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Neoliberalismo: ideologia e dependência na reforma trabalhista

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Academic year: 2021

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DIREITO

MARLON DE OLIVEIRA XAVIER

NEOLIBERALISMO: IDEOLOGIA E DEPENDÊNCIA NA CONTRARREFORMA TRABALHISTA

FLORIANÓPOLIS 2019

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NEOLIBERALISMO: IDEOLOGIA E DEPENDÊNCIA NA CONTRARREFORMA TRABALHISTA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado no curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina.

FLORIANÓPOLIS 2019

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autores que me propus tratar. E justamente por isso, a lista de agradecimentos é especial. Agradeço, primeiramente, a meus pais, Joel e Susana, que me apoiaram e me forneceram a energia de que precisava e o incentivo imprescindível para a realização deste trabalho. Agradeço a minha irmã, Dáphine, que sempre esteve presente nos momentos de crises e epifanias, sendo ótima ouvinte e debatedora. À minha namorada Géssica, cuja ajuda foi essencial para a elaboração deste trabalho, principalmente devido às suas críticas bem fundamentadas e ao carinho com que as fez, e pelas conversas longas que promoveram intensa reflexão. À minha colega Chris, que me apresentou ao Ludovico Silva e abriu uma porta que eu desconhecia. Agradeço aos integrantes do Núcleo de Estudos e Pesquisas: Trabalho, Questão Social e América Latina, no nome do professor Ricardo Lara, e aos integrantes do Instituto de Estudos Latino-Americanos – IELA, no nome economista Maicon Cláudio da Silva, que pelo constante trabalho suscitaram em mim e em diversos outros estudantes o interesse pelo nosso continente. Bem como agradeço ao Sociodir, no nome da professora Luana Renostro Heinen, cuja discussão se vê presente em diversos pontos deste trabalho.

Por fim, dedico este trabalho a todos os trabalhadores do Brasil, explorados de forma física e espiritual, e que ainda desconhecem que a esperança que os mantém firmes é também o grilhão que os acorrenta.

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Após o Impeachment da Presidenta Dilma em 2016, realizado sob uma aura de golpe parlamentar, o governo interino pôs em andamento, de forma acelerada, uma série de projetos de “reformas” institucionais que visavam reformular, entre outros, a Consolidação das Leis do Trabalho e, assim, alterar as relações empregatícias no Brasil. Acompanhou-se, então, um processo de ampla flexibilização dos vínculos de trabalho, que promoveu a retirada de direitos duramente conquistados e a generalização da precarização. Entretanto, houve pouca indignação da população frente a retirada de direitos, mas sim o apoio indiscriminado por parte dos setores produtivos. Tal inércia deve-se ao processo de alienação ideológica que obscurece as intenções por trás dos projetos e os seus resultados. Ainda, tais “contrarreformas”, que se enquadram no projeto neoliberal, reproduzem as mazelas do subdesenvolvimento, reforçando o caráter de dependência da economia brasileira em relação ao mercado internacional. Este estudo pretende, portanto, analisar a contrarreforma trabalhista, com o intento de identificar, de modo geral, a sua caracterização com o neoliberalismo, a sua construção ideológica e sua relação com a dependência.

Palavras-chave: reforma trabalhista, neoliberalismo, ideologia, dependência.

ABSTRACT

After the Impeachment of President Dilma in 2016, carried out under an aura of parliamentary coup, the interim government has accelerated in a rapid manner a series of institutional “reforms” projects aimed at reformulating, among others, the consolidation of the laws of the Work and thus change the employment relations in Brazil. A process of wide flexibility of work bonds was followed which promoted the withdrawal of hard-won rights and the generalization of the precarization. However there was little indignation of the population in the face of the withdrawal of rights but the indiscriminate support of the productive sectors. Such inertia is due to the process of ideological alienation that obscures the intentions behind the projects and their results. Still such “countermeasures” which fall within the neoliberal project reproduce the misfits of underdevelopment reinforcing the character of dependence on the Brazilian economy in relation to the international market. This study intends therefore to analyze the labor counter-reformation with the intent to identify in general its characterization with neoliberalism, its ideological construction and its relationship with dependence.

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INTRODUÇÃO 8

1. NEOLIBERALISMO: DOUTRINA ECONÔMICA, PROJETO POLÍTICO OU IDEOLOGIA? 10

1.1. O desenvolvimento do Neoliberalismo 13

1.1.1. O desenvolvimento das condições materiais 14

1.1.2. A formulação intelectual e teórica 26

1.2. Conceituando o neoliberalismo 37

2. NEOLIBERALISMO E IDEOLOGIA 38

2.1. Alienação e ideologia em Marx e Ludovico Silva: A Mais-Valia Ideológica 38

2.2. O Neoliberalismo como ideologia 46

3. A TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA 47

3.1. O Surgimento e a evolução de uma teoria Latino-Americana 47

3.2. Teoria Marxista da Dependência em Ruy Mauro Marini 49

4. FORTALECENDO A DEPENDÊNCIA BRASILEIRA: A POLÍTICA E A ECONOMIA NEOLIBERAL IMPACTANDO NO BRASIL 57

4.1. As contrarreformas e seus possíveis impactos 59

4.2. O caráter neoliberal das contrarreformas 65

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 66

Como as contrarreformas reforçam a dependência do Brasil frente ao Mercado Financeiro Internacional 6. REFERÊNCIAS 70

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INTRODUÇÃO

Em agosto de 2016, logo após o impedimento da Presidenta do Brasil Dilma Rousseff, que ocorreu envolto em uma aura golpista e amplamente conservadora, o então vice-presidente assumiu o cargo de maior relevância no executivo com a promessa de levar a cabo a implementação de diversas reformas a fim de resolver a crise política e econômica do Brasil. A principal reforma, chamada de contrarreforma por todos os partidos e grupos do espectro da esquerda devido ao seu caráter negativo para com os trabalhadores, foi a trabalhista.

A principal “desculpa” utilizada pela presidência foi a necessidade de renovar a economia do Brasil, onde o desemprego estava em alta e o PIB estagnado e, segundo os apoiadores da reforma, as limitações burocráticas impostas pela Consolidação das Leis do Trabalho impediam o surgimento e a expansão de novos empreendimentos. A reforma trabalhista, portanto, viria para flexibilizar as relações empregatícias, permitindo novas modalidades, diminuindo a judicialização e favorecendo o oferecimento de novos empregos.

A contrarreforma enquadra-se num conjunto de práticas político-econômicas que, em vez de estimular a economia interna, favorecer o desenvolvimento das forças produtivas nacionais e promover o mercado de trabalho, impulsionou a presença do mercado externo na economia, enfraqueceu as relações empregatícias e agravou a desigualdade social no Brasil.

Seguindo o mesmo caminho da contrarreforma trabalhista, o governo demonstrou interesse em diversas outras reformas, como da previdência social que, avançando sobre o ainda presente caráter social-democrata do Estado, pretendem realizar o enfraquecimento do controle Estatal sobre esses institutos, por um lado, e o fortalecimento da iniciativa privada, por outro.

Essas reformas estruturais se enquadram no modelo de políticas estruturais que David Harvey vai chamar neoliberalização, ou virada neoliberal, e sua implementação geralmente está ligada ao processo de desmantelação de sistema de solidariedade e cooperativismo e à quebra de barreiras econômicas, com o intuito de implementar o livre mercado. O papel do Estado, contudo, é essencial dentro do projeto neoliberal, já que ele se torna responsável pela manutenção dos mercados existentes e por criar mercados onde ainda não há.

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Outro elemento de grande importância dentro do projeto neoliberal é garantir o apoio da população, ou melhor, evitar que esta desponte como uma ameaça a seus interesses. Vemos, então, em praticamente todos os veículos de mídia, as grandes emissoras e o próprio Estado impondo novas (e velhas) ideias ao povo, num processo de mascaramento dos interesses da elite e, principalmente, criando as mais amplas justificações para esse novo projeto: renovação das relações de trabalho, combate à corrupção, crise econômica, crise política, déficit da previdência, recuperação da “confiança do mercado” e da “vontade de investir”.

Aqueles que se pautam contra o avanço desse projeto acabam agraciados pelo ódio da maioria, afinal, ser contra o projeto de desenvolvimento do país é atacar o próprio país, é ser contrário ao seu desenvolvimento. Ao menos é essa a ideia amplamente difundida e absorvida pela população que, sem a possibilidade de desenvolver um senso crítico maior acerca das relações que permeiam a sociedade, sem a possibilidade de desenvolver uma consciência, acabam por reproduzir esse senso comum. É assim que o projeto neoliberal se prolifera no seio da sociedade como uma ideologia, promovendo, essencialmente, a alienação do povo.

O objetivo desse trabalho é, portanto, demonstrar como vem ocorrendo no Brasil, de um modo geral, essa nova etapa do capitalismo, que é o neoliberalismo. Como ele se apresenta como ideologia e promove a alienação ideológica — nesse ponto, trabalharemos com a obra de Ludovico Silva -. Mas mais do que isso, esse trabalho pretende demonstrar como o projeto neoliberal posto em prática no Brasil é diferente daqueles teorizados para os países centrais, como os Estados Unidos e a Inglaterra. Aqui, o neoliberalismo se desenvolve de um modo tipicamente dependente, subordinado, ao capital internacional. Para isso, trabalharemos com a Teoria Marxista da Dependência, nas obras de Ruy Mauro Marini, para nos ajudar a entender as correções e categorias básicas da dependência e demonstrar como ainda é possível verificá-las nas formas atuais.

Por fim, apresentaremos as qualificações neoliberais da “reforma” trabalhista e como ela ataca os direitos dos trabalhadores na intenção de aumentar o lucro dos grandes capitalistas, enquanto são “vendidas” aos trabalhadores como “liberdade” e “oportunidade”, princípios neoliberais que na teoria são belos espécimes, mas na prática apenas mascaram a realidade de exploração e precarização.

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1. Neoliberalismo: doutrina econômica, projeto político ou ideologia social?

Inicialmente, é importante para este trabalho conceituar e delimitar o neoliberalismo, a fim de trazer luz a esse enevoado conceito, tão amplamente discutido no meio político, mas que raramente encerra em si um consenso. Começamos, portanto, com a definição que Harvey traz ao início de seu livro “O neoliberalismo. História e implicações”:

O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio.1

Como conceituação inicial, a postulação de Harvey já nos serve. Isso porque Harvey nos apresenta, pelo menos neste primeiro plano, a categorização do neoliberalismo como uma teoria de práticas político-econômicas, ou seja, intimamente relacionada ao Estado e ao Mercado, duas instituições marcadas pela relação dialética que perpetuam entre si. Essa tradição de conflitos vem desde o surgimento dos Estados Nacionais e do próprio capitalismo em si, e tem-se configurado de formas diversas a cada período e em cada delimitação geográfica, de modo que, para a compreensão dessa relação, é necessário partir de uma análise do capitalismo em geral para as especificidades regionais históricas, determinadas pelo modo de desenvolvimento do capitalismo nesses países. A melhor base teórica para desenvolver uma análise dessa evolução é com certeza Karl Marx e sua análise do modo de produção capitalista em O Capital.

Uma das críticas direcionadas à conceituação dada por Harvey ao neoliberalismo é de seu excessivo economicismo2, já que suas análises partem das políticas econômicas das

décadas de 1970 e 1980 e prioriza a análise do comportamento do capital nesses períodos. Entretanto, esse caráter aparentemente economicista de David Harvey é condizente com a sua formação marxista e justifica-se pelo óbvio caráter social do materialismo histórico. Partindo das teorias de Marx, Harvey estuda as relações sociais, inclusive da luta de classes, a partir das relações econômicas dos indivíduos. Como veremos, apesar dessa crítica ser comum e geralmente infundada, não faltarão críticas ao modo como Harvey analisa a progressão do neoliberalismo e, em alguns momentos, esquece ou distorce alguns conceitos marxistas, deixando de aplicar o materialismo histórico aos fenômenos analisados.

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Há, contudo, e apesar da teorização de Harvey, uma dificuldade muito grande em definir o neoliberalismo, pois este se apresenta de diversas formas, seja em relação aos métodos utilizados, a diferenciação entre a teoria e a prática, as relações distintas que ocorrem dentro dos Estados no processo de neoliberalização, ou ainda pela categorização multifacetada que o neoliberalismo possui. Nesse sentido, Stephanie Lee Mudge3 define o

neoliberalismo como um “sistema ideológico sui generis nascido do processo histórico de luta e colaboração em três mundos: intelectual, burocrático e político”(tradução livre).

Para a autora, a face intelectual do neoliberalismo seria definida pela transnacionalidade ancorada nos países anglo-americanos, pela gestação interna nas instituições de bem-estar e na divisão da Guerra fria, além da elevação do mercado como fonte e regulador das liberdades humanas. A face burocrática do neoliberalismo é expressa na política de Estado, relacionando liberalização, desregulação, privatização, despolitização e monetarismo. Já a sua face política é direcionada pela política centrada no mercado e dirigida pelos “não-políticos” que dominam um senso comum enquanto exercem a prática de liberar o mercado a cada possibilidade.

Na mesma linha, William Davies4 ao nos apresentar o Estado neoliberal, indica que

nesse novo momento da dinâmica dos poderes o neoliberalismo envolve a transferência do poder estatal a esferas não políticas, em um processo contraditório mas direcionado. O Estado assume o caráter de empresa, e sua direção passa a tomar decisões como se empresa fosse, assim, incorpora dois princípios do mercado: competitividade e publicidade. Por um lado, a ideia de que os serviços públicos devem fazer parte de um sistema competitivo, bem como todo indivíduo deve ser um empreendedor, por outro, a ideia de que o mercado mantém às claras os seus interesses e suas leis e que, por isso, o Estado também deveria, de modo a realizar sempre a análise custo-benefício das políticas a serem realizadas.

Na prática, segundo Davies, o Estado neoliberal mantém o seu sistema de favorecimento a grandes empresas, porém, agora todo o processo é não-político e, assim, “sem influências obscuras”. Para que tal método se mantenha, o Estado passa a desenvolver alguns elementos de controle e justificação, como o controle do sentimento popular, centrado no conservadorismo, a ideia de tecnocracia, em que as decisões são tomadas por técnicos com base apenas no seu conhecimento “científico”, e a política a partir das decisões executivas,

3 MUDGE, 2008, p. 703-731. 4 DAVIES, 2009, p. 273-283.

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tomadas de pronto pelo poder executivo e, por isso, fora dos espaços populares e democráticos, como o poder legislativo.

Ao se analisar o neoliberalismo, fica muito clara a sua caracterização como doutrina econômica ou como projeto político, tendo em vista a sua intrínseca relação com a formação de mercados e com a política estatal, contudo, há um terceiro viés que funciona como fundamento para as duas anteriores, que é a sua caracterização como ideologia social. Seria precisamente essa faceta a responsável pela formação e difusão de um senso comum internalizado, uma ideia geral de como o neoliberalismo possui as respostas para as crises que a sociedade capitalista vivencia. Enquanto o economista neoliberal fornece elementos intelectuais e teóricos para estabelecer uma economia de livre mercado mantida pelo Estado, o projeto político realiza e aplica o neoliberalismo dentro da realidade estatal, enquanto a ideologia difundida mantém as classes subalternas alheias às demais facetas.

Devido a essa caracterização multifacetada, Philip Mirowski5 definirá o

neoliberalismo como um pensamento coletivo. O autor entende o neoliberalismo como uma intrincada estrutura de projeto filosófico e político cujo conhecimento tem sido mobilizado para moldar o discurso e as políticas públicas num nível nacional e internacional e, portanto, para estabelecer o que hoje é visto como senso comum no campo da política. Essa concepção, apesar de bastante teorética, nos ajuda a compreender a dimensão da estrutura ideológica do neoliberalismo, que se desenvolve em diversos âmbitos, assumindo características diferentes, mas, mesmo assim, propagando um certo ideário pró-mercado, que na maioria das vezes, em vez de analisar, apenas justifica.

Além dos diversos pontos de vista apresentados, que desenvolvem o neoliberalismo como inteiramente relacionado ao sistema econômico, ou que o compreendem como uma nova filosofia que encontrou no campo intelectual espaço para florescer e espalhar suas raízes, a análise de Pierre Dardot e Christian Laval, categorizada em A Nova Razão do Mundo, apresenta-se de forma transdimensional às anteriores. Para os sociólogos franceses, que desenvolveram suas teses com fundamento em Michel Foucault e Pierre Bourdieu, o neoliberalismo trata-se de uma nova forma de governabilidade e racionabilidade e, para além, uma nova forma de organização da sociedade, em suas palavras, uma nova razão de mundo.

Esse ponto de análise parte principalmente da biopolítica foucaultiana e interpretam o neoliberalismo como a transformação das relações de governabilidade, tanto social, num

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nível de ingerência estatal, como individual, na governabilidade subjetiva. A sua análise possui íntima relação com a crítica às visões estritamente econômicas do desenvolvimento do neoliberalismo, que o entendem como uma ideologia difundida pelas classes dominantes ou como a evolução do liberalismo clássico a um ultraliberalismo mantido pelo Estado. Para Dardot e Laval, o neoliberalismo tem mais de existencialismo que economicismo.

Essa discussão não é facilmente superada, e talvez sequer devesse ser, porém, para se chegar a um nível de compreensão das linhas traçadas pelo neoliberalismo, é preciso analisar as relações, tanto econômicas como sociais, que formaram o neoliberalismo como é hoje. A princípio, nossa análise se delimitaria apenas às relações materiais que geraram o surgimento do neoliberalismo como política de Estado, de modo que a análise das formulações teóricas nos confundiria nesse processo inicial, contudo, tendo em vista que seriam essas mesmas formulações teóricas a base para as diversas reformulações do Estado neoliberal, decidimos por analisar separadamente esses dois pontos para que não faltem elementos na compreensão desse processo histórico.

1.1. O desenvolvimento do neoliberalismo

Para entendermos o processo histórico de desenvolvimento do neoliberalismo, é necessário compreender que a formulação intelectual e teórica (e de certa forma filosófica) e as condições econômicas para a sua aplicação progrediram de forma diferenciada ao longo do século XXI. De um lado, as bases teóricas do neoliberalismo surgiram a partir de um cisma do liberalismo clássico, que progrediu por diversas formas em uma tentativa de reformular os parâmetros e fundamentos do liberalismo e acabou culminando nos ideais difundidos no Colóquio Walter Lippmann. De outra parte, a sua aplicação prática como política de Estado e sistema de controle (ou gerenciamento) social só foi possível através do processo histórico de mudança dos paradigmas do processo de acumulação fordista para a acumulação flexível, a qual apenas ocorreu, por sua vez, graças às crises de acumulação da década de 1970.

Para analisarmos a mudança paradigmática do processo de acumulação fordista para a acumulação flexível, precisamos nos remontar à análise que David Harvey realiza das transformações econômicas, com uma grande ênfase (para não dizer limitação) nos grandes centros de poder, declaradamente os Estados Unidos da América e a Europa, mais precisamente a Inglaterra. Essas análises podem ser encontradas no livro A Condição Pós-Moderna, de 1989, na Parte Dois, que discorre sobre as transformações político-econômicas

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do capitalismo do final do século XX, e em seu livro O Neoliberalismo, história e implicações, publicado em 2005.

As pontuações de Harvey são, de um todo, interessantes pelo método de abordagem que utiliza, partindo de diversos gráficos e dados que elucidam as mudanças de direção do capital, tanto apontando os altos e baixos da economia global, como destrinchando a atuação de certos atores sociais, evidenciando os conflitos de classe que permeiam o século XX e que forçaram, para um lado ou para outro, avanços e retrações das medidas político-econômicas. Partimos, então, para a compreensão do processo de acumulação fordista, de como este se desenvolveu ao longo do século XX, sofreu mutações e acabou se tornando insustentável frente ao modo como o capitalismo se desenvolveu e desembocou em uma nova crise que permitiu o surgimento de um novo processo de acumulação, dessa vez fundamentado na flexibilidade do capital e no efeito globalizante de mobilidade das forças produtivas.

1.1.1 O Desenvolvimento das condições materiais

O Fordismo pode ser entendido de modo simples como o sistema implementado por Henry Ford em 1914, em que introduziu um padrão das relações produtivas, determinando a carga horária diária de 8 horas e salário de cinco dólares pelo desempenho de um papel pontual na linha automática de montagem de carros que havia estabelecido. Para Harvey6, o

que diferenciava esse sistema do taylorismo era a sua visão, “seu reconhecimento explícito de que a produção de massa significava consumo de massa uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista”.

Essa sociedade que Ford buscava criar era baseada nessa dupla relação, da produção de massa e do consumo de massa. Desse modo, a própria relação fixa da carga horária e dos salários pagos cumpriria um papel dobrado: de impor aos trabalhadores a disciplina necessária ao sistema de linha de montagem de alta produtividade e garantir a eles renda e tempo de lazer suficientes para que se tornassem também consumidores dos produtos produzidos em massa. Os trabalhadores se tornariam, portanto, produtores da grande massa de bens, e consumidores dos produtos que eram colocados no mercado em cada vez maiores quantidades.

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De acordo com Harvey, Ford possuía tamanha crença no “poder corporativo de regulamentação da economia como um todo que sua empresa aumentou os salários no começo da Grande Depressão na expectativa de que isso aumentasse a demanda efetiva”7. Buscava,

assim, estimular o giro de mercado aumentando o poder de compra aos trabalhadores com o intuito de restaurar as forças de mercado. Tal empreitada não funcionou, devido à dimensão limitada dos poderes de Ford, pelas relações de mercado competitivas ou pelo tamanho da crise, sendo preciso que o Estado implementasse as reformas do New Deal para que a economia superasse a crise.

No período entre guerras, o Fordismo, que se desenvolveu estritamente nos Estados Unidos, teve diversas dificuldades para avançar em direção à Europa e à sua universalização. Havia grande oposição a um sistema de produção puramente rotinizado, de grandes jornadas de trabalho, necessidade de habilidades nada qualificadas e que concedia pouco ou nenhum controle do trabalhador sobre o processo produtivo. Em seu início, Ford utilizou-se quase que exclusivamente de mão de obra imigrante, já que os americanos lhe eram hostis, e a rotatividade da força de trabalho se mostrou muito alta. Desse modo, as relações de classe do pós-guerra, somadas à oposição dos trabalhadores, impediram o avanço do Fordismo (e do Taylorismo) na Europa, “apesar do domínio capitalista dos mercados de trabalho, do fluxo contínuo de mão de obra imigrante e da capacidade de mobilizar exércitos de reserva da América rural (e, por vezes, negra)”8. Foi preciso, portanto, uma revolução das relações de

classe9 para acomodar a disseminação do fordismo na Europa, contudo, essa revolução, que

começou na década de 30, só daria frutos nos anos 50, após a Segunda Guerra Mundial. Uma segunda barreira à difusão do fordismo, segundo Harvey, estava nos modos de intervenção estatal. De acordo com o autor,

Foi necessário conceber um novo modo de regulamentação para atender aos requisitos da produção fordista; e foi preciso o choque da depressão selvagem e do quase-colapso do capitalismo na década de 30 para que as sociedades capitalistas chegassem a algumas novas concepções da forma e do uso dos poderes do Estado10.

Como veremos mais adiante, foi à luz da profunda crise da década de 30 que se produzirem as obras e, principalmente, se formaram os pensadores neoliberais, que frente ao colapso da economia produzido pelo liberalismo clássico laissez-faire, buscaram a 7 Ibidem, p. 122.

8 Ibidem, p. 123.

9 David Harvey explica que um dos processos utilizados pelo capital para implementar o fordismo foi a apropriação das dirigências dos sindicatos, as quais forneciam ajuda na “domesticação” e adequação dos trabalhadores em troca do poder de barganha e pequenas melhoras na qualidade de vida.

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reconstrução dos fundamentos do liberalismo trazendo o Estado como ponto central para a manutenção da sociedade de livre mercado.

A crise de acumulação da década de 20, a quebra da bolsa em 1929, e a posterior depressão de 30, podem ser caracterizadas como resultado da falta de demanda efetiva por produtos. Após a devastação total ocorrida na Europa durante a Primeira Grande Guerra, os Estados Unidos assumiram o patamar de grande indústria mundial e, fomentando a produção em larga escala (utilizando-se do fordismo e do taylorismo), passaram a ser os maiores, senão os únicos, exportadores de bens ao Velho Continente. A produção desenfreada, somada à rápida recuperação da indústria europeia, acarretou no desaparecimento do principal mercado americano, na queda brusca da demanda e a consequente estagnação da produção estadunidense.

As soluções que essa crise requeria, porém, foram pensadas nas mais diversas direções, resultando em formulações teóricas e aberrações políticas. Se, por um lado, os liberais do Colóquio Walter Lippmann defendiam a reformulação do liberalismo em suas bases, por outro, ressurgiam teorias sindicalistas e cooperativistas. Acabaram se destacando nesse período, contudo, as formulações teóricas de John Maynard Keynes de uma social-democracia, e as sublevações autoritárias. É nesse contexto confuso, destaca Harvey11, que é

necessário entender as tentativas diversificadas dos países de chegar a “arranjos políticos, institucionais e sociais que pudessem acomodar a crônica incapacidade do capitalismo de regulamentar as condições essenciais de sua própria reprodução”.

O problema da configuração estatal e do uso de seus poderes somente foi resolvido após o final da Segunda Guerra, permitindo que o fordismo se desenvolvesse como regime de acumulação plenamente acabado e distintivo. Ele veio a se tornar a base do período de expansão pós-guerra e se manteve sólido até 1973. Nesse período, “os padrões de vida se elevaram, as tendências de crise foram contidas, a democracia de massa, preservada e a ameaça de guerras intercapitalistas, tornada remota”12. O capitalismo desse período se

desenvolveu aliado ao keynesianismo e ao fordismo para alcançar as nações descolonizadas em um surto de expansão internacional. As forças de trabalho privilegiadas se expandiam no mundo capitalista com grande demanda efetiva e havia forte alocação de recursos para a reconstrução das economias devastadas, na renovação urbana e formação de subúrbios, na

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expansão dos sistemas de transporte e linhas de comunicação e no desenvolvimento da infraestrutura, tanto dentro como fora do mundo capitalista.

Essa expansão, contudo, veio aliada a uma forte política keynesiana, a qual foi amplamente contraposta pelo neoliberalismo nascente. O Estado teve de assumir novos papéis, construir novos poderes institucionais, elaborar sistemas de controle do capital corporativo e de manutenção da força de trabalho. A garantia de estabilidade tomou o lugar, por um curto período de tempo, dos riscos do desenvolvimento desenfreado e novas relações de classe se estabeleceram entre o capital e as forças trabalhistas.

Assim, as forças sindicais, fortes no período entreguerras e com poder de barganha no mercado, foram dominadas, através da disciplina legal e sob a acusação de infiltração comunista. De modo a evitar perdas ainda mais consideráveis, essas forças sindicais se viram forçadas a cooperar na implementação das técnicas fordistas de produção e das estratégias corporativas de aumento da produtividade para assegurar certos direitos, como os benefícios da seguridade social, salário-mínimo e outras políticas sociais. As organizações sindicais, cada vez mais burocratizadas, foram pressionadas, através da repressão violenta a greves, por exemplo, a trocar ganhos reais de salário pela cooperação na disciplina dos trabalhadores.

Essas relações são um elemento de extrema importância na análise de David Harvey. Elas vão figurar como protagonistas na diferenciação entre os processos de acumulação fordista e de acumulação flexível, tanto no tratamento dispensado pelo Estado, como no modo de desenvolvimento de relações paralelas ao trabalho organizado. É importante ressaltar, contudo, que a relação entre os processos de acumulação e a força de trabalho provém essencialmente de Marx, em seu livro O Capital, quando este explica o processo que leva ao surgimento do mais-valor a partir do capital e ao surgimento do capital a partir do mais valor em escala ampliada, já que a apropriação da força de trabalho está intimamente ligada à acumulação:

Sendo processo de produção e, ao mesmo tempo, processo de consumo da força de trabalho pelo capitalista, o produto do trabalhador transforma-se continuamente não só em mercadoria, mas em capital, em valor que suga a força criadora de valor, em meios de subsistência que compram pessoas, em meios de produção que se utilizam dos produtores. Por conseguinte, o próprio trabalhador produz constantemente a riqueza objetiva como capital [...] e o capitalista produz de forma igualmente contínua a força de trabalho como fonte de riqueza[...].13

No período pós-guerra, as formas de intervencionismo estatal se diferenciavam de um país capitalista a outro, mantendo, contudo, um crescimento econômico estável e o 13 MARX, 2013, p. 647.

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aumento das condições materiais da população através de políticas de bem-estar social, administração econômica keynesiana e controle de relações de salário. Como o fordismo dependia, internacionalmente, de ampliação dos fluxos de comércio mundial, e internamente, de uma certa regulação das relações sociais, este acabou se entrelaçando com os Estados e formando uma relação simbiótica com o modernismo:

O fordismo também se apoiou na, e contribuiu para a, estética do modernismo -particularmente na inclinação desta última para a funcionalidade e a eficiência - de maneiras muito explícitas, enquanto as formas de intervencionismo estatal (orientadas por princípios de racionalidade burocrático-técnica) e a configuração do poder político que davam ao sistema a sua coerência se apoiavam em noções de uma democracia econômica de massa que se mantinha através de um equilíbrio de forças de interesse especial.14

Isso concedia ao fordismo a condição de se desprender da simples categorização de sistema de produção em massa e passar a ser entendido como um novo modo de vida, presente nos mais diversos âmbitos da vida social. A própria visão fordista, que requeria a necessidade de produtividade em todas as ações (e produtos) cotidianas, além do consumo massivo passou a ser difundida e interpretada com maior empenho. A visão de boa vida era traduzida como ter acesso aos bens de consumo, fazer parte da massa de consumidores.

No plano internacional, esse sistema não foi tanto difundido como foi imposto, seja através das políticas de ocupação ou pelo Plano Marshall. Essa abertura dos mercados estrangeiros, principalmente na Europa, permitiu aos Estados Unidos escoar sua produção e ajudou na formação de “mercados de massa globais e absorção de massa pela população mundial”15. Esse novo internacionalismo propagou uma nova cultura internacional e se apoiou

em capacidades recém-descobertas de difusão de informações, em um novo processo que permitia a globalização da oferta de matérias-primas e a difusão de um novo sistema financeiro. Harvey lembra que o “acordo de Bretton Woods, em 1944, transformou o dólar na moeda-reserva mundial e vinculou com firmeza o desenvolvimento econômico do mundo à política fiscal e monetária norte-americana”.

Os Estados Unidos dominaram a política financeira internacional, concedendo empréstimos em troca da abertura econômica que favorecesse a presença do capital e das mercadorias das grandes corporações. Sob essa influência, o fordismo se disseminou no âmbito global, porém, de forma desigual, já que as únicas limitações eram as relações de classes próprias de cada país e o controle que cada Estado impunha sobre sua própria administração econômica. A desigualdade se verificou também internamente. Aqueles 14 HARVEY, 2012, p. 131.

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trabalhadores que não tinham acesso ao consumo de massa devido à exclusão social se movimentaram em forte contramovimentos, revoltas sociais, de modo que a legitimação do Estado dependia de aumentar a abrangência dos benefícios do fordismo concomitantemente ao prolongamento dos benefícios sociais, contudo, a própria manutenção do Estado de bem-estar social dependia da contínua aceleração da produtividade do trabalho e solidificação do mercado.

Em suma, a realidade se distanciava do ideário prometido. Enquanto parte do mercado (a monopolista) crescia de modo constante, utilizando-se de negociações de salário ao estilo fordista e apresentavam investimentos de larga escala na tecnologia de produção de massa, outra parte (competitiva) estava distante do modo de produção fordista, onde a produção sofria com altos riscos e dependiam de salários baixos e fraca garantia de emprego. Esse mercado competitivo, paralelo ao monopolista, se expressava precisamente nas áreas de dependência e influência econômica americana, nos limites do mercado capitalista de produção fordista. Como Harvey explica, crescia o número de

insatisfeitos do Terceiro Mundo com um processo de modernização que prometia desenvolvimento, emancipações das necessidades e plena integração ao fordismo, mas que, na prática, promovia a destruição de culturas locais, muita opressão e numerosas formas de domínio capitalista em troca de ganhos bastante pífios em termos de padrão de vida e de serviços públicos (por exemplo, no campo da saúde), a não ser para uma elite nacional muito afluente que decidira colaborar ativamente com o capital internacional.16

A transformação do processo de acumulação fordista para o processo de acumulação flexível, assim como praticamente todos os processos de reconfiguração social que ocorreram dentro do capitalismo, não se deu da noite para o dia. Foram anos de progressivo surgimento de novas relações, modificações das políticas aplicadas e de desenvolvimento de novas técnicas que puderam, a partir de certo momento, ser interpretada como algo novo. O ponto decisivo, a crise do petróleo de 1973, forçou a generalização e aceleração dessa transformação, de modo que a partir desse período, começa-se a verificar a formação de uma ideologia, a hegemonização do processo de acumulação flexível.

Os problemas com o processo de acumulação fordista já iam se aprofundando a partir da década de 1960, quando se concluira a recuperação da Europa Ocidental e do Japão, e estes dois polos passaram a expandir os seus mercados e zonas de influência para escoar a produção que o mercado interno não dava conta de consumir. Nos Estados Unidos o enfraquecimento da demanda efetiva foi contida através da guerra à pobreza e da guerra do Vietnã, contudo, “a 16 Ibidem, p. 133.

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queda da produtividade e da lucratividade corporativas depois de 1966 marcou o começo de um problema fiscal nos Estados Unidos que só seria sanado às custas de uma aceleração da inflação”17. Esta inflação minou a força do dólar e seu papel como moeda-reserva

internacional estável.

Foi nesse período, inclusive, que tomados por uma ideologia desenvolvimentista, os países da América Latina promoveram uma série de políticas econômicas que envolviam a abertura do mercado interno a investidores internacionais, contra o movimento anterior de substituição de importações, e que, “associadas ao primeiro grande movimento das multinacionais na direção da manufatura no estrangeiro […] geraram uma nova onda de industrialização fordista competitiva”18. Desse modo, a competição internacional, renovada

pela nova força econômica europeia e japonesa forçaram à desvalorização do dólar e a substituição das taxas fixas de expansão do pós-guerra por taxas de câmbio flutuantes.

Por um certo período de tempo, que Harvey delimita de 1965 a 1973, as contradições inerentes ao capitalismo suplantaram o fordismo e o keynesianismo, que se mostraram incapazes de conter as crises de superexploração, devido, principalmente, à rigidez de seu sistema de “investimento em capital fixo de larga escala e longo prazo em sistemas de produção em massa”19, que se apresentava um processo muito mais concentrado, centralizado

e especializado. As tentativas de superação da rigidez, principalmente no que concerne aos contratos trabalhista, eram barradas pela força da classe trabalhadora, que promoveram diversas greves no período. A única ferramenta “de resposta flexível estava na política monetária, na capacidade de imprimir moeda em qualquer montante que parecesse necessário para manter a economia estável”20, fazendo com que a nova onda inflacionária afundasse a

expansão estável do pós-guerra.

Havia, então, um excesso de fundos e poucas áreas produtivas para investimento e um sistema de produção voltado inteiramente para os recursos e para a expansão de impérios econômicos. A tentativa de refrear a inflação em 1973 gerou uma crise mundial nos mercados imobiliários e diversas dificuldades nas instituições financeiras, agravados pela decisão da OPEP de aumentar os preços do petróleo e o embargo árabe da exportação dos produtos ao ocidente. Os choques do petróleo geraram uma crise energética sem precedentes, forçando novas formas de economia de energia na produção através de alterações tecnológicas e 17 Ibidem, p. 136-137.

18 Ibidem, p. 135. 19 Ibidem, p. 135.

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organizacionais e trazendo o problema da reciclagem dos petrodólares excedentes, que gerou ainda mais instabilidade nos mercados financeiros internacionais. Nas palavras de Harvey:

A forte deflação de 1973-1975 indicou que as finanças do Estado estavam muito além dos recursos, criando uma profunda crise fiscal e de legitimação. [...] as corporações viram-se com muita capacidade excedente inutilizável (principalmente fábricas e equipamentos ociosos) em condição de intensificação da competição. Isso as obrigou a entrar num período de racionalização, reestruturação e intensificação do controle do trabalho [...] A mudança tecnológica, a automação, a busca por novas linhas de produto e nichos de mercado, a dispersão geográfica para zonas de controle do trabalho mais fácil, as fusões e medidas para acelerar o tempo de giro do capital passaram ao primeiro plano das estratégias de sobrevivência em condições gerais de deflação.21

Os modos de superação dessas dificuldades proporcionadas pela crise estavam intrinsecamente ligadas ao disciplinamento do trabalho que, a partir daquele momento, como veremos posteriormente, adentrava em processo de globalização, já alinhado ao ideal neoliberal. Era necessário propagar, criar e manter uma competitividade entre as diferentes forças de trabalho em escala mundial, o que requeria, por sua vez, um capital muito mais fluido e aberto à mobilidade geográfica. Esse foi um momento de expansão e transformação do capital em uma configuração inteiramente nova, fundada em uma lógica inteiramente globalizante. Para David Harvey, ocorre mais nitidamente o solapamento do fordismo e ascensão do processo de acumulação flexível. Importante analisar nas palavras do geógrafo britânico:

A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas […] Ela também envolve um novo movimento que chamarei de “compressão do espaço-tempo” no mundo capitalista — os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitaram, enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado.22

Em suma, o processo de acumulação flexível envolve uma modificação das relações trabalhistas na direção de uma precarização avançada, se desenrolando através do ampliamento da terceirização, da descentralização, do rompimento com sistemas de solidariedade como os sindicatos, desregulamentação e redução das políticas sociais. 21 Ibidem, p. 137.

(22)

Enquanto na produção, representa o fim do sistema de estoques, a descentralização e desmembramento dos grandes monopólios, o movimento das grandes empresas para a periferia e a constante movimentação do capital. Verifica-se que dentro da produção há uma terceirização ampla e o fortalecimento de um processo de competitividade entre pequenas empresas para assumir as áreas de produção intermediárias das grandes empresas. Em vez de integralizarem a produção internamente, as empresas a externalizam ao mercado através de contratos de serviço.

A possibilidade da constante movimentação da produção gera um desalinho nas relações de trabalho: de um lado, gera o enfraquecimento das relações trabalhistas, já que o trabalhador (e seus órgãos representativos) perdem o poder de barganha frente a necessidade de empregos — o desemprego é essencial para a baixa dos salários, já dizia Marx23 -; do outro,

as empresas aumentam seu poderio, pois podem se evadir para qualquer lugar com melhores benefícios, ajudas de custos e mão de obra mais barata e precarizada.

O que fica claro nesse processo é a pressão sobre o enfraquecido poder sindical para impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis, substituindo o emprego regular pelo uso de trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado, o que evidencia, de fato, o tamanho do exército de reserva disponível nesse período.

Como Harvey24 apresenta, por um lado o crescimento da subcontratação e da

consultoria “permitem que atividades antes internalizadas nas firmas manufatureiras (legais, de marketing, de publicidade, de secretaria etc) sejam entregues a empresas separadas”, promovendo uma valorização de projetos de “empreendimentismo inovador e ‘esperto’”. Por outro, argumenta que a acumulação flexível é uma espécie de “recombinação simples das duas estratégias de procura de lucro (valia) definidas por Marx”, falando tanto da mais-valia absoluta com relativa.

Nesse momento, faz-se necessário abrir um parênteses quanto ao desenvolvimento dos estudos de David Harvey sobre a acumulação capitalista no século XX. Harvey estuda e

23 “Mas se uma população trabalhadora excedente é um produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza com base capitalista, essa superpopulação se converte, em contrapartida, em alavanca da acumulação capitalista, e até mesmo numa condição de existência do modo de produção capitalista. Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se ele o tivesse criado por sua própria conta. Ela fornece a suas necessidades variáveis de valorização o material humano sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro aumento populacional […] Toda a forma de movimento da indústria moderna deriva, portanto, da transformação constante de uma parte da população trabalhadora em mão de obra desempregada ou semiempregada.” MARX, Karl. 2013, p. 707-708.

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escreve sobre o processo de acumulação ao menos desde a década de 1980, e percebe-se uma progressão nas conceituações e no pensamento utilizado em A Condição Pós-Moderna de 1989, O Novo Imperialismo de 2003 e O Neoliberalismo, história e implicações de 2005. Enquanto em A Condição Pós-Moderna, Harvey explica os processos de transição dos modos de acumulação originados a partir das crises de superacumulação, e desenvolve os elementos característicos desses novos processos, em O Novo Imperialismo, o autor analisa a política de Reagan e Tatcher como tipicamente neoliberais. Já em O Neoliberalismo, traz a crise do petróleo de 1973 como elemento econômico central do surgimento da doutrina neoliberal no âmbito mundial, através dos choques neoliberais, sem tratá-la, especificamente, como crise de acumulação, e fazendo uma nova interpretação dos processos que antes havia classificado como de acumulação flexível ou de acumulação por espoliação — que nada mais é que a acumulação primitiva renomeada.

De certa forma, Harvey interpreta diferentemente os mesmos elementos em fases distintas de sua produção teórica. Se, por um lado, ele identifica os processos de flexibilização geográfica do capital, somados à fluidez das relações de trabalho e às relações entre Estado e monopólio, como elementos críticos da transformação do processo de acumulação fordista em acumulação flexível; por outro, passa a interpretar esses mesmos elementos como parte da doutrina neoliberal e os novos processos de financeirização como integrantes de um projeto político sólido das elites, dependente, por exemplo, da concentração do capital.

A aparente contradição das formulações de Harvey nos obriga a ir mais a fundo em uma leitura sistemática da obra do autor, que busca apresentar uma compreensão mais aprofundada das relações entre as práticas econômicas e os interesses políticos do século XX. É certo que para o entendimento completo de O Neoliberalismo se requer a leitura prévia da obra anterior de Harvey, já que para a compreensão do desenvolvimento do neoliberalismo, é preciso estudar as crises, as propensões econômicas e as evoluções históricas do capitalismo, bem como os processos de acumulação.

Porém, a análise inversa também nos rende certos frutos. De alguma maneira, é possível verificar que Harvey alterou a sua leitura do desenvolvimento do capitalismo em algum momento entre 2001 e 2005, adicionando o elemento ideológico do neoliberalismo na sua compreensão das transições econômicas. Se antes de 2005 não havia uma menção apropriada do neoliberalismo em seus escritos, ou ele passou a compreender esse elemento nesse período, ou tal ideia ainda estava em gestação, de modo que o autor aguardou o seu

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amadurecimento, provavelmente incentivado pelas novas movimentações econômicas americanas da Guerra ao Terror.

Independentemente da origem dessa transformação, o importante é verificar que Harvey muda a sua concepção ao trazer para a sua análise o elemento ideológico, que até então não estava tão evidente. Ao incluir a ideologia no paradigma analisado, o geógrafo consegue traçar uma linha entre a modificação dos processos de acumulação e os interesses políticos das elites, onde se encaixa, a nosso ver, as formulações teóricas liberais do século XX e que passaremos a expor no próximo segmento.

Contudo, antes de progredirmos, é importante trazer alguns pontos de crítica aos apontamentos expostos por Harvey em sua análise. Primeiramente, ao caracterizar o neoliberalismo como um projeto político para restauração do poder de classe das elites dirigentes, Harvey estabelece que a) é um projeto político direcionado, com resultados esperados e consequências previstas — e, portanto, teorizado — e b) como projeto político, obedece e reproduz uma certa ideologia positiva das classes dominantes promovida de modo consciente.

Esse é um ponto que merece atenção. No primeiro capítulo de O Neoliberalismo Harvey parabeniza a escolha dos neoliberais pelo princípio da liberdade como seu elemento primordial, pois é um princípio que realmente vale a pena ser defendido. Nas suas palavras, “fizeram uma sábia escolha, porque esses certamente são ideais bem convincentes e sedutores (dignidade humana e liberdade individual)25. Essa colocação dá a entender que essa foi uma

escolha pragmática pela facilidade como esses princípios são aceitos, e não por ser um valor realmente defendido. Pautar a principiologia do neoliberalismo dessa forma gera o risco de cair em um panorama conspiratório e ter sua teoria legada a um caráter de supraciência, ou ideologia, como diria Marx. É preciso compreender que, na realidade, a propagação desse princípio é defendido e reproduzido pelos liberais pois se tornou o valor dominante das sociedades capitalistas, acompanhando as mudanças da realidade do sistema.

Aprofundaremos, mais a frente, a questão da ideologia, porém, convém indicar que a elevação desses princípios, de liberdade individual e dignidade humana, a fim máximo da sociedade, foi a forma mais orgânica de justificar os processos de exploração que o sistema capitalista impõe. Ao declarar que no capitalismo todos são livres para tomar as próprias decisões e escolher o próprio caminho, os liberais difundem a ideia de que os indivíduos são

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responsáveis pela sua condição de vida, a qual é resultado das suas escolhas, e mesmo que estejam em posições deploráveis, ainda é melhor do que não ter a opção. Como exemplo, apresento as palavras de Ludwig von Mises ao caracterizar a liberdade:

Mas liberdade econômica significa, na verdade, que é dado às pessoas que a possuem o poder de escolher o próprio modo de se integrar ao conjunto da sociedade. A pessoa tem o direito de escolher sua carreira, tem liberdade para fazer o que quer.

É óbvio que não compreendemos liberdade no sentido que hoje tantos atribuem à palavra. O que queremos dizer é antes que, através da liberdade econômica, o homem é libertado das condições naturais. Nada há, na natureza, que possa ser chamado de liberdade; há apenas a regularidade das leis naturais, a que o homem é obrigado a obedecer para alcançar qualquer coisa. Quando se trata de seres humanos, atribuímos à palavra liberdade o significado exclusivo de liberdade na sociedade.26

Ou no caso da formulação dada por Milton Friedmann:

A organização econômica desempenha um papel duplo na promoção de uma sociedade livre. De um lado. a liberdade econômica é parte da liberdade entendida em sentido mais amplo e, portanto, um fim em si própria. Em segundo lugar, a liberdade econômica é também um instrumento indispensável para a obtenção da liberdade política.27

A uma primeira e rápida leitura, é uma aceitável conceituação: o poder de escolher o próprio destino. Porém, parando para analisar mais precisamente, nos encontramos com uma questão básica: o capitalismo realmente concede isso? Apesar de que diversos autores liberais apresentarem o capitalismo como o fundo provedor de escolhas e opções, velados sob a possibilidade de mobilidade social, na realidade essa gama de opções, de escolher “sua função na sociedade”, é relegada a uma fração da sociedade. Enquanto esses poucos indivíduos podem escolher se querem ser médicos ou advogados, a imensa maioria do mundo capitalista se vê obrigado a vender sua força de trabalho pelo menor preço possível na tentativa de não morrer de fome.

Vender o paradigma da liberdade econômica, mascarada de liberdade individual, é esconder que a verdadeira escolha é entre vender sua força de trabalho não para empresa A, mas para a empresa B, e as raras chances de mobilidade social servem como apaziguadoras dos ânimos, a esperança que se desvanece por último. Com as crises de acumulação, a ideologia dominante precisa formar um indivíduo diferente, um trabalhador que produz mais e guarda o restante na poupança, onde seu dinheiro, em vez de virar a possibilidade de ascensão social, vira investimento na mão do mercado financeiro.

26 VON MISES, 2009, p. 26. 27 FRIEDMANN, 2014, p. 16.

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A ideologia neoliberal, portanto, se utilizará de diversos desses valores, transmutados em aforismos lógicos, concepções morais e pressupostos que, partindo de meias-verdades ou verdades distorcidas, é propagada e permeia a sociedade capitalista, principalmente nos países da América Latina sob influência dos Estados Unidos, como o Brasil.

1.1.2 Formulação intelectual e teórica

Apesar de desenvolver suficientemente o contexto histórico e econômico do surgimento do neoliberalismo, explicando a evolução do processo de acumulação fordista para o processo de acumulação flexível, de acordo com os panoramas profundos e aparentes das crises do capitalismo no século XX e seguindo as teorizações propostas por Karl Marx, Harvey, por uma questão principiológica, deixa de analisar a formulação teórica e filosófica do neoliberalismo. Essa escolha é justificada pela formação marxista, já que Marx, ao desenvolver a teoria da alienação28, explica que as formulações ideológicas são expressões das

condições materiais da sociedade, e não o inverso.

O autor, em seu livro O Neoliberalismo, história e implicações, desenvolve a tese de que o neoliberalismo é um projeto político posto em prática pelas elites locais com o fim de recuperar o poder de classe perdido com as crises anteriores. Nesse panorama, a formulação intelectual dos autores neoliberais, e inclusive suas divergências, são sobrepostas por um único ponto de convergência que seria a renovação do poder de classe.

Em sua opinião, as diferentes formas que o neoliberalismo assumiu se deve, principalmente, às relações de classe pré-existentes nas regiões e, minoritariamente, à cultura local, sem levar em conta as diversas formulações teóricas elaboradas, com destaque à escola anglo-americana e à escola ordo-liberal austríaca. A leitura de Harvey, nesse sentido, é, até certo ponto, unilateral, ao ponto de compreender o início do neoliberalismo como doutrina em 1947 com a criação da Mont Pélérin Society, e esta somente como o reavivamento dos ideais promovidos em 1938 no Colóquio Walter Lippmann.

Contudo, acreditamos que os intelectuais liberais do século XX tiveram papel importante na formação de uma fundamentação sobre a qual irá se desenvolver todo o aparato ideológico neoliberal, cujo caráter justificador, moralizante e simplista, sobrepujará as tendências social-democratas e promoverá um senso comum individualista e de aparência desenvolvimentista.

(27)

Por isso a partir deste ponto teremos que buscar em outros autores os fundamentos da construção teórica do neoliberalismo, as ideias gerais e os pontos de divergência de seus autores, cujas diferenças explicam em parte os modos diversos em que o neoliberalismo se desenvolveu no mundo. Com isso, partimos com as análises elaboradas por Pierre Dardot e Christian Laval em A Nova Razão do Mundo, Ensaio sobre a sociedade neoliberal, em que os autores iniciam estudando a crise do liberalismo clássico e a formação de um novo liberalismo, reformulado em suas bases, e o surgimento do ideal neoliberal no Colóquio Walter Lippmann.

Desde meados do século XIX o liberalismo se apresentava em crise e as tensões entre os liberais reformistas sociais e os partidários da liberdade individual como fim absoluto apenas se aprofundaram até a Primeira Guerra Mundial e o entreguerras. Porém, foi após a crise de 1929 que o liberalismo laissez-faire tomou o lugar, dentro do pensamento liberal, como possível responsável pela depressão, que se apresentou a necessidade crítica de sua reformulação, ainda mais quando o Estado parecia o único capaz de recuperar uma situação econômica e social tão decadente.

Essa preocupação de salvar do liberalismo o que resta do sistema capitalista formou a mente neoliberal de Walter Lippmann, por um lado, e de John Maynard Keynes, por outro. De certo modo, a questão principal à época era encontrar uma forma de manter as liberdades individuais em tempos de crise do liberalismo, havendo uma clara preocupação em definir o que seria a agenda e não agenda do Estado, ou melhor, no que o Estado deveria tomar a seu encargo e o que ele deveria deixar para a iniciativa privada. Para Keynes, a problemática principal estava centrada em um ponto: o liberalismo laissez-faire. Para ele, era um dogma simplista que reunia em si a livre concorrência do século XVIII e o darwinismo social do século XIX: “Os economistas ensinavam que a riqueza, o comércio e a indústria eram fruto da livre concorrência - que a livre concorrência fundara Londres. Mas os darwinistas iam mais longe: a livre concorrência criara o homem”.29

Nesse ponto, a citação de Gilles Dostaler trazida por Dardot e Laval nos ajudará a entender a teoria keynesiana:

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A visão política de Keynes se delineia, num primeiro momento, em termos negativos. Ela é mais clara naquilo que rejeita do que no que prega. De um lado, Keynes trava uma luta contra o liberalismo clássico, que se tornou apanágio de um conservadorismo e que, em sua forma extrema, pode transformar-se em fascismo. Por outro, ele rejeita as formas radicais do socialismo, que ele denomina ora leninismo, ora bolchevismo, ora comunismo. Trata-se, portanto, de navegar entre a reação e a revolução. Essa é a missão de uma “terceira via”, alternadamente denominada novo liberalismo, liberalismo social ou socialismo liberal, do qual ele faz propagandista.30

Se, por um lado, Keynes buscava o caminho do meio no aparente limiar entre liberalismo e socialismo, por outro, defendia a formação de um novo liberalismo, em que visava o controle das forças econômicas pelo Estado e o movimento da agenda em direção ao intervencionismo, concedendo ao poder estatal o papel de redistribuidor fundamental. É a partir das ideias keynesianas que se desenvolveu a social-democracia, onde o Estado assume o encargo de gerar e manter o pleno emprego além de aumentar seus gastos para garantir o equilíbrio das forças de mercado. O Estado também toma a iniciativa de gerir a previdência social e conceder aos cidadãos um certo nível de bem-estar, a fim de garantir o consumo consistente.

Pierre Dardot e Christian Laval, para esboçar as origens da crise do liberalismo, trazem a crítica elaborada por Karl Polanyi em A Grande Transformação. Nele, Polanyi explica que o liberalismo agiu de modo contraditório no século XIX: de um lado, buscou criar mecanismos de mercado e, de outro, implantou mecanismos de limitação; ao mesmo tempo que apoiou o movimento em direção à sociedade de mercado, também reforçou o contramovimento de resistência. Para o autor, a entrada no mercado dos fatores econômicos é condicionante para o crescimento do capitalismo, bem como a revolução industrial se formou sobre as bases de um sistema mercantil em que os homens se estabelecem como vendedores de serviços. Dardot e Laval continuam:

Para que a sociedade inteira se organize de acordo com a ficção da mercadoria, para que se constitua como uma grande máquina de produção e troca, a intervenção do Estado é indispensável, não apenas no plano legislativo, para fixar o direito de propriedade e contrato, mas também no plano administrativo, para instaurar nas relações sociais regras múltiplas necessárias ao funcionamento do mercado concorrencial e fazer com que sejam respeitadas.31

Para Polanyi, portanto, o liberalismo entrava em contradição em si próprio, no momento em que produz o Estado administrativo que garante o laissez-faire, ao mesmo tempo que esse aparato regula a economia e mantém a sociedade protegida. Havia, para ele, um movimento de autodefesa espontânea que cria limitações ao poder estatal e ao poder do 30 DOSTALER apud DARDOT; LAVAL, 2016, p. 57.

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mercado, ou melhor, que havia um processo dual em que o livre mercado gerava condições de sofrimento, os quais forçavam a intervenção estatal para regular o mercado. Assim, “Todo desequilíbrio ligado ao funcionamento do mercado ameaça a sociedade submetida a ele. Inflação, desemprego, crise de crédito internacional, crash financeiro, todos esses fenômenos atingem a sociedade e, portanto, exigem defesas políticas”32. De certa forma, o que Polanyi

descreve é a relação dialética da sociedade capitalista, em que há avanços do capitalismo sobre as condições de vida das classes exploradas, seguidas pelo surgimento de movimentos sociais e políticos por melhores condições, evidenciando se tratar de uma constante luta de classes.

A “grande transformação” de Polanyi seria a violenta ressocialização da economia, a sua configuração para servir ao bem da sociedade. Contudo, até o processo de regulação da economia pelo Estado consistia parte do pensamento liberal. Segundo o próprio Polanyi, enquanto um mercado “autorregulador” não é implantado,

os partidários da economia liberal devem exigir - e não hesitarão em fazê-lo - que o Estado intervenha para estabelecê-lo e, uma vez estabelecido, que intervenha para mantê-lo. O partidário da economia liberal pode, portanto, sem nenhuma incoerência, pedir ao Estado que utiliza a força da lei, ele pode até mesmo recorrer à violência, à guerra civil, para instaurar as condições prévias para um mercado autorregulador.33

A importância de trazer o texto de Polanyi à tona, segundo Dardot e Laval, foi de demonstrar a dificuldade de se interpretar as forças originárias do neoliberalismo e apresentar o caráter reformulador do liberalismo, em que o intervencionismo se apresenta para “moldar politicamente relações econômicas e sociais regidas pela concorrência”. Nesse contexto, tendo em vista as discordâncias do liberalismo nascente, resta distinguir as diferenças entre o novo liberalismo e o neoliberalismo, assim como se aprofundar nos debates que formaram este último.

Se, por um lado, o novo liberalismo surge como um projeto em que se reexamina o “conjunto de meios jurídicos, morais, políticos, econômicos e sociais que permitiam a realização de uma ‘sociedade de liberdade individual’, em proveito de todos”, em que a agenda do Estado deve ir além dos limites do laissez-faire e impor elementos de restrição dos interesses individuais para proteção do interesse coletivo, com o fim de garantir condições reais para realização dos interesses individuais; o neoliberalismo, apesar de admitir a necessidade de intervenção estatal, não aceita qualquer ação que entrave o jogo da

32 Ibidem, 2016, p. 65.

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concorrência. A função do Estado, para os neoliberais, é estabelecer um enquadramento jurídico bem ajustado para desenvolver o mercado concorrencial e o manter funcionando.

As primeiras expressões do neoliberalismo foram contrapostas em 1938 no Colóquio Walter Lippmann, organizado por Louis Rougier, em que se encontraram 26 economistas, filósofos e funcionários do alto escalão de vários países, entre esses Friedrich Hayek, Jacques Rueff, Raymond Aron, Wilhelm Röpke, Alexander von Rüstow e o próprio Walter Lippmann. A ocasião do colóquio foi a publicação da versão francesa do livro de Lippmann An Inquiry into the Principles of the Good Society (La cité libre), em que apresenta um manifesto pela reconstrução do liberalismo. Acreditava firmemente que o liberalismo deveria ser entendido não como uma justificação do status quo, mas uma lógica de “reajustamento social”.

Lippmann representa muito bem os pontos debatidos no colóquio. O autor americano acreditava que não existia liberdade sem intervenção governamental e, como o governo da economia moderna é indispensável, o melhor é determinar a melhor política possível. Defendia que “a vida econômica ocorre dentro de um quadro jurídico que estabelece o regime da propriedade […] (e) todas as coisas que não são dadas pela natureza, como as leis do equilíbrio econômico, mas são criações contingentes do legislador”, ou seja, o regime liberal é resultado de uma ordem legal.

O primeiro ponto de divergência no colóquio é resumido na questão das origens da crise e em como lidar com a reconstrução do liberalismo. Para alguns autores, como Hayek e Von Mises, foi a traição dos princípios liberais clássicos que levou à crise de 1930, de modo que para reformular o liberalismo era necessário a renovação do laissez-faire, porém esta deveria ser defendida daqueles que pregavam a ingerência do Estado. Por outros, como Lippmann e os teóricos ordo-liberais alemães, as causas da crise estavam no próprio liberalismo clássico, consubstanciado no laissez-faire, e o liberalismo precisava ser integralmente refundado para favorecer o intervencionismo liberal.

Para os primeiros, a crise é consequência direta das intervenções políticas, as quais desregularam o mecanismo autocorretivo dos preços. Defendiam que a intervenção política é processo cumulativo, e que, quando posta em prática, leva necessariamente à coletivização da economia e a regimes totalitários, principalmente devido à necessidade de adaptar os comportamentos individuais ao programa de gestão da economia. Portanto, para esses autores, a crise foi resultado da ingerência estatal na economia, e não o liberalismo.

(31)

A confiança no liberalismo clássico é tão absoluta que ao relacioná-lo com a questão social, Rueff defendeu que a insegurança social sofrida pelos trabalhadores é resultado dos desequilíbrios econômicos naturais, que acontecem periodicamente (“contra os quais nada se pode fazer”), e que a normalidade é restaurada automaticamente pelo mecanismo de preços, portanto não seria tão grave. Para ele, “o sistema liberal tende a assegurar às classes mais necessitadas o máximo de bem-estar”34. Já Von Mises afirma que o desemprego como

fenômeno duradouro (ou seja, aquele que sobrepõe ao desemprego natural para formação de exército de reserva) é consequência de uma política salarial que busca o aumento do salário acima do valor de mercado e, portanto, “o abandono dessa política redundaria muito rapidamente numa diminuição considerável do número de desempregados”. A colocação de Von Mises basicamente indica a necessidade de baixos salários para a manutenção de uma considerável oferta de emprego.

O ponto de inovação do neoliberalismo criado a partir das discussões do colóquio foi a fusão da perspectiva epistemológica de Rougier, a tese de Lippmann sobre a importância da ordem legal, e o ponto de vista dos sociólogos liberais alemães Röpke e Von Rüstow de que é necessária a sustentação social do mercado, que sozinho não consegue garantir a integração de todos. Basicamente, Rougier defendia a rejeição ao naturalismo e a criação de um liberalismo ativo, que visa a criação de uma ordem legal que mantém saudável o princípio da livre concorrência. O intervencionismo estatal pregado era inteiramente jurídico, e não administrativo.

Dardot e Laval consubstanciam o “resultado” dos debates realizados no colóquio na ideia de que o liberalismo clássico é o principal responsável pela crise. Obviamente não houve um consenso absoluto, já que tal postulação ia inteiramente contra ao pensamento dos liberais ortodoxos, como Hayek e Von Mises, os quais deixaram o evento contrariados. A ideia decisiva do colóquio, pois então, era de que os erros de governo do liberalismo favoreceram o planismo e o dirigismo. Os erros, segundo Rougier, seriam “confundir as regras de funcionamento de um sistema social com leis naturais intangíveis” e acreditar na “primazia do econômico sobre o político”. Essa crença na ordem natural, que estaria nos fundamentos do laissez-faire, criou a ilusão de que a economia seria um domínio à parte, fora do alcance do direito.

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