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Um coração futurista : desconstrução construtiva nos processos composicionais de Egberto Gismonti na década de 1970

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

Maria Beatriz Cyrino Moreira

UM CORAÇÃO FUTURISTA: DESCONSTRUÇÃO

CONSTRUTIVA NOS PROCESSOS COMPOSICIONAIS DE

EGBERTO GISMONTI NA DÉCADA DE 1970

CAMPINAS

2016

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Maria Beatriz Cyrino Moreira

UM CORAÇÃO FUTURISTA: DESCONSTRUÇÃO

CONSTRUTIVA NOS PROCESSOS COMPOSICIONAIS DE

EGBERTO GISMONTI NA DÉCADA DE 1970

Tese de doutorado apresentada ao

programa de Pós-graduação em Música

do Instituto de Artes da Universidade

Estadual de Campinas para obtenção do

título de Doutora em Música na área de

concentração Fundamentos Teóricos.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Rafael Carvalho dos Santos

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO

FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA MARIA BEATRIZ

CYRINO MOREIRA E ORIENTADA PELO

PROF. DR. ANTONIO RAFAEL CARVALHO DOS SANTOS.

Campinas

2016

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Moreira, Maria Beatriz Cyrino,

M813c MorUm coração futurista : desconstrução construtiva nos processos

composicionais de Egberto Gismonti na década de 1970 / Maria Beatriz Cyrino Moreira. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

MorOrientador: Antonio Rafael Carvalho dos Santos.

MorTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Mor1. Gismonti, Egberto, 1947-. 2. Música instrumental - Brasil. 3. Música popular - Brasil - 1970-1979. 4. Canções - Brasil. I. Santos, Antonio Rafael Carvalho dos,1953-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: A futuristic heart : constructive deconstruction in compositional

processes of Egberto Gismonti in the 1970s

Palavras-chave em inglês:

Gismonti, Egberto, 1947-Instrumental music - Brazil

Popular music - Brazil - 1970-1979 Songs - Brazil

Área de concentração: Fundamentos Teóricos Titulação: Doutora em Música

Banca examinadora:

José Alexandre Leme Lopes Carvalho Carlos Gonçalves Machado Neto Rurion Soares de Melo

Sérgio Augusto Molina Paulo José de Siqueira Tiné

Data de defesa: 30-08-2016

Programa de Pós-Graduação: Música

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Agradecimentos À Fapesp.

À CAPES.

Aos meus pais Ângela e João, pessoas incrivelmente motivadoras que foram meu suporte durante todo o período de formação acadêmica.

À Unicamp, que se tornou uma casa generosa e abundante – fomentando meu interesse pela pesquisa.

Ao Prof. Rafael dos Santos, pela parceria, paciência, conselhos e inspiração. Ao Prof. José Roberto Zan, pelas idéias, discussões, suporte e inspiração.

Ao grupo de pesquisa “Música popular: produção, história e linguagem”, em especial aos amigos, Rodrigo Vicente, Thais Nicodemo, Adelcio Machado, Gabriel Rezende, Almir Côrtes, Ismael Oliveira, Sheyla Diniz, Sheila Zagury, Rafael Tomazoni e Guilherme Freire, que dividiram as agruras do mestrado e doutorado.

A todos os colegas da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA), pela compreensão, paciência e suporte dado nos últimos semestres do doutorado.

Aos membros da banca de defesa, professores doutores Sérgio Molina, Zé Alexandre de Carvalho, Rurion Soares Melo, Cacá Machado e Paulo Tiné, pelas valiosas contribuições ao trabalho.

A Egberto Gismonti e Geraldo Carneiro, por cederem seus tempos em entrevistas e conversas por email.

A Alberto Ferreira, por todo carinho, atenção, conselhos, conversas, críticas e inspiração.

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Resumo

Este trabalho consiste em uma investigação sobre o início da carreira do músico brasileiro Egberto Gismonti entre os anos de 1969 e 1977. A pesquisa procura contextualizar a inserção do artista dentro do campo da música popular brasileira no período de transição das décadas, marcado por transformações diversas dentre as quais podemos citar a expansão da indústria fonográfica e seu desenvolvimento tecnológico e as transformações estéticas da canção popular, que se via cada vez mais abertas às informações de gêneros e estilos estrangeiros. Durante este período observa-se ainda o trânsito de Gismonti entre os universos da canção e da música instrumental. Procuramos assim, através da análise do material musical, desvendar os conflitos e as realocações dos mais diversos recursos composicionais presentes nos fonogramas, nos quais experimentalismo, recriação, transcrição/reescritura e novas sonoridades amparadas pela tecnologia parecem ser ferramentas analíticas indispensáveis para se compreender as articulações criativas de Gismonti deste período.

Palavras Chaves: Egberto Gismonti, música popular brasileira, década de 1970,

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Abstract

This work is an investigation about the beginning of Brazilian musician Egberto Gismonti's career between the years 1969 and 1977. The research aims to contextualize the artist's inclusion within the field of Brazilian popular music in the transitional period between those decades, marked by several changes among which we can mention the expansion of the music industry and its technological development and aesthetic transformations of popular song, which was more and more open to information genres and foreign styles. During that period we can also observe the transit of Gismonti between the worlds of song and instrumental music. Thus we seek, by analyzing the musical material, uncover conflicts and reallocations of various compositional features present in the phonograms in which experimentalism, recreation, transcription and new sounds supported by technology seem to be indispensable analytical tools to understand Gismonti’s creative articulations from that period.

Key words: Egberto Gismonti, brazilian popular music, 1970´s, popular song,

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Índice

Introdução ... 10

Capítulo I ... 16

1. Egberto Gismonti – Situando o objeto... 16

Capítulo II... 34

1. O campo da MPB pós-1968... 34

2. Debate da Revista Civilização Brasileira – Os caminhos da MPB .... 36

3. A canção popular e suas transformações no pós-1960 – referências

teóricas ... 39

4.Inclusão e Recriaç ão como práticas na música popular brasileira... 41

5. Transcrição como desconstrução construtiva ... 44

6. Experimentação ... 47

7. Sonoridades ... 53

8. Perspectivas do olhar o objeto – Como se estruturam as análises... 56

Capítulo III ... 60

1. Boa bossa, Bach ou Beatle bem bacana? ... 60

2. Adormece canção acorda música instrumental – Os “sonhos” de

Egberto Gismonti ... 67

3. Considerações sobre os resquícios do “nacional popular” nas faixas

“Salvador”, “P´rum samba”, “Atento e alerta” e “P´rum espaço”... 81

4. A recriação em duas versões de “Janela de Ouro” ... 86

Capítulo IV ... 100

1. O Jazz-rock, o fusion e suas características ... 100

2. Os discos Academia de Danças de 1974 e Corações Futuristas 1976107

3. Dança das cabeças... 114

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5. A recriação no “pianismo de Gismonti”: O exemplo de “Ano Zero”139

6. A recriação nos sambas soltos de “Café” ... 163

Capítulo V... 181

Discursos de permanência em meio às transitoriedades... 181

Considerações Finais ... 189

Bibliografia ... 192

ANEXO I... 200

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Introdução

A idéia de se aprofundar na obra de Egberto Gismonti surgiu a partir da experiência de pesquisa obtida durante o mestrado, no qual os esforços concentraram-se na tentativa de compreensão da música popular brasileira feita na transição das décadas de 1960 e 1970, período de grande efervescência cultural. Neste período, originaram-se diversos grupos musicais que assimilavam em suas sonoridades uma amplitude de gêneros e estilos diversos, configurando o que alguns chamam de produções “híbridas”, outros de “experimentação” e outros ainda de “fusão” das características polarizadoras - “erudito X popular”, “culto X massivo”, “nacional X internacional”. Muitos destes grupos 1 obtiveram menor sucesso comercial em relação aos grandes nomes da MPB, mas ajudaram a transformar o cenário da música popular brasileira e a promovê-lo como um tipo de segmento de grande impacto não só regional ou nacional, mas fundamentalmente global.

Em 2011, assim como boa parte do público consumidor da “música instrumental brasileira”, conhecia apenas os trabalhos de Gismonti que o levavam a figurar como um exímio instrumentista dentro do cenário musical e tomava como verdade, sem muitos questionamentos, o fato de sua música realizar uma “mistura” entre o popular e o erudito. Como vinha trabalhando majoritariamente com formas musicais derivadas da canção, almejava me aprofundar na obra musical de artistas-instrumentistas, de modo que o trabalho contribuísse para a área dos estudos da música popular, através de uma discussão multidisciplinar, de um tipo de repertório pouco estudado. Foi neste momento que me deparei com o primeiro disco de Gismonti de 1969. Surpreendida pela data do LP, levando em consideração a noção de que seus trabalhos mais reconhecidos datavam da década de 1980, foi uma grande surpresa perceber que um dos ícones da música instrumental brasileira parecia ter iniciado sua atuação no mercado compondo canções. Veio então o conhecimento de toda uma discografia que percorre a década de 1970, na qual, além de compor e cantar suas próprias canções, Gismonti envereda por distintos caminhos estéticos, da música de concerto romântica à dodecafônica, do jazz ao rock e funk, do samba à bossa nova,

1 Clube da Esquina, Milton Nascimento, Som Imaginário, Mutantes, Secos e Molhados, Jards Macalé, Novos Bahianos, Walter Franco, Ivan Lins etc. A lista de artistas das mais variadas linhas que surgem neste período é grande. E são cada vez mais numerosos os trabalhos que tratam destes temas. Ver por exemplo, NICODEMO, 2009 e 2015; DINIZ, 2012; FREIRE, 2015; SANTOS, 2010; ZAN, 2006.

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do frevo e baião à música indígena. Esta constelação de elementos díspares se funde em estruturas nada convencionais, mas que possuem, em certa medida, uma organização primária dos códigos capaz de jogar com as nossas expectativas de ouvintes. Desta maneira, fez-se a escolha de se aprofundar neste material, sabendo de antemão que o grande desafio seria encontrar uma ferramenta de análise musical que pudesse dar conta de todo o conteúdo intrincado e de certa forma caótico que se apresentava naqueles discos.

Optei por delimitar meu material de análise musical em 8 discos de Gismonti. São eles: Egberto Gismonti (1969), Sonho 70 (1970), Orfeu Novo (1971), Água e

Vinho (1972), Egberto Gismonti (árvore) (1973), Academia de Danças (1974), Corações Futuristas (1976) e Carmo (1977).

Uma boa parte da pesquisa, assim como supostamente deve ser todo aprofundamento sobre o material musical estudado, foi dedicada à escuta atenta dos fonogramas e a transcrição inicial de alguns deles. Centrei-me na transcrição mais detalhada das linhas melódicas principais, do piano e contrabaixo, enquanto foram identificadas as harmonias do violão e algumas levadas rítmicas sem uma pormenorização das aberturas específicas da primeira e da distribuição das figuras rítmicas dos instrumentos de percussão, empreitada laboriosa para não-especialistas nestes instrumentos.

O material era rico e instigante. Foram feitas transcrições que não aparecerão neste trabalho, realizadas num momento em que ainda não me eram claros os critérios de agrupamento nas amostragens das análises. No início, a seleção de fonogramas se mostrava quase impossível. Ao longo da pesquisa, fui delimitando um número de fonogramas tendo como princípio fundamental destas escolhas as composições que apareciam regravadas e com arranjos distintos em diferentes álbuns. Disto resultou a seguinte proposta, que incluem os fonogramas descritos na tabela abaixo:

Canção Instrumental O sonho (1969) O sonho (1970) O sonho (1971) Prum Samba (1969) Prum Samba (1972) Salvador (1969) Salvador (1973) Janela de Ouro (1972) Janela de Ouro (1970)

Ano Zero (1972) Ano Zero (1976)

Trem Noturno (1976) Dança das cabeças (1976)

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Num segundo momento, fundamental para a pesquisa, buscou-se por documentos históricos que permitiriam uma visualização mais ampla das condições mercadológicas a que Gismonti estava submetido durante o período estudado. Foram coletados em torno de 40 reportagens de jornais e revistas datas entre 1969-1977.

Entre 2013 e 2014 foram realizadas duas entrevistas importantes. A primeira, com o poeta e letrista Geraldo Carneiro, parceiro de composição e produtor de alguns dos Lps deste período e a segunda com o próprio Egberto Gismonti, ambas na cidade do Rio de Janeiro. Infortunadamente, um problema com os arquivos gravados da conversa com Gismonti fez com que boa parte do registro se perdesse. Para minha surpresa e alívio, recentemente foi divulgada na internet uma entrevista bastante detalhada com Egberto Gismonti realizada pelo músico Charles Gavin, a qual veio suprir parte desta perda. Gavin é responsável por um projeto que disponibiliza este e outros materiais de entrevistas exclusivas realizadas com inúmeros personagens da música popular brasileira que gravaram discos importantes da história desta música. 2 Coincidentemente, esta entrevista abordava a história do disco Academia de Danças e se assemelha bastante ao relato que ouvi do próprio Gismonti no dia em que pude realizar a entrevista. O lançamento do álbum Academia de Danças é um ponto de transformação na carreira de Gismonti e um dos eixos fundamentais desta pesquisa, juntamente com o disco Coração Futuristas, o qual foi uma extensão das experimentações de seu irmão precedente. Neles, Egberto se dedica mais à música instrumental e suas composições passam a carregar uma forte influência do jazz-rock ou fusion, suportadas por procedimentos sonoros “experimentais”, equipamentos eletrônicos e expansão dos materiais de composição.

Feitas as justificativas que impulsionaram a realização desta pesquisa, passo a uma breve explanação da estrutura desta tese e do conteúdo de seus capítulos:

O capítulo 1 é dedicado à apresentação detalhada dos álbuns selecionados. Nele, estão expostas informações a respeito destes discos, incluindo gravadoras, músicos participantes e suas principais tendências estético-musicais.

2 O projeto, inicialmente pensado como um programa de televisão intitulado “Som do Vinil”, disponibiliza seu material no site http://osomdovinil.org. O link para a entrevista com Gismonti é http://osomdovinil.org/egberto-gismonti-academia-de-dancas-emi-odeon-1976/. Além de site foi lançada uma coleção de livros pela editora Imã Editorial.

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No capítulo 2, proponho a discussão de dois eixos teóricos básicos que orientam esta pesquisa: um deles voltado à contextualização do período histórico-social e outro às discussões de conceitos estéticos concernentes à música popular brasileira, tendo como fundamento básico a transformação da canção popular em fins da década de 1960, sua abertura a novos estilos, sua interação com o mercado e com os novos meios tecnológicos.

No primeiro eixo, são tomadas as observações feitas por Marcos Napolitano em seu livro “Seguindo a Canção”, que contribui na formulação de um panorama mais completo da situação sócio-histórica deste contexto. Em seguida, apresentamos o debate publicado na Revista da Civilização Brasileira, que nos dá exemplos das formulações e posições sócio-culturais e estéticas materializados nos discursos dos atores sociais que ajudavam a construir este campo. Em um terceiro momento, adentramos a discussão específica da transformação estética da canção popular, utilizando como principais referências o trabalho de Santuza Naves e Sérgio Molina.

No segundo eixo, discuto quatro importantes vetores estéticos que considero importantes para a compreensão deste recorte da obra de Gismonti. São eles: “Inclusão e recriação”, “Transcrição ou reescritura”, “Experimentação” e “Sonoridades”. É no final do capítulo, no “item 8” intitulado “Perspectivas do olhar o objeto – Como se estruturam as análises”, que apresento o planejamento destas a partir das discussões apresentadas, junto à incorporação de alguns referencias do pesquisador Sérgio Freitas sobre harmonia e forma.

No início do capítulo 3 são aprofundadas questões sobre a identidade de Gismonti nos primeiros anos da carreira, entre 1969 e 1971. Discute-se sua participação no Festival da Canção e os referentes apontamentos da crítica especializada, que tentava “encaixá-lo” em algum segmento, gênero ou estilo do campo da música popular. Discute-se ainda a oposição entre as estéticas do “mínimo” e do “máximo” em suas composições e relativiza-se sua posição dentro da indústria fonográfica como parte do casting dos “artistas de prestígio”.

Em seguida, apresento as análises das três versões de “O sonho”, primeira composição de Gismonti a participar do Festival da Canção e obter maior reconhecimento do público. Nesta análise, poderemos ver como esta composição se transforma e se recria nas três versões, numa contínua transmutação da relação letra e música junto a um movimento que oscila entre uma roupagem sonora mais “erudita”,

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no de herança modernista, e uma interação com elementos “estrangeiros” do funk e do

jazz.

No item 3 deste capítulo, trato de apontar os resquícios dos elementos de caráter “nacional-popular” que aparecem em algumas composições; “Salvador”, “P´rum samba”, “Atento e alerta” e “P´rum espaço”.

Em seguida analisaremos as duas versões de “Janela de Ouro”. O processo de transcrição e recriação evidencia a tendência da desconstrução de uma narrativa linear que se apóia na tradicional distribuição da instrumentação como ferramenta de contraste entre as seções para uma ambiência sonora mais regionalista onde eventos sonoros surgem sob uma textura rítmica redundante executada por piano e contrabaixo.

Inicio o capítulo 4 com uma discussão sobre o gênero musical jazz rock ou

fusion, mencionado como referência estética e sonora para as produções de Gismonti

a partir do disco Academia de Danças. Optei por abrir um espaço neste trabalho para a apresentação de um breve panorama histórico do gênero, levando em consideração as importantes constatações realizadas por John Covach em um dos poucos artigos de teor analítico-musical sobre este tipo de música. O artigo nos traz uma possibilidade de compreensão em relação ao “hibridismo” de estilos presentes no jazz-rock além de nos fornecer uma alternativa pertinente ao trabalho de análise deste tipo de composição, através do reconhecimento de suas estruturas formais e sonoras específicas.

Na sequência, tratamos de retomar e aprofundar, assim como fizemos no início do capítulo 3, a questão da recorrente transformação da identidade de Gismonti que, a partir de 1974, remodela alguns aspectos entre “forma” e “conteúdo” através da relação mais próxima com as novas tecnologias, da priorização da performance ao conteúdo e da diluição das polarizações conceituais de raízes modernistas na articulação de identidades plurais. Em seguida, apresentamos a análise da composição instrumental “Dança das cabeças” como exemplo significativo deste novo tipo de trabalho mais “experimental” no qual ficam mais evidentes as correspondências com o jazz-rock. “Trem Noturno” desponta como mais um exemplo de experimentação onde a canção, em flerte com a tecnologia, transforma-se numa sequencia de cenas e ambientações sonoras consideravelmente contrastantes.

O “pianismo” de Gismonti é esmiuçado na análise das duas versões de “Ano Zero”, que invoca a prática da transcrição/reescritura e seu efeito na transformação da

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textura pianística. Por último, na análise das duas versões de “Café”, considero novamente o processo de transcrição/reescritura e experimentação como reestruturador da forma. Este processo atua na desconstrução da levada do samba, sutilmente citado na letra da canção da segunda versão. Estas versões finalizam a demonstração dos processos criativos de Gismonti através da confirmação de que seu “estilo próprio” passa a ganhar mais corpo e a se consolidar em fins da década de 1970.

Por fim, no capítulo 5, fazemos um exame da nova posição do artista num contexto de modernidade-mundo, valendo-se dos referenciais teóricos de Michel Nicolau Netto e das análises dos discursos de Egberto Gismonti sobre mercado, internacionalização e linguagem artística, elaborando reflexões a respeito do tipo de identidade que passa a surgir neste contexto mais amplo de transformações sociais do pós-1970.

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Capítulo I

1. Egberto Gismonti – Situando o objeto

Inicio este capítulo com uma instigante afirmação de meu objeto de estudo, o músico brasileiro Egberto Gismonti. Entre os contatos que estabeleci com ele durante a pesquisa, que inclui uma entrevista ao vivo e algumas trocas de correios eletrônicos, recebi, em resposta a um dos artigos que escrevi para um simpósio, uma declaração sua bastante intrigante. Egberto refutou a expressão que utilizei neste artigo, na qual dizia que ele havia “adentrado” no campo da música popular brasileira junto à forma canção e concomitantemente ao período dos grandes festivais (MOREIRA, 2012, p.844):

"Adentrei" no campo da música popular brasileira a partir da cidade que nasci, Carmo, onde os roceiros e os imigrantes conviviam alimentando aquilo que nos torna brasileiros, a miscigenação. Essa minha observação não tem nenhum outro propósito além de procurar qualificar os meus pais que romperam com princípios culturais das suas raças (Italiano e Árabe), casaram-se e acreditaram na contradição de que os diferentes têm mais possibilidades de sobreviverem - conceito de todo imigrante que se preza”. (GISMONTI, correio eletrônico recebido pela autora, 2014)

Pude perceber nesta resposta traços de uma certa preocupação ainda mantida, mesmo após 40 anos de carreira, com a afirmação e a retomada de uma identidade purificada, numa tentativa de “restaurar a coesão, o fechamento e a tradição frente ao hibridismo e à diversidade”, para citar Stuart Hall (HALL, 2005, p.95). “Hibridismo” e “Diversidade” são categorias axiomáticas do período abordado neste trabalho, momento histórico no qual o artista iniciou sua carreira, marcado pela “mundialização” 3 (ORTIZ, 2005).

Para amenizar os efeitos colaterais da declaração de Gismonti, faço proveito da assertiva de Stuart Hall sobre o sujeito moderno: “sem um sentimento de

3 “Empregaria o primeiro [termo, globalização,] quando me referir a processos econômicos e tecnológicos, mas reservarei a idéia de mundialização ao domínio específico da cultura. A categoria ‘mundo’ encontra-se assim articulada a duas dimensões. Ela vincula-se primeiro ao movimento de globalização das sociedades, mas significa também uma ‘visão de mundo’, um universo simbólico específico à civilização atual. Nesse sentido, ele convive com outras visões de mundo, estabelecendo entre elas hierarquias, conflitos e acomodações”. O Estado-nação, elemento anteriormente hegemônico, é deslocado por outras forças no contexto da modernidade-mundo. Também se rompem a conjunção entre nação e modernidade”. ORTIZ, 2005, p. 29

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identificação nacional o sujeito moderno experimentaria um profundo sentimento de perda subjetiva” (HALL, 2005, p.48). É interessante notar, a partir da declaração de Gismonti, que a experiência da perda subjetiva ainda subsiste em pleno início do século XXI. Esta declaração parece ainda requentar uma visão específica sobre o processo de miscigenação considerado como essencial à formação da identidade brasileira. Nesta visão está incutida a construção imaginada de uma identidade nacional que “aceita” o elemento estrangeiro através de um processo cordial e homogêneo de sintetização de culturas.

Sua afirmação de que os “diferentes têm mais possibilidade de sobreviverem” logo me remeteu à explicação de Mário de Andrade sobre a formação do Brasil a partir da Independência, presente em seu famoso livro “Evolução social da música no Brasil”. Arnaldo Contier, interpretando os referenciais deste documento, afirma que Mário acreditava que de 1822 a 1922 a música de caráter europeu e internacionalista teria dominado a cena cultural por conseqüência da fragmentação do “povo” em raças diferentes, o que teria dificultado o processo de uma “aculturação” entre estas identidades. Nesta busca por uma síntese dos opostos, não deixando de lado seus conflitos e acomodações, Mário de Andrade defendia uma “música interessada”, onde o artista estaria comprometido com o projeto nacional. O autor via a “música desinteressada” (aquela “para se ouvir”, “autônoma”, “civilizadora”, “individualista”) como um projeto futuro compatível apenas com o estágio avançado de desenvolvimento de uma nação. Em grande parte das entrevistas, Gismonti faz referência a Mário de Andrade, considerando-o como grande mentor de seu pensamento artístico e parece manter relações com este projeto “andradiano” de Brasil. No campo musical, este projeto de sintetização de culturas se consolidaria na concepção de que o material “populário” (advindo do folclore e da tradição popular) deveria ser revestido de uma elaboração formal para alocar-se no registro “erudito”. Esta idéia se torna uma espécie de aforismo quando se trata de explicar ou definir o trabalho de Egberto Gismonti, por parte tanto da crítica quanto de seus ouvintes.

Voltaremos a esta discussão sobre a idéia da identidade brasileira mais tarde. Primeiramente, é importante apontar que os discursos dos atores sociais são essenciais para a pesquisa, no entanto, devemos partir sempre do pressuposto que suas falas podem escamotear ou esconder significados mais amplos. Desta forma, minha pesquisa pretendeu investigar e discutir a trajetória de Gismonti desde os primórdios de sua atuação no mercado, marcada sobretudo por experiências no âmbito da canção

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popular. Assim, tento levantar pistas sobre o que prenunciou este “retorno a Mário de Andrade” procurando esclarecer quais tipos de processos criativos e planos estéticos estavam por trás deste período cultural brasileiro que tem como signo principal o característico “hibridismo”. Optei por me aprofundar em um período pouco estudado, tanto da própria carreira de Egberto Gismonti quanto da música popular brasileira, situado na transição das décadas de 1960 e 1970. Este período é marcado pela régia de uma ditadura militar no país, uma indústria cultural em expansão e debates intelectuais sobre a questão da identidade e conformação cultural brasileira.

No Brasil, após um período de obscuridade e conturbações políticas, o Ato Institucional nº5, em 1968, marca, além do completo enrijecimento do regime militar, um crescimento considerável da classe média, o que fez com que o mercado de bens de consumo se ampliasse, acelerando também a expansão da indústria fonográfica. Esta indústria assistiu a um crescimento de 15% ao ano durante a década de 1970. Rita Morelli, em seu livro “Indústria Fonográfica – um estudo antropológico” nos fornece informações mais detalhadas: Em 1976, por exemplo, consumia-se principalmente música em formato de LPs. A produção destes discos era monopolizada por sete das maiores gravadoras instaladas no país. Embora as análises de Rita Morelli não apontem um predomínio do consumo de música estrangeira no país, pode-se dizer que a demanda de música internacional cresceu bastante nestas décadas por conta da consolidação de um segmento consumidor formado por jovens, mesmo que estes ainda não contassem com grande poder aquisitivo. Interessante notar que o ano de 1978, limite contextual deste trabalho, demarca no plano político a queda do AI-5 e no plano musical-artístico o auge da disco, gênero estrangeiro reproduzido massivamente em versões brasileiras pela gravadora WEA.

O ano de 1969, data de lançamento do primeiro álbum de Gismonti, demarca também uma etapa importante na história da música popular brasileira, na qual os Festivais da TV Record de São Paulo (Festival de Música Popular Brasileira) e da TV Globo do Rio de Janeiro) já não contavam mais com os grandes nomes que surgiram no auge da chamada “era dos festivais”. Estas iniciativas perdiam prestígio e gradativamente deixavam de ser um canal de acesso aos novos compositores e intérpretes da cena musical popular brasileira.

Retornando a nosso objeto de pesquisa, é sabido que Gismonti, possuidor de prestígio internacional e de uma carreira consolidada no Brasil é constantemente

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associado ao segmento da música instrumental brasileira, que despontou no mercado fonográfico também a partir dos anos 1970.4 Junto a Hermeto Paschoal, seu nome se destaca na lista de artistas que obtiveram certo reconhecimento junto ao público nesta década. (BAHIANA, 2005. p.65) Entretanto, ao investigarmos as informações sobre o início de sua carreira, sua atuação no mercado e seus primeiros álbuns, encontraremos uma ampla produção no âmbito da canção. É com este tipo de formato musical - que desempenhou um papel importante de crítica nos campos da cultura e da política durante as décadas de 1950 e 1960 no Brasil, colocando os artistas na posição de “formadores de opinião” (NAVES, 2010), que Gismonti se insere no campo da música popular brasileira, mais precisamente no III Festival Internacional da Canção no ano de 1968, com sua composição “O sonho”.

A estréia do músico no mercado fonográfico se dá através do LP intitulado

Egberto Gismonti, lançado pela gravadora Elenco/Philips. A gravadora “Elenco”,

conhecida pelo seu caráter visual inovador (as capas de discos estilizadas) e pelo registro de áudio de boa parte do repertório da bossa nova, tinha sido vendida em 1968 para a Philips Records5, mas sub-existiu até 1971, quando foi definitivamente fechada. A Philips, por sua vez, era uma multinacional que detinha, no início dos anos 1970, “contrato com a quase totalidade dos artistas que integram esse segmento prestigioso do mercado, identificado como MPB” (CAVALCANTI, 2007, p.25). A produção deste disco ficou a cargo do músico bossa-novista Durval Ferreira, que em 1969, além de ter participado como júri no Festival da Canção gravou e produziu a cantora Dulce Nunes, parceira de Gismonti neste e em outros de seus álbuns.

Egberto Gismonti é lançado pela série de discos “De Luxe”. Esta série teve início em 1966 com um elepê da Elis Regina; tratava-se de uma iniciativa de produção de discos que “dispunham de um orçamento de produção mais elástico, incluindo produção de fotos, design de capa, textos de contracapa, e com frequência,

4 Artigo de Ana Maria Bahiana “Música Instrumental – o caminho do improviso à brasileira”, escrito no ano de 1977, ressalta o crescimento e o reconhecimento da música instrumental por volta de 1976/1977. Neste artigo, o termo “música instrumental” se refere “às formas musicais cunhadas na informação do jazz e à geração de seus praticantes, os instrumentistas dispersos com o esvaziamento da bossa nova e o desinteresse do mercado e da indústria fonográfica”. BAHIANA, 1977.

5 Filial do homônimo holandês, o selo Philips chegara ao Brasil em 1958 comprando a brasileira Sinter (Sociedade Interamericana de Representações, responsável pelo lançamento do primeiro LP fabricado no Brasil e que em 1955 passou a se chamar CBD – “Companhia Brasileira de Discos). Mantivera na presidência da nova firma o ex-dono da empresa adquirida, Alberto Pittigliani, que permanecerá até 1966. Em 1960, a Philips está avançando os primeiros passos na trajetória que a conduzirá ao domínio da posição MPB, na segunda metade dessa década. (CAVALCANTI, 2007.p.170)

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também encartes com as letras das músicas ou outros elementos, tudo contribuindo para propiciar ao consumidor a sensação de possuir bem mais valioso que o padrão comum do mercado”. (IDEM, p. 25)

O disco possui 12 faixas, que, em uma primeira audição, não se conformam dentro de um único estilo, não sendo possível caracterizá-lo como um disco pertencente ao segmento tradicional da MPB até então. A heterogeneidade de gêneros percebida confunde o ouvinte apreciador deste tipo de repertório. As faixas “Salvador”, “Estudo nº5” e “Tributo a Wes Montgomery” são uma amostragem do violão ainda jovem de Gismonti; Baden Powell, Bach, e Wes Montgomery, são inspirações para estas gravações. As demais faixas, todas canções, (com exceção de “O gato”, talvez a mais “estrangeira” das composições por se assemelhar ao funk norte-americano, gênero que se fará presente no vocabulário musical da época, como demonstrarei em algumas análises) são envoltas ou por uma textura orquestral “grandiosa” ou por um tipo de articulação bossanovística na maneira de cantar, inspirada na dicção sussurrada de João Gilberto. A relação com a música de concerto aparece também de forma alegórica; na marcação audível de um metrônomo no “Estudo nº 5” ou na presença de um “oboé” - instrumento pouco utilizado dentro contexto da música popular - como articulador da melodia principal da canção “O sonho”. Estes elementos criam um ambiente sonoro paradoxal se justapostos às também presentes citações de samba, letras de protesto ou temas espaciais.

Devemos atentar também aos músicos que participam na gravação deste álbum: Wilson das Neves (bateria) e Sérgio Barrozo (contrabaixo). O primeiro possuía ampla experiência com orquestras e conjuntos maiores, como o conjunto de

Steve Bernard em 1963, a Orquestra de Astor Silva em 1964, a Orquestra da TV

Globo do Rio de Janeiro e a Orquestra da TV Excelsior em São Paulo (orquestras oficiais dos Festivais de Música destes canais). O segundo, contrabaixista de grande atuação na bossa nova, tocou com Roberto Menescal, Nara Leão e Maysa e gravou diversos discos lançados pela Elenco. Participou também dos trios de sambajazz “Salvador trio” (com o pianista Dom Salvador) e “Rio 65 Trio” (com Edison Machado na bateria).

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Em entrevista para este trabalho6 Gismonti afirma sua indefinição estética ao ser questionado sobre este período de gravação de “canções” em contraponto ao seu extenso trabalho instrumental:

“Bom, e aí, eu não tinha uma música definida o que é que eu queria fazer na vida. Eu achava que a música podia ser cantada ou tocada. Na época eu não sabia que a música podia ser tocada de cento e oitenta maneiras diferentes e cantada de não sei quantas, o que eu não sei até hoje. Cantada eu não sei, mas tocada eu sei que tem uma meia dúzia de cem aí no meio. Então o fato de ter aquelas canções era porque eu gostava e gosto de canções. E cada vez gravei menos canções cantadas”. (GISMONTI, Entrevista concedida à autora, 2014)

A formação musical disponível para a gravação de discos na época segue em concordância com o tipo de resultado sonoro deste primeiro LP. Novamente na entrevista concedida, Gismonti nos conta:

“A primeira vez que eu fiz arranjo na vida, Bia, profissionalmente falando, foi no festival da canção que eu participei com uma música chamada “O Sonho”, que quando eu cheguei com o arranjo...este festival acontecia no Maracanãzinho e Maracanãzinho vazio era um local de reverberação absoluta, concreto puro, não sei o quê, redondo, e tinha uma orquestra que era a OSB que tocava pro Festival que, nestes anos aí, final dos 1960 e 1970, orquestra tava em todo canto. Orquestra era o instrumento da hora, de se usar. Isto e trios, piano, bateria e baixo tinha em todo canto, e orquestra”. (GISMONTI, Entrevista concedida à autora, 2014)

O segundo disco de Gismonti, intitulado Sonho 70, foi lançado em 1970. O LP é composto por nove faixas, das quais cinco delas possuem letra e outras quatro possuem a voz apenas como instrumento melódico executando vocalizes sobre a harmonia. Neste trabalho Gismonti parece explorar ainda mais a orquestra como ingrediente sonoro comum aos arranjos de suas composições. Além de “O sonho” composição regravada sem letra (esta versão será analisada mais profundamente no Capítulo 3) a canção “O mercador de serpentes” também teve sua participação registrada no IV Festival Internacional da Canção Popular (FIC) da TV Globo em 1969. As letras foram escritas em parceria com artistas bastante atuantes na música popular e no circuito dos festivais, como Arnoldo Medeiros e Paulinho Tapajós.

O disco foi lançado pela companhia brasileira Phonogram (antiga CDB, ainda subsidiada na transnacional Philips) e contou com a produção musical de Roberto

6

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Menescal. Não há indicações dos músicos participantes nos encartes do LP. No entanto, há a intensificação de um traço estilístico comum já citado anteriormente: um tipo de levada rítmica funkeada. Contrabaixo, bateria e percussão (pode-se ouvir alguns instrumentos percussivos “de mão” adicionado às levadas de bateria) constroem este tipo de sonoridade nas faixas “Janela de Ouro” (aos 2:24), “Parque Laje”, “Indi” (aos 1:00) “O sonho”, “Pêndulo” (aos 2:20) e “Lírica 1” (aproximadamente aos 3:15). A hipótese levantada é que esta formulação estética para a “cozinha” provavelmente foi delineada pela produção de Roberto Menescal. Podemos encontrar semelhante tratamento, por exemplo, no disco Como e porquê de Elis Regina, gravado em 1969 pela mesma companhia (ainda com o nome de CDB). Este disco conta com arranjos de Roberto Menescal7 e Erlon Chaves. Este último, até então considerado “patrimônio da música dançante e do movimento black no Brasil”, trabalhou com Wilson Simonal e no FIC de 1970 regendo um coro de 40 vozes que logo passa a apresentar-se sob o nome de “Banda Veneno”. 8

No Festival de 1969, Gismonti conhece a cantora e atriz francesa Marie Laforêt. A tão comentada viagem ao exterior do músico, onde normalmente menciona o motivo de seus estudos, se deu justamente por este contato. Laforêt convida o músico, ainda jovem e inexperiente, a escrever arranjos para seu disco e ir à Paris para gravá-los. Por este motivo, Gismonti viaja à Europa e enquanto trabalha como músico, compositor e arranjador nas variétés françaises procura também encontrar professores de música com quem pudesse estudar. É aí que se efetivam os encontros com a renomada compositora Nadia Boulanger e com o compositor Jean Barraqué. 9

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“Integra entre 1963-1966 o gupo "Conjunto de Roberto Menescal" pela Elenco e a partir do final dos anos 1960 ao longo da duas décadas seguintes desenvolverá carreira de dirigente de gravadora, colocando em segundo plano tanto o papel de compositor quanto o de músico. (...) Com Menescal e Lyra ocorre algo semelhante ao que já experimentara Aloysio de Oliveira na geração anterior: são atraídos pela profissionalização musical, e concluindo o segundo grau, abrem mão do curso universitário. Não obstante a resistência que alguns jovens bossanovistas encontram na família para dedicar-se profissionalmente à música, o violão propicia-lhes ganhos que permitem dispensar a mesada paterna e demonstra que atividade musical pode não ser "degradante". (CAVALCANTI, 2007, p. 88 e 89)

8 O exemplo deste tipo de sonoridade “black” ou “funkeada” está na música “Eu quero é mocotó”, de Jorge Ben, defendida no palco do V FIC em 1970, com arranjo de Erlon, ou ainda em sua composição “Pigmaleão”, tema da novela homônima de 1970.

9 “Neste festival veio uma mulher atriz francesa chamada Marie Laforêt, eu nem sabia que ela cantava. Eu sabia que ela existia porque era um pouco uma daquelas atrizes do cinema francês que eu gostava muito (...) ela tava no Rio e disse assim: "queria muito que você fizesse uns arranjos pro meu disco", mal sabendo ela a idade que eu tinha e o absoluto desconhecimento do métier; que a primeira vez na vida que eu toquei profissionalmente foi no Maracãnazinho. (...) eu fazia arranjo porque tinha estudado em Conservatório, o que não era normal, ninguém estudava naquela época. (...) A Marie Laforêt não sabendo que eu tinha zero de experiência de tocar, de show, de não sei o que diz assim:

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É durante esta estadia na Europa que Gismonti grava seu terceiro álbum, intitulado Orfeu Novo. A gravação foi feita na Alemanha e lançada pelo selo Corona

Music Jazz, produzido pelo crítico e especialista em jazz Joachim A. Berendt.10 A formação instrumental conta com os músicos franceses Jean François Jenny Clark (contrabaixo), vencedor do prêmio do Conservatório de Paris e atuante tanto no universo da música contemporânea de concerto como no jazz e Bernard Wystraete (flauta), também vencedor de prêmio no Conservatório de Paris. Egberto fica responsável pelos arranjos, piano e violão, dividindo os vocais com a cantora Dulce Nunes.

Interessante levantar os aspectos do texto crítico impresso no encarte deste álbum, assinado por Gerald Merceron, que deve se tratar provavelmente de um crítico musical ou músico francês com acentuada admiração pela música brasileira. No texto, é destacada a popularização da bossa nova ao redor do mundo, gênero este considerado pelo autor responsável por ter tornado a música popular brasileira importante o suficiente para competir com a música popular norte-americana. A música brasileira é vista como “diferente” e ainda “inacessível” aos músicos de outros países, porém, portadora de “traços distintos” e “sensibilidade”.11 Em seguida, o autor descreve as qualidades de Egberto como compositor de canções e instrumentista, fazendo questão de ressaltar, mais uma vez, sua habilidade de aproximar os campos da música erudita e popular. São destacadas ainda suas habilidades para resolver problemas rítmicos e dinâmicos dos arranjos bem como executar improvisações de caráter lírico e cantar de maneira delicadamente expressiva. O autor também expressa

"você não quer fazer uns arranjos pro meu disco?", eu disse "claro". Aí, fiz os arranjos. Os arranjos foram pelo correio. Passado não sei quanto tempo, ela me escreve e diz assim: "Você não quer vir gravar os arranjos aqui em Paris?" digo: "Ué, ótimo". Lá chegando ela disse: "Você não quer formar um grupo aqui pra tocar, a gente faz o lançamento..." eu disse: "Também topo." Passado um ano e meio que eu estava nesta fico ou não fico, ganhei dinheiro como o diabo e tocando varieté français (...)até que, tive tempo pra procurar e achei professores e comecei a estudar e ai acabei me formando em outras coisas de música, estudando com Nadia Boulanger (...)”(GISMONTI, Entrevista concedida a Charles Gavin, 2015).

Link: https://www.youtube.com/watch?v=pStNFUmt0aY.

10 Neste link é possível encontrar uma interessante review sobre o livro “The return of jazz: Joachim-Ernst Berendt and West German Cultural Change”, do escritor Andrew Wright Hurley. http://www.h-net.org/reviews/showrev.php?id=25888. Acessado em 14/11/2015.

11 “The impressive number of first -class musical talent´s Brazil has shown up especially since 1958 made it the only veritable competitor to the United States in the fields of popular music. This enviable position does not explain only by the quality of Brazil´s popular music but additionally by its being so different. Maybe one day there are non Brazilians capable of assimilating, playing, and composing the Brazilian way as well as the Brazilians themselves do - as, for example, this applies to a small group of European Jazzmen with respect to their big American rivals. Howsoever, this day is still to come, and while awaiting it you may be reassured that the distinctive traits of Brazilian sensibility alone allow to present the world with the one and only alternative to American creativity and American technique.”

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sua opinião acerca da maneira como a música popular brasileira, através de Gismonti, foi “elevada” a um alto padrão de qualidade atestando o início do que ele alega ser um novo estágio de seu desenvolvimento. 12

O disco possui uma sonoridade bastante camerística, diferenciada dos arranjos orquestrais realizados anteriormente. São regravadas as versões de cinco de suas composições originalmente registradas nos álbuns anteriores como “Indi”, “Lendas”, “O sonho”, “Parque Laje” e “Salvador”. As outras duas são um arranjo para duas composições de Baden Powell “Consolação” e “Berimbau” e uma pequena “suíte” para violão e flauta intitulada “Three portraits for guitar and flute: Retrato I, Retrato II e Retrato III”.

É possível visualizar quatro categorias deste repertório do disco: “Temas” (“O sonho” e “Parque laje”); “Peças de inspiração oriental” (“Indi” e “Lendas), “Peças diretamente influenciadas pela música popular brasileira da década de 1960” (“Consolação/Berimbau” e “Salvador”) e “Composição de caráter camerístico” (“Suíte Retratos”). Outro traço interessante de se destacar da crítica do álbum escrita por Merceron é a menção à ausência da bateria. O autor afirma que Gismonti “teve de escrever as linhas do baixo e as estruturas do piano, fortes os suficiente para substituir a bateria” (tradução nossa). Desponta pela primeira vez um traço bastante característico de Gismonti como músico que é sua implicação com a presença de um baterista no grupo que irá tocar, visto que sua atividade rítmica pianística se desenvolve e ganha cada vez mais destaque na maneira como toca suas composições.

No ano de 1972, Egberto lança seu quarto álbum e talvez o primeiro deles que ganhou uma maior projeção e reconhecimento. Trata-se do disco Água e vinho lançado pela EMI-Odeon, que inaugura sua parceria com o poeta e letrista Geraldo Carneiro, que também assina a produção do trabalho. Gismonti afirma em entrevista que este disco fora dedicado ao seu avô, um “exímio compositor de valsas”. Por este motivo é que podemos identificar na capa a figura de um manequim “italiano”, porque seu avô era, além de músico, alfaiate. Essencialmente composto por canções (com exceção da faixa 8 “Eterna”) Água e vinho marca o encontro de Egberto com

12 Egberto Gismonti came last amog the Brazilian creators. And he is not only a singularily gifted

instrumentalist and a remarkable author of themes and chansons, but also a composer who eith the same ease approaches the classical and the popular music. He is an able and original arranger very sensible towards rhythmical and dynamical problemas; he is a classical pianist - in the strict sense of it; he plays a subtle guitar an he improvises intelligently and lyrically; and he sings with a delicate expression. His compatriot Augusto Marzagão, director of the International Chanson Festival of Rio de Janeiro, call him Brazil´´s most perfect musician”.

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diversas figuras importantes da música popular e de concerto essências para que a estética do disco se consolidasse desta forma. Gismonti em entrevista, afirma que ao retornar da Europa percebeu que a quantidade de informações musicais que tinha adquirido até então precisavam ser emitidas de alguma forma, em algum tipo de produção:

Eu voltei com esta informação, informação de conservatório, a formação de ter dirigido um show da Marie Laforêt que viajou 30 países e mais a informação de Nadia Boulanger e Jean Barraqué (...) E ai fui morar em Teresópolis e pouco a pouco comecei a me dar conta que aquela informação tinha que servir pra outras coisas. Aí comecei a conhecer pessoas, Geraldinho Carneiro, não sei quem, etc...gente como o diabo, e fui entendendo que cada uma dessas pessoas, tinham não só conhecimento, mas sobretudo, como eu, idéias, que poderiam ou não serem realizadas. O tempo foi passando e uma delas me levou a de querer fazer discos, me levou pra Odeon (GISMONTI, Entrevista concedida à Charles Gavin, 2015).

Em 1972, a Odeon, gravadora citada no depoimento acima, era reconhecida por ter como produtores agentes como Milton Miranda e Mariozinho Rocha, profissionais que incentivaram a produção de discos de músicos que compunham o casting mais “nobre” da música popular brasileira, possibilitando seu financiamento, dando-lhes plena liberdade de gravação e horas ilimitadas de uso nos estúdios da gravadora, favorecendo assim a criação coletiva e a experimentação característica da época. (MOREIRA, 2011, p.2) Uma nota publicada no Jornal Folha de São Paulo em 1971 atesta esta iniciativa: "A Odeon vai deixar que Milton Nascimento, o Som Imaginário, Equipe Mercado, A tribo e o Conjunto Módulo 1.000 façam um elepê com plena liberdade. Nada comercial. Cada um vai produzir sua parte”. 13 Provavelmente Gismonti também foi um dos beneficiados por este empreendimento. Gismonti menciona inclusive, seu estímulo em estar na mesma gravadora de Milton Nascimento, e sua admiração por este nome:

“Como é que você foi parar na Odeon? - Eu tinha um sonho que era fazer um disco que tivesse a participação do Milton, eu conheci o Milton do Festival, de Travessia, etc. O meu desejo de poder convidar o Milton pra alguma coisa, que eu viesse a fazer, só seria viável se eu tivesse uma gravadora, nada melhor que eu estivesse numa gravadora que ele estivesse. E o Mariozinho Rocha, junto com o Gaia, facilitaram a história.” (IDEM)

13

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Uma das grandes contribuições à formatação estética deste álbum se deve à participação da orquestra de cordas da Associação Brasileira dos Violoncelos, presidida na época pelo violoncelista Peter Dauelsberg14 e dirigida pelo maestro Mário Tavares. Ambos são figuras de enorme importância dentro da história da música popular brasileira, que mereciam, cada uma delas, um estudo mais aprofundado. Entre 1970 e 1973, Peter cuidou dos arranjos de cordas da Phillips, tocou como primeiro violoncelista nas orquestras da Globo e fez os arranjos para as cordas de importantes discos da música popular brasileira.15 A participação da Associação Brasileira dos Violoncelos deu a Gismonti capital cultural para legitimar ainda mais a produção do disco.

“E Geraldinho Carneiro me perturbando a cabeça dizendo: “Temos que gravar este disco de canções, maravilhosas canções”. Eu disse: “O Geraldinho, eu não sei cantar” ele disse: “Não, sabe”. E eu morria de medo de cantar, e não cantava direito e me sentia mal. E eu digo: “Associação brasileira de cellos vai me dar uma competência, vai me dar um lastro maior de qualidade do disco. E o grande, o cabeça da associação brasileira dos cellos era o Peter Dauelsberg um dos grandes cellistas que o Brasil já conheceu que era um alemão que veio e trouxe toda a competência alemã pra botar na OSB. E o regente era o grande Mário Tavares, um sujeito que eu admirei a vida inteira e foi grande amigo meu. Negócio da coleção de amigos é antigo, você está vendo?”(GISMONTI, Entrevista concedida à autora, 2014.)

Sobre a parceria entre Geraldo Carneiro e Egberto Gismonti, acredito ser de grande importância citar um trecho da entrevista realizada com o poeta, em que este discorre sobre esta relação profissional estabelecida ao longo dos anos:

“Olha, quando eu o conheci ele já era um monstro. Um monstro pronto. Já tocava violão tão bem quanto Baden Powell, tocava piano tão bem quanto Luizinho Eça, era um monstro, um craque. Era um compositor já originalíssimo, com caminhos muito

14

Fiz minha primeira apresentação pública em um teatro brasileiro em 1972, com a participação de dois mestres já reverenciados pelo meio musical: Paulo Moura e Peter Dauelsberg. A relação com eles foi fundamental para meu desenvolvimento artístico. Peter propôs que eu estudasse violoncelo e se prontificou a me ensinar. Também colaborou nos meus primeiros quatro discos. A participação dele na minha vida musical foi orientadora e importante pelos conselhos, pelas correções propostas à minha escrita, pela sugestão de músicos e regentes capazes de melhor executar as partituras, pela orientação discreta, mas definitiva, pela cumplicidade com a música, pela amizade, pelo respeito e dignidade à música.” (NOGUEIRA, 2010, p. 8)

15 Dentre os discos encontrados em quais Peter Dauelsberg participou tocando ou dirigindo as cordas estão: Coisas (Moacir Santos – 1964, Tamba trio (Tamba trio - 1966), Edu (Edu Lobo – 1967), Milagre dos Peixes (Milton Nascimento – 1973, Milagre dos Peixes ao vivo (Milton Nascimento -1974, Minas (Milton Nascimento – 1975, Geraes (Milton Nascimento – 1976, Nana (Nana Caymmi – 1977, Clube da Esquina 2 (1978), Amor de ìndio (Beto Guedes - 1978).

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peculiares. Então eu me tornei instantaneamente um admirador total dele. (...) e ai criou-se entre nós uma relação forte, grande amizade, e fomos nos tornando cada vez mais amigos. Houve uma época em que nos tornamos irmãos mesmo, havia uma fraternidade enorme entre nós. E em 1971 ele me convidou pra escrever uma letra, ele viu umas letras minhas feitas pra outros compositores, gostou muito e me convidou para escrever uma letra. Um destes estudos pra piano, que era o “Água e vinho” que foi a primeira música que nós fizemos. A segunda foi o “Ano zero”. E aí fizemos talvez umas 50 ou 70 canções, sem muita continuidade, quer dizer, de início fizemos umas 30, 35 canções, depois descontinuamente continuamos a fazer uma série de canções. Mas aí houve um divórcio, houve esta aproximação dele que era natural, com o imenso talento dele que era instrumental, e ele foi se bandeando para a música instrumental e foi cada vez menos fazendo canções. Nós continuamos às vezes, de vez em quando fazendo uma cançãozinha, só pra matar a saudade”. (CARNEIRO, entrevista concedida à autora.2013).

O disco seguinte 16 intitulado Egberto Gismonti mais conhecido por Árvore (por conter esta figura na capa) continha ainda, parcerias com Geraldo Carneiro. Das oito faixas do disco, quatro são canções (“Luzes da Ribalta”, “Memória e Fado”, “Tango” e “Encontro no bar”) e quatro são instrumentais (“Academia de Danças – a dança dos homens- a dança das sombras”, “Adágio”, “Variações sobre um tema de Léo Brower” e “Salvador”). Os arranjos aparentam estarem mais organizados, sobretudo do ponto de vista da escrita orquestral. A faixa “Tango” é um exemplo contundente da forma como Egberto estava a desenvolver seu estilo pianístico peculiar. A faixa intitulada “Academia de danças”, dividida em duas seções “A dança dos homens” e “a dança das sombras”, apresenta experiências sonoras serialistas, bem como exploração timbrística diferenciada dos instrumentos.

Dentre todos os músicos da orquestra dirigida por Mario Tavares 17 participaram da configuração da seção rítmica o contrabaixista Novelli, que gravou diversas vezes com Milton nascimento18, Paulo Moura, Edson Lobo, Tenório Junior e Dulce Nunes. Interessante notar que não há indicações do baterista e/ou percussionista em cada faixa. Sabe-se que Egberto Gismonti atuou em alguns fonogramas como percussionista. A suposição levantada em Orfeo Novo aparece novamente; a

16

Há controvérsias em relação a ordem de lançamento de Água e vinho e Árvore. Em entrevista, Gismonti afirma que o disco Árvore veio antes de Água e vinho. Nas fichas técnicas constam as datas de lançamento 1973 e 1972, respectivamente. Mesmo não conseguindo comprovar a ordem exata de lançamento dos álbuns, podemos imaginar que período de gravação entre um e outro foi relativamente curto.

17 Os nomes dos músicos que compunham a orquestra podem ser consultados neste link: http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Disco=DI00907.

18 Os discos Milton Nascimento (1969), Milagre dos Peixes (1973), Milagre dos Peixes ao vivo (1974), Minas (1975), Geraes (1976), Clube da Esquina nº2 (1978).

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sonoridade resultante dos seus discos é bastante determinada pela presença ou não de bateristas/percussionistas, cada um com uma linguagem própria. 19

Significativo em sua discografia, tanto pelo número de vendas como pelo resultado sonoro original é o seu sexto álbum, lançado em 1974: Academia de

Danças. Mercadologicamente, sua realização é resultado da perspicácia profissional

de Gismonti em relação à situação de crise pela qual a gravadora Odeon passava naquele momento, que resultava na suspensão dos contratos com diversos artistas renomados. Egberto, vendo a possibilidade de ser “despedido” da gravadora, resolve arriscar um projeto grandioso e experimental, voltado para a idéia de conseguir misturar ao máximo todas as informações musicais que tinha tido até então:

"A Odeon começou a entrar numa certa crise, mas a renovação do meu contrato não tinha sido feita mas eles tinham feito um aditivo que era mais um disco. E eu senti, pelas minhas contas, 1970 e tal, bom: "Se tem gente pra caramba aqui conhecida, como Edu Lobo, Francis Hime, que tão mandando embora, eu que não sou nada ainda, vou ser mandado embora é já, né" (GISMONTI, Entrevista concedida à Charles Gavin, 2015).

Contando novamente com a produção de Geraldo Carneiro, Gismonti reúne um “time” de músicos com grande experiência prática de performance e improvisação na música popular brasileira instrumental como Robertinho Silva (bateria), Luiz Alves (contrabaixo), Nivaldo Ornellas (sax), Tenório Junior (piano), Dulce Nunes (voz), Danilo Caymmi (flauta), dentre outros. 20

O disco é captado em poucas sessões no estúdio 21 e é dividido em dois lados. Um lado, intitulado “Corações Futuristas”, com as faixas “Bodas de prata”, “Quatro Cantos”, “Vila Rica 1720”, “Conforme a altura do Sol” e “Conforme a altura da Lua” e outro lado nomeado “Academia de Danças”, uma sequência de músicas sem interrupção nomeadas com frases do livro “1001 noites” 22:“Palácio de pinturas Apostarei meu jardim de prazeres contra o seu Palácio De Pinturas”; “Jardim dos

19 O assunto que trata dos bateristas que tocaram com Gismonti em seus discos, também deveria ser assunto de um estudo mais aprofundado. Neste trabalho não foi possível realizar constatações mais específicas sobre a importante contribuição que estes deram na consolidação da sonoridade do músico. 20

http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Disco=DI00908.

21 “O academia de danças ou seja, 85% deste disco foi gravado em dois dias em duas sessões de seis mais seis horas com uma hora de descanso, porque tinha que tocar. Quer dizer, o primeiro dia, que não conta como gravação ninguém gravou, porque o Mario Tavares ficou 6 horas lendo as partituras, mexendo no arco, corrigindo, etc. E ninguém gravou nada primeiro dia. Na hora que senta pra tocar, mete o cacete e vão embora”.

22 A escolha destes nomes não parece ter nenhuma razão em especial. Sabe-se que Geraldo Carneiro ocasionalmente estava folheando o livro enquanto se realizavam as gravações e incorporou as sugestões às faixas registradas.

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prazeres. Suas núpcias foram celebradas naquele mesmo dia”; “Celebração De Núpcias. Então ele resolveu pensar na coisa toda como se fosse um sonho”; “A Porta Encantada. Para isso, disse o pássaro, vá de manhã cedo ao parque e descobrirás mais pérolas do que necessitas e “Scheherazade. Diga apenas a palavra e tudo estará mudado”.

“Eu entrei numa que o disco tinha dois blocos de música; um era o bloco chamado "Academia de Danças", que eu achava que era quase um jingle, lado 1, um negócio bem dançável, bem não sei o que. E o lado 2, era um lado, que depois virou um disco chamado Corações Futuristas, onde eu estava achando que a vida estava ficando muito complicada. Ai eu disse: "Geraldo, este disco tem dois lados.." (...) Resumo da ópera é que eu não sei se foi ele se fui eu, ou se foi alguém, que sugeriu que um lado chamasse Academia de danças e o outro por falar da tristeza que a gente estava prevendo, sentindo, que era futurista, mas como era tudo muito afetivo, era o coração futurista. corações futuristas é isso”. (GISMONTI, Entrevista concedida ao som do Vinil, 2015)

O ideal sonoro de Gismonti se distanciava de certa forma dos critérios de segmentação de gêneros da época. A concretização artística se dava principalmente a partir de uma “idéia” e de um “processo” que afortunadamente encontravam condições propícias para se materializar, na medida em que a gravadora Odeon ainda possibilitava estes tipos de experiências:

“Este próximo disco da Odeon, ou vai ou racha, porque neguinho não vai deixar eu gravar mais". Vou fazer deste disco o meu sonho ideal que é o seguinte. Eu vou aproveitar cada segundo do disco, não vou ter nem pausa no disco, vou fazer uma música só, e vou misturar alhos com bugalhos, vou botar tudo o que me ensinaram junto" (IDEM)

Academia de Danças representa, na história de Egberto, um de seus trabalhos

mais contundentes em relação ao “hibridismo” de gêneros e tipos de experimentos musicais. As melodias líricas ao estilo das canções de Água e Vinho e as experimentações orquestrais semelhantes às do disco Árvore, eram agora conjuradas num emaranhado de citações e elementos mais “populares” e “abrasileirados” retirados muitas vezes não só do populário regional como das raízes mais profundas brasileiras, a música indígena. Tudo isto era também capturado e absorvido por um sistema tecnológico de gravação ainda incipiente, mas que possibilitava um tipo de

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experimentação em estúdio que não seria possível em qualquer outro período histórico posterior. 23

Não obstante, se a liberdade do processo abre espaço para um “caos” sonoro esta mesma liberdade foi amparada sobretudo pela organização composicional de Egberto. As partes de Academia de Danças foram previamente escritas e programadas. Mauro Senise, saxofista que também participou da gravação, relata este procedimento: “O

Egberto como o grande compositor que é, chega já com a música pronta, né. Com arranjo pronto, agora, abre espaço pra gente poder criar em cima, né, que é também um requisito pro músico tocar com ele”. Geraldo Carneiro também aponta o nível de

exigência do trabalho: “As gravações eram muito sofisticadas, o nível de exigência

era grande, o Egberto era muito exigente, eu era um produtor também muito exigente".

Paradoxalmente, a quantidade de improvisos que vai surgindo em suas composições aumenta consideravelmente. Se distanciando do universo jazzístico, no qual normalmente a base de um discurso improvisatório se baseia na verticalização da estrutura harmônica, Gismonti constrói caminhos diferentes para a prática da execução em tempo real. Fornece assim, outros significados a seção de improviso, que incluem modificações texturais, ações quase que teatrais e cenários imagéticos, distanciando-se também do reconhecimento de uma seção de improviso apenas como uma exibição virtuosística do instrumentista. Suas improvisações circulam pela narrativa de maneira imprevisível e muitas vezes não demarcadas em inícios e finais de seções, como iremos ver em exemplos futuros deste trabalho. Sobre a improvisação Gismonti afirma: “nesta época eu tinha dúvidas de quanto de

improvisação a música que eu fazia devia conter”. Ao mesmo tempo estes tipos de

decisões conjuntamente com sua disponibilidade para receber as contribuições individuais dos músicos, demandavam de Gismonti recriações de suas próprias escrituras:

“Então, quando a cozinha ficava armada e o Robertinho dizia: "melhor maneira de tocar isso é tocar no chão, isso que você está propondo não fica confortável”. – “Então mostra o que fica confortável”. Aí o cara vai e mostra. Então vamos lá, vamos

23

Gismonti cita o técnico de som Toninho como grande responsável pelos efeitos; 1976, com o disco Corações Futuristas a utilização dos sintetizadores se torna mais ostensiva. O músico lembra também que na época a Odeon trabalhava com poucos canais: “a gente trabalhou com duas Max Studer de dois canais. Orquestra e conjunto sentaram a pua em dois canais depois os solos saíram de uma máquina pra outra e foram acrescentados”

Referências

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