação solícita, que não pretende dominar ou subjugar o outro, poderia ser exemplificada no plano ôntico como uma possível forma da amizade, talvez a sua forma mais genuína, rara e estranha. Heidegger não o diz explicitamente, mas se a presente interpretação se sustenta, então podemos inferir que uma tal escuta à alteridade que já se é permite o ensejo de escutar o amigo como outro e, portanto, calar-se diante dele, abstendo-se de ditar-lhe conselhos e indicações quanto ao que verdadeiramente importa em seu existir. Em primeiro lugar, porque ninguém está de posse de uma medida universal que pudesse esclarecer o que é objetivamente melhor para o outro. Além disso, tratar o outro como outro não pode significar pretender substituí-lo em

1

A este respeito ver também Derrida, J.(1994), Finsk, C. (1993), Vogel, L. (1994) e Reis (1998).

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seus próprios cuidados e ocupações, o que implicaria dominá-lo e, portanto, mantê-lo sob o jugo da dependência, ainda que suave. Para além deste modo positivo da preocupação no qual o outro é aliviado do peso de sua existência, protegido de sua responsabilidade ou simplesmente visto como objeto de interesse, desconfiança ou temor, Heidegger também considerou, no §26, um outro modo positivo e extremo da preocupação, no qual o pôr-se diante do outro não suprimiria nem supriria suas ocupações e necessidades, mas cuidaria do outro ao restituir-lhe ao próprio cuidado de si. Exemplifica-se aí um modo da preocupação que concerne ao encontro do outro em seu poder-ser mais próprio, que o ajuda a tornar-se

“livre” e “transparente” para o que ele propriamente é (Heidegger 1986, p. 125). Ora, a amizade em um sentido não convencional pode ser justamente este modo raro da convivência em que o tornar-se a “consciência do outro” não implica proferir-lhe exortações morais, mas, sim, um falar que não opõe a claridade à escuridão, preservando, assim, a precariedade e a distância que garantem a possibilidade de um encontro genuíno.

Tais possibilidades da coexistência são realmente possíveis?

Um dos mais belos exemplos de tal coexistência silenciosa e respeitosa entre um e

outro é exemplificada no recente filme coreano de Kim Ki-duk, Casa vazia. Nele, do

começo ao fim se contrapõem a violência física e verbal de todos os personagens, ao

silêncio absoluto de Tae-suk, uma espécie de Bartleby samurai que preferiria não falar, e de

sua frágil companheira, Sun-hwa. Ao longo de todo o filme, Tae-suk não diz uma só

palavra; se se faz compreender, isto se dá por meio de seus olhos e, sobretudo, por suas

mãos, que diligentemente cuidam das coisas e das pessoas que ele encontra no interior das

casas vazias que furtivamente ocupa, para logo abandoná-las. Sem domicílio próprio, Tae-

suk vive como hóspede eventual e não convidado, servindo-se daquilo que encontra nas

casas que habita enquanto seus proprietários se encontram ocupados e preocupados com a

rotina de seus afazeres cotidianos. Em sinal de retribuição, limpa a casa, conserta os seus

objetos quebrados, lava a roupa suja dos proprietários, cuida de suas plantas. Certa vez, ao

ocupar uma elegante mansão, Tae-suk é observado à distância por Sun-hwa, uma jovem

cujo rosto estampa as marcas da violência do marido. Quando finalmente se encontram, não

é necessário dizer nada: ambos reconhecem-se em sua diferença e entre eles cresce

imediatamente um halo magnético de silêncio que, longe de exprimir egoísmo, indiferença

ou auto-suficiência, transpira um acolhimento cuja pureza e intensidade jamais poderiam

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ser provocados pela palavra ordinária. Daí por diante, Tae-suk e Sun-hwa terão de enfrentar a violência dos poderes dialógicos constituídos, e quase não há fala ao longo do filme que não manifeste a mais extrema crueldade. Por fim, o silêncio se impõe ao falatório e os dois personagens protagonizam algumas das mais belas cenas de entrega ao cuidado de si e do outro. Não se trata propriamente de amor, mas de acolhimento irrestrito. Paul Celan (Celan 1999) expressou tal possibilidade precária do encontro genuíno entre um e outro em dois poemas exemplares, com os quais gostaria de encerrar meu texto:

“DISTÂNCIAS”

“Olho no olho, no frio,

deixa-nos também começar assim:

juntos

deixa-nos respirar o véu

que nos esconde um do outro ...”

“FALA TAMBÉM TU fala por último,

diz teu falar.

Fala –

Mas não separa o não do sim.

Dá ao teu falar também o sentido:

dá-lhe a sombra.

Dá-lhe sombra bastante, dá-lhe tanta

quanto sabes dividir em ti entre meia-noite e meio-dia e meia-noite.

Olha em volta vê a vida ao redor – Na morte! Viva!

Fala a verdade quem sombras fala”.

Se é certo, como observou Ricoeur, que “a ontologia vela sobre o limiar da ética”, pois Heidegger jamais deu o passo reverso que o encaminharia “da ontologia para a ética”

(Ricoeur 1990, pp. 402 e 403), isto não significa que ele tenha bloqueado, de uma vez por

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todas, a passagem entre ética e ontologia. A escuta ao chamado do outro que sou tem de ser pensada como a condição de possibilidade do encontro de outrem em sua alteridade própria, sem o que uma relação propriamente ética entre eu e outro não seria possível. Se Heidegger não elaborou uma ética, nem por isto seu pensamento tornou-se cego para a alteridade. Pelo contrário, Heidegger nos mostra que, no resguardo de nossa precariedade constitutiva, o cuidado de si é também já um cuidado do outro.

Referências bibliográficas

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Referências

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