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1984 e admirável mundo novo: uma análise comparativa

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO – UNIJUÍ

VANESSA VIEIRA MOMBACH

1984 E ADMIRÁVEL MUNDO NOVO: UMA ANÁLISE

COMPARATIVA

Trabalho de Conclusão de Curso

Ijuí – RS 2017

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2

Vanessa Vieira Mombach

Trabalho de Conclusão de Curso elaborado para a

disciplina de TCC do Curso de Letras - Inglês da

Universidade Regional do Noroeste do Estado do

Rio Grande do Sul (UNIJUÍ)

Orientador: Anderson Amaral de Oliveira

Ijuí - RS

2017

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3 AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a minha família e amigos pelo inestimável apoio e suporte durante a minha graduação.

Um agradecimento especial ao curso de Letras e a todos os professores por propiciar um ambiente acolhedor. Aprendi muito durante esses quatro anos e meio e sou muito grata por todos os ensinamento, sugestões e conselhos.

Agradeço ainda a CAPES pela oportunidade de participar de um programa de iniciação à docência (PIBID), no qual pude aprender imensamente através de discussões, leituras e planejamento, me ajudando a tornar-me uma profissional muito mais consciente e desafiando-me a pensar em uma educação melhor para todos.

Por fim, agradeço ao meu orientador, professor mestre Anderson Amaral, pelas inúmeras recomendações, correções e empréstimos. Obrigada pela sua dedicação, apoio e pelo tempo investido na realização dessa análise.

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4 “There will come soft rains and the smell of the ground, And swallows circling with their shimmering sound; And frogs in the pools singing at night, And wild plum trees in tremulous white, Robins will wear their feathery fire Whistling their whims on a low fence-wire; And not one will know of the war, not one Will care at last when it is done. Not one would mind, neither bird nor tree If mankind perished utterly; And Spring herself, when she woke at dawn, Would scarcely know that we were gone. 1 Sara Teasdale

11Teasdale, Sara, ”There Will Come Soft Rains”, In: Flame and Shadow”. Disponível em:

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5 RESUMO

As obras distópicas 1984 de George Orwell e Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley descrevem ambientes singulares, nos quais as sociedades já não possuem o livre arbítrio para tomar decisões, seja por conta da opressão ou mesmo por causa do condicionamento infringido aos indivíduos. Tanto Orwell quanto Huxley fazem, nessas obras, uma crítica à sociedade em que viviam, alertando as futuras gerações sobre os rumos da humanidade. Nessa perspectiva, o presente trabalho analisa de forma comparativa, ambos os romances, delimitando, para tanto, algumas categorias analíticas, como a configuração das sociedades, relações de poder, educação, cultura, linguagem e os personagens, analisando o enredo e relacionando as duas obras na tentativa de explicitar suas singularidades, similaridades e diferenças. Essa análise permitiu compreender como a ficção representa a realidade, o ser humano em sua busca por uma sociedade perfeita, impossível de ser construída. Nesse sentido, Orwell e Huxley souberam, como ninguém, tornar suas obras incrivelmente convincentes, fazendo com que o leitor sinta-se parte do ambiente por eles criado.

Palavras – Chave: 1984; Admirável Mundo Novo; Distopia; Configuração Social; Relações de Poder; Opressão; Condicionamento.

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6 ABSTRACT

The dystopic novels 1984 by George Orwell and Brave New World by Aldous Huxley describe a very singular ambient in which the societies have no longer the free will to decide, either because of oppression or even because of the conditioning imposed on Individuals. Both Orwell and Huxley, criticize the society in which they live in with their novels, warning the future generations about the humanity course. This final paper thesis analyzed both novels, by a comparative approach, delimiting some analytical categories, such as the configuration of societies, relations of power, education, culture, language and characters, analyzing the plot and relating the two novels in the attempt to explicit their singularities, similarities and differences. This analysis allowed us to understand how fiction represents reality, the human being and their search for a perfect society, something impossible to accomplish. In this mean, Orwell and Huxley knew how to create an incredible and a convincing ambient, making the reader feel part of the whole world created by them.

Keywords: 1984; Brave New World; Dystopia; Social Configuration; Power Relationships; Oppression; Conditioning.

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7 SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 7

ANÁLISE DE 1984 ... 10

1. O Ambiente Ficcional de 1984 ... 11

1.1 Educação, Cultura e Linguagem em 1984 ... 15

2. Desenvolvimento e Relação dos Personagens em 1984 ... 19

ANÁLISE DE ADMIRÁVEL MUNDO NOVO ... 29

1. O Ambiente Ficcional de Admirável Mundo Novo ... 30

1.1 Educação, Cultura e Linguagem em Admirável Mundo Novo ... 34

2. Desenvolvimento e Relação dos Personagens em Admirável Mundo Novo ... 39

OBSCURIDADE E FELICIDADE: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE 1984 e ADMIRÁVEL MUNDO NOVO ... 48

1. O Ambiente Ficcional nas Obras de 1984 e Admirável Mundo Novo... 49

1.1 Educação, Cultura e Linguagem em 1984 e Admirável Mundo Novo ... 58

2. Desenvolvimento e Relação dos Personagens em 1984 e Admirável Mundo Novo... 61

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 65

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 66

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8 INTRODUÇÃO

A obra 1984 de George Orwell e Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley são romances modernos e distópicos, os quais retratam sociedades opressoras, controladas por uma minoria que busca a ordem e o progresso da civilização, utilizando-se de medidas extremas como a vigilância constante, a violência e o condicionamento. Esses ambientes, totalmente controlados pelo Estado, podem ser vistos em cada detalhe das cidades fictícias, tanto na Londres de Orwell onde o “Grande Irmão” e o Socing vigiam a todos constantemente, ou ainda na Londres de Huxley, na qual todos os seres são criados em laboratório, divididos em castas, decantados e condicionados a amar sua condição. Em ambas as obras é nítido o sentimento “claustrofóbico”, no qual os personagens estão em completa alienação, sendo manipulados por diversos meios.

Nesse sentido, 1984 e Admirável Mundo Novo são famosos por sua retratação social, justamente por levar ao questionamento e à reflexão acerca dos sistemas político-econômicos e os motivos pelos quais são sustentados, moldando as relações hierárquicas de poder dentro da sociedade, na qual cada “classe social” desempenha um papel distinto, contribuindo para manter todo o sistema em funcionamento. Tanto Orwell quanto Huxley sabem explorar com maestria o ambiente que criaram, sendo possível perceber entre essas obras muitas similaridades.

O fato de 1984 e Admirável Mundo Novo trazerem em seu enredo várias facetas de uma sociedade, na qual a grande maioria desconhece a condição em que vive, fazendo uma crítica a criações de sistemas “utópicos” e impossíveis de serem implantados sem que se sacrifique o livre arbítrio, tornou essas obras atemporais. No entanto, apesar de ambos os romances tratarem de sociedades imersas em manipulação, elas retratam essas condições de forma diferente, quase opostas em alguns aspectos, já que os autores fizeram um prospecto de acordo com suas concepções e visões de mundo sobre o futuro. Essa projeção de um futuro ameaçado nos remete a uma concepção de distopia, na qual os autores fazem uma “aposta” sobre como será o amanhã da humanidade.

Essas diferenças e similaridades entre as obras, além do riquíssimo conteúdo delas, fez com que, dentre tantas, fossem elas as escolhidas para a realização dessa pesquisa. Nesse sentido, a proposição dessa análise comparativa fundamentasse na análise de aspectos sociais, políticos, culturais e linguísticos da obra de 1984 de George Orwell e Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, fazendo um paralelo entre elas. Para tanto, busca-se discutir questões como a relação entre os autores, explicitando o modo como cada um deles estruturou sua obra, de que forma construíram o ambiente distópico, quais as diferenças entre esses “mundos” fictícios,

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9 como se estabelecem as hierarquias, de que maneira cada governo controla suas cidades, qual a importância de um líder dentro de um sistema opressor, onde fica o livre arbítrio dos personagens, quais os sentimentos exaltados, como se configuram as relações sociais dentro das obras e a relação entre os personagens.

Desse modo, os primeiros dois capítulos destinam-se à exploração de cada uma das obras separadamente, buscando compreendê-las dentro de si mesmas, através da análise de certas categorias analíticas, tais como: a configuração “física” do ambiente criado, na qual busca-se a compreensão de como o sistema e sociedade se configuram, analisando cada um dos aspectos responsáveis por manter esses ambientes, bem como símbolos presentes nos romances e o desenvolvimento da trama. Além do ambiente, pretende-se ainda entender os personagens, analisando suas personalidades, motivações e modificações no decorrer da obra, abrangendo, desse modo, vários pequenos pontos que ajudam a visualizar o todo de forma mais concreta.

Se o primeiro e segundo capítulo buscam focar nas obras individualmente, o terceiro capítulo pretende juntar as concepções e análises realizadas até então, relacionando os dois autores e ambas as obras. Para tanto, são utilizadas as mesmas categorias analíticas dos capítulos anteriores, mostrando a ligação entre 1984 e Admirável Mundo Novo, primeiramente quanto à configuração social, passando a explorar as diferenças entre os sistemas das obras, analisando de que forma o controle acontece nelas, explicitando ainda todos os pormenores que influenciam a organização dessas sociedades. Em um segundo momento, o foco recai sobre os personagens e quais relações podem ser estabelecidas entre os personagens de Orwell e os de Huxley.

Para a realização desse Trabalho de Conclusão de Curso, a abordagem empregada é de análise comparativa, utilizando-se, para tanto, de textos teóricos que tratam da sociedade, linguagem, relações de poder, formas de opressão e condicionamento, bem como textos biográficos sobre os autores. Nesse sentido, a base primordial dessa pesquisa está situada na obra 1984 de George Orwell e Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. Além dessas obras, encontram-se ainda artigos e textos de autores como: Hannah Arendt, Zygmund Bauman, Antoine Compagnon, Noman Fairclough, Robert Nye, Juergen Habermas, Louis Althusser, as quais foram essenciais para o desenvolvimento de uma análise muito mais crítica e aprofundada.

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10 ANÁLISE DE 1984

A única lealdade será para com o partido. O único amor será o amor ao Grande Irmão. O único riso será o do triunfo sobre o inimigo derrotado. Não haverá arte, nem literatura, nem ciência. Quando formos onipotentes, já não precisaremos da ciência. Não haverá distinção entre beleza e feiura. Não haverá curiosidade, nem deleite com o processo da vida. Todos os prazeres serão eliminados. (ORWELL, 2009, p. 312) Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo seu pseudônimo, George Orwell, foi um escritor britânico nascido em 25 de junho de 1903. Durante sua breve vida, escreveu romances aclamados pela crítica, como A Revolução dos Bichos, publicado em 1945 e 1984, escrito em 1948 e publicado em 1949. Obras que concederam a Orwell um título de prestígio. Segundo Edward Quinn, em Critical Companion to George Orwell, o autor “sobreviveu para emergir, não como o melhor, mas o mais influente escritor inglês do século XX e do início da década do século XXI.” (QUINN, 2009, p. 9)2.

Em sua primeira grande obra, A Revolução dos Bichos, Orwell aborda, através de uma fabula, questões de cunho político e social, fazendo várias críticas ao socialismo soviético, destacando principalmente a distorção de valores, alienação e repressão, pontos que viria a explorar mais a fundo em 1984, escrita em 1948, cujo próprio título é um anagrama que tem por objetivo chamar atenção ao fato de que 1984 é o presente. Sempre muito ligado à política e preocupado com os rumos da humanidade, o autor busca, através dessa obra, levar seus leitores a uma profunda reflexão sobre a sociedade em que ele vive, deixando um alerta às futuras gerações ao profetizar um mundo de mentiras e manipulação.

A obra de George Orwell é muito expressiva, trata-se de um romance denso, complexo nos mais diversos aspectos, seja na estilística adotada pelo autor, seja pela abordagem e características do mundo criado por Orwell, recheado de detalhes impressionantes. Nesse sentido, é possível analisar 1984 sob diferentes perspectivas. Por esse motivo, foi preciso estabelecer alguns parâmetros e pontos chaves dentro do enredo a fim de analisá-lo mais concisamente, podendo, desse modo, dedicar-se a essas categorias em especial.

As categorias analíticas escolhidas para o desenvolvimento do trabalho em questão começam pelo ambiente ficcional, o qual tem por objetivo analisar aspectos desse mundo e o espaço criado pelo autor, seja através das descrições “físicas” desse ambiente, como também

2 Tradução livre. “(…) he has survived to emerge as, not the finest, but the most influential, English writer of the

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11 através de uma perspectiva mais estrutural, considerando questões como política, cultura, linguagem, educação; passando para os personagens e as relações sociais e de poder estabelecidas entre eles, analisando suas motivações, sentimentos e atitudes frente à trama.

1. O Ambiente Ficcional de 1984

A obra se passa no ano de 1984, em Londres, uma das três maiores províncias da Oceania3, marcada por constantes guerras e conflitos armados liderados ora pela Eurásia4 ora pela Lestásia5. É nesse ambiente hostil que somos então apresentados ao partido Socing6, cujo significado é “Socialismo Inglês”, e ao “Grande Irmão”7, seu supremo líder, sendo ambos responsáveis pelo regimento da população da Oceania, da qual Londres faz parte. Em 1984 a sociedade é controlada por um sistema totalitário que manipula as informações e vigia constantemente os membros do Socing através de uma tela, chamada de teletela8, a qual capta todos os movimentos, expressões e sons em tempo real, seja no ambiente de trabalho ou em casa. Desse modo, a privacidade é algo que os membros do partido não têm acesso. Os únicos que não são vigiados constantemente desse modo são os proletas9, como é conhecido o restante da população da Oceania sem ligação com o Socing, e, talvez, alguns poucos membros do mais alto escalão.

É nesse ambiente que conhecemos Winston Smith, o protagonista de 1984. Winston Smith é um homem de 39 anos, cabelos claros e rosto sanguíneo que trabalha no “Ministério da Verdade”. Ele é um membro inferior, cujo trabalho consiste em adulterar documentos e notícias, dando veracidade a tudo aquilo que o partido considera adequado. Assim como os demais membros inferiores, ele mora em um dos apartamentos das “Mansões Victory”, estando, portanto, cercado de outros membros e sendo, do mesmo modo, submetido a uma vida com pouco luxo e muita vigilância. Além de Winston, alguns outros personagens ajudam a compor a obra, entre eles o “Grande Irmão”, Júlia e O’Brien, os quais serão mencionados no decorrer da análise.

A construção do ambiente ficcional revela uma Londres em decadência, levando Winston a perguntar-se: “Será que sempre houvera aquele cenário de casas do século XIX

3 Termo Original: Oceania 4 Termo Original: Eurasia 5 Termo Original: Eastasia 6 Termo Original: INGSOC 7 Termo Original: Big Brother 8 Termo Original: Telescreen 9 Termo Original: Proles

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12 caindo aos pedaços, paredes laterais escoradas em vigas de madeira, janelas remendadas com papelão” (ORWELL, 2009, p. 13), faz com que o leitor passe a questionar-se junto com ele sobre como a cidade chegara àquele estado, deixando-nos ainda mais intrigados com o fato de que Londres abrigava dois extremos, o do completo descaso e miséria de um lado e a imponência estampada nos prédios dos ministérios, os quais pareciam completamente imbatíveis, mesmo que uma bomba os atingisse. Tal contraposição fica clara com a descrição de um dos ministérios: “O Ministério da Verdade – Miniver10, em Novafala11 – era extraordinariamente diferente de todos os outros objetos à vista. Era uma enorme estrutura piramidal de concreto branco cintilante, erguendo-se terraço após terraço, trezentos metros espaço acima.” (ORWELL, 2009, p. 14).

Os ministérios faziam parte do controle realizado pelo partido, sendo quatro no total. O ministério da verdade (responsável por notícias, entretenimento, educação), ministério da paz (responsável pela guerra), ministério do amor (responsável pela ordem e lei) e o ministério da pujança (responsável pelas questões econômicas). Respectivamente em Novafala: Miniver, Minipaz12, Miniamor13 e Minipuja14. Dentro de cada ministério há uma hierarquia, fazendo com que membros inferiores, por exemplo, não tenham contato com membros superiores a não ser que sejam por eles abordados. Isso significa também que apenas os membros superiores do partido têm de fato alguma autoridade, os demais apenas cumprem suas funções enquanto trabalhadores comuns, vigiando uns aos outros e reportando atividades suspeitas, além de alimentar o poder do partido e do grande irmão, ao exaltá-los diariamente.

A descrição do “Ministério da Verdade” ajuda a exemplificar as gigantescas diferenças sociais dentro da cidade, presente entre os próprios membros do partido e principalmente entre esses e a prole. Os membros do Socing dividiam-se entre superiores e inferiores, sendo eles tratados conforme sua posição na teia governamental. Enquanto os membros do alto escalão do Socingvivem em apartamentos distintos, tem direito a boa comida e podem livrar-se da constante vigília televisiva por alguns minutos por dia, os membros mais inferiores vivem em apartamentos apertados e velhos nas “Mansões Victory”, quase sempre sem energia elétrica, comendo rações, bebendo gim de péssima qualidade e sendo vigiados constantemente, vinte e quatro horas por dia por uma teletela. A percepção desse grande abismo entre um membro superior e um inferior fica claro logo no início, quando Winston entra nas “Mansões Victory”,

10 Termo Original: Minitrue 11 Termo Original: Newspeak 12 Termo Original: Minipax 13 Termo Original: Miniluv 14 Termo Original: Miniplenty

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13 descrevendo a dolorosa subida por um lance interminável de escadas, durante o qual é obrigado a encarar o pôster do líder do Socing, o “Grande Irmão”, figura importantíssima para a compreensão do sistema social em que os personagens estão inseridos.

A menção ao “Grande Irmão” é considerado um ponto crucial, principalmente por dois aspectos. O primeiro está ligado ao fato de que esse é o momento em que o autor não só destaca a importância dessa figura, como também estabelece a relação de poder que esse exerce dentro da Oceania, seja pela imponência do pôster em si: “Era uma dessas pinturas realizadas de modo que os olhos o acompanhem sempre que você se move” (ORWELL, 2009, p. 12), seja pela frase em evidência no mesmo: “O grande irmão está de olho em você” (ORWELL, 2009, p. 12). Em um segundo momento, é possível fazer uma distinta comparação entre “o Grande Irmão” e Winston Smith, o que é demonstrado no momento em que Winston sobe as escadas:

O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, com seus trinta e nove anos e sua úlcera varicosa acima do tornozelo direito, subiu devagar, parando para descansar durante várias vezes durante o trajeto. Em todos os patamares, diante da porta do elevador, o pôster com o rosto enorme fitava-o da parede. (ORWELL, 2009, p. 11-12)

A descrição de Winston subindo as escadas reforça primeiramente a ironia no fato de que o pôster está colado justamente à porta do elevador enquanto ele precisa subir à pé os sete lances de escada e principalmente coloca em evidência a figura frágil do protagonista em seus trinta e nove anos de vida, enquanto “o Grande Irmão”, em seus prováveis quarenta e cinco anos, ostenta uma saúde perfeita. Essa contraposição entre Winston e o “Grande Irmão” não é meramente ao acaso, mas sim uma forma de demonstrar em que posição cada um deles se encontra. O “Grande Irmão” é a suprema autoridade, enquanto Smith é apenas um membro inferior que deve viver em prol do partido, adorando a seu líder. O “Grande Irmão” é uma figura simbólica de grande valor por representar o Estado e o sistema como um todo. Assim como mencionado por Arendt:

No centro do movimento, como o motor que o aciona, senta-se o Líder. Separa-o da formação de elite um círculo interno de iniciados que o envolvem numa aura de impenetrável mistério correspondente à sua “preponderância inatingível”. Sua posição dentro desse círculo íntimo depende da habilidade com que arma intrigas entre os membros e efetua constantes mudanças de pessoal. Deve a liderança mais à sua extrema capacidade de manobrar as lutas intestinas do partido pelo poder do que a qualidades demagógicas ou burocrático-organizacionais. Difere do antigo tipo de ditador por não precisar vencer por meio da simples violência. (ARENDT, 1989, p. 423)

Portanto, assim como mencionado por Arendt, manter o “mistério” em torno do líder de um sistema totalitário é fundamental para o seu bom funcionamento, pois fará com que ele seja visto como uma espécie de divindade intocável, um ser supremo e imortal. Desse modo

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14 também, o líder é conservado como um símbolo que nunca morre, adoece ou mesmo padece dos mesmos males que os demais, só aparecendo em momentos específicos em que sua figura é necessária para reforçar o poder do partido, inflando o ego dos mesmos e promovendo um ato de patriotismo, estabelecendo um ambiente mais sólido, motivado por um sentimento comunitário de apoio e união.

O fato de o “Grande Irmão”, líder do Socing, jamais aparecer em público, é justamente um movimento do Estado que garante, desse modo, a proteção do sistema, usando sua imagem pontualmente em vídeos que têm por objetivo causar comoção, unindo o partido contra o “inimigo” e em pôsteres com dizeres ambíguos, os quais podem ser entendidos como algo positivo ou negativo, dependendo da perspectiva com que são observados. Nesse sentido, a posição central do líder pode ser compreendida como uma estratégia de controle, na qual a propaganda é indispensável. É possível perceber o poder exercido pela figura do “Grande Irmão” em uma exibição de um vídeo durante os dois minutos de ódio15:

O rosto do Grande Irmão, contudo, deu a impressão de permanecer na tela por vários segundos mais, como se o impacto que causara nas retinas de todos os presentes fosse vivido demais para desaparecer imediatamente. A mulher esguia e ruiva se jogará para frente, apoiando-se no encosto da cadeira diante dela. Com um murmúrio trêmulo que parecia dizer “Meu Salvador!”, estendeu os braços para a tela. Em seguida afundou o rosto nas mãos, Era visível que fazia uma oração. (ORWELL, 2009, p. 27)

O “Grande Irmão”, enquanto líder do Socing, compreende perfeitamente bem seu papel dentro do partido, sabendo como levar seus membros à euforia, à exaltação de sua figura, endeusando-o. Essa glorificação é um estado induzido, quase hipnótica, a qual se clarifica durante cânticos em sua homenagem, “em parte era uma espécie de hino à sabedoria e à majestade do Grande Irmão, mas antes de mais nada era um ato de auto-hipnose, um embotamento voluntário da consciência por intermédio de um ruído rítmico.” (ORWELL, 2009, p. 27). Portanto, como fica evidenciado durante toda a cena, a adoração ao “Grande Irmão” não se tratava de um mero acaso, ela era pensada com propósitos muito bem estabelecidos que consistiam em uma manipulação muito bem arquitetada.

A manipulação de conteúdo, assim como a repressão, são símbolos dos sistemas totalitários, sendo ambos muito importantes para garantir que esse regime possa ser estabelecido e se fortifique cada vez mais. Para isso, eles precisam estar sempre vinculados, devendo ser usados de forma apropriada, sem que ninguém, além dos interessados, percebam o que está acontecendo a sua volta. Nesse sentido, é preciso “criar” um mundo fictício com

15 Termo Original: Two Minutes Hate

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15 argumentos que deem conta de explicar satisfatoriamente as coisas mais absurdas possíveis. Arendt diz que:

Os líderes totalitários basearam a sua propaganda no pressuposto psicológico correto de que, em tais condições, era possível fazer com que as pessoas acreditassem nas mais fantásticas afirmações em determinado dia, na certeza de que, se recebessem no dia seguinte a prova irrefutável da sua inverdade, apelariam para o cinismo; em lugar de abandonarem os líderes que lhes haviam mentido, diriam que sempre souberam que a afirmação era falsa, e admirariam os líderes pela grande esperteza tática. (ARENDT, 1989, p. 432)

Essas “mentiras táticas” como Arendt coloca, são a base de um sistema totalitário bem fundamentado, atestando que a massa está completamente à mercê do regime e não refutará ou contestará veemente nada do que eles disserem, desde que encontre-se meios de manter a massa submissa, como é o caso da sociedade em 1984, onde o governo utiliza-se de várias artimanhas a fim de manter o povo e até mesmo boa parte dos membros do partido alienados. Além da manipulação das informações veiculadas, havia ainda uma forte repressão, patrulhas nas ruas, o monitoramento constante da teletela e da “Polícia das Ideias”16, o que era ainda reforçado e só podia ser concretizado com uma educação que efetivasse esses “meios”.

1.1 Educação, Cultura e Linguagem em 1984

A educação destinada às crianças na Oceania era tão essencial quanto qualquer outro método utilizado, sendo a base que alimentaria o partido durante as décadas futuras. Nesse sentido, as crianças eram instruídas a encontrar suspeitos para vigiar os próprios pais e vizinhos. Haviam muitas organizações que premiavam as crianças que se destacavam por seu bom desempenho, incentivando-as a ouvir por baixo das portas com aparelhos concedidos pela própria organização, além de receberem “brinquedos” que poderiam ser usados no “combate de inimigos”, como bodoques e coisas do tipo. Winston depara-se com duas dessas crianças em uma visita até os Parsons, seus vizinhos. Na descrição de Winston, não apenas os filhos dos Parsons, mas “quase todas as crianças eram horríveis atualmente. O pior de tudo é que por meio de organizações como a dos Espiões elas eram transformadas em selvagens incontroláveis de maneira sistemática (...).” (ORWELL, 2009, p. 36).

Nesse sentido, a educação dos membros do partido tem primeiramente a função de fazer as crianças acreditarem em tudo que o partido diz, todas as informações são passadas de modo

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16 a fazê-las pensar dentro dos moldes do Socing. Para tanto, elas precisam ser capazes de acreditar em ideias contraditórias, mas ter inteligência o suficiente para saber como organizá-las e acessá-las sempre que necessário, devem viver em sintonia com o duplipensar17, assim como devem aceitar a mutabilidade do passado, dois dos três princípios do partido. Em um segundo momento, a educação, além de ser uma forma de condicionamento da mente, é também um método infalível para manter o patriotismo aceso, garantindo ainda que haja mais uma forma de controle, pois as crianças são incentivadas a espionarem a todos, “toda a sua ferocidade era voltada para fora, dirigida contra os inimigos do Estado (...).” (ORWELL, 2009, p. 36).

Se a educação dos membros do partido era voltada a criar soldados sem piedade, a educação para os proletas era, no entanto, muito diferente. Ninguém se importava de fato com eles. Dizia o partido, “os animais e os proletas são livres.” (ORWELL, 2009, p. 91). O que lhes era ensinado pouco importava desde que não os levassem a pensar sobre assuntos complexos como política ou economia. Os proletas não se rebelariam jamais porque não tinham consciência de seu estado oprimido, eles preocupavam-se com a sobrevivência de cada dia e com coisas banais que não os permitia pensar em outras coisas. Mesmo vivendo em uma alienação completa, os proletas eram significativos, representando oitenta e cinco por cento da população da Oceania e servindo ao partido sempre que um ato patriótico para gerar maior comoção tornava-se necessário.

Além de uma educação que não incitava a criticidade, a manipulação destinada aos proletas vinha ainda através de alguns aspectos culturais destinados exclusivamente a um entretenimento inconsciente, onde toda produção cultural deixara de ser humana e passara a ser fabricada em prensas. A música, os livros, todo e qualquer tipo de arte era completamente artificial, feito com a clara intenção de desviar a atenção da prole daquilo que realmente importava. Portanto, a prole consumia diariamente um material que jamais a faria pensar fora do sistema que vivia, onde a cultura já havia perdido toda sua importância e significado.

O fato de o Socing preocupar-se com o material que circulava nas ruas e entre os membros do partido que os compravam ilegalmente, é uma forma de reprimir as expressões artísticas de qualquer tipo, já que essas podem conter ideias, pensamentos e críticas, podendo levar as pessoas a refletirem sobre a condição em que se encontram e fazer com que decidam lutar contra isso. Justamente por esse motivo, para o partido, a concepção de rebelião está muito além de uma revolta armada ou mesmo uma organização arquitetada por vários sujeitos. Eles

17 Duplipensar: Palavra inventada por Orwell, que em linhas gerais significa: acreditar em duas ou mais coisas

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17 preocupam-se com cada membro individualmente, partindo do pressuposto de que o mais breve pensamento contrário à doutrina do partido é crime, o que eles chamam de pensamento-crime18. Para o Socing, todo e qualquer outro crime dá-se apenas em decorrência do pensamento. Uma vez que você passe a pensar criticamente sobre algo, não há como voltar atrás e acreditar na manipulação novamente, você está arruinado para o sistema e torna-se perigoso demais. Portanto, quando Winston Smith passa a debater-se internamente sobre seus reais sentimentos para com o partido, ele sabe que é só questão de tempo até seu corpo o traía. Tentando eliminar esses pensamentos controversos de sua mente, ele compra um caderno em uma loja de proletas, dizendo mais tarde que “era justamente na esperança de se proteger de impulsos suicidas daquele tipo que ele resolvera escrever o diário.” (ORWELL, 2009, p. 115).

Essa citação põe em evidência a luta interna que já vinha sendo travada há algum tempo. Em uma outra passagem, ele menciona a turbulência de pensamentos que “ocupava o interior da sua cabeça havia anos, literalmente.” (ORWELL, 2009, p. 18), mostrando a urgência de “externalizar” o que sentia. Até esse momento, Winston vinha tentando refutar e negar todos os seus sentimentos em relação ao partido e a seu líder, porém “marcar o papel era um ato decisivo.” (ORWELL, 2009, p. 17). No momento em que ele despeja tudo o que estava em sua mente fica difícil negar o que realmente pensa e a partir daí não há mais como retroceder, pois ele quebra o pequeno elo que ainda resistia entre ele e o divino, representado na obra como o “Grande Irmão”.

O simples ato de comprar um caderno, por mais inofensivo que isso possa parecer, é para o partido, motivo mais que suficiente para supor que alguém está tramando algo. Escrever é um modo de organizar as ideias, de pensar e de manter informações, podendo essa ser a porta de saída para manipulação dos fatos. O ato de escrever, de refletir em si, é um ato de rebeldia, pois consiste em perguntar-se o porquê das coisas e isso é um gatilho para conscientizar-se da alienação sofrida pela população, fazendo com que o partido perca seu controle total, o que, por sua vez, pode representar sua total ruína e queda.

No momento em que Winston escreve em seu caderno, ele desafia a si mesmo, passa a perguntar-se em que acredita, não mais negando sua consciência, mas aceitando-a e descobrindo através do que coloca no papel quem é, ficando evidente que ele não aceita a representação do partido. Quando Winston escreve: ABAIXO O GRANDE IRMÃO, ele sabe que “o fato de escrever ou deixar de escrever ABAIXO O GRANDE IRMÃO era irrelevante.

18 Termo Original: Thoughtcrime

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18 Não faria a menor diferença levar o diário adiante ou não, pois o crime já estava cometido desde seu primeiro pensamento contra o Estado.

Winston sabia que não seria o diário o culpado de sua condenação, e sim sua própria mente. Seu próprio pensamento já o havia traído. Ele poderia, no entanto, ter se livrado de tudo, continuado a negar a si mesmo e garantir sua segurança. O único problema é que Winston tinha esperança. Ao começar o diário, Winston deparou-se com o questionamento: para quem estou escrevendo esse diário? Para as geração futuras? Mas dada essa pergunta, ele então pensou: “Ou bem o futuro seria semelhante ao presente e não daria ouvidos ao que ele queria lhe dizer, ou seria bem diferente e sua iniciativa não faria sentido.” (ORWELL, 2009, p. 18).

Portanto, por mais que informar as futuras gerações fosse importante e essencial para que houvesse uma mudança, ao mesmo tempo as coisas seriam tão diferentes que nada disso realmente importaria. Winston havia esbarrado em um termo muito importante em novafala: duplipensamento19. O duplipensar20, palavra inventada por Orwell, é considerado talvez o mais importante princípio do Socing e é explicado por Winston como: “Saber e não saber, estar consciente de estar cem por cento confiável ao contar mentiras construídas laboriosamente, defender ao mesmo tempo duas opiniões que se anulam uma à outra, sabendo que são contraditórias e acreditando nas duas.” (ORWELL, 2009, p. 48). Justamente por conta do duplipensamento, Winston sabia que escrever o diário para as futuras gerações era inútil e sua real intenção com ele era atingir algo mais presente e palpável. Era a esperança que tinha de que houvesse outros como ele.

São esses conflitos internos que levam Winston a ir além em sua busca por respostas, a olhar para a sociedade em sua volta e tentar encontrar uma razão, uma perspectiva positiva que possa ser o caminho para a reestrutura do modelo sociopolítico e econômico em que se encontram. Essa esperança de que houvesse outros como ele, o leva a pensar em maneiras de acabar com esse sistema totalitário, tentando lembrar-se de uma época passada, na tentativa de achar uma brecha, uma lembrança de uma Londres não dominada pelo Socing. Esse pensamento o leva até os proletas. Para Winston, são justamente eles, a salvação, a esperança de um futuro diferente, pois eles representam a maior parcela da população, seria fácil para eles tomarem o controle de Londres e acabarem de vez com toda a farsa imposta pelo governo.

O único problema é que a educação, juntamente com toda manipulação destinada à prole, faz com que ignorem completamente a condição em que vivem, não sendo capazes de

19 Termo Original: Doublethinking 20 Termo Original: Doublethink

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19 rebelarem-se contra nada. É justamente por causa da condição de extrema ignorância dos proletas que Winston é incapaz de fazer com que um dos proletas, já idoso, lembre-se de Londres antes do Socing, já que ele está muito alienado para importar-se com o passado a ponto de compará-lo com o futuro. Essa percepção faz com que Winston perca sua esperança acerca da prole e, consequentemente, fique perdido sobre que posição assumir, já que ele não consegue sair de sua condição de submisso, necessitando que haja um líder ou mesmo uma força gigantesca capaz de garantir uma vitória. Nesse sentido, é irônico perceber que Winston considera os proletas alienados ao mesmo tempo em que ignora sua condição de oprimido da qual não consegue livrar-se.

No mesmo momento em que Winston desacredita-se da prole, ele acaba por encontrar uma aliada em Júlia, uma mulher de 26 anos que faz parte da liga antisexo do partido e entrega a ele um bilhete confessando seu amor por Winston. Ele não consegue compreender tal ato e fica muito surpreso com a ação de Júlia, já que ele pensava que ela era uma inimiga. Tal pensamento se devia ao fato de que alguns dias antes de Júlia entregar a Winston o bilhete, ela havia o visto sair da lojinha onde ele comprara o caderno, além de estar sempre o encarando de modo hostil durante os “dois minutos de ódio”.

2. Desenvolvimento e Relação dos Personagens em 1984

Júlia, assim como Winston, trabalha no “Ministério da Verdade”, sendo ela responsável pela manutenção das prensas que criam romances aleatórios para a prole, os quais são chamados de versificadores. A partir do momento em que ela entrega o bilhete a Winston, eles passam a manter uma relação proibida, ao mesmo tempo romântica e política. Júlia é a primeira pessoa com a qual Winston pode ser completamente verdadeiro, sendo capaz de contar a ela coisas que jamais havia verbalizado antes. No entanto, apesar de Júlia e Winston compartilharem repúdio pelo partido, eles têm pensamentos bem diferentes. Winston é um homem reflexivo que está tentando entender como as coisas funcionam e que gostaria de participar de um ato revolucionário, ajudar a modificar as coisas. Júlia não se importa com a ordem das coisas, ela compreende como a maioria das coisas funciona e até entende o motivo delas, achando-as completamente normais. Ela não acredita em uma mudança de fato, dedicando-se, portanto, àquilo que garante a segurança dela e de Winston.

Sendo importante lembrar ainda que é Júlia quem dá o primeiro passo em direção a Winston, ao lhe entregar um bilhete escrito “te amo” quando há muito essa palavra havia caído

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20 em desuso, reforçando mais uma vez a posição passiva de Winston. A representação desse “te amo” em um ambiente como o de 1984 é por si só um ato contra o Estado, é negar o Socing e o amor supremo a seu líder e declarar-se um indivíduo com pensamento próprio. A expressão desse sentimento, verdadeiro ou não, é algo que foi aniquilado, portanto, imensamente significativo dentro da obra. Evidenciando a percepção desse sentimento, assim como todos os outros dentro da sociedade, em uma das passagens, Winston diz que “agora havia medo, ódio e dor, mas não dignidade na emoção, não tristezas profundas ou complexas.” (ORWELL, 2009, p. 42). Portanto, as relações no romance são puramente mecânicas, não devendo fugir ao necessário. Todo e qualquer sentimento de amor ou devoção deve estar direcionado ao partido, assim como todo ódio ou repúdio deve destinar-se aos inimigos.

Além do amor, o próprio ato sexual como decorrência de um sentimento mais profundo é extremamente proibido, sendo a relação de Winston e Júlia mais uma vez remetido a um ato rebelde. Em um dos sonhos que Winston tem com Júlia, antes de manter uma relação com ela, no qual ela vem em um campo despindo-se “com sua graça e displicência, era um gesto que parecia aniquilar toda uma cultura, todo um sistema de pensamento, como se o Grande Irmão, o Partido e a Polícia das Ideias pudessem ser todos jogados no nada (...).” (ORWELL, 2009, p. 43). Portanto, o ato sexual em si era uma afronta direta ao sistema, era um meio de satisfazer-se, colocar todo ódio de lado e pouco importar-se com o Socing. Como Júlia menciona: “quando você faz amor, está consumindo energia; depois se sente feliz e não dá a mínima para coisa nenhuma. E eles não toleram que você se sinta assim. Querem que você esteja estourando de energia o tempo todo.” (ORWELL, 2009, p. 161). Justamente por isso, o sexo devia ser apenas para procriação. Desde cedo as mulheres eram ensinadas a ver o sexo como algo sujo, ruim, que devia ser repudiado, apenas sendo aceitável para cumprir um dever.

Assim como o sexo, os casamentos só devem ocorrer para a procriação e os filhos são propriedade do Estado que desde cedo ensina as crianças a serem fiéis a sua causa, espionando seus próprios pais e conhecidos. Não apenas o casamento é uma fachada, como também toda e qualquer relação entre duas pessoas. Desde o momento em que Winston passa a escrever em seu diário, a deixar as palavras organizar seu pensamento, ele passa a ter sonhos constantes com sua mãe e irmã, mencionando que “a memória de sua mãe atormentava seu coração porque ela morrera amando-o.” (ORWELL, 2009, p. 42), algo que já não se via mais. Ele menciona ainda que mesmo “a tragédia pertencia aos tempos de antigamente, aos tempos em que havia privacidade, amor e amizade, e em que os membros de uma família se amparavam uns aos outros sem precisar saber por quê.” (ORWELL, 2009, p. 42). Agora as famílias já não

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21 compartilhavam laços, já não tinham empatia uns com os outros, não importavam-se mais. O arrependimento de Winston consistia justamente nisso, no fato de que ele tivera a oportunidade de sentir profundamente, sem medo de acabar em uma prisão, ele teve a liberdade e o privilégio de aceitar ou recusar sentimentos como o amor e ele o desperdiçara.

Até mesmo a língua fora modificada para evitar que as pessoas sentissem, pensassem e acabassem dando-se conta de sua condição submissa. A Novafala língua usada na Oceania, era justamente uma tentativa de acabar com o pensamento, pois consistia em diminuir o vocabulário a quase nada, eliminar o duplo sentido, acabar com o pensamento-crime. Em uma das passagens do livro, Syme, filólogo, responsável pela décima edição definitiva do dicionário da Novafala, comenta com Winston: “Você não vê que a verdadeira finalidade da Novafala é estreitar o âmbito do pensamento? No fim teremos tornado o pensamento-crime literalmente impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo.” (ORWELL, 2009, p. 68-69). Nesse sentido, a língua serve como mais uma forma de controle do Estado, sendo ela um dos princípios do Socing, juntamente da mutabilidade do passado e do duplipensamento.

A Novafala não é simplesmente uma língua, ela representa o domínio de um sistema sobre seu povo, assim como colonizadores impõem sua língua aos colonizados, impedindo que eles exerçam livremente o ato de pensar e de comunicar-se. Justamente por isso, durante as ditaduras há uma preocupação muito grande com o uso da linguagem e do verdadeiro significado em torno dessa, levando esses Estados totalitários a censurar todo e qualquer tipo de material linguístico que pudesse ser representado como um ato rebelde. Nesse sentido, a função de Syme enquanto linguista era justamente fazer com que a Novafala fosse a mais concisa possível, dificultando o uso dela para qualquer tipo de ato revolucionário, devendo, para tanto, acabar com quaisquer palavras que pudessem ser interpretadas de mais de uma forma, tudo devia ser bastante literal.

O fato de haver uma língua com o mínimo possível de ambiguidades fazia com que o partido fosse capaz de monitorar e compreender as intenções transmitidas verbalmente com muito mais facilidade, incentivando o uso da Novafala entre todos os membros do partido. Além disso, o uso de uma língua diferente entre os membros do partido e da prole, ajudaria a mantê-los cada vez mais alheios ao que estava acontecendo, servindo ainda como uma forma de prestígio. A Novafala já era amplamente usada entre os membros do Socing e com toda certeza o Estado sabia quem fazia uso dela e quem ainda resistia em utilizá-la, o que provavelmente levantaria suspeitas e perguntas inconvenientes que ninguém gostaria de atrair para si.

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22 Winston entendia o modo como a Novafala, juntamente da mutabilidade do passado e o duplipensamento funcionavam, criando um sistema altamente controlador e imponente. Ele também compreendia que para acabar com um sistema assim, seria preciso de um grande esforço e um plano muito bem arquitetado que envolvesse gente de todos os meios. Desde o momento em que Winston descobriu em Júlia uma aliada, sua esperança apesar de abalada, não estava completamente acabada. Porém, o fato de Júlia não estar realmente interessada em uma revolução, ou mesmo o fato de não ter qualidades de uma líder ou ter grande influência dentro do Socing, fez com que ele colocasse a revolta de lado e aproveitasse esses pequenos momentos verdadeiros no refúgio que haviam encontrado para si.

O refúgio de Winston e Júlia tratava-se de um quarto alugado, acima da loja em que Winston comprara seu caderno, na região dos proletas, tornando-se uma espécie de santuário para os dois, que passam a desfrutar de todos os momentos possíveis lá. Winston sente-se muito melhor, já não sente o corpo todo doer como antes e até mesmo sua vontade de gritar intensamente com todo mundo é substituída por um sentimento quase pacífico. Apesar disso, ele ainda sente a necessidade de ver uma mudança maior a sua volta e é justamente quando conta a Júlia que sempre perguntou-se sobre a quem O’Brien, um dos membros do núcleo do Partido, era fiel, esse em pessoa vai até ele com um recado para que o encontre em sua casa. O’Brien destaca-se para Winston por ser uma figura que remete a ele uma sensação de confiança, um homem que diz ser fiel a Goldenstein, um suposto ex-membro do Socing que rebelou-se contra o grande irmão e, segundo a narrativa do partido, lideraria a Eurásia na guerra contra a Oceania.

O’Brien é uma representação muito importante dentro da obra. Ele é a figura de maior fascínio para Winston. A relação de Winston para com O’Brien é a de completa adoração, ele sente que pode confiar em O’Brien, que ele é o caminho para a salvação. Seria até mesmo possível dizer que a relação entre Winston e O’Brien é o real cerne da obra. O primeiro momento em que O’Brien é mencionado, durante os “dois minutos de ódio”, Winston diz sentir-se intensamente atraído por ele, havia uma civilidade nele e um ar de sabedoria que inspirava confiança. Pelo menos, era nisso que Winston queria acreditar, pois sabendo que não era capaz de rebelar-se sozinho, O’Brien era a representação do herói, ele era forte e inteligente, tinha influência e capacidade para arquitetar um plano, tudo que Winston julgava não ter. Portanto, Winston via em O’Brien tudo aquilo que os demais membros do partido e até mesmo os proletas, quando era necessário, viam representado no “Grande Irmão”: o salvador.

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23 Essa fé desmedida em O’Brien, demonstra que Winston não tem um julgamento muito apurado sobre os sujeitos que o cercam (mesmo quando ele próprio afirma ter um instinto natural para saber quem será vaporizado ou não). Isso fica mais evidente quanto Winston credita toda sua confiança em O’Brien e desconfia de Júlia, a qual prova mais tarde ser uma grande aliada, fazendo com que a centelha de esperança volte a crescer no peito de Winston. Porém, como Júlia não tem condição e nem vontade de iniciar uma rebelião, ele volta-se novamente a O’Brien, o qual é, na sua visão, muito mais do que uma mera esperança, é a concretização da revolução.

Portanto, a partir do momento em que Winston dá-se conta de que os proletas não fariam nada, assim como o próprio O’Brien evidencia mais tarde, dizendo que os proletas não se rebelariam, não porque lhes faltasse inteligência o suficiente para isso, mas por que nunca foram instigados a pensar; isso põe em evidência o fato de que o pensamento é o grande ato, sendo ele o fundador, por exemplo, dos princípios do Socing: Novafala, duplipensamento, mutabilidade do passado. Todos os três estão ligados ao ato do pensamento, da organização das ideias, da expressão dos sentimentos. Justamente para afastar essa expressão de ideias e sentimentos, os livros e todo tipo de arte ou disseminação cultural tinham sido extintos.

Quanto ao segundo princípio do partido, o duplipensamento, ele é ainda mais complexo, pois representa e engloba todas as outras questões pertinentes ao Partido. Se você utiliza o duplipensamento corretamente é fiel ao partido e aceitará tudo que lhe disserem sem questionar, não sentindo a necessidade de expressar-se ou pensar muito sobre determinado assunto, você acreditará que o passado foi como dizem que foi e se esse for modificado, aceitando as novas informações também, apagando as anteriores como se jamais tivessem existido. É só através do duplipensamento que a mutabilidade do passado é possível, assim como o lema do partido nos mostra: “quem controla o passado controla o futuro, quem controla o presente, controla o passado” (ORWELL, 2009, p. 47).

O lema do partido remete-nos a pensar sobre qual é a verdade e se ela existe em um mundo de adulterações constantes do passado. Se o Socing controla as adulterações do passado, confirmando-as no presente, ele é capaz de continuar controlando-as até o futuro. A alterações dos fatos como eles realmente são é o que torna o sistema totalitário de 1984 possível em uma primeira instância. A dúvida é a inimiga presente aqui, é ela que faz praticamente impossível saber em quem acreditar e no que acreditar. Winston só destoava dos demais por que duvidava dos preceitos do Socing, por trabalhar no “Departamento de Documentação” e passar seus dias

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24 modificando fatos, datas e informações. Ele sabia o que eles faziam, pior, ele tinha consciência do que estava acontecendo, esse era o grande problema.

No entanto, ao mesmo tempo em que Winston duvidava do partido, ele precisa se apegar a alguma verdade, o que acabou causando sua perdição. Ele tinha esperança em descobrir a verdade, em desvendá-la, expô-la, fazer o partido despedaçar-se preso em suas próprias mentiras. O’Brien, sendo um membro do núcleo, era, de certo modo, além de um salvador, o meio percebido por Winston para se alcançar essa verdade, um modo de confirmar suas suspeitas. É justamente por isso que Winston sente-se tão aliviado quando O’Brien apresenta a ele “o livro”, confirmando a existência de algo que antes era só especulação. É nesse momento que a esperança em seu peito ganha maior destaque, se existe um grupo que pretende acabar com o “Grande Irmão” e o partido, isso significa que a esperança não é apenas um devaneio, é uma possibilidade concreta.

O “livro” que mais tarde é entregue a Winston, refere-se a uma suposta ordem chamada de “Confraria”, a qual seria liderada pelo maior inimigo do “Grande Irmão” e do partido em si: Emmanuel Goldstein. Ele é a representação do mal em si, é a objetificação do mal, o inimigo do povo. Goldstein é o primeiro rebelde, o desertor que acreditava no partido e então o traiu, juntando um exército contra a Oceania. Praticamente todos os dias, durante os “dois minutos de ódio”, Goldstein é usado como exemplo para direcionar toda a negatividade para longe do partido. Depois dele sempre aparece a figura do “Grande Irmão”, o salvador do povo, o herói de todos. É a eterna representação do bem contra o mal.

O interessante de se observar, no entanto, é que Goldstein fala coisas que poderiam ocasionar a ruína do Socing se alguém se desse ao mínimo trabalho de pensar sobre elas. Seu discurso não é o de alguém que perdeu a sanidade, é, pelo contrário, muito bem fundamentado. Se um discurso desses poderia causar a ruína total do Partido, por que, então, eles o exibem dia após dia para os membros do partido? Porque de certo modo, essa é uma forma bastante eficiente de encontrar apoiadores e descobrir quem são os membros realmente leais do partido que jamais iriam pensar sobre as palavras de Goldstein, apenas odiá-lo como é pedido que façam. Se há apoiadores da visão de Goldstein, cedo ou tarde eles darão um passo em falso e então serão pegos.

O partido é baseado em mentiras, porém ele não necessita esconder tudo, é justamente nisso que o duplipensamento age, fazendo com que nada precise de uma explicação coerente. Até mesmo o slogan do partido: “guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”, poderia servir de partida para questionamentos complexos que levassem à desconfiança. O

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25 slogan do partido, assim como a imagem do “Grande Irmão” está por toda parte. Ele aparece diversas vezes durante a obra, sendo explicado mais detalhadamente durante a leitura do “livro” escrito supostamente por Goldstein. No “livro” cada partícula do slogan merece um capítulo separado, apesar dessa ser uma parte bastante maçante do livro que não tem muito a contribuir para a obra si.

O “livro” é apenas uma afirmação de detalhes sobre a trama que já sabemos. São páginas e páginas sobre o funcionamento do partido e sua estruturação, podendo ser resumida em breves parágrafos. No capítulo III do “livro”, intitulado: “guerra é paz”, entendemos que o real significado dessa frase é que a guerra entre as potências da Oceania, Lestásia e Eurásia nunca terá um fim e, portanto, tanto faz se estão em guerra ou em um acordo de paz, pois a situação é permanente, não há “ganhadores ou perdedores” entre as potências, a representação da guerra nesse sentido, é a mesma que da paz e vice-versa. Sobre as outras duas frases, não há uma explicação concreta, pois Winston não as finaliza, nos deixando-as para pensarmos sozinhos sobre seu significado.

Se tivesse que explorar o slogan, diria que “liberdade é escravidão” está bastante ligado à ideia de livre arbítrio. Winston escreve em seu diário: “liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro. Se isso for admitido tudo mais é decorrência” (ORWELL, 2009, p. 101). Winston utiliza-se da matemática para provar a verdade, ele recorre às ciências exatas que para ele são o que há de mais concreto em um mundo de mentiras. Mais tarde, depois de preso, O’Brien vai destruir essa ideia, vai acabar com a concepção de mundo que Winston possui, desestabilizando a própria ciência. Ele dirá que a ciência não importa, se o partido disser que o sol gira em torno da terra então essa será a verdade. Se o partido disse que dois mais dois são cinco, Winston deve acreditar. A ideia de que liberdade é escravidão é justamente essa, acreditar que dois mais dois são quatro até que o partido diga que são cinco, então sua mente deve adotar outra perspectiva e passar a ver cinco.

Por fim, “ignorância é força” alia-se perfeitamente as duas frases anteriores, demonstrando o quão importante é manter-se ignorante de todas as questões que de fato importam, acreditando em falsas informações, condicionando seu cérebro durante anos para viver desse modo. É aqui também que aparecem os proletas, eles representam a maioria da população, são eles a força capaz de derrotar o partido, mas são eles, portanto, também os ignorantes, é justamente nesse preceito que o partido baseia a ideia de ignorância é força. As três fases do slogan do partido podem ainda ser pensadas como um eterno complemento umas

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26 das outras, todas embasadas no duplipensamento, na dualidade de ideias, devendo ser todas aceitas.

Durante a leitura do livro de Goldenstein, Winston confirma muito de seus pensamentos acerca das mentiras do Estado, bem como toda a manipulação e domínio imposto pelo mesmo. São extensas páginas de elucidação acerca do Socing, dos seus membros e líder, além de longas explicações sobre política e formas de controle. Winston mantém-se atento à leitura, sendo interrompido pela chegada de Júlia, para quem relê alguns trechos. Ambos acabam pegando no sono e, ao acordarem no dia seguinte, pensando ser ainda o dia anterior, são pegos em uma emboscada pela “Polícia das Ideias”. Descobrimos então que O’Brien jamais foi um rebelde e sim um membro orgulhoso de seu papel dentro do Socing, sendo responsável, juntamente do dono do estabelecimento, pela armação. Winston e Júlia são então separados, levados até o Ministério do Amor, onde passam a ser incessantemente interrogados e torturados.

Durante o tempo em que Winston permanece no Ministério do Amor, ele encontra alguns de seus colegas de trabalho que também foram vaporizados, vendo um por um sumir. Ele é então torturado dia após dia por pessoas que ele não conhece, até que em meio a esses torturadores surge um rosto familiar: O’Brien. Em um primeiro momento, Winston não sabe exatamente o que O’Brien está fazendo lá e acha que ele também foi pego, só depois de um tempo ele se dá conta de que O’Brien é, na verdade, um dos responsáveis por ele estar ali. O’Brien dedica a Winston um cuidado bastante especial ao torturá-lo constantemente durante anos a fio.

No momento em que Winston passa a ser torturado, todos os preceitos fundadores do Partido aparecem com força total. Há muitas coisas interessantes para serem observadas durante esse processo, como, por exemplo, de que modo e por que cada uma das formas de tortura ocorre. A primeira delas é a tortura física, é fazer com que Winston confesse todos os crimes que cometeu e até mesmo coisas que não fez. Esse primeiro passo consiste em causar medo, dor e estabelecer uma hierarquia de poder, mostrando quem está no comando. Esse primeiro momento, no entanto, não é nada comparado aos seguintes.

Logo depois vem a fase da humilhação, fazer perguntas incessantes por horas a fio, confundir o prisioneiro, fazê-lo contradizer-se, levá-lo à exaustão e a um ataque de nervos até que seu psicológico esteja completamente abalado e não reste mais nenhuma certeza. Porém, apenas desestabilizar o rebelde fisicamente e psicologicamente não basta para o partido. Em diversos trechos, O’Brien menciona qual foi o maior erro de cada sistema anterior ao seu. Ele menciona então que a reintegração tem três estágios: “primeiro aprendizado, depois

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27 compreensão, no fim aceitação.” (ORWELL, 2009, p. 305). A tortura física e psicológica encontram-se apenas no primeiro estágio: aprendizagem, levando a um segundo momento em que é necessário passar de fato a entender como as coisas devem ser e funcionar.

É nesse segundo momento, compreensão, que O’Brien mostra a Winston o que de fato ele se tornou, é o momento da verdade e do entendimento das coisas, no qual O’Brien espera que Winston se dê conta da criatura partida que se tornou e que é necessário recomeçar, nascer de novo. É durante esse processo de renascimento que Winston ganha peso e se recupera que ele passa também a deixar de importar-se, a acreditar e aceitar o que o partido lhe diz. O único porém, é que Winston até aqui não havia traído Júlia.

A lembrança intocável de Júlia foi a única coisa que restara da identidade de Winston, era o que havia de mais intrincado em sua mente, e que só podia ser destruído com algo que aliasse dor física à psicológica a fim de acabar com quem ele era de uma vez por todas. É o que está por trás da sala 101. A sala 101 é um local altamente temível por todos os prisioneiros. É a representação daquilo que mais infringe medo a cada prisioneiro em particular, a última etapa na transformação de alguém, no abandono completo de tudo que fora para que possa então tornar-se outro.

Para Winston, como fica claro em uma das cenas do livro em que ele está no quartinho alugado em cima da loja do Sr. Charrigton, são os ratos. É claro que O’Brien sabe disso e aproveita-se desse fato para acabar com a última lealdade incrustada em Winston. Quando Winston finalmente trai Júlia, sua redenção está quase completa e ele é então libertado para viver por mais algum tempo. É nesse meio tempo, no qual Winston espera por sua morte, que a terceira etapa, a aceitação, se completa. É no instante em que percebemos a influência da tortura causada a Winston de forma irremediável, que entendemos a dimensão da mudança do personagem.

Quando Winston e Júlia são finalmente libertados da prisão e encontraram-se na rua por acaso, comportaram-se como se fossem completos estranhos, já que não mais nutriam nenhum sentimento um pelo outro, apenas esperavam pelo grande dia, pela morte prometida por O’Brien. Possivelmente o ato mais arbitrário a que tinham direito e até mesmo esse não passava de uma mera ilusão. Winston então esperou, vivendo tranquilamente, bebendo em bares as custas do Socing, seu peito encheu-se de orgulho pelas conquistas do partido, ele amava, por fim, o grande irmão e esse sentimento, agora genuíno, levou à oficialização de sua morte, uma morte decretada e desejada pelo Estado desde o momento em que Winston abriu um caderno em branco e propôs-se ao crime de pensar.

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28 Ao chegarmos ao fim da obra de Orwell, percebemos o quão perplexa ela é, além de visualizarmos com admiração o rico significado de cada símbolo e representação dentro do romance. Justamente por conta disso, George Orwell consagrou-se em “1984”, criando um ambiente bastante verossímil, levando seu leitor a viver as experiências junto com Winston. Além desse mundo distópico ousado e inovador, há outros pontos memoráveis que merecem atenção especial e que ajudam a compor uma bela obra, como a riqueza cultural, a língua e toda a sociedade e suas divisões.

Contudo, por se tratar de uma obra um tanto extensa e quase sem diálogos, há alguns momentos em que o autor parece esquecer-se do personagem e da trama em si, dedicando-se a enquadrar de alguma forma seus próprios pensamentos através das reflexões de Winston. Não se trata de nada que atrapalhe o romance em si, mas acaba por tornar a leitura em alguns pontos quase maçante, não acrescentando nada de novo à trama. Além disso, a exploração de alguns personagens, como a própria Júlia, por exemplo, deixa a desejar, podendo deixar muitos leitores com a sensação de que esses personagens são meramente figurantes, não sendo capaz de estabelecer uma conexão mais profunda com eles. Porém, tal fato é compreensível, já que o objetivo do livro estava muito mais na mensagem do texto em si do que no desenvolvimento desses personagens. Nesse sentido, o romance desempenha seu papel muito bem, servindo de inspiração, ainda, para inúmeras obras posteriores.

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29 ANÁLISE DE ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não tem medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não tem esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem. (HUXLEY, 2014, p. 264) Aldous Leonard Huxley nasceu em 26 de julho de 1894 no condado de Surrey, Inglaterra. Quando pequeno tinha o desejo de tornar-se um cientista, sendo impossibilitado por causa de uma doença que quase o deixou cego. Colocou a ciência de lado, dedicando-se ao seu amor pela literatura. Durante sua vida escreveu inúmeros poemas, contos e romances, consagrando-se principalmente por sua obra Admirável Mundo Novo21, publicada em 1932, na qual faz uma crítica ao modo de vida de sua sociedade, ao consumismo exacerbado e à perda de contato do humano com o natural. Além de obras bastante reflexivas e controversas, escreveu ainda sobre experiências pessoais com drogas, como o LSD e mescalina, sobre as quais conta em As portas da Percepção, cujo nome mais tarde seria usado pela banda The Doors22. Além da carreira de escritor, Huxley trabalhou ainda como crítico no jornal “Westminster Gazette” e lecionou em Eton por um tempo, onde conheceu Arthur Eric Blair (George Orwell), o qual viria a seguir os passos de seu professor anos mais tarde.

Aldous Huxley recebeu muitos prêmios durante sua carreira, servindo de inspiração para muitos outros escritores, como seu aluno e pupilo, George Orwell. Em suas obras, nunca deixou de escrever sobre outros aspectos que o fascinavam, como a ciência, psicologia, política e até mesmo questões religiosas. Em Admirável Mundo Novo é possível perceber essas influências, o que ajuda a enriquecer o romance e torná-lo ainda mais verossímil. Admirável Mundo Novo é ainda uma obra bastante peculiar dada sua estrutura que não define um protagonista, levando o leitor a explorar o ambiente fictício sob diferentes vozes e percepções. Essa escolha do autor faz com que se tenha uma visão mais ampla sobre o mundo em que a trama se passa, colocando os personagens como pontos que permeiam esse espaço de forma significativa, mas o real foco está nesse “novo mundo”.

21 Título Original: Brave New World

22 Banda de rock psicodélico norte-americana formada em 1965 em Los Angeles, na Califórnia. Fonte:

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30 Assim como 1984, Admirável Mundo Novo é uma obra espessa, a qual tem conteúdo mais do que suficiente para ser abordada de inúmeras maneiras. Portanto, a organização de categorias para a análise da obra se torna igualmente necessária, seguindo para tanto, o mesmo contexto do primeiro capítulo, onde a obra 1984 foi abordada. Primeiramente o foco se dará sobre os aspectos do ambiente ficcional, analisando os detalhes trazidos pelo autor e a estrutura criada pelo mesmo durante a descrição do sistema que perpassa esse “novo mundo” abordado no romance, partindo então para uma análise dos personagens em relação ao espaço da trama, além de analisar os conflitos vividos por esses personagens e a ligação entre eles.

1. O Ambiente Ficcional de Admirável Mundo Novo

O romance Admirável Mundo Novo23 se passa em “Londres Central” no ano 632 d.F (depois de Ford). O Ford mencionado na obra trata-se de Henry Ford, um empresário que ficou famoso por implantar o conceito de “linha de montagem” na fabricação de automóveis. A concepção de Ford dentro da obra é a de um “deus” que marcou permanentemente o modo como a sociedade vivia e como deveria viver depois de Ford. Nessa perspectiva, o mundo antigo foi completamente reestruturado, passando a ser controlado por “dez grandes administradores mundiais”, os quais buscam uma sociedade altamente pacífica, utilizando-se da tecnologia aliada à ciência e à psicologia para concretizar esse desejo.

Logo ao abrir Admirável Mundo Novo temos um breve vislumbre desse ambiente científico e tecnológico, que fica claro na descrição do “Centro de Incubação e Condicionamento”, um laboratório especializado, entre outras coisas, em criar “seres humanos”. Nesse novo mundo não existem mais famílias ou relações familiares como conhecemos, pois tudo pertence ao “Estado Mundial”, sendo ele o responsável por toda a criação das pessoas que habitam a sociedade. Todo esse processo de criação acontece em um laboratório que se parece muito com uma linha de montagem Fordista, onde cada pequeno processo é seguido de outro até que se atinja o objetivo final. Um dos grandes ganhos em um processo desses é ser capaz de criar milhares de seres idênticos a partir de apenas um óvulo em um tempo considerável, a esse processo dá-se o nome de Bokanovskização24.

A Bokanovskização é um processo essencial para a manutenção da sociedade descrita na obra, pois além de permitir que sejam criados quantos humanos forem desejados de uma só

23 O título do livro é uma menção a obra Tempestade de Shakespeare, mencionado em vários trechos do

romance.

Referências

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