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Com a comparação entre as duas versões de “Janela de Ouro”, composição presente nos álbuns Sonho 70 (1970) e Água e vinho (1972), poderemos constatar que o formato canção da segunda versão se apresenta numa forma reduzida e menos repetitiva no que tange a ordenação e recorrência das seções. No entanto, não se perde o fio condutor de sua ambientação sonora, amparada em primeiro plano por uma textura que utilizará de elementos rítmicos regionais e a sonoridade do modo mixolídio. Iniciemos observando a forma da primeira versão da composição na tabela abaixo.

Tabela 4 - Forma da primeira versão de “Janela de ouro” do álbum Sonho 70 (1970)

0:00 – Introdução – 14 compassos (baixo pedal em dó)

0:27 – Introdução – 6 compassos (convenção que alterna ¾ e 4/4) 0:39 – Introdução – 10 compassos (groove – blues região de C) 0:58 – Seção A – 16 compassos

1:28 – Seção A – 16 compassos

2:00 – Interlúdio – 12 compassos (solo de piano)

2:24 – Seção A – 17 compassos (groove de funk – distribuição dos contracantos) 2:56 – Ponte – 16 compassos (groove baixo pedal em dó

3:27 – Seção A – 10 compassos (só elaboração e segmento cadencial) 3:47 – Seção A – 16 compassos

4:17 – Coda = Ponte – Fade out

A primeira versão de “Janela de Ouro” possui uma Introdução de quase 1 minuto que divido em três momentos distintos. Num primeiro momento, ouvimos um baixo pedal na nota dó junto a um crescendo de dinâmica numa ampliação da densidade textural através do acúmulo sequencial de diferentes timbres: contrabaixo e percussão primeiro, piano, violão e por último o naipe de cordas. É importante perceber a função que desempenham as cordas anexadas por último na seção, adensando a textura e enfatizando o clímax harmônico (junção de segundas maiores e menores) até os 28 segundos desta seção inicial.

Em sequência, o trompete executa uma frase melódica harmonizada pelo piano em uma distribuição quartal. É importante reconhecer a polarização da sonoridade de dó maior no começo e a chegada em um acorde de mi maior. (movimento horário no ciclo das quintas). A pequena frase constituída de dois compassos, caracterizando assim uma métrica ímpar neste fragmento, se repete três vezes até o início do groove característico aos 39 segundos da gravação.

Exemplo 15:Fragmento da Introdução da primeira versão de “Janela de Ouro” (1970) – (piano e trompete) - (0:29-0:32)

A partir dos 39 segundos ocorre uma terceira “ruptura” mais brusca em relação aos dois outros momentos; estabelece-se a condução rítmica de contrabaixo e bateria no groove característico sobre o acorde de dó com sétima menor (C7) sobre o qual são executadas as frases melódicas distribuídas em combinações instrumentais de piano + flautas ou piano + contrabaixo.

Para explicarmos melhor os 16 compassos da Seção A, recorreremos aos modelos-padrões de construção de oito compassos presentes na tese de Sérgio Freitas, de forma a relacioná-lo com o modelo “formato híbrido” (início da sentença e consequente do período), apresentado no exemplo abaixo: (FREITAS, 2010, p. 618)

Exemplo 16: “Formato híbrido”

Dentro deste período de 16 compassos chama-nos a atenção o caminho da harmonia, que parte de um acorde de C7 no inciso 1 (a) até se transformar em uma cadência frigia sobre sol no segmento cadencial (d), finalizando em um acorde de sol que atua como dominante da tonalidade inicial. O segmento de contraste é construído sobre uma frase descendente formada pelas notas da escala de dó eólio. O shuttle entre os acordes de lá bemol (Ab) e si bemol (Bb) durante a elaboração e sequência (d) faz o intermédio entre a região de dó eólio e sol frígio: se visto através deste segundo modo temos um shuttle frígio entre seus bII e bIII (segundo e terceiro graus maiores). A partir de 1 minuto e 28 segundos repete-se esta Seção A, agora com a melodia a cargo da flauta e voz feminina.

Exemplo 17: Seção A da primeira versão de “Janela de Ouro” (1970) – (piano e melodia principal)

b)Segmento de contraste (1:07 – 1:12)

c) Elaboração e sequência (1:12 – 1:20)

d)Segmento Cadencial (1:20 – 1:29)

A partir dos 2:00 da gravação observamos uma seção contrastante em relação à densidade textural, a que dei o nome de “Interlúdio”. Nela, um solo de piano sobre intervalos de sextas paralelas sofre intervenções do violão em forma de ataques curtos em segundas menores. Toda a seção tem um sentido crescente, tanto no que concerne à dinâmica como na textura do arranjo. Observo que, novamente, as cordas atuam como expansoras da textura e do clímax das seções.

A terceira exposição da Seção A pode ser explicada como uma redistribuição dos elementos já apresentados entre os instrumentos disponíveis, diferenciando a textura do arranjo pela alteração timbrística. Consideramos que na primeira exposição tínhamos:

1-melodia principal (ora interpretada por voz masculina e trompete, ora por voz feminina e flauta)

2- linha do contrabaixo como contracanto desta linha. Na segunda exposição temos a modificação nos:

Inciso 1 (a) a melodia se divide entre voz masculina e violinos + voz feminina e violão, enquanto contrabaixo, piano e percussão atuam com o groove característico do

funk.

Segmento de contraste (b) temos apenas a saída do contrabaixo do groove para retornar ao apoio com o contracanto, ainda realizado pela voz masculina e violinos. Elaboração ou sequencia (c, onde se encontram os shuttles entre bII e bIII) a divisão permanece até o segmento cadencial onde todos os instrumentos se encontram em textura homofônica.

Na seção que denomino “Ponte” podemos ouvir o groove do contrabaixo servindo de base para a levada funkeada do piano e da bateria. A dinâmica crescente da seção contribui para o destaque do contrabaixo; seu riff é claramente construído sobre a escala blues de Dó.

Exemplo 18: Riff do contrabaixo da “Ponte” da primeira versão de “Janela de Ouro” (1970) - (2:59 – 3:07)

Ainda durante a “Ponte”, voz masculina e feminina executam em uníssono o início do Inciso I, que consiste na repetição da nota dó. No 11ª compasso, aos 3:16, ouvimos a exploração de quatro regiões diferentes com as cordas, que realizam um pequeno ataque de efeito crescente sobre as notas dó-mi-solb-sol, enfatizando a sonoridade da escala blues de dó.

A partir dos 3:27 temos o retorno à Seção A, que parte do final do formato híbrido – do segmento de elaboração e sequência + segmento cadencial. Importante enfatizar que estes segmentos, os quais antes totalizavam 8 compassos, são estendidos para 10, resultando num prolongamento de seu efeito resolutivo. É importante notar também que, até agora, todas as “Seção A” tiveram um sentido decrescente de dinâmica.

Na última apresentação da “Seção A”, a melodia principal é igualmente dividida entre voz masculina e voz feminina, atingindo novamente a textura homofônica (canto em terças) a partir do segmento de elaboração e sequência e também durante o segmento cadencial. O arranjo termina em fade-out com a reiteração da seção “Ponte” com uma única adição no 4º tempo de cada compassos; nele podemos ouvir um ataque curto do naipe de cordas sobre um acorde de C7sus4.

Interessante notar, que mesmo se utilizando de uma sonoridade “monumental” que aproveita de um registro erudito para a construção de suas seções “Janela de ouro” (também por não estabelecer uma relação de seus parâmetros internos com uma letra, como sugerido em “O sonho”) aproveita mais das combinações timbrísticas, da densidade textural e da dinâmica de seu arranjo como recurso para a distinção dos “momentos” da composição. Passemos em seguida para a análise da segunda versão da composição.

Tabela 5 – Forma da segunda versão de “Janela de ouro” (canção) do álbum

Água e vinho (1972)

0:00 – Introdução – efeito das cordas 0:17 – Introdução – 6 compassos 0:27 – Seção A – 17 compassos

0:59 – Seção A - 17 compassos (cordas efeitos) 1:21 – Seção A - - 17 compassos

2:00 – Ponte estendida – 23 compassos

2:41 – Coda Final – 23 compassos (solo de piano) 3:24 – Fim – efeito das cordas

Nesta segunda versão a composição se transforma em canção ao receber a letra de Geraldo Carneiro.48

48Não quero mais o cheiro de dor/ a confusão, os dias febris/descobrir um país na manhã/ ao som dos sinos de metal/ na vila do mar/ não sabia quanta chuva e sol/ eu trazia entre as minhas mãos/ Eu esperei a pedra gritar/ a espada e a cruz não sabem por que/ o suor, os dragões da manhã/ e o mistério do sertão/no país do sol/ acho o rastro da destruição/ e essas serras não me enganam mais/ Não quero mais o mofo e o pó/ a cicatriz perdendo suor/ traição e clarins na manhã/ ao som dos sinos de metal/ na vila do mar/ não sabia quanta chuva e sol/ eu trazia entre as minhas mãos/ Cheirando a mar/ a traição/ cheirando a mar/ a traição/cheirando a mar/ a traição.

O primeiro aspecto para o qual chamo a atenção é a instrumentação desta gravação. Enquanto na primeira tínhamos o naipe de cordas, trompete, flauta, piano, contrabaixo, bateria, vozes (masculina e feminina) e violão, nesta observamos a redução dos instrumentos disponíveis, num conjunto de piano/sintetizador, bateria/percussão, contrabaixo e naipe de cordas.

A Introdução, que antes foi dividida em três momentos distintos é agora separada em duas partes bem distintas. Inicia com um baixo pedal em dó realizado pelas cordas mais graves enquanto as cordas mais agudas espalham notas aleatórias num trêmolo crescente, culminando num corte de sonoridade brusco em direção a segunda parte da Introdução. Nela, o groove característico que dará o “sotaque funkeado” à linguagem realizada por piano e contrabaixo assemelha-se à primeira gravação na sugestão do gênero, mas difere-se consideravelmente na distribuição das notas e na ênfase rítmica das figuras. O sintetizador executa uma descida melódica sobre as notas da escala de dó mixolídio e é na sonoridade deste modo que Gismonti abrigará quase todo o arranjo.

A melodia da Seção A (seção que se repete consecutivamente três vezes) permanece igual à primeira versão, cantada pelo próprio Egberto Gismonti. O sintetizador executa um contracanto no segmento de contraste do tema, encaminhando-se para uma textura homofônica no “segmento de elaboração e sequência” e no “segmento cadencial”.

É cada vez mais evidente que o piano de Gismonti, assumindo um papel proeminente na “levada” da composição, aumenta sua atividade rítmica. Seus ataques curtos e precisos passam a enfatizar cada vez mais a função percussiva deste instrumento. Observamos também a modificação da harmonia pela adição das sétimas nos acordes, bem como do acorde “sus4” dos primeiros compassos. Demonstrarei a distribuição da mesma forma que a versão anterior; distribuindo as 4 partes do modelo do formato híbrido:

Exemplo 19: Seção A da segunda versão de “Janela de Ouro” (1970) - (contrabaixo, piano, sintetizador e voz)

a) Inciso I (0:28 – 0:35)

c) Elaboração e sequência (0:38 – 0:47)

d)Segmento Cadencial (0:48 – 0:58)

Na segunda e terceira vez que a “Seção A” é executada ouvimos uma intervenção do naipe de cordas sobre o inciso 1 da melodia muito semelhante ao gesto musical que apareceu na primeira parte da Introdução. No entanto vale lembrar que as cordas se afastam de sua função de adensamento da textura e clímax harmônico que assumiram na primeira gravação.

Ao invés da Seção “Ponte” da primeira versão, “Janela de Ouro” em sua forma canção propõe uma seção estendida deste trecho, que não se mostra nem como um improviso fechado sobre determinada quantidade de compassos, nem como uma

seção intermediária. Inicia com Egberto repetindo a nota dó em alturas diferentes sobre as palavras “cheirando a mar, a traição” até dar espaço à interferência dos instrumentos de percussão que ainda não haviam aparecido (como o apito, o caxixi e o triângulo).

A transcrição e reutilização de alguns gestos musicais da Introdução da primeira versão de Janela de Ouro são inseridos aleatoriamente neste espaço experimental, como a descida cromática em segundas menores que nos remete à utilização das mesmas segundas na Introdução da primeira versão ou o padrão repentino do arpejo descente dos acordes C7(9) e Bb7(9), semelhante ao padrão em quartas em semicolheia (que, se pensados em termos de notas de acorde são montado sobre fundamental, quarta e sétima menor de um acorde de C7, por exemplo).

A ambientação rítmica da bateria fornece um pano de fundo contínuo às “interações conflituosas” dos novos timbres e da reutilização dos elementos da versão anterior, revelando que Gismonti “abusa da integridade do texto inicial”, subvertendo a posição dos elementos no arranjo.

Exemplo 20: Introdução da primeira versão de “Janela de Ouro” (1970) - (contrabaixo, piano e violino) - (0:17 – 0:28)

Exemplo 21: Introdução da segunda versão de “Janela de Ouro” (1972) – (voz, notas das cordas, piano e contrabaixo) - (2:09 – 2:19)

Exemplo 22: Arpejos na Introdução da primeira versão de “Janela de ouro” (1970) - (0:08-00:09)

Exemplo 23: Arpejos no Improviso da segunda versão de “Janela de ouro” (1972) - (3:16)

Ainda sobre a Ponte estendida, sobrepõem-se as figuras rítmicas da percussão (principalmente triângulo) realizando um ritmo do baião, junto ao groove mais “fechado” de piano e contrabaixo. Egberto parece não abrir mão do recurso de sextas paralelas no solo de piano, agora construído sobre uma melodia sincopada em dó mixolídio, que permanece nos remetendo ao universo da música nordestina.

Exemplo 24: Primeiro momento do improviso da segunda versão de “Janela de Ouro” (1972) – (Sintetizador, piano e contrabaixo) - (2:23 – 2:31)

Em um segundo momento da seção “Improviso”, que tem início em 2:41, aparece uma melodia que aparenta ser uma espécie de improviso escrito, harmonizada sobre os acordes do modo mixolídio.

Exemplo 25: Segundo momento do improviso da segunda versão de “Janela de Ouro” (1972) – (Sintetizador, piano e contrabaixo) – (2:41 – 2:49)

Em suma, pudemos observar importantes transformações musicais entre as duas versões da canção, distantes no tempo por apenas dois anos. Na primeira versão temos uma narrativa musical conformada na junção de longas seções que parecem manter a idéia de contrastes sob a distribuição dos elementos temáticos entre os instrumentos num arranjo de caráter “erudito” (termo entendido aqui como sessões pré-concebidas e distribuições de funções instrumentais pré-determinadas).

Por sua vez, a segunda versão se dilui numa sensação de repetição contínua de um groove, assumido apenas por contrabaixo e piano. Assim, mesmo que as seções sejam percebidas como distintas há um discurso unificado pela redundância da repetição de um determinado padrão, que gera o encadeamento de acontecimentos no arranjo. Elementos utilizados no arranjo anterior se apresentam de forma livre na improvisação, demonstrando que Gismonti vai construindo um vocabulário musical próprio a partir de um contato vivo e provocante do material pré-existente.

Egberto parece também sedimentar procedimentos pianísticos que farão, num futuro, parte de sua linguagem como solista no piano (caso dos solos de piano sobre melodias abertas em sextas paralelas).

O pensamento harmônico constrói-se na região de Dó mixolídio, excluindo de sua expressão boa parte das referências à escala blues da primeira versão. Observa-se com esta escolha que não se abandona a sugestão tonal da primeira versão, mas a amplia e subverte de acordo com o sentido empregado, que é a relação da composição com um universo mais próximo à linguagem musical “abrasileirada” resultando, em certa medida, num discurso que trabalha com uma dose de ambiguidade.

Embora a harmonia da “Seção A” seja quase a mesma, observamos uma substituição sutil mas importante; o acorde de Eb7M substitui o acorde de Bb no que chamei de shuttle frigio ou eólio (Ab – Bb em Dó eólio é bVI e bVII, em Sol frígio é bII e bIII) (Ab – Eb7M em dó eólio é bVI e bIII e em Sol frígio é bII – bVI). Esta substituição reduz a sonoridade mais “pop” causada pelo bVI e bVII ao mesmo tempo que não deixa tão explícita a relação com a sonoridade do modo sol frígio. No mais, é bastante clara a intenção “mixolídia” que circunda todo o arranjo da segunda versão, aproximando-a harmonicamente de um caráter mais regionalista.

Por último, é interessante notar que a presença do naipe de violoncelos (é importante citar que neste disco Gismonti teve a participação da Associação Nacional dos Violoncelistas, fundada pelo maestro Mario Tavares) deu um caráter bastante personalizado aos arranjos. Neste caso, as cordas assumiram uma função completamente distinta daquela que desempenharam na primeira versão, incluindo execução de tremolos, repetição sincopada de notas (nada comum para instrumentos de cordas) e exploração de harmônicos, abrindo-lhes as possibilidades sonoras experimentais.

É possível dizer que há uma reorganização de uma ordem primária de códigos utilizados na primeira versão para a segunda versão, fazendo com que Gismonti

“redefina a definitude do seu objeto artístico”, ampliando-lhe o campo de possibilidades interpretativas sem, no entanto, deixar o ouvinte à deriva de suas próprias impressões, o dirigindo, na segunda versão, para um universo poético em que se destacam a textura rítmica dos instrumentos (principalmente do piano) e a incitação de um ambiente mais regionalista.

Capítulo IV