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Educação, Cultura e Linguagem em Admirável Mundo Novo

1. O Ambiente Ficcional de Admirável Mundo Novo

1.1 Educação, Cultura e Linguagem em Admirável Mundo Novo

Os preceitos do “Estado Mundial”, evidenciados no lema do mesmo, são reforçados ainda através da educação aos quais esses novos seres são submetidos. Uma educação que consiste basicamente em uma predestinação e no condicionamento desses novos humanos. A predestinação define uma hierarquia social, além de estabelecer um espécie de “padrão” entre membros da mesma casta, favorecendo certas castas com mais aptidões, desenvolvimento físico e inteligência e desfavorecendo outras. O segundo passo consiste em fazer essas castas aprenderem sobre moralidade sem jamais questionar-se sobre seu significado, além de usar técnicas para que cada casta comporte-se como o desejado dentro da sociedade. O condicionamento descrito na obra aproxima-se muito do “behaviorismo radical” defendido por Skinner, para o qual o ambiente é um fator de extrema relevância para o desenvolvimento do indivíduo. Portanto, manipulando-se o ambiente, é possível manipular a personalidade do ser

35 em questão, podendo até mesmo prever seus atos. Segundo Robert Nye, em sua análise de Skinner, ele coloca que:

Como com comportamentos observáveis, os comportamentos ocultos de sentimento, pensamento, e assim por diante, são possíveis por causa da herança genética, as suas particularidades são determinadas por fatores ambientais como as contingências do reforço. Simplesmente porque o sentimento e o pensamento estão ocorrendo “debaixo da pele” não significa que sejam de natureza especial. Ainda podem ser considerados como respostas (embora sejam ocultas) e sujeitos a uma análise behaviorista. (NYE, 1998, p. 83)

Portanto, como mencionado por Nye, dois fatores são essenciais para estabelecer a personalidade do sujeito. Primeiramente a genética, que nesse caso já é alterada conforme o Estado preferir e segundo, o ambiente, o qual assim como as questões genéticas, também é completamente manipulado. Essa combinação de fatores garantem ao sistema a estabilidade da qual necessita. O condicionamento utilizado no centro de incubação pode variar consideravelmente de uma casta para outra e também de intensidade dependendo do propósito que se espera alcançar. Em alguns casos se usa a dor física como um reforço para ensinar o certo do errado, em outros casos, no entanto, a própria visão e repetição de comportamentos adequados é suficiente para garantir um bom condicionamento.

Durante uma das passagens da obra, o condicionamento é utilizado para que os Deltas criem aversão à natureza, representada através das flores, no qual toda vez que os bebês se aproximam delas, são eletrocutados. Esse trauma será responsável por fazer com que fiquem longe da natureza durante suas vidas. A explicação dada pelo diretor para a realização desse tipo de condicionamento é de que “as flores do campo e as paisagens (...), tem um grave defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma indústria.” (HUXLEY, 2014, p. 43). Esse condicionamento acontece justamente porque na sociedade de “Admirável Mundo Novo” não se admite nada que seja de graça, é preciso fazer com que as pessoas gastem, que odeiem a natureza, mas ao mesmo tempo gostem de esportes ao ar livre, os quais exigem equipamentos especiais que custam dinheiro, é isso que faz a economia girar e a sociedade crescer. Desse modo todos são condicionados a dar valor apenas para aquilo que o Estado produz, ignorando todo o resto.

Assim como as flores, os livros também são utilizados do mesmo modo, devendo ser repelidos pelas castas inferiores e sendo aceitos nas castas superiores apenas se forem relacionados a pesquisas e completamente aprovados pelo Estado. A sociedade afastou-se o máximo possível de sua natureza e de qualquer tipo de produção literária, histórica e cultural. A literatura, como uma forma de produção social e cultural, é uma marca importantíssima do ser humano. É através da linguagem que alguém torna-se humano, sendo a literatura uma forma

36 de expressão dos pensamentos e sentimentos que moldam a humanidade. Acabar com a produção literária é um modo de evitar que as pessoas pensem, reflitam sobre questões internas que as levem a compreender-se e a expressar sentimentos que talvez nem imaginassem serem capazes de sentir. Nesse sentido, Antoine Compagnon menciona que:

A literatura deve, portanto, ser lida e estudada porque oferece um meio – alguns dirão até mesmo o único – de preservar e transmitir as experiências dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida. Ela nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e que seus valores se distanciam dos nossos. (COMPAGNON, 2009, p. 47)

Portanto, assim como colocado por Compagnon, a literatura tem um papel essencial enquanto “sensibilizadora”, possibilitando aos indivíduos a compreensão de que há outras possibilidades de vida, outras organizações sociais possíveis, dizendo ainda que “seu poder emancipador continua intacto, o que nos conduzirá por vezes a querer derrubar os ídolos e a mudar o mundo, mas quase sempre nos tornará simplesmente mais sensíveis e mais sábios, em uma palavra, melhores” (COMPAGNON, 2009, p. 51). Esse sentimento ocasionado pela leitura e reflexão é o que leva muitos sujeitos a lutarem contra o Estado, buscando por melhorias e por um sistema mais justo que o represente.

Além da literatura e da linguagem, a cultura em “Admirável Mundo Novo” mostra-se igualmente manipulada e frágil, sendo um reflexo da sociedade e de seu modo de vida. Nesse cenário, o único tipo de criação aceitável é o cinema sensível, o qual é muito mais focado no experimento de sensações fugazes de satisfação momentânea do que em despertar sentimentos verdadeiros e profundos. As pessoas são incentivadas a consumir e descartar, a divertir-se sem pensar ou refletir sobre o modo como vivem. Ninguém deve apreciar a literatura ou arte, pois esta leva a debates internos incapazes de serem contidos. Nesse sentido, Compagnon diz que:

Do ponto de vista científico, desde o início do século XIX, a filologia aventava a hipótese da unidade constitutiva formada por uma língua, uma literatura e uma cultura - ou antes, uma civilização, como então se dizia -, conjunto orgânico identificado ao espírito de uma nação para o qual a literatura, entre as raízes linguísticas e a folhagem cultural, fornecia o nobre tronco, donde a prolongada eminência dos estudos literários, estrada real em direção à compreensão de uma cultura em sua totalidade (COMPAGNON, 2009, p. 22)

Portanto, como demonstra Compagnon, há uma ligação muito importante entre língua, literatura e cultura, as quais fornecem a base para a identidade de uma nação, refletindo desse modo os preceitos em que acreditam. No caso de “Admirável Mundo Novo”, essa totalidade formada por língua, literatura e cultura é vista como algo completamente desprovido de sentimentos, não há mais a marca do humano nas criações, fazendo com que essa civilização seja do mesmo modo compreendida como algo artificial, sem raízes e até mesmo sem passado

37 ou construção histórica, o que fica claro com a própria concepção de história, sendo essa concebida como um inconveniente, algo vergonhoso, “a história é uma farsa” (HUXLEY, 2014), e sendo uma farsa, deve ser ignorada.

A frustação e outros sentimentos que possam levar à infelicidade, por mais passageira que essa venha a ser, não são bem vindos, “o D.I.C se opõe a tudo o que for intenso ou muito prolongado.” (HUXLEY, 2014, p. 62). Sentir-se solitário, pensar demasiadamente sobre si mesmo ou sobre os demais é considerado anormal, podendo causar uma passagem só de ida para uma ilha qualquer. Para não sentirem-se solitários, todos passam mais tempo no trabalho e são incentivados a socializar constantemente, de preferência nem sempre com as mesmas pessoas. Devem também comprar coisas novas o tempo todo, sempre descartando as velhas, o lema é: “mais vale dar fim que consertar.” (HUXLEY, 2014, p. 71). Apenas o novo representa o progresso.

A felicidade eterna é o que se almeja. No entanto, como não é possível ser plenamente feliz, o Estado fornece a todos os seus cidadãos um comprimido sintético chamado Soma, que proporciona imediatamente uma sensação prazerosa e feliz, fazendo seu usuário esquecer-se dos seus problemas. O Soma é descrito como “eufórico, narcótico, agradavelmente alucinatório” (HUXLEY, 2014, p. 76), afirmando-se que todos “podem proporcionar a si mesmos uma fuga da realidade sempre que desejarem, e retornar a ela sem a menor dor de cabeça nem sombras de mitologia.” (HUXLEY, 2014, p. 77). Portanto, o Soma é usado como mais uma forma de controle pelo Estado, que pode sempre recorrer a essa droga quando as coisas não estiverem correndo muito bem. O fato de o próprio Estado fabricar uma droga que é distribuída aos seus cidadãos faz com que nenhum deles precise conseguir outras drogas de modo ilícito, além de que sob o efeito do Soma, as pessoas sentem-se felizes e acabam consumindo muito mais do que normalmente consumiriam, favorecendo o Estado duplamente. Segundo Mustafá Mond, um dos “dez administradores mundiais”, é possível encontrar no Soma “todas as vantagens do cristianismo ou do álcool; nenhum de seus inconvenientes.” (HUXLEY, 2014, p. 76).

Essa confiança em uma droga sintética demonstra que o Estado aproveita-se dela como uma substituta para todos os outros vícios humanos antigos e até mesmo a religião. Em “Admirável Mundo Novo” já não existem mais religiões, sendo apenas Henry Ford uma espécie de divindade que merece ser reverenciada. Todas as cruzes foram cortadas em formato de “T”, simbolizando um dos modelos de Henry Ford, o qual é lembrado através de ritos: cantos comunitários e ofícios de solidariedade, que são na verdade uma forma de catarse, onde o sexo

38 é o elo de ligação entre todos, e onde o gozo final seria um modo de alcançar a satisfação plena em si e no outro, levando a um sentimento de tranquilidade e paz. Para a realização do ofício de solidariedade, eram dispostos um homem e uma mulher em torno de uma mesa, completando um círculo de doze pessoas. Uma música sintética ressoa ao fundo, enquanto todos cantam e passam a taça da amizade com suco de morango e soma, ainda entoando cânticos e louvando Ford. Apesar da estranheza que tal cerimônia possa causar, ela se assemelha muito a rituais religiosos ou de algumas sociedades secretas, sendo possivelmente um dos poucos resquícios que sobrou dos antepassados.

Assim como não existem mais religiões, as pessoas também já não se casam porque a monogamia é vista como um problema, considerando que o compromisso do casamento estabelece uma relação de fidelidade, de dever e compromisso para com os cônjuges e, mais tarde, para com os filhos. Durante uma fala de Mustafá Mond, ele cita que “a família, a monogamia, o romantismo. Em toda a parte o sentimento de exclusividade, em toda a parte a concentração do interesse, uma estreita canalização dos impulsos e da energia.” (HUXLEY, 2014, p. 61). Mustafá em seu discurso para os mais jovens, explica o quão frágil eram tais relações, explicitando a escolha do Estado em acabar com todas elas pelo bem da estabilidade social, já que a exclusividade fazia com que os indivíduos sentissem-se obrigados a proteger e prezar por suas famílias acima de tudo, o que segundo, o governo, era um problema, sendo importante que toda a energia fosse voltada apenas ao Estado. Nesse sentido, a família é vista como algo vergonhoso que foi abolido há tempos, como o diretor coloca: “os pais eram o pai e a mãe – essa indecência, que, na realidade, era ciência.” (HUXLEY, 2014, p. 44), e continua ressaltando a negatividade dessa condição: “são fatos desagradáveis, eu sei. Mas é que a maioria dos fatos históricos é mesmo desagradável.” (HUXLEY, 2014, p. 44).

O lema do Estado é “um pertence a todos” (HUXLEY, 2014, p. 62). O sexo sem compromisso é o que deve ser estimulado, sendo as crianças condicionadas desde muito pequenas a entender o sexo como algo natural, banal. Em Admirável Mundo Novo, o sexo é apenas um ato de prazer e satisfação momentânea, não devendo incitar nenhum sentimento profundo ou ser usado para procriação (mesmo que haja mulheres férteis no caso de haver algum problema que necessite medidas de emergência), pois isso cabe exclusivamente ao Estado. As pessoas também devem, o quanto for possível, fazer sexo com pessoas diferentes para que não se corra o risco de alguém ficar muito emotivo por um sujeito em particular. O sexo nesse “novo mundo” é uma forma de alcançar prazer imediato e esquecer-se completamente das coisas negativas que possam levar uma pessoa a preocupar-se

39 demasiadamente, ficando desse modo muito mais tranquilo e menos propenso a agir agressivamente.

O ambiente espetacular de Admirável Mundo Novo é permeado ainda por personagens tão interessantes quanto o próprio mundo criado por Huxley. Como mencionado anteriormente, a obra apresenta-nos mais de um protagonista, o que fica perceptível durante o decorrer da trama, a qual começa abordando primeiramente os lugares, para depois focar nos personagens, os quais são alternados na escrita de Huxley. Em alguns momentos, o autor chega até mesmo a colocar três personagens e três cenários diferentes em uma mesma sequência, intercalando seus pensamentos e falas.

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