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Considerações sobre os resquícios do “nacional popular” nas faixas

Reafirmando o caráter contraditório e complexo da MPB, nos discos de Gismonti, especialmente no primeiro, podemos apontar a presença de alguns elementos associados à “nacional-popular” da música popular brasileira.

Especificamente sobre sua relação com o violão, Egberto aponta a figura de Baden Powell como uma de suas grandes referências. Em entrevista dada ao Pasquim, o músico afirma a importância de Baden em sua formação:

“O melhor violonista é o Baden, tanto pelo que ele toca como pelo que ele é com o violão. Por que se não existisse o violão de Baden, não existiriam hoje seis ou sete ótimos violonistas que tocam de forma diferente, mas que vieram do Baden. Eu fui um, que estudava violão ouvindo o disco do Baden. Mais tarde, com mais conhecimento, eu fui me libertando.” (CABRAL, 1971, p. 22)

É sabido que durante a chamada 2ª fase da Bossa Nova os afro-sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes demonstraram uma orientação nacionalista que, embora não tenha rejeitado as transformações musicais ocorridas na Bossa Nova, se

voltaram às raízes folclóricas e às formas musicais regionais, formatando outro estilo capaz de veicular as idéias da corrente nacional popular. A marca destes afro-sambas são suas leituras particulares dos temas regionais (pescadores, luta, capoeira, práticas religiosas afro-descendentes) que divergem da idéia de um povo que se une solidariamente para combater as injustiças sociais; antes isso, propõem a figura mítica e sobrenatural destes personagens regionais, marcados pela força e resistência. (NAPOLITANO, 2001, p.88).

O primeiro fonograma do álbum Egberto Gismonti, intitulado “Salvador” é uma peça para violão acompanhada apenas por percussão e contrabaixo (remetendo as gravações de Baden que têm exatamente esta formação) que aparenta estar pautada harmonicamente, percussivamente e melodicamente na maneira de Baden Powell tocar. Na Introdução, uma célula rítmica formada por duas notas de caráter percussivo remete-nos a sonoridade típica do violonista ao representar o som do berimbau no violão.

Frases curtas de ataques vigorosos encadeadas entre dois acordes (Dm9 e Am9) permeiam a melodia, enquanto realiza-se um “bordão repetitivo do baixo como estrutura harmônica e de acompanhamento rítmico”. (SCHROEDER, 2006, p.99). Para o pesquisador Jorge Schroeder, Egberto estabelece um sentido muito próprio de tocar, que embora se baseie na sonoridade de Baden Powell, parece habitar “um mundo já praticamente beneficiado pelos borrões, pelas hachuras e pelas linhas indefinidas”. Em outras palavras, Egberto “toma a liberdade de montar um universo musical, uma proposta estética, que contém, ou pelo menos pressupõe, a possibilidade do excesso” (IDEM, p.88). As “grosserias” musicais de Egberto, sua maneira percussiva, agressiva, tracejada, sujeita a esbarros, cheias de bordaduras, repetições e frases curtas junto à retomada do estilo dos afro-sambas parece não mais estarem ligadas ao nacional popular no sentido de Baden mas sim a esta possível “estridência” específica da transição da década de 1960 para 1970. O que isto pode significar? Esta maneira de tocar, além de compactuar com uma concepção virtuosística trazida do universo da música erudita, ganha outra dimensão interpretativa, passando de uma “irreverência coletiva” - posicionamento em relação aos outros, ao povo, concepção de nacionalidade, presente na obra de Baden Powell - para uma “rebeldia individual”, nas palavras de Schroeder - onde a figura do instrumentista ganha peso na medida em que suas habilidades são enfatizadas sem necessariamente estarem ligadas a um projeto ideológico.

O samba intitulado “Pr´um samba” recebeu duas versões distintas: uma presente no álbum Egberto Gismonti de 1969 e outra no Água e vinho de 1972. Nos deteremos na primeira versão de 1969. Esta gravação conta com contrabaixo acústico, piano, violão, bateria e flauta. Seu andamento, sempre constante, funciona como um fio condutor para piano, contrabaixo e bateria, enquanto a flauta realiza linhas melódicas em contraponto com a melodia principal da voz. É interessante notar que durante a primeira parte da canção o contrabaixo toca as fundamentais dos acordes com o arco, deixando apenas para a bateria e para o violão a função rítmica e as acentuações da levada de samba. O piano também se limita a fazer apenas um acorde por compasso, seguindo certa estabilidade rítmica. Esta textura “horizontal”, longa e permanente do piano e contrabaixo contrasta com a levada segmentada, seca, do violão e da bateria que assumem as células rítmicas típicas do samba. Na segunda parte da canção, durante o solo de violão e voz e na reapresentação das Seções A e B, todos os instrumentos passam a uma execução mais rítmica e segmentada, enfatizando a levada característica do samba.

Desta forma, entre este jogo de horizontalidade e verticalidade, o arranjo parece dialogar com dois estilos diferentes; a bossa nova; através da contenção vocal de Egberto e da sutileza do contrabaixo, piano e flauta no arranjo e o samba mais “tradicional” do morro; através das levadas ritmicamente mais densas e fragmentadas. Com a letra47 não poderia ser diferente: seu conteúdo revela através de um lirismo exacerbado a agonia do compositor ao “procurar uma canção” que possa traduzir sua posição em relação ao mundo e seus discursos pré-existentes. O espírito temático do “tempo da delicadeza” lhe ronda os pensamentos, por isso, o poeta considera a alternativa de procurar na “lua, na morena, no amor” o tema principal para seu canto. No entanto, num desabafo repentino, confessa que está descrente no “meu povo que já não entende” que para se expressar através de um samba, basta-lhe um “cavaquinho rouco, uma flautinha e um violão”, reduzindo suas ferramentas expressivas na formação de um grupo de choro-canção. Sua agonia parece residir justamente no fato de não se encontrar no discurso solar da bossa nova nem nas artimanhas políticas do nacional-popular. Sua volta ao cavaquinho, flauta e violão, representa não uma

47

“Só de documento/eu carrego um coração/que anda espiando/ procurando uma canção/ Seja de lua/ de morena ou de amor, meu amor/ Falando mesmo francamente/ eu já estou descrente/ deste meu povo que já não entende/ que basta um pouco de carinho/ um cavaquinho rouco/ uma flautinha e um violão/Prum samba”.

retomada da tradição no sentido de afirmar sua supremacia, mas sim uma tentativa de fuga de um contexto atribulado onde nenhum discurso ideológico parece fazer mais sentido.

A canção “Atento, Alerta” em parceria com o letrista Paulo Sérgio Valle, gravada também por Maysa em seu LP homônimo de 1969, parece conter alguns traços reconhecidos como parte do vocabulário “nacional-popular” e dos “ganchos” chamativos das canções de festival. Com uma modulação repentina logo após os oito primeiros compassos da canção (de Ré para Mi maior), sua melodia e harmonia de início causam surpresa no ouvinte. No entanto, em uma espécie de “refrão”, logo após uma preparação do arranjo para um momento de crescendo apoiado sobre uma sucessão de acordes do tipo “sus4”, retornamos a um loop de acordes característicos do modo mixolídio. A sonoridade deste modo naquele momento histórico esteve bastante ligado às representações regionais da musicalidade nordestina em canções como “Ponteio” de Edu Lobo e “Arrastão” (Edu Lobo e Vinicius de Moraes). A linha melódica é dobrada pelos trompetes:

Exemplo 14: Refrão de “Atento, alerta” - Loop de acordes característicos do modo mixolídio - (0:54 – 1:01)

Assim como em “Pr´um samba”, momentos de uma escrita mais lírica de acompanhamento mais regular são contrastados com momentos mais chamativos e fragmentados, representados na letra pela mesma dificuldade do poeta em se encontrar em meio a tantos discurso: “Nem sei quem sou nesta vida/pensei que fiz neste mundo?/Eu sou gente/um ser consciente/ou sou um andróide?/que trabalha?/ vota em branco/vai ao banco?/vida, amor/ quem sou eu?”.

Para compreendermos o sentido desta letra, é importante lembrar que em 1967 o III Festival da Record marcava um momento de esvaziamento das fórmulas musicais impostas pelo mercado, ao mesmo tempo em que, no plano social, ocorria a radicalização política de setores de esquerda em oposição ao regime militar. (NAPOLITANO. 2001, p.143). Aos poucos, a perspectiva nacional popular, tanto a

perspectiva voltada para o “nacional” (samba) quanto aquela voltada para o popular (música folclórica, gêneros de raíz) começava a perder espaço para temas relacionados ao mundo urbano, a modernidade e às guerras (sobretudo com a influência das reações anti-guerra do Vietnã os Estados Unidos, e o despontar da contracultura). A estrutura musical das canções que participaram dos Festivais de 1968 começava a demonstrar uma influência pop mais intensa, enquanto os arranjos sofisticados enfatizavam o acompanhamento das orquestras destacando os naipes de cordas e de metais. Os temas das canções passavam a dar sinais de uma postura de resistência diante ao sistema, mas ainda não apontavam para qualquer proposta que não fosse a ação de cantar. (NAPOLITANO, 1968 apud GALVÃO, 2011, p. 230). Napolitano cita como principais temas destas letras a sensação de estranhamento em relação às paisagens urbanas, o desenraizamento, a ação e a luta. A letra de “Atento, alerta” demonstra justamente esta alternativa do poeta em resistir, porém, sem propor uma alternativa de ação concreta, valendo-se somente do “amor e da poesia”: “(...)Rompe com o mundo dos homens/forjo o meu próprio viver/faço do olhar um lugar amor, camará/ Lute você se quiser/eu fujo armado de amor/ armas de amante ansioso/brancas, polidas/ Eu sou desertor, desertei/Eu quero achar a poesia do mundo/ e o poeta que fez que a rosa rosasse/Fica em mim quem padece amando/ sobrepondo o amor(...)”.

Vale a pena citar mais um exemplo deste tipo de discurso, presente no primeiro álbum de Gismonti, intitulada “Pr´um Espaço”, letra de sua própria autoria. A figura do “cantador” aparece nos seguintes versos: “Já saudoso do tempo, beija- flor/ estou pronto, violão sou cantador/ porque mais tempo?/ vamos só cantar pro alto”. Sua ação volta-se apenas para o ato de cantar: “Violão no olhar vamos voar/procurar e achar(...)Talvez no espaço sobre estrelas/ Seja o lugar/ Voz, violão, coração vamos cantar(...)