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Desejo, sintoma, gozo, real: em cena, Geisy-UNIBAN

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JORGE ANTONIO BEZERRA CURVINA

DESEJO, SINTOMA, GOZO, REAL: EM CENA, GEISY-UNIBAN

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Profa. Dra. Ondina Pena Pereira

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Ficha elaborada pela Biblioteca Pós-Graduação da UCB C982d Curvina, Jorge Antonio Bezerra

Desejo, sintoma, gozo, real: em cena, Geisy-UNIBAN. / Jorge Antonio Bezerra Curvina. – 2010.

77f.; 30 cm

Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2010.

Orientação: Ondina Pena Pereira

1. Desejo. 2. Sentidos e sensações. 3. Trajes. 4. Imagem (Psicologia) I. Pereira, Ondina Pena, orient. II. Título.

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AGRADECIMENTO

À professora Ondina Pena Pereira, muito obrigado pela ousadia de ter sempre acreditado neste trabalho.

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O que se desatou num só momento não cabe no infinito, e é fuga e vento.

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RESUMO

CURVINA, Jorge. Desejo, Sintoma, Gozo, Real: em cena, Geisy-UniBAN. 2010. 7fls. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2010.

Este trabalho tem como objetivo elaborar uma análise que considera os impulsos latentes (conscientes e inconscientes) dos envolvidos no episódio ocorrido em Outubro de 2009 na Universidade Bandeirante entre estudantes da Universidade e a aluna Geisy Arruda, hostilizada por conta do vestido que usava naquela noite. Defende-se a posição de que é possível se fazer uma reflexão de base psicanalítica deste evento, aqui entendido como um Acontecimento na acepção deleuzeana do termo, como algo de natureza paradoxal e imprevisível. A análise empreendida privilegiou três momentos de um vídeo que retratava o ocorrido, tendo por base os conceitos de Desejo, Sintoma, Gozo e Real como apresentados por Sigmund Freud, Jacques Lacan e Slavoj Žižek. Salientou-se a importância da fantasia como sustentáculo do desejo de Geisy e dos estudantes e, por conseqüência, para a manutenção da realidade que vigorava até então. Conclui-se enfatizando os limites desta interpretação em cotejo com os do setting analítico.

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ABSTRACT

This work aims to produce an analysis that considers the latent impulses (conscious or inconscious) of those involved in the episode occurred in October 2009 at Universidade Bandeirante, between lots of students and Geisy Arruda, also a student harassed on account of the dress she wore that night. It defends the position that it is possible to make a psychoanalytic reflection on this event, here understood in the Deleuzian sense of the term, as something paradoxical and unpredictable. Such analysis focused three moments of a video depicting the incident, based on the concepts of Desire, Symptom, Jouissance and Real as presented by Sigmund Freud, Jacques Lacan and Slavoj Žižek. It highlights the importance of fantasy as the mainstay of Geisy and students‟ desire, as well to maintain the reality until then. It concludes emphasizing the limits of this interpretation in comparison with analytic setting ones.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ... 8

2. REFERENCIAL TEÓRICO 2.1DESEJO ... 16

2.2SINTOMA ... 26

2.3GOZO ... 31

2.4REAL ... 40

3. DISCUSSÃO 3.1CENA 1: O DESEJO “APARECE” ... 45

3.2CENA 2: O DESEJO “DESAPARECE” ... 52

3.3CENA 3: O DESEJO “COMPARECE” ... 60

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS... 67

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1. INTRODUÇÃO

Na noite do dia 22 de outubro de 2009, na Universidade Bandeirante – UNIBAN Brasil –, em São Bernardo do Campo (SP), por volta de 21h20, durante o intervalo das aulas, a jovem Geisy Villa Nova Arruda, 20 anos, estudante do curso de Turismo, trajava um vestido cor de rosa quando começou a ser fotografada e assediada pelos colegas de instituição, aparentemente curiosos e indignados com relação à vestimenta trajada pela aluna.

Aos poucos, o tumulto foi tomando proporções cada vez maiores até que, em questão de segundos, ao pequeno grupo, inicialmente restrito aos colegas de curso, foram se juntando outros alunos da Universidade. Minutos depois, quase 700 estudantes estavam mobilizados em torno dessa personagem, bradando palavras cada vez mais agressivas e ameaçadoras e mostrando sinais e gestos cada vez mais hostis, forçando seu trancafiamento em uma sala de aula a fim de se proteger de uma atitude mais invasiva por parte da aglomeração.

Após sair da sala, sobre o vestido de Geisy estava o jaleco de um professor. A saída da moça do recinto educacional só foi possível com a chegada da Polícia Militar ao local, tamanha a dimensão do tumulto, que parecia anunciar uma tragédia. As ameaças de agressão física e psíquica à jovem pareciam iminentes de serem praticadas pela multidão visivelmente descontrolada, que não cessava de gritar expressões como “vamos estuprar!”, “solta ela, professor” (BARROS E SILVA, 2009). Aquelas imagens, exaustivamente apresentadas e

consumidas na videosfera1, percorreram os olhos e imaginário das pessoas no Brasil e no mundo.

Como é de praxe em eventos dessa natureza, aquela multidão não tinha rosto, sexo ou idade, tampouco os motivos que causaram a balbúrdia eram claros para todos os envolvidos

1Nomenclatura utilizada por Debray (1993, p. 206) para caracterizar a era do visual das sociedades ocidentais da

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no episódio, de modo que não tardaram a surgir discursos de todos os tipos tentando dar conta do ocorrido.

Algumas análises tentaram compreender o ocorrido colocando foco no comprimento do vestido usado por Geisy, seu modelo, sua cor, a maneira como se ajustava ao corpo da estudante. Teria sido mesmo tão inadequado ou tão provocativo o fato de uma jovem usar um vestido rosa curto num ambiente de ensino? Poderia mesmo uma simples vestimenta provocar reações tão drásticas por parte de jovens universitários, nascidos no período pós-revolução sexual e que sistematicamente expõem os detalhes de suas vidas privadas em blogs, chats e

sites de relacionamento social?

Uns procuraram entender o episódio como uma expressão da desigualdade de gênero, como uma clara tentativa de domesticação do corpo feminino. A violência expressa naquele episódio não seria, neste sentido, moralmente neutra, mas sim produto de uma

lógica machista que alimenta sentimentos de indignação e ultraje por um vestido curto em uma mulher [...]. Não é o vestido rosa que incomoda a multidão, mas o vestido rosa em um corpo de mulher que não se submete ao puritanismo (DINIZ, 2009).

Outros classificaram o comportamento dos alunos como inaceitável porque ocorreu dentro de um ambiente Universitário, vindo de estudantes que, em princípio, têm o privilégio de frequentar uma instituição educacional de ensino superior e, nesse sentido, estariam mais afeitos aos debates de ideias, mais acostumados a exercitar a tolerância em todos os níveis.

Alguns, ainda, tentaram explicar o ocorrido questionando a qualidade de ensino da UNIBAN, como se em renomadas Universidades públicas, eventos como os trotes universitários, cuja violência com que são praticados semestre após semestre fazem deste episódio apenas mais um dentre tantos, não ocorressem.

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relações sociais livres de opressões e preconceitos, [...], dando sinais de que vive[mos] na era das cavernas” (s/a, 2009).

Setores mais conservadores tentaram explicar o ocorrido ressaltando a necessidade de respeito que deve vigorar em um ambiente de ensino, muito embora, após a repercussão do episódio, é a ausência de qualquer pronunciamento sustentável ratificando essas opiniões o que se observa2.

A Universidade Bandeirante – UNIBAN –, palco dos acontecimentos, teve um discurso oscilante: de início, argumentou que faria uma investigação acerca do fato e, após apurar as responsabilidades de lado a lado, se pronunciaria de maneira mais definitiva. Quinze dias após o episódio, porém, a instituição publicou, em jornais de grande circulação, uma nota intitulada „A educação se faz com atitude, e não complacência‟, contendo uma decisão do

Conselho Superior da Universidade que determinou o desligamento da aluna dos quadros da instituição por “flagrante desrespeito aos princípios éticos, à dignidade acadêmica e à

moralidade”.

De acordo com a UniBAN, portanto, Geisy foi colocada como a vilã do episódio, como a culpada pelas atitudes violentas e agressivas dos alunos, tendo sido expulsa da Universidade após a instauração de uma simples sindicância (isto é, sem ter podido exercer seus direitos constitucionalmente garantidos do contraditório e da ampla defesa), de forma sumária.

Dias depois, no entanto, após pressão de diversos segmentos, inclusive do Ministério da Educação, uma deliberação do Reitor revogou o posicionamento do Conselho e permitiu a volta da aluna à Instituição, isentando, contudo, a multidão envolvida no episódio de qualquer punição.

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A protagonista do evento, por sua vez, mostrou-se, em algumas entrevistas iniciais, confusa e sentindo-se culpada pelo ocorrido. Logo após, no entanto, seu discurso modificou-se, tendo ela se declarado surpresa e indignada com a dimensão trágica que o evento tomou e afirmado que sempre andava arrumada, com salto alto e maquiagem, de maneira que o comportamento dos colegas foi inexplicável e que sua expulsão da Universidade era um ato claro de arbitrariedade, um absurdo3.

Várias são as questões que esse evento pode suscitar: qual a relação entre ele e a sociedade em que vivemos? Em que medida ele traduz uma condição própria do humano? O que ele tem de tão específico e singular que provocou reações tão dramáticas dos envolvidos? A psicanálise – e seu objeto privilegiado de estudo, o inconsciente –, neste sentido, pode lançar luz sobre elementos deste fato que as tentativas de análise e compreensão acima referidas não consideraram.

De maneira bastante geral, pode-se conceituar o inconsciente como sendo “o lugar desconhecido pelo consciente: uma „outra cena‟” (ROUDINESCO, 1998, p. 375), um sistema

psíquico possuidor de características próprias 4 . As reais motivações para dados comportamentos, segundo esse pressuposto, estariam além do manifesto, do que se apresenta como realidade vista; elas seriam implícitas, latentes, inconscientes. À psicanálise caberia „traduzir‟ esses conteúdos, tornando-os inteligíveis para a consciência5.

O advento da psicanálise se dá a partir da análise de Freud sobre o Inconsciente: o seu próprio, o das histéricas (mal do século XIX) e o do inconsciente coletivo, que aparecia

3“Aconteceu uma coisa dessas, a pessoa fica dentro de uma sala presa por causa de um bando de vândalos e é

expulsa? Isso é ridículo. E se o meu professor tivesse saído da sala e eles tivessem invadido, me estuprado, o que ia acontecer? A culpa ia ser minha?” (ALUNA..., 2009, p. C-2).

4 Na primeira tópica da teoria freudiana, o aparelho psíquico seria dividido em sistemas (Inconsciente,

Pré-consciente e Consciente) dotados de características próprias, que se relacionariam de maneira específica e seriam estruturados por meio de mecanismos singulares. Na segunda tópica, por sua vez, passa a servir para qualificar o isso, eu e supereu (ROUDINESCO, 1998, p.375).

5A definição clássica de psicanálise dada por Freud é a de que esta seria “(1) um procedimento para a

investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método para o tratamento de distúrbios neuróticos baseado nessa investigação e (3) uma série de informações psicológicas

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através da cultura, sendo possível afirmar que, a par da concepção geral do saber psicanalítico em seu sentido estrito – construção de sentidos advindo basicamente da clínica, lugar singular da escuta do inconsciente na subjetividade de cada um (sujeito) –, estão as tentativas de, através dela, se compreender o humano através de um „olhar‟ e de uma „escuta‟ do social, além da clínica.

Assim foi, por exemplo, com „Totem e Tabu‟, obra fundadora de Freud no domínio da psicologia coletiva que pretendia ser uma contribuição da psicanálise à antropologia, e cujo mote é a postulação da existência de um complexo universal próprio de todas as sociedades humanas – Édipo, “expressão dos dois desejos contidos nos tabus próprios do totemismo: a proibição do incesto e a proibição de matar o pai-totem” (ROUDINESCO, 1998, p. 758).

Em „Mal-estar na civilização‟, por sua vez, Freud procura estudar o papel da cultura

como remediador dos sofrimentos humanos e de que forma, ao mesmo tempo, ela funciona como uma nova fonte de sofrimento, em decorrência dos limites que coloca à busca do prazer (ibidem, 1998, p. 491).

No evento Geisy-UniBAN, os envolvidos se mostraram, após o fato, abobalhados, surpresos consigo próprios. Um comportamento hostil emerge repentinamente de uma multidão, se fecha quase com a mesma velocidade com que explodiu e ninguém, ao fim,consegue compreender o que ocorreu. A força e as consequências daquele evento, depois veiculadas por semanas sem cessar, nos permite dizer, como o faz Žižek, que “não foi a realidade que invadiu a nossa imagem: foi a imagem que invadiu e destruiu a nossa realidade (ou seja, as coordenadas simbólicas que determinam o que sentimos como realidade)” (2008b,

p. 31).

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humanos, a qualidade das instituições de ensino no país, a desigualdade de gênero vigente na nossa sociedade, a ética que vigora entre a juventude atual, dentre outros.

O que se procurará fazer aqui é elaborar uma análise que considere os impulsos latentes (conscientes ou não) dos envolvidos naquele evento, que apareceram como sintoma e que depois foram absorvidos, desaparecendo nas profundezas do social. Para tanto, partir-se-á das contribuições de três autores principais: Freud, pioneiro na formação do corpo teórico da psicanálise; Jacques Lacan, psicanalista com o qual o autor deste texto „dialoga‟ desde sua

formação como psicólogo na Universidade de Brasília, em 1995; e Slavoj Žižek, pensador esloveno que, em suas interpretações sobre a contemporaneidade, utiliza-se do potencial emancipador que as abordagens psicanalíticas podem trazer6.

O caminho que aqui se percorrerá, é bom que se observe, parte do princípio básico da clínica psicanalítica: a escuta do não sabido, do inconsciente. No entanto, essa escuta advém de um outro que não um outro próprio sujeito-Geisy-divã, mas sim do que foi apresentado – um desejo Outro Geisy-UniBAN (instituições, Lei, sociedade) – pela mídia. Enfim, esta „escuta‟ será uma „escuta‟ escópica daquelas imagens, a partir do entendimento do autor deste

trabalho sobre as concepções teóricas dos pensadores acima citados. Não se trata, portanto, de se fazer um estudo de caso advindo da clínica propriamente dita, mas tão-somente de se elaborar reflexões sobre o ocorrido com base num recorte psicanalítico sem, contudo, a pretensão de esgotá-las.

Ainda que assim o fosse, pode-se arriscar dizer, na esteira de Pereira, que não se trataria de verificar

uma correspondência entre a realidade tecida na fala e a realidade dos fatos.

Reconhece-se a impossibilidade de provar que a „cena primitiva‟ tenha sido

percebida por quem quer que seja, a não ser como uma „cena explodida‟ e dispersa

6 É importante observar, principalmente no referencial teórico, que as considerações de Žižek em relação aos

conceitos acima mencionados, de maneira geral acompanham os entendimentos de Freud e de Lacan, e que as ressalvas que pareceram mais relevantes são apresentadas neste trabalho. Arrisco dizer que isso se deve

basicamente ao fato de que a preocupação maior de Žižek não ser exatamente a de definir conceitos

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em imagens incoerentes, impossíveis de serem conectadas em um arranjo que se comprove a partir dos fatos (2005, p. 202).

O episódio Geisy-UniBAN, objeto de estudo deste trabalho, é aqui entendido como um acontecimento, na acepção deleuziana deste termo, como algo de natureza paradoxal e imprevisível, como um horizonte que se abre frente à realidade antes destituída de qualquer sentido esperado, como algo anunciado enquanto possibilidade de vir a ser, sem sequência – o devir –, rumo a algo novo:

Em todo acontecimento existe realmente o momento presente da efetuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que designamos dizendo: eis aí, o momento chegou; e o futuro e o passado do acontecimento não se julgam senão em função deste presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna [...] que não há outro presente além daquele do instante móvel que o representa, sempre desdobrado em passado futuro, formando o que é preciso chamar a contra-efetuação (DELEUZE, 2009, p. 154).

E ainda:

[...] o acontecimento, ele mesmo, aparece (ou desaparece), menos como uma singularidade que como um ponto aleatório separado, que se acrescenta ou se subtrai ao sítio, na transcendência do vazio ou A verdade como vazio, sem que se possa decidir sobre a pertença do acontecimento à situação na qual se encontra seu sítio (o indecidível) (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix, 1997, p.196-7).

Dito isso, pode-se entender o acontecimento, neste contexto, como um “evento mágico, [...] como uma „verdade eterna distinta das diferentes ocorrências singulares [...], não se deixando aprisionar, dado que se transforma a cada instante: apenas enquanto acontecimento temos acesso a ele” (FILHO, 2004).

Ante o exposto, pode-se afirmar que este trabalho não se presta a dar um sentido ao ocorrido, exatamente porque, como dito acima, ele é aqui tratado como um acontecimento – e, como visto, este foge a qualquer tentativa de ser apreendido em um sentido único7. A rigor, essa impossibilidade de se esgotar os sentidos que o inconsciente pode trazer a tona para cada sujeito, em cada momento, em cada experiência vivida ou fantasiada, é também uma premissa, talvez a principal, do trabalho em análise. Deleuze, nesse sentido, esclarecer ser

7 Tal qual a noção de Real de Lacan, que também escapa à possibilidade de uma apreensão (simbólica) em sua

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a psicanálise em geral a ciência dos acontecimentos: com a condição de não se tratar o acontecimento como alguma coisa de que é preciso procurar e isolar o sentido, pois que o acontecimento é o próprio sentido, na medida em que se isola ou se distingue dos estados de coisas que o produzem e em que se efetua. Sobre os estados de coisas e sua profundidade, suas misturas, suas ações e paixões, a psicanálise lança a mais viva luz; mas para chegar à emergência daquilo que daí resulta, o acontecimento de uma outra natureza, como efeito de superfície (2009, p. 218).

Foi o comportamento bruto e inesperado daqueles alunos expressão de algo que pulsava, permeado por desejos nem sempre conscientes? Motivado por essa pergunta, fez-se uma revisão da literatura sobre quatro conceitos fundamentais em psicanálise (Desejo, Sintoma, Gozo e Real) e, após a análise de um pequeno vídeo do youtube8, produto da gravação dos próprios estudantes, tentou-se articular as citadas noções com três momentos do vídeo, aqui comparadas a cenas de um filme com temporalidade não-linear9: o primeiro retratando o início do episódio e o que ficou estigmatizado como sendo o detonador do ocorrido – o vestido rosa. Em seguida enfoca-se o ápice do tumulto, com as crescentes investidas dos alunos contra Geisy, forçando-a a se refugiar numa sala de aula. O terceiro momento corresponde à saída da estudante da UniBAN sob escolta da Polícia. Por fim, a conclusão explora o depois do acontecimento, enfatizando os limites desta interpretação em cotejo com os do setting analítico.

8 DVD em anexo, retirado de <http://www.youtube.com/watch?v=u0jFvqAasBY&feature=related>. Acesso

em:15 nov.2009.

9 O leitor perceberá que, na discussão, os quatro conceitos supra referenciados aparecerão entrelaçados em vários

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2.1 DESEJO

O termo desejo atravessa a obra freudiana em diversos momentos sem ter exatamente o mesmo significado em todos eles, o que pode ficar ainda mais confuso quando de sua tradução para outras línguas.

Na língua materna de Freud, o alemão, o termo desejo pode ser entendido por Wunsch, mas, em algumas situações, também por Begierde, Wille ou, ainda, Lust.

De acordo com Hanns (1996, p.136), o termo Wunsch dirige-se normalmente ao que é cobiçado mas que encontra-se mais distante do sujeito, sendo idealizado por este e constituindo-se em um tipo representacional, reservando-se para o desejo mais imediato e mais próximo do querer os termos Lust (“vontade”) e Wille (“querer”). A palavra Begierde, por sua vez, caracterizaria algo próximo de um “desejo intenso”.

Em português, a palavra desejo é mais ampla que o termo alemão Wunsch porque pode denotar, também, aspectos imediatos ou sexuais, diferentemente do alemão que, como visto, utiliza outras palavras para expressar um querer mais próximo ou mais intenso (HANNS, 1996, p.138).

Para se fazer outro comparativo com outra língua de origem latina – o francês, por exemplo –, o termo wunsch, de acordo com Laplanche e Pontalis (1998, p. 121) estaria melhor traduzido como souhaite (desejo amenizado) ou, ainda, como voeu (voto formulado, confissão), sem a conotação do querer mais imediato, em alemão expresso por begierde ou

lust. O termo désir (desejo), por sua vez, evoca vontade ou “fissura”, prazer intenso, podendo ainda ter, como na língua portuguesa, a conotação de prazer associado ao sexual.

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noção de desejo como algo consciente visando um objeto a ser atingido, melhor definido por outros termos. E é neste tempo onírico, pura representação (sonho), que melhor se pode entender o Wunsch freudiano como algo relacionado ao imaginário, diferentemente dos outros termos (begierde e lust). Neste sentido, é esclarecedor observar como Freud utiliza o termo

wunsch em sua obra:

Um componente essencial dessa vivência de satisfação é uma percepção específica (a da nutrição, em nosso exemplo) cuja imagem mnêmica fica associada, daí por

diante, ao traço mnêmico da excitação produzida pela necessidade (Bedürfnis). Em

decorrência do vínculo assim estabelecido, na próxima vez em que essa necessidade (Bedürfnis) for despertada, surgirá de imediato uma moção (Regung) psíquica que procurará recatexizar a imagem mnêmica da percepção e reevocar a própria percepção, isto é, restabelecer a situação da satisfação original. Uma moção (Regung) dessa espécie é o que chamamos de desejo (Wunsch); o reaparecimento da

percepção é a realização do desejo (Wunscherfüllung), é o caminho mais curto para

essa realização (Wunscherfüllung) é a via que conduz diretamente da excitação

produzida pelo desejo (Wunsch) para uma completa catexia da percepção. Nada nos

impede de presumir que tenha havido um estado primitivo do aparelho psíquico em que esse caminho era realmente percorrido, isto é, em que o desejo (Wunsch) terminava em alucinação. Logo, o objetivo dessa primeira atividade psíquica era produzir uma “identidade perceptiva” – uma repetição da percepção vinculada à

satisfação da necessidade (FREUD, 1900, cap.VII, ESB 5, 516, apud HANS, 1996,

p.140). [...]

Mas afinal o pensamento não passa de um substituto de um desejo alucinatório (halluzinatorischeswunschen), e é evidente que os sonhos têm de ser realizações de

desejos (Wunscherfüllung), uma vez que nada senão o desejo (Wunsch) pode colocar

nosso aparelho anímico em ação (FREUD, 1900, cap. VII, ESB 5, 517, apud HANS,

1996, p. 140). [...]

Durante a noite, a sequência de pensamentos consegue encontrar vinculações (Verbindung) com um dos desejos (Wunsche) inconscientes presentes desde a infância na mente do que sonha, mas ordinariamente reprimida e excluída de sua

vida consciente (FREUD, 1900, cap. VII, ESB 12, 333, apud HANS, 1996, p. 141).

De todos esses exemplos, pode-se aproximar do conceito de desejo em Freud como sendo uma atividade inconsciente relacionada primordialmente aos primeiros anos de vivência do sujeito (processo primário), onde a energia psíquica é perpassada e vivida em um caminho livre, sem qualquer tipo de entrave, sem nenhum tipo de recalque10que possa impedir seu objetivo, que é evitar qualquer sensação de desprazer.

Ou seja, o fim último do processo primário é o prazer pleno, puro, absoluto, sem mediação e sem controle, diferentemente do que ocorre no processo secundário, onde “as

10“[...] operação pela qual o sujeito repele e mantém à distância do Consciente representações (pensamentos,

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representações são investidas de uma maneira mais estável, a satisfação é adiada, permitindo assim experiências mentais que põem à prova os diferentes caminhos possíveis de satisfação”

(LAPLANCHE e PONTALIS, 1998, p. 341-2).

De acordo com Benjamin (2009, apud GAGNEBIN 2009, p.64), pode-se aproximar o termo desejo em Freud do vocábulo lembrança em grego, que nos remete a dois conceitos: por um lado, à mnèmè, imagem mnêmica, uma espécie de lembrança que surge espontaneamente, sem a vontade do sujeito, mas que o afeta; por outro, à anamnèsis, sua contrapartida consciente, a atividade da razão, do logos. Assim sendo, este signo (lembrança) comporta duas significações, em princípio opostas: uma, psíquica, diríamos passiva, que recebe os conteúdos vividos pelo sujeito (mnèmè), e outra, ativa, que questiona, um logos em plena atividade (anamnèsis). Tendo isso em mente, sobressai-se o que talvez seja a característica mais simples que o termo desejo evoca, e que, de alguma maneira, já assentava raízes no pensamento grego com a idéia de lembrança – mnèmè: a de que “o inconsciente é aquilo que, do desejo, fala no sujeito, sem que este saiba” (HUISMAN, 2004, p. 412).

Pode-se ainda afirmar, quanto à satisfação do desejo, que, com o assujeitamento do indivíduo à cultura, à linguagem simbolizada e com o aparecimento do princípio de realidade (processo secundário), o desejo primário (princípio de prazer), que busca a totalidade e a plenitude, só é reencontrado por reminiscências através dos sonhos ou sob a forma de um compromisso sintomático. É nesta constituição, nesta “luta” interna, intrapsíquica do sujeito

com seus desejos de onipotência, de prazer permanente, de plenitude, de gozo absoluto, que este tem que renunciar, posteriormente, como preço a ser pago pela sua inserção na civilização (BUCHER, s/d, p.48).

Essa renúncia, por sua vez, é árdua, visto que implica em um desprazer psíquico, pois o desejo de gozo11 pleno busca se impor todo o tempo, e só através de um esforço que remete

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ao desprazer pode-se domar tais pulsões12 primárias e submetê-las à Lei simbólica social, redirecionando-as para objetivos coletivos integradores através do princípio de realidade, principalmente através do trabalho, forma esta de dominar essa natureza subjetiva, os instintos e desejos do indivíduo (idem, s/d, p.49).

A noção freudiana de desejo (Wunsch), e aqui se comunga com Bucher, é puramente intrapsíquica, e só reencontra sua “satisfação” através do trabalho, do sonho ou de um processo alucinatório, como a fantasia13. É bastante claro, também, que apesar dos diferentes usos do termo desejo na obra freudiana, que Freud quase sempre nos remete ao desejo (Wunsch) em sua totalidade como inconsciente, e é só nesses processos da ordem do inconsciente que o desejo pode ser “satisfeito”, ainda que alucinatoriamente, satisfação esta relacionada, em maior ou menor grau, à sexualidade, mesmo que sublimada.

Cabe aqui uma reflexão acerca do termo sexualidade para Freud e para a psicanálise, principalmente depois 1905, com a publicação dos „Três ensaios sobre a teoria da

sexualidade‟, onde ela definitivamente ganha um novo perfil: a partir deste momento,

sexualidade já não é mais entendida simplesmente em sua noção puramente biológica de diferença sexual, instintiva, mas passa a ter, também, um construto de representação psíquica, ou, melhor, uma real construção mental onde o ser constitui e é constituído desde seu nascimento por representações da ordem da sexualidade como o desejo, a pulsão, a libido14.

12 Embora se trate de noção bastante controversa, Hanns (1996, p.338) define pulsão como “um princípio maior

que rege os seres viventes e que se manifesta como força que coloca em ação os seres de cada espécie; que aparece fisiologicamente “no” corpo somático do sujeito como se brotasse dele e o aguilhoasse; e, por fim, que se manifesta “para” o sujeito, fazendo-se representar ao nível interno e íntimo, como se fosse sua vontade ou um imperativo pessoal”. Roudinesco (1998, p. 628), no mesmo sentido, a entende como sendo “a carga energética que se encontra na origem da atividade motora do organismo e do funcionamento psíquico inconsciente do homem”.

13 Deve-se compreender fantasia neste contexto como a forma como o sujeito representa para si sua vida

imaginária. Roger Perron (MIJOLLA, 2005, p. 681) neste sentido, descreve fantasia ou fantasma como “uma

produção psíquica imaginária que apresenta a estrutura de um roteiro, na acepção do teatro ou do cinema, a serviço da realização do desejo. Pode tratar-se de uma produção consciente, de um devaneio diurno desenvolvido pelo sujeito, que obtém assim, imaginariamente, uma satisfação erótica, agressiva, de amor-próprio, de glorificação de si mesmo etc”.

14De acordo com Roudinesco (1998, p. 471), libido é “uma manifestação da pulsão sexual na vida psíquica e, por

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Ou seja, além de diferença anatômica, ela é também psíquica e subjetiva, e é neste conjunto que surge esta representação social do sujeito, que, na concepção psicanalítica, é construída a partir das pulsões infantis da sexualidade, no conflito entre os processos primários e os processos secundários.

A partir da noção de desejo em Freud, e tendo como parâmetro o modelo hegeliano de desejo como exposto por Garcia-Roza (2001), Lacan propõe uma noção de desejo diferenciada das ideias de necessidade e demanda.

Será preciso, de início, passar em revista as principais noções hegelianas sobre o nascimento do desejo para verificar de que maneira Lacan apreendeu esta ideia e a relacionou com a introdução do inconsciente freudiano, ou melhor, de como Lacan fez daquele termo um dos principais pilares da psicanálise, e do desejo como inconsciente, de um sujeito que se apresenta como sujeito do inconsciente.

O ser humano para Hegel, num primeiro momento, é Consciência (Bewusstsein), no sentido de ser, estar, ou melhor, estar consciente de algo, consciente do mundo sensível que se apresenta a ele enquanto tal. No entanto, neste momento ele ainda é “sujeito” passivo, e assim

sendo não tem acesso à verdade, não se diferenciando do objeto, ou melhor, não tendo ainda consciência plena disto. Mas também é este mesmo “sujeito” que, em um segundo momento,

age sobre o mundo, alçando assim uma diferenciação e tendo, portanto, uma consciência de si mesmo e, consequentemente, uma consciência do outro (GARCIA-ROZA, 2001, p. 140).

É ao reconhecer o outro, o objeto, que o sujeito se diferencia das coisas do mundo externo, caracterizando-se então o desejo, o impulso em relação a algo que não sou eu, mas um outro. O sujeito em Hegel é, assim, fundado pelo desejo (Begierde), de um outro a outro, de algo que se dirige a, que busca apreender o outro, que busca a realização de uma

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satisfação, como o desejo de comer, beber etc. O desejo, assim, é um vazio que busca ser preenchido pela assimilação do objeto desejado (GARCIA-ROZA, 2001, p. 140). Este sujeito tal como aqui apresentado ainda não é consciente de si mesmo, mas somente do outro como puro objeto no mundo.

Assim sendo, enquanto o desejo estiver somente voltado para um objeto em si, uma coisa, sua satisfação ainda será da ordem do natural, da pura necessidade: ele é, nos termos expostos anteriormente, em-si, Consciência, um Eu naturalizado.

A passagem à Autoconsciência, onde o homem é consciente da relação de oposição com o mundo e consciente de si mesmo, só pode ser feita pelo seu próprio desejo no encontro com um outro desejo, em um processo mediatizado. Isso nos distingue da coisa, do objeto, constituindo-nos como verdadeiros sujeitos (GARCIA-ROZA, 2001, p. 140).

Citando Garcia-Roza (ibidem, p. 141), “[...] ao ser consciente de si mesmo, ele é também consciente do outro como um para-si. [...] É na relação entre dois para-si que se vai constituir o desejo como desejo humano (não-natural)”. Então, é o desejo que nos caracteriza como humanos, que nos diferencia da coisa em si, pois é no para-si, no encontro com outro desejo do outro, no reconhecimento de que existe um outro desejo, então um outro Eu, que, de acordo com Hegel, posso também ser reconhecido.

Hegel, neste sentido, esclarece:

Mas quando o objeto é em si mesmo negação, e nisso é ao mesmo tempo independente, ele é consciência. Na vida, que é o objeto do desejo, a negação ou está em um Outro, a saber, no desejo, ou está como determinada em contraste com uma outra figura independente; ou então como sua natureza inorgânica universal. Mas uma tal natureza universal independente, na qual a negação está como negação absoluta, é o gênero como tal, ou como consciência-de-si. A consciência-de-si só alcança sua satisfação em uma outra consciência-de-si (2008, p. 141).

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apreensão, é bom que se compreenda, se dá em um nível diferente do que se dá na relação que estabeleço com um objeto.

Assim, não basta que eu ingira um alimento (puro objeto), mastigue-o, destrua-o e engula-o literalmente, satisfazendo-me, saciando minha pura necessidade, pois agora me deparo com um outro desejo que quer também ser reconhecido, impondo-se uma verdadeira batalha de vida ou morte. Nas palavras de Hegel,

Devem travar essa luta porque precisam elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si. Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se comprova]; e se prova que a essência da consciência-de-si não é o ser, nem o modo imediato como ela surge [...] mas que nada há na consciência-de-si que não seja para ela momento evanescente; que ela é somente puro ser-para-si. O individuo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente. Assim como arrisca sua vida, cada um deve igualmente tender à morte do outro. [...] Sua essência se lhe apresenta como um Outro, está fora dele [...] (2008, p. 145).

Nesta luta, um dos desejos acaba por se submeter ao desejo do outro, reconhecendo os valores deste outro desejante, e assim se mantendo também como sujeito assujeitado, mas sujeito também ainda desejante, pois ao submeter seu desejo ao outro desejante, este também é reconhecido na medida em que é assimilado pelo desejo do outro, pelos valores do outro, mas conservando-se ainda como desejo, ou melhor, como sujeito (a Autoconsciência em Hegel):

[...] São essenciais ambos os momentos, porém como, de início, são desiguais e opostos, e ainda não resultou sua reflexão na unidade, assim os dois momentos são como duas figuras opostas da consciência: uma, a consciência independente para a qual o ser-para-si é a essência; outra, a consciência dependente para a qual a essência é a vida, ou o ser para um Outro. Uma é o senhor, outra é o escravo (HEGEL, 2008, p.147).

Percebe-se que nesta metáfora, chamada de „dialética do senhor e do escravo‟, Hegel vai chamar o sujeito que “assimila” de senhor, e o “assimilado” de escravo, um sendo

dependente do outro, pois, para continuar sendo reconhecido tenho que manter o outro, e vice-versa.

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necessidade, de ordem puramente natural, que encontra satisfação em um objeto específico, em algo que conheço, real, que posso alcançar totalmente.

O Desejo em Lacan, pode-se afirmar, implica uma falta permanente: a relação entre sujeito e objeto não é direta como na necessidade; ela é sempre faltosa, falta esta “necessária” para se continuar desejando. O sujeito, ao desejar, ao ser conhecido e reconhecido, se satisfaz, mas nunca totalmente, mantendo sempre uma certa tensão no aparelho psíquico, já que não se tem acesso ao outro diretamente, nem mesmo a um objeto, mas apenas ao que este outro representa para si, uma fantasia dialética de reconhecimentos mediatizada pelo que Lacan vai sublinhar como sendo „objeto a‟15.

Assim, neste processo de desnaturalização, de busca de reconhecimento do Eu pelo outro, posso me caracterizar como sujeito, e é somente neste processo que posso me dizer Eu sujeito, a partir do outro, do desejo do outro (o para-si de Hegel). O Eu, então, não é naturalizado: nasce no reconhecimento simbolizado no outro, pelo outro, das demandas deste, e é neste contexto que Lacan, em seus Seminários „A Ética da Psicanálise‟ e „As formações do Inconsciente‟, nos fala que toda demanda nada mais é que demanda de amor, ou de

reconhecimento e de ser reconhecido pelo desejo e no desejo do outro. Para ele, arrisco dizer, tudo se resume em amor como reconhecimento.

Como dito acima, Lacan, a partir da fenomenologia de Hegel, busca unir dois conceitos: o de Desejo, como entendido por Freud (Wunsch), e o utilizado por Hegel, no sentido de Begierde. A partir da idéia hegeliana, da constituição do sujeito como desejante (Autoconsciência), Lacan tira o foco do sujeito cartesiano („penso, logo existo‟), privilegiando o sujeito do inconsciente – do chiste, dos atos falhos, das formações do inconsciente – em detrimento daquele (consciente, racional), instaurando, assim, uma nova fórmula: „Lá onde isso estava, eu devo advir‟ (PENOT, apud MIJOLLA, 2005, p. 1820).

15 Tendo em vista a não linearidade do termo „objeto a‟ na obra lacaniana, deve-se entendê-lo, neste trabalho,

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Resumidamente, Lacan deixa clara a diferenciação entre necessidade e desejo a partir da noção de demanda como correlata à ideia de Begierde (impulso, fissura) como traduzido por L. Hanns (p.17). Essa demanda se coloca entre o espaço da necessidade (entendida como uma pura satisfação física) e o desejo do inconsciente, onde impera uma falta permanente para que o desejo continue existindo, fazendo-se produzir o reconhecimento do outro e de si, a partir da fantasia do outro, onde o que é realmente demandado é o amor como desejo de reconhecimento, uma demanda (de amor) que se dirige a um Outro16 (LACAN, 1999, p.468-521).

Finalizando, o desejo em Lacan pode ser entendido como um impulso que tem por objetivo buscar sua realização, preencher uma falta com vistas a se manter o aparelho psíquico com o menor estado de excitação possível a partir de representações diversas no aparelho psíquico (sonhos, fantasias etc), preencher uma falta-a-ser, surgida do contato entre a pura necessidade – como aquela presente num lactente que busca o alimento – e o que é realmente desejado (que não é somente o alimento, mas outra coisa). De acordo com Lacan, é aí que surge a demanda, numa tentativa (fantasiada) de preencher a falta rumo à obtenção da plenitude daquele primeiro prazer.

Em seu livro „A visão em Paralaxe‟ (2008a, p. 391), Žižek comenta que a atualidade

caracteriza-se por uma repetição ad infinitum das demandas: “A subjetividade dos dias de hoje caracteriza-se da passagem do desejo para a demanda: a demanda, insistindo em uma demanda, é o contrário do desejo”.

Neste sentido, o que Žižek enfatiza é que o caráter faltoso que caracteriza o sujeito

desejante é renegado pelo sujeito contemporâneo (“não quero saber disso”), sujeito esse que

16 De acordo com Roudinesco (1998, p. 558), o Outro é um termo utilizado por Lacan para designar um “lugar

simbólico – o significante –, a lei, a linguagem, o inconsciente [...] que determina o sujeito, ora de maneira

externa a ele, ora de maneira intra-subjetiva em sua relação com o desejo”. Ela também esclarece que Lacan nos

fala de um Outro como absoluto, como “aquele de quem nunca podemos saber se não está nos enganando”

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busca a satisfação absoluta, direta, de seus desejos, agindo num processo insaciável de repetição de demandas:

[...] a demanda por parte da criança [...] pode articular o desejo de amor, de modo que algumas vezes a mãe pode atender a demanda simplesmente abraçando a criança. [...] o desejo envolve a Lei e sua transgressão, o lugar do desejo é mantido pela Lei, ao passo que a demanda é feita a um Outro onipotente fora da Lei, e é por

isso que satisfazer as demandas sufoca o desejo como na criança mimada (ŽIŽEK,

2008a, p. 391).

Žižek, pode-se afirmar, comunga com Lacan da ideia que a demanda é dirigida a um

Outro (simbolizado). Aquele, no entanto, enfatiza o fato de, na atualidade, a demanda não cessar de insistir (demanda da demanda), como também o Outro a quem ela é dirigida é um fora da Lei (Outro absoluto), que nos acena com um gozo, com a ilusão (ideológica) do prazer ilimitado.

Žižek, assim, nos fala sobre como, na atualidade, temos um discurso dúbio, que nos

leva a um impasse: se, por um lado, nos impele a uma auto- realização narcisista, de busca de felicidade completa, de realização de todos os nossos desejos, como se isso fosse possível, ao mesmo tempo nos impõe um maior autocontrole através do politicamente correto, atividade física, sexo seguro, comida saudável etc (ŽIŽEK, 2008a, p.392).

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2.2SINTOMA

De acordo com o Dicionário Ilustrado de Saúde (2008, p.759), sintoma é definido como “toda manifestação espontânea de uma doença, seja ela percebida pelo próprio doente, como uma dor ou vertigem, ou constatada por um observador”. De maneira geral, em termos

das ciências da saúde, existe também a caracterização do sintoma como sendo algo subjetivo, que guarda relação com a percepção de alguém sobre seu estado de saúde, diferentemente do sinal, que se refere a uma característica objetiva de uma desordem ou doença (ibidem, p. 751).

Em termos psicanalíticos, a definição de sintoma vai além, porque se relaciona com o conceito básico e diferencial da psicanálise: o inconsciente. Na clínica, por exemplo, o sintoma pode ser entendido como aquele momento em que o paciente fala e não sabe exata ou absolutamente nada do que está falando. Como anota Matet (1993, p.71), o sujeito “sabe que

o sintoma lhe diz respeito, mas nem por isso ele sabe o que ele é”.

Não se pode, no entanto, generalizar qualquer evento como sendo sintoma: este aparece, a um sujeito ou socialmente, como algo pontual, diferente, único, algo de „novo‟ que surge, mas sempre associado a uma fantasia, inconsciente ou latente. Como explica Freud (1925-6, ESB, vol. XX, p.101-2), em uma histeria de conversão ele pode se apresentar como uma paralisia, dores ou alucinação; em uma neurose obsessiva, por sua vez, é passível de se apresentar como uma punição em um nível puramente simbólico, à primeira vista incompreensivelmente deslocado de qualquer manifestação corpórea, se apresentando a “dor”

como um incômodo psíquico ou comportamento qualquer que causa uma insatisfação ao sujeito (passim).

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satisfação, não necessariamente reconhecida pelo sujeito, mas que se lhe apresenta como algo substitutivo, que, em última análise, vem no lugar de seu “real” sofrimento. O sintoma, assim, é fantasiado, literalmente, pelo sujeito. Neste sentido, Freud assevera que

[...] um sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação instintual que permaneceu em estado jacente [...] A formação de sintomas assinala um triunfo se consegue combinar a proibição com a satisfação, de modo que o que era originalmente uma ordem defensiva ou proibição adquire também a significância de uma satisfação(ESB, vol. XX, p. 95 e 114).

Anota-se ainda que, embora seja geralmente percebido como um acontecimento desagradável, o sintoma é sempre acompanhado por uma interpretação por parte do sujeito, como uma tentativa que este encontra de buscar entendê-lo, sem saber que, em verdade, este é uma manifestação de seu desejo ao qual, por ser da ordem do inconsciente, ele não tem acesso. O sintoma, assim sendo, é uma manifestação do meu próprio desejo desconhecido por mim, sintomatizado como desejo do inconsciente.

O sintoma surgiria, então, como um recalcado, já que manifestação de não toda verdade (MATET, p. 71), e esconderia também uma satisfação, um deslocamento de algo que, para a psicanálise, estaria sempre associada a ordem do sexual.

Para buscar-se entender mais ainda a questão do sintoma, é necessário ater-se à sua face significante, que é uma categoria que faz parte do signo. Lacan, a partir das concepções de signo lingüístico de Ferdinand de Saussure, dá uma primazia para o significante. Saussure vai colocar o significante como a imagem acústica de um conceito, e o significado como o conceito em si mesmo (ROUDINESCO, 1998, p.708-9). Assim, a ideia que se tem de qualquer palavra seria seu significado, e o som desta palavra, seu significante.

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ou seja, pondo o significante acima do significado, dando uma independência àquele termo17. Pouco importa, assim, o que o que o significante designa: este pode ser qualquer coisa, antes de qualquer significação a priori. Assim, sozinho, o significante é desprovido de sentido: ele só se faz entender, só possui algum sentido, a partir do momento em que o percebamos ligado a outros significantes, quando é Um entre outros.

Dessa forma, o sintoma, como categoria significante, é igual a todos os outros, porque aparece como significante no lugar do Um. Este se impõe ao sujeito sem que este “saiba”, depois se repetindo como outro Um etc. O sintoma, assim, aparece em determinado momento como algo questionador que faz parte de meu desejo. Este pode aparecer de diversas formas, como um sofrimento qualquer, ou um sonho, um acontecimento que quando vem à tona, em um primeiro momento, não sei do que se trata. Neste primeiro momento não sei a causa (idéia da coisa, do acontecimento), só depois esta aparece como significado, a constituição de um signo qualquer dado pelo sujeito. Enquanto é puro significante surpreende o sujeito, é acontecimento sem causa que irrompe como algo surpreendente, inédito, marcado, então, não pelo consciente, mas pela instância do inconsciente, um sujeito do inconsciente onde não se tem, ou não faz sentido, falar em causa, nem em sentido, a não ser em um sentido do desejo do inconsciente. E como na definição de desejo, onde necessito do outro para ser pleno, é entre um sujeito e o outro que surge o desejo, reconhecido. Assim, o inconsciente surge no espaço entre um sujeito e outro18.

Dessa maneira, pode-se entender o inconsciente como algo que só pode ser definido neste espaço entre dois: é aí que ele surge, em um momento de surgimento de uma fala ou de um acontecimento (NASIO, 1993, p. 23). Ou seja, o inconsciente surge no momento em que o sujeito, em relação a um outro, ao desejo do outro, se confronta com algo que faz parte dele

17Juranville (1995, p. 46), neste ponto, esclarece que “[...] longe de o significado preceder o significante, é

exatamente o significante que se dá em primeiro lugar. O significante puro, ou seja, sem significado. Lacan

introduz, portanto, a ideia de uma autonomia do significante”.

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mesmo, sua verdade. Neste sentido, em Lacan, o desejo do sujeito se articula, se estrutura dentro de uma repetição de cadeias de significantes, mesmo que ele desconheça seu próprio desejo – que é da ordem do inconsciente como um terceiro elemento, conceituado por Lacan como um Outro (1998, p. 814).

É, portanto, a este Outro, que está no próprio sujeito, que o sujeito demanda, mesmo que não o conheça. Como ele explicita,

Qual seja, a maneira certa de responder à pergunta “Quem está falando?”, quando se trata do sujeito do inconsciente. Pois essa resposta não poderia provir dele, se ele não sabe o que diz e nem sequer que está falando, como nos ensina a experiência inteira da análise (LACAN, 1998, p. 815).

E, ainda, ele prossegue:

Com o sujeito, portanto, não se fala. Isso fala dele, e é aí que ele se apreende, e tão mais forçosamente quanto, antes de – pelo simples fato de isso se dirigir a ele desaparecer como sujeito sob o significante em que se transforma, ele não é absolutamente nada (LACAN, 1998, p. 849).

[...]

O Outro é a dimensão exigida pelo fato de a fala [sujeito do inconsciente] se afirmar como verdade (LACAN, 1998, p. 853).

O sintoma, então, aparece em determinado momento como algo que vem questionar no sujeito um saber do inconsciente que está intimamente conectado com o desejo deste sujeito, desejo este que é da ordem do inconsciente, e é na cadeia de significantes que ele, o desejo, se apresenta.

A correlação entre sintoma e desejo pode ser assim entendida, de acordo com Lacan: [...] É impossível articular coisa alguma quanto ao progresso e à fixação do desejo, ou quanto à intersubjetividade que de fato aparece no primeiro plano de nossa experiência e de nossas preocupações, se não os situarmos com respeito às relações necessárias que se impõem não somente ao desejo do homem, mas ao sujeito como tal, e que são relações de significante (LACAN, 1999, p. 504).

Ao final, ele arremata:

[...] Ele [o desejo] permite distinguir os lugares nos quais se manifesta esse significante encontrado por toda parte, e por bons motivos, uma vez que todas as vezes que se trata não de uma significação qualquer, mas da significação como expressamente gerada pelas condições impostas ao organismo vivo que se tornou o suporte, a presa ou até a vítima da fala, e que se chama homem (ibidem, p. 505).

(31)

sujeito se manifesta como uma verdade do inconsciente de onde não há como escapar. Ela, a verdade, busca se reconhecer através de algo inédito que se impõe, como se não fizesse parte do sujeito (o sintoma), e é através deste que o sujeito questiona um saber que acreditava possuir (conscientemente) em busca do seu desejo.

O sintoma é como um véu que diz algo do que está escondendo, uma silhueta, mas a verdade, o conteúdo do que esconde, só vai se revelar realmente com a retirada deste, tornando-se, muitas vezes, surpreendente para o próprio sujeito. O que está por trás do véu, por sua vez, é o seu desejo em seu estado absoluto.

Na esteira de Lacan, Žižek concebe o sintoma como sendo algo que surge para o sujeito quando a fantasia como suporte da realidade falha, já não funciona mais. O sintoma, assim, insiste repetidamente como forma de dizer a este sujeito (o Outro que fala a ele mesmo) sobre seu „mal-estar‟, lembrando-lhe que o sentido por ele conferido à sua cadeia de significação – sua verdade – está solto, já não mais se sustenta. Em outras palavras,

Sintoma é o modo como nós, sujeitos, „evitamos a loucura‟, o modo como escolhemos algo (a formação do sintoma), em vez de nada (autismo psicótico radical, a destruição do universo simbólico), vinculando nosso gozo a uma determinada formação significante, simbólica, que assegura um mínimo de

congruência a nosso ser no mundo [...] (tradução minha) (ŽIŽEK, 2010, p. 111).

[...]

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2.3 GOZO

De acordo com o Dicionário Aurélio (2004, p.437), o termo gozo pode ser definido como: 1. Ato de gozar, prazer, satisfação. 2. Posse ou uso d‟alguma coisa de que advém satisfação e/ou vantagens. 3. Bras. Prazer sexual. Na língua materna de Freud, a palavra utilizada para denotar gozo é Genuss que, segundo o Dicionário Michaelis do Alemão (2009, p. 126), é conceituado como 1: prazer, deleite, satisfação. 2. consumo, ingestão.

O termo gozo foi muito pouco utilizado por Freud19, estando presente apenas em alguns momentos pontuais de sua obra, como quando se remete ao comportamento dos invertidos nos „Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade‟:

Podem ser invertidos absolutos, ou seja, seu objeto sexual só pode ser do mesmo sexo, enquanto o sexo oposto nunca é para eles objeto de anseio sexual, mas antes os deixa frios ou até lhes desperta aversão sexual. Quando se trata de homens, essa aversão os incapacita de praticarem o ato sexual normal, ou então não extraem dessa prática nenhum gozo (FREUD, 1996, p.129).

Roudinesco esclarece que outra referência ao termo gozo em Freud pode ser encontrada em „Os chistes e sua relação com o inconsciente‟, onde ele conclui que, ao se

suprimir o elemento surpresa do chiste, este não mais provocaria o riso, salvo, ainda segundo ela, na presença de outro receptor, quando

[...] recupera-se uma parte da possibilidade de gozo que falta em consequência da ausência da novidade, extraindo-o da impressão produzida pelo chiste no novo ouvinte [...]. Nesse contexto, o gozo não é apenas sinônimo de prazer, mas é sustentado por uma identificação e articulado com a ideia de repetição (ROUDINESCO,1998, p. 299).

Essa ideia de repetição, ou, ainda, de compulsão à repetição, tanto como a de „princípio de prazer‟, „pulsão de morte‟ e „a Coisa‟, que serão desenvolvidas em seguida, são de importância primordial para compreendermos a noção de gozo em Lacan e em Žižek, que

se utiliza largamente da teoria lacaniana para desenvolver suas ideias sobre a contemporaneidade.

19Como se verá adiante, embora já tenha aparecido na obra freudiana, o termo gozo foi desenvolvido

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A noção de repetição surge na psicanálise a partir das observações de Freud, onde ele anotou, nos „Estudos sobre a histeria‟, que tanto na vida cotidiana quanto na clínica, o que insiste e se repete é o sintoma, ou seja, é pelo sintoma que o sujeito fala de algo que não consegue dizer de outra forma.

Ao lado disso, cabe definir a noção de princípio de prazer em Freud, que, de acordo com Laplanche e Pontalis, pode ser entendido como

[...] o conjunto de atividades psíquicas que tem por objetivo evitar o desprazer e procurar o prazer. Tanto que o desprazer está relacionado ao aumento de quantidades de excitações e o prazer à sua redução. O princípio do prazer é um principio econômico (tradução minha) (1998, p.332).

Nos „Três Ensaios‟, Freud explicita a repetição a partir do termo „chuchar‟:

O chuchar [Ludeln ou Lutschen], que já aparece no lactente e pode continuar até a

maturidade ou persistir por toda a vida, consiste na repetição rítmica de um contato de sucção com a boca (os lábios), do qual está excluído qualquer propósito de nutrição. [...] Está claro, além disso, que o ato da criança que chucha é determinado pela busca de um prazer já vivenciado e agora relembrado. No caso mais simples, portanto, a satisfação é encontrada mediante a sucção rítmica de alguma parte da pele ou da mucosa. É fácil adivinhar também em que ocasiões a criança teve as primeiras experiências desse prazer que agora se esforça por renovar. A primeira e

mais vital das atividades da criança – mamar no seio materno (ou em seus

substitutos) – há de tê-la familiarizado com esse prazer (FREUD, 1996, p. 169).

Aqui, Freud observa um prazer na repetição que vai além da simples obtenção do alimento: não é só o alimento, mas o que vem junto com ele.

Em „Além do Princípio do Prazer‟, Freud observa como seu neto de 19 meses lida com

o sofrimento provocado pela ausência da mãe: inventando um jogo que em um primeiro momento pode ser compreendido como um processo de simbolização, ou seja, como uma tentativa de dar uma explicação para este “desaparecimento”, como uma maneira de diminuir

sua angústia, ainda que parcialmente:

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maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo que o menino preferia seu expressivo „o-o-ó‟. Puxava então o carretel para fora da cama

novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre „da‟

(ali‟). Essa então era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno”. A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande realização cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. [...] A criança não pode ter sentido a partida da mãe como algo agradável ou mesmo indiferente [...] (FREUD, 1996, p. 25-6).

Cabe mencionar, quanto a este último trecho, a íntima relação existente entre repetição e princípio de prazer, expressa, no exemplo da criança, no fato de que, a uma sensação de desprazer (carretel que desaparece = ausência da mãe) se segue um prazer (carretel que reaparece = volta da mãe). Como se observa, no entanto, o “prazer” obtido pelo neto de Freud quando do reaparecimento do carretel guarda certa contradição com a noção de princípio de prazer acima transcrita, porque de acordo com tal princípio, a rememoração do desaparecimento do carretel deveria ser evitada. O que se verifica, de qualquer maneira, é que na própria noção de repetição como sintoma há um prazer, consciente ou não, presente no sujeito.

Patrick Valas (2001, p.18) entende que a noção de gozo que Lacan desenvolverá encontra-se presente em Freud na conhecida passagem do homem dos ratos, o qual evoca em seu tratamento “o suplício chinês da penetração de um rato no ânus”, [onde] Freud observa

uma expressão estranha no seu rosto “que só posso interpretar como o horror de um gozo ignorado por si mesmo”.

(35)

É também possível entender, com base na passagem do homem dos ratos, o gozo como sendo um excesso de prazer, ou, melhor, como uma espécie de mistura perigosa entre o prazer e seu excesso, que pode ser expresso como algo extremamente excitante e doloroso ao mesmo tempo.

É a partir desta noção freudiana de repetição e de um prazer que ultrapassa a si próprio que Lacan revê a noção de das Ding (a Coisa), que, segundo Juranville, pode ser assim entendida:

Há um encontro com o próximo [...] a partir do qual se podem distinguir, de um lado, os traços do próximo que podem ser reconhecidos pelo sujeito em seu mundo e, de outro, o próximo como Coisa [...] Assim, o complexo do próximo divide-se em duas partes, escreve Freud: “uma das quais se apresenta como uma estrutura constante e, unificada em si mesma, permanece como Coisa, enquanto a outra se

deixa compreender por um trabalho de rememoração” (1995, p. 190).

É essa experiência primeira do sujeito com o objeto como algo que pode ser vivido novamente, presente em Freud, que Lacan desenvolve nos seguintes termos:

É isso que Freud designa para nós quando nos diz que o objetivo primeiro e imediato da prova da realidade não é a de encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, mas reencontrá-lo, convencer-se de que ele ainda está presente [...]. É por sua natureza que o objeto é perdido como tal. Jamais ele será reencontrado. Alguma coisa está aí esperando algo melhor, ou esperando algo pior, mas esperando. [...] das Ding é originalmente o que chamaremos de o fora-do-significado. É em função desse fora-do-significado e de uma relação patética a ele que o sujeito conserva sua distância e constitui-se num mundo de relação, de afeto primário, anterior a todo recalque (grifo nosso) (LACAN, 2007, p. 68-9).

Esta noção de das Ding, percebida como marco primeiro da constituição do sujeito em seu processo de simbolização, se aproxima da noção da coisa em si kantiana20 como algo sempre faltoso, inacessível, impossível de ser alcançado:

Pois bem, aqui, é em relação a esse das Ding original que é feita a primeira orientação, a primeira escolha, o primeiro assento da orientação subjetiva que, no

caso, de Neurosenwahl, a escolha da neurose. Essa primeira moagem regulará

doravante toda a função do princípio do prazer. [...] (LACAN, 2007, p.72).

O próprio Lacan, mais à frente na mesma obra, se refere a Kant como

20Garcia-Roza (2004, p.75), quanto à noção de das Ding como correlata à coisa-em-si em Kant, assim se refere a

partir de sua leitura da Critica da Razão Pura: “O fenômeno nada mais é do que o objeto empírico tal como é

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[...] alguém que, mais do que qualquer outro, entreviu a função de das Ding, embora abordando-a apenas pela via da filosofia da ciência, ou seja, Kant. No final das contas é concebível que seja como trama significante pura, como máxima universal, como a coisa mais despojada de relações com o indivíduo que os termos de das

Ding devam apresentar-se (LACAN, 2007, p.72).

Ainda de acordo com Valas (2001, p.31), é em relação à mãe que Lacan fala da Coisa como objeto inalcançável a partir da concepção de necessidade, demanda e desejo. No exemplo do chuchar acima citado, a criança, em um primeiro contato com a mãe, satisfaz sua necessidade de um outro (a criança) à um outro (a mãe), em princípio uma relação puramente dual. Mas a partir dessa relação dual, onde a necessidade da criança foi saciada, ela seria remetida a outro momento, onde o ato (chuchar), além de nutritivo, é também, ou principalmente, prazeroso, o que também foi percebido por Freud. E é esta relação da ordem do prazer que a criança estabelece com o seio materno que Lacan entende como um prazer remetido a um Outro lugar que não com sua lactente (outro). Este Outro lugar, o lugar de um terceiro, é que é demandado pela criança em seu anseio pelo seio materno; mas este terceiro como lugar de prazer já não é mais alcançável, dado que algo na passagem da sucção como alimentação e do chuchar como prazer se perdeu. Em outras palavras, no primeiro encontro da criança com o seio (o objeto), que é onde se coloca a Coisa, se abre uma fenda (Spaltung), onde a das Ding só é parcialmente simbolizada, e o contato primeiro só pode ser revivenciado em parte. Outra parte se perde pra sempre, como um resto.

(37)

não é, portanto, nem o apetite de satisfação, nem a demanda de amor, mas a diferença que resulta da subtração do primeiro à segunda, o próprio fenômeno de sua fenda (Spaltung)” (LACAN, 1998, p. 698).

Lacan, desta maneira, desenvolve sua noção de das Ding como objeto faltoso no real. A noção de Spaltung (hiância), por sua vez, é entendida por ele como o lugar onde se movimenta o desejo na tentativa de reencontrar aquele prazer onde o sujeito tenta revivenciar aquela primeira plenitude, buscando-a assim como foi inicialmente vivida (JURANVILLE, 1995, p. 190-2).

Neste ponto, cabe examinar o que Lacan anota com relação à pulsão de morte:

A pulsão, como tal, e uma vez que é então pulsão de destruição, deve estar para além da tendência ao retorno ao inanimado. O que ela poderia ser? - senão uma vontade de destruição direta [...] Se tudo o que é imanente ou implícito na cadeia dos acontecimentos naturais pode ser considerado como submetido a uma pulsão dita de morte, é somente na medida em que há a cadeia significante. Efetivamente, é exigível que, nesse ponto do pensamento de Freud, o que está em questão seja articulado como pulsão de destruição, uma vez que ela põe em causa tudo o que existe. Mas ela é igualmente vontade de criação a partir de nada, vontade de recomeçar (2007, p. 259-60).

É a partir dessas noções citadas (repetição, Das Ding, pulsão de morte) que a noção de gozo lacaniana pode ser entendida como sendo um excesso, não necessariamente mortal, nem como uma busca consciente ao inanimado, mas como um impulso ou pulsão que insurge e é mais forte que o sujeito, que busca manter vivo seu desejo. Juranville, neste sentido, se refere ao gozo lacaniano como a primeira característica da relação do homem com a Coisa:

[...] o desejo provém do Outro e o gozo está do lado da Coisa. O gozo se produz no instante em que a coisa aparece no esquartelamento de sua castração21 [...] (na

medida em que ele próprio [sujeito] entre na castração – e do contrário a Coisa não

poderia aparecer) [...] Gozar, em geral, é colocar o significante como significante22.

Pois não basta ser segundo um significante para gozar: ser segundo um significante

é simplesmente desejar. No encontro com a Coisa, é o falo23 que é colocado como

significante [...] O gozo é o gozo do significante como tal e, portanto, da verdade (JURANVILLE, 1995, p.194).

21“Intervenção do pai, significando à criança que ela não é o falo e à mãe que ela não o tem” (FAGES, 1976,

p.136).

22“É o que pode se articular em um sistema, uma cadeia, a partir do significante primeiro, o falo” (FAGES,

1976, p.137).

(38)

O gozo em Lacan, então, pode ser entendido como uma tentativa do sujeito de reencontrar uma parte da Coisa (a parte que foi perdida, fora de qualquer simbolização, por isso mesmo no lugar do Real24), de retomar alucinatoriamente um prazer absoluto que ultrapassa seu desejo, já que este implica, como várias vezes citado, uma falta, uma não completude, que só na fantasia pode ser apreendido. É por isso que se afirma aqui, como o faz Roudinesco (1998, p. 299), que o conceito de gozo implica a ideia de uma transgressão à lei, de desafio, submissão, escárnio. Valas (2001, p. 34), de modo muito semelhante, também afirma: “já que o desejo é correlato à Lei, uma transgressão é necessária para se chegar ao

gozo”.

É preciso, observar, outrossim, que, para Lacan, a Lei (castração) como representante social se erige sobre o princípio de prazer – que, nas palavras de Valas (2001, p.34), “funciona como uma homeostase do corpo próprio” – buscando barrar todo o excesso, o

próprio gozo. Este só seria alcançável no/pelo corpo, porque a parte perdida da coisa não foi simbolizada25.

Para finalizar, é importante mencionar que há outra subcategoria de gozo em Lacan, denominada de „gozo feminino‟. De acordo com Valas (2001, p.36), é um gozo que nunca foi tomado na linguagem (simbolizado), que vai além do „gozo fálico‟26, próprio dos homens. Com relação àquele, Lacan escreve: “Há um gozo dela, disse ela que não existe e não

significa nada, há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimente – isto ela sabe. Ela sabe disso, certamente, quando isso acontece [...]” (LACAN, 1996, p. 100).

Quanto à pulsão de morte, Žižek entende ser ela

24 O Real será objeto de estudo do próximo capítulo.

25A noção de gozo aqui desenvolvida é a que, na obra lacaniana, aparece como o gozo do outro, que é o “gozo

originário como mítico, o que está na coisa” (VALAS, 2001, p. 36).

26 Gozo fálico, na definição de Valas, é o gozo resultante da simbolização pelo significante, assumindo sua

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