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O signo de Medeia

Autor(es):

Filho, Cláudio de Souza Castro

Publicado por:

Centro de História da Universidade de Lisboa

URL

persistente:

URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23962

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O SIGNO DE MEDEIA

Numa época que parece em vias de encerrar um longo processo histórico de dessacralização da cultura (cujo maior sintoma talvez se manifeste na quase plenitude da evolução científico-tecnológica), soa mesmo paradoxal afirmar que um certo mito arcaico se encontra ain- da vivo e presente entre nós. Mas sabemos que essa mesma época, a nossa, está abarrotada de paradoxos, e que - pelo menos desde Freud, Jung e Lacan - a dimensão mítica, ritual, que nos conduz às mais remotas experiências da espécie humana, faz também parte de nossa psique. Talvez, e apenas talvez, seja este um caminho possível para compreendermos a ocorrência, de forma não tão invulgar, do cri- me filicida, em especial da mãe que assassina os próprios filhos. Tra- ta-se de uma infeliz realidade que, na esfera da violência e do sofri- mento, está, mais do que à inexplicável maldade humana, relacionada à problemática sócio-económica, ao crime passional, ao desespero emotivo, à perda da razão. No plano da ficção, a acção filicida con- duz-nos, quase imediatamente, ao mito grego de Medeia, que, em sua mais conhecida versão, matou os próprios filhos por vingança contra Jasão, seu marido perjuro.

É precisamente este o tema de uma singular publicação, coorde- nada por Emilio Suárez de la Torre e Maria do Céu Fialho, que chega às estantes em uma bem cuidada co-edição que uniu a portuguesa Univer- sidade de Coimbra e a espanhola Universidad de Valladolid. O livro, que celebra a boa convivência das duas expressões ibéricas, intitula-se duplamente como Bajo el signo de Medea - Sob o signo de Medeia, respeitando as singularidades idiomáticas de seus nove co-autores, entre os quais estão investigadores actuantes nas universidades que co-editam a publicação, bem como estudiosos da Universidad Nacional de Educación a Distancia (Madrid) e da Universidade de Lisboa.

Desde o texto de apresentação, Emilio Suárez de la Torre aponta algumas das ambiguidades trágicas que perpassam o mito de Medeia, especialmente em suas mais célebres versões teatrais, assinadas por

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Eurípides, na Grécia, e por Séneca, em Roma. Assim, há um catár- tico sobressalto que, sem dúvida, nos assoma e perturba frente ao fili- cídio perpetrado por Medeia, uma vez que nossa sensibilidade huma- nista reconhece como injusta uma vingança cujos maiores prejuízos

- a perda de duas vidas - recaem justo sobre aqueles - os filhos - que nada têm a ver com o conflito conjugal. Por outro lado, a dimen- são estética da obra de arte (isto é, a sua natureza ficcional) permite que, igualmente, nos comovamos perante 0 drama de Medeia, traída

por Jasão mesmo depois de, por amor ao argonauta, ter-se desgarrado por completo, cometendo, contra sua própria família, crimes os mais horrendos. E é por isso que, como observa La Torre, «desde Eurípi- des, pues, Medea es más que un simple personaje de teatro. Adquiere, por una parte, la categoría de símbolo (...) y, por otra, se convierte en objeto de valoración y reflexión sobre la conducta humana, la natura- leza femenina (...), la falta y la responsabilidad».

O capítulo inicial - intitulado «A Medeia de Eurípides e o espaço trágico de Corinto» - é assinado por Maria do Céu Fialho e, coerente- mente, começa por apresentar a singularidade da escrita euripidiana (génese do sucesso trans-histórico da fábula de Medeia) no tratamento do referido mito grego. Depois de mencionar ocorrências tantas da figura de Medeia em diversos autores da tradição antiga (Homero, Hesiodo, Pindaro, Sófocles, Néofron), Fialho destaca aspectos que o inventivo Eurípides tornou decisivos, antológicos, quanto ao carácter de Medeia: a inteira responsabilidade pelo filicídio, a personalidade estran- geira, a irredutibilidade (o thymos) de suas decisões, a forte humani- zação de sua psique. Mas a grande contribuição da autora, no que se refere a seu interessante recorte do tema euripidiano, está na inter- pretação da obra como documento histórico-cultural, observando que «Eurípides faz eco, na sua dramaturgia, de discussões filosóficas do tempo», como no que diz respeito a «uma problematização do confron- to identidade-alteridade».

Não são poucos os teóricos que compreendem, ou mesmo jus- tificam, as motivações políticas que norteiam o perjúrio de Jasão, entendendo a necessidade de o argonauta garantir, por meio do casa- mento com a princesa Glauce, os benefícios que uma efetiva cidada- nia corintia representaria para os seus descendentes. No entanto, Maria do Céu Fialho observa que a ira de Medeia por conta da traição de Jasão acentua-se justamente em razão da perplexidade com que a heroína euripidiana encara o erro (a hamartía) do marido, já que ele descumpre um compromisso fundado na lei grega, lei esta que Medeia,

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NOTAS E COMENTARIOS

uma estrangeira, tanto se esforçou para aprender. Nesse contexto, a acção de Jasão é vista como atitude hipócrita, de tal modo que Fialho enxerga aí uma crítica euripidiana às artimanhas do poder em sua época. «Não se trata de todo o grego, mas das figuras que represen- tam o poder ou a apetência pelo poder em Corinto», observa a autora. Sublinha-se então que, em Eurípides, «Corinto se esboça como um espaço trágico de dissonância entre quem detém o poder e quem habita a cidade».

A seguir, Juán Antonio López Férez - em seu artigo «Algunas notas sobre la Medea de Eurípides» - seleciona, na referida obra tea- trai, dezanove aspectos sintácticos e/ou terminológicos que Ihe cha- mam a atenção, e procura analisá-los em seus pormenores linguís- ticos, em especial no que se refere ao léxico. Além da esclarecedora abordagem etimológica alavancada por Férez em versos-chave da obra euripidiana, a leitura filológica que sua interpretação léxica de- sencadeia permite ao leitor adentrar, por singulares caminhos, o extra- ordinário universo de um poeta para o qual a escolha de cada palavra empregada tem uma plena razão de ser. Nesse contexto, o autor aponta recorrências anteriores - em Homero e Hesíodo, sobretudo - de inúmeros termos, provérbios e signos então utilizados por Eurí- pides em sua «Medeia»: ressaltam-se, assim, prováveis inspirações da escrita euripidiana, bem como as particularidades poéticas do último dos grandes trágicos, visto à luz da antiga tradição literária grega.

Observa-se, pois, que Eurípides incorpora à «personalidade» de Medeia elementos dela constitutivos desde as mais remotas versões míticas. O impulso amoroso aparece, em Medeia, como uma «herida en su corazón», ou seja, na qualidade de um sentimento que «no se ve como algo personal, voluntario y placentero, sino que, procedente de una divinidad, llega al mortal, y, luego, perfora y trespasa a su víc- tima». A invocação euripidiana a Hécate, deusa da feitiçaria e da adi- vinhação, dá conta de outro traço constitutivo do carácter mítico de Medeia. Segundo nos informa Férez, as estátuas de Hécate, «dotadas de triple cuerpo, o cabeza, eran colocadas en las encrucijadas de los caminos. Para algunos es la madre de Medea». Tantos indicios mito- lógicos nos remetem a uma situação pouco mencionada quando o assunto é Eurípides, qual seja, a ainda forte presença do sagrado em sua escrita teatral, mais conhecida por sua suposta psicologiza- ção das personagens. No rastro da autonomia individual que o poeta grego teria concedido a figuras como Medeia esteve a crítica que Nietzsche, já no século XIX, desferiu contra Eurípides, autor que o

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filósofo alemão pejorativamente qualificou de «socrático», por consi- derá-lo racional em demasia.

Delfim F. Leão contribui, já no terceiro artigo do livro, com uma minuciosa análise jurídica das relações familiares e sociais represen- tadas no drama euripidiano, destacando novos aspectos de uma abor- dagem de «Medeia» pelo viés da documentação histórico-cultural. No capítulo «Os desencantos de Medeia: uma xene privada de kyrios, de oikos e de polis», o autor entrecruza diferentes literaturas do contexto grego a fim de orientar um possível «julgamento» das plateias clássica e contemporânea sobre os impasses éticos e jurídicos com os quais nos deparamos quando diante da tragédia de Eurípides. As referências a documentos histórico-jurídicos (encontradas, por exemplo, em Aris- tóteles e Plutarco) servem como fontes de discussão sobre a situação política de Medeia e Jasão no que tange ao desenlace trágico a que lhes conduz Eurípides. Leão realiza tal análise com um rigor ímpar, e considera as diferenças entre o tempo histórico e pretérito representado em Eurípides - que nos conduz à situação ficcional de uma Corinto mítica - e 0 tempo outro dos espectadores que assistiram à represen-

tação de «Medeia» em Atenas, já na primavera de 431 a. C. Podemos agregar um terceiro núcleo a essa dupla temporalidade, confrontando as antigas dimensões éticas dos gregos com as nossas mais recen- tes concepções jurídicas, o que traz à tona, sem dúvida, a relevância do texto teatral euripidiano para discussões contemporâneas acerca da ética, da justiça, dos aspectos filosóficos que perpassam nossas relações familiares e, mais especificamente, matrimoniais.

O texto de Leão chama a atenção, também, pelo olhar dispensado à situação social da mulher grega, já que sabemos que a categoria plena de cidadão (polites), em especial no caso ateniense, era facul- tada prioritariamente aos homens adultos e livres, deixando de fora escravos, anciãos, crianças e mulheres. Apesar disso, não cabe por inteiro a ideia que por vezes fazemos da mulher grega, como se ela estivesse de todo isolada da vida pública citadina. Pelo contrário, em- bora juridicamente subordinada ao seu kyrios (pai, marido ou tutor), a mulher da antiga Atenas ia ao mercado, buscava água à fonte, fre- quentava o teatro, participava das cerimónias religiosas, contribuía com seu trabalho para a economia doméstica. Com relação à tragé- dia, Delfim F. Leão observa que o abandono de Medeia por Jasão (representando um divórcio unilateral, movido por preceitos eticamente contestáveis, ligados à ambição por poder), deixa a heroína numa si- tuação extremamente vulnerável. A estrangeira (xene) Medeia já não

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NOTAS E COMENTÁRIOS

pode retornar ao kyrios e ao oikos natais, uma vez que, por Jasão, de sua polis desgarrou-se, deixando para trás um passado de violên- cia e crime. Nas palavras de Leão, «este cenário ajuda a entender o isolamento de Medeia e (...) faria com que as palavras (...) em que expunha a sua extrema solidão fizessem todo 0 sentido para uma

plateia ateniense». E podemos, uma vez mais, acrescentar que fazem igualmente todo o sentido para uma plateia contemporânea.

O drama de Eurípides é ainda 0 assunto principal do quarto capí- tulo do livro, «Medea y la reflexión ética de la filosofía griega», assina- do por Maria del Henar Zamora Salamanca. A partir da ambiguidade que coaduna no carácter de Medeia a decisão deliberada, consciente, e a acção extrema, desmedida, a autora procura perceber o texto de Eurípides segundo uma perspectiva ética, sobretudo no que diz res- peito às relações entre a tessitura filosófica da tragédia euripidiana e

0 pensamento de Sócrates, que, como se sabe, era muito popular entre os atenienses da Idade Clássica, público original de «Medeia». Quando a heroína euripidiana, prestes a cometer o filicídio, afirma conscientemente «mi corazón es más fuerte que mis razonamientos» (w. 1079-1080), supõe-se que Eurípides ponha em cheque a tese socrática de que «el que es malo lo es por ignorancia». Sob tal as- pecto, a acção e o carácter de Medeia podem ser vistos como crítica euripidiana à racionalidade socrática, afinal de contas, ao contrário da ignorância, Medeia representa, de um lado, o conhecimento da per- suasão do discurso (com o qual ludibria Jasão e Creonte para perma- necer na cidade, ganhando tempo para executar sua vingança), e, de outro, 0 conhecimento da feitiçaria, herança familiar que a qualifica como uma mulher distinta por sua peculiar sabedoria. E, ainda assim, contrariando Sócrates, Medeia escolhe o mal.

Mas, segundo Salamanca, a situação dramática acima descrita dá margem a visões caricaturais da filosofia socrática, uma vez que o conhecimento ao qual Sócrates se refere ao opor ignorância e saber diz respeito ao conhecimento filosófico propriamente dito. Assim, as artes encantatórias apreendidas por Medeia não são consideradas, numa lógica socrática, esferas legítimas do saber. Eis que nos depa- ramos com um Eurípides socrático, tal qual o criticado por Nietzsche em O Nascimento da Tragédia, que vê no desconhecimento da razão filosófica a causa de danos irreparáveis.

Como se vê, é possível trespassar a escrita euripidiana, numa leitura ética, em diferentes direções e sentidos, o que ressalta a difi- culdade de lermos a escrita teatral pelo viés da tese moral de seu

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autor, uma vez que, na dinâmica dramática, cada personagem fala por si mesma, sem conseguir dar conta, por inteiro, daquilo que, suposta- mente, o autor quis dizer. Mais do que tomar, e impor, uma posição frente ao comportamento do homem grego, Eurípides evidencia um conflito que, sem dúvida, sensibilizou os atenienses de seu tempo, e que, ainda hoje, tem seus ecos audíveis - de um lado, temos o saber socrático, masculino e filosófico; de outro, 0 saber prático, feminino e

estrangeiro.

Ao chegar a Roma, depois de um rico percurso pelo universo euripidiano, 0 livro retira-se da cena teatral e adentra o espaço mítico-

-poético das Metamorfoses de Ovídio, já que é este o tema de Emilio Suaréz de la Torre, no artigo «Medeia em Ovídio: A magia como me- tamorfose». No intuito de apresentar um panorama geral da obra em questão, La Torre destaca o esforço ovidiano para que o poema, de carácter genealógico, «abranja desde a origem absoluta do mundo até a sua própria época», com destaque para a ideia de mutatio, funda- mento filosófico do poema, que diz respeito a «uma mudança que afeta o indivíduo e os demais seres, um processo que afeta o universo sem cessar, a realidade material e o tempo».

É nesse ambiente que aparece Medeia, que no relato de Ovídio ocupa praticamente o centro de toda a obra, da metade do livro VI até o início do X. É natural que, numa obra assente no princípio da transformação, a figura de Medeia ganhe considerável destaque, já que, como feiticeira, a personagem mítica domina, com suas próprias mãos, a arte de a tudo transmutar. Embora o espaço não seja teatral, dá-se, em Ovídio, a evocação de Baco - forma romana de Dioniso, deus grego do teatro, das múltiplas máscaras, dos ciclos de fertilidade - como divindade que, tal qual Hécate, ressalta a dimensão telúrica de Medeia. Em seus ritos mágicos, quando se põe descalça, com os pés no chão, Medeia «encerra uma metamorfose descrita nos termos que associam a terra e o corpo humano através de uma expressiva semelhança».

Ao ressaltar a magia como traço constituinte de Medeia, Ovídio suaviza os episódios de Corinto (que, em Eurípides, destacaram o crime filicida), restringindo-os a não mais que quatro versos (394- -397), e aponta (segundo La Torre, de forma negativa) para a situação da heroína em um outro status, diferente da humanidade que lhe con- ferira o tragediógrafo clássico. Desta vez, Medeia aparece com «um status intermediário, quase demoníaco, com elementos humanos e di- vinos ao mesmo tempo».

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NOTAS E COMENTÁRIOS

Já no capítulo «A sabedoria estóica: paixão e razão na Medeia de Séneca», José Pedro Serra destaca, com notável qualidade, a con- tradição essencial entre o pensamento estoicista - pautado na pers- pectiva racional do «recto juízo» - e a desvairada atitude de Medeia - personagem incendiada pelo «falso juízo» da paixão, isto é, pela irracionalidade que, destarte, a torna vulnerável ao crime. Ao confron- tar a obra teatral de Séneca com a perspectiva filosófica do próprio poeta romano, Serra traz à tona uma possibilidade a mais de compre- endermos as múltiplas transformações que a ideia de tragédia sofreu no decorrer da história ocidental, desde os gregos até à contempora- neidade. Cabe sublinhar que o tema da tragédia e do trágico - este compreendido como uma espécie de essência-mesma da tragédia, isto é, como aquilo «que faz de alguma coisa uma tragédia»<1) - é

assunto de outro importante estudo do mesmo autor, a tese Pensar o Trágico, publicada, em 2006, pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. No caso romano, o autor observa a particularidade das leituras públicas, que, àquela época, eram a maneira mais recorrente de apresentar as tragédias, «facto que acompanha a transferência do grande teatro da vida, do palco, como espaço exterior, para a mente, como mundo interior»®. Faz todo sentido, portanto, abordar a escrita teatral de Séneca - no caso, sua singular versão de Medeia - pelo viés filosófico, de maneira a com- preender a perspectiva estóica ali implicada. Segundo Serra, é prová- vel que a visão de Séneca sobre Medeia seja justamente o contrário da acção trágica ali desencadeada, que funciona, de acordo com a perspectiva moral do pensamento estóico, como exemplo condenável. Para os estóicos, «viver segundo a natureza, a razão ou a virtude são uma e a mesma coisa». A paixão que acomete Medeia, em sua infle- xível sede de vingança, aponta para uma espécie de apatia, «expres- são de uma serenidade fundada no recolhimento interior (...), propi- ciando um afastamento das circunstâncias do mundo».

Carmen Barrigón inicia seu texto, o penúltimo do livro, com uma entusiasmada declaração da actriz catalã Nuria Espert, que, em Julho de 2000, representava Medeia no Festival de Teatro Clássico de Mérida. Na dita entrevista, Nuria destacou a singularidade de um mito que, através dos séculos, foi multiplicando-se em incontáveis interpre- tações, muito influenciadas, sobretudo, pela visão que cada época concebeu sobre a natureza feminina e sobre o lugar social da mulher. É interessante recordar, agregando tal lembrança à referência trazida por Barrigón, que Nuria Espert, anos atrás, interpretou Yerma, de

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Federico García Lorca, em um suntuoso espetáculo encenado pelo argentino Victor García. Embora Lorca não tenha se debruçado diretamente sobre a lenda de Medeia, não há como não percebermos em sua tragédia da mulher estéril os ecos da heroína euripidiana, uma vez que 0 texto se encerra no seguinte verso: «¡Yo misma he matado a mi hijo!»(3). Eis aqui mais uma evidência da actualidade de

Medeia, mito cuja força de permanência, que se faz notar em seus múltiplos desdobramentos ficcionais, ratifica seu predicado de legítima tradição ocidental.

Mas o erudito tema de Barrigón, na verdade, aponta para as «Lee- turas alegórico-racionalistas de la leyenda de Medea», em que apre- senta e critica inúmeras interpretações exegéticas, calcadas numa visão alegórica do mito, desde a Antiguidade até ao século XVII. Segundo a autora, 0 alegorismo surge como uma necessidade da filosofia (Pitá-

goras, Heráclito) de explicar racionalmente o que no mito seria alvo de uma crítica exegética, isto é, a ocorrência do fantástico, do inve- rossímil, de uma ficcionalidade tal que a realidade é incapaz de sus- tentar. A partir dos Gregos, a interpretação alegórica do mito surge como «una manera de justificar la sabiduría del poeta», que «alude y revela verdades profundas ocultas tras un velo de metáforas, tras un ropaje embellecido por imágenes plásticas, que hay que interpretar y descifrar». Ainda na Antiguidade, as incontáveis exegeses alegóricas realizadas sobre o mito de Medeia chegam a ponto de contestar os fatos da narrativa, sempre com o intuito de obedecer um «racionalismo que rechaza lo maravilloso», nos diz Barrigón. É nesse contexto que Elio Téon (século II d. C.) nega que Medeia tenha cometido o filicidio, «pues esta desgracia no afectaba solo a Jasón, sino al mismo tiempo a ella misma, sobre todo, en la medida en que la mujer es más

vulnerable en los sufrimientos» [o itálico é nosso].

A cristianização foi um prato cheio para as leituras alegórico- -moralizantes que a Idade Média alavancou. Em meio ao fogo cruzado que separa céu e inferno, Medeia torna-se ao mesmo tempo figura santa e demoníaca. No poema anónimo Ovide moralisé, é comparada com São João Baptista, no que diz respeito aos seus milagrosos banhos rejuvenecedores, então equiparados ao rito baptismal. Já em Boccaccio, os pecados perpetrados por uma Medeia apaixonada por Jasão são cometidos em razão de uma influência demoníaca, tamanha a pressa que a princesa teve em entregar a sua virgindade ao argonauta.

A Renascença de facto faz renascer a negação da carga violenta intrínseca à narrativa grega, de modo que os exegetas a transformam,

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NOTAS E COMENTÁRIOS

mesmo, em benefício de seus ideais de virtude. Seguindo a mesma tradição, Calderón de la Barca, em Divino Jasón (composto em 1634) equipara Jasão ao próprio Cristo, tamanhas as provações que o mundo impõe ao Jesus argonáutico; já Medeia, no mesmo poema, é vista como a humanidade perdida, que só pode ser resgatada a partir dos valores eucarísticos.

As reflexões de Barrigón sobre a tradição interpretativa que vê no mito conteúdos alegóricos apontam o enfraquecimento da potência polissémica da narrativa tradicional, pois tal interpretação tenta fixar numa suposta verdade aquilo que, por sua própria natureza simbólica, dá margem a infinita disseminação de sentidos. Nas sempre bem- -humoradas palavras da autora, «el mito es indiferente a la veracidad de su mensaje como lo es el anuncio publicitario».

E pode-se dizer mesmo que «Bajo el signo de Medea - Sob o signo de Medeia» tem um final operístico, já que as adaptações do tema de origem grega para o teatro de ópera são o assunto do artigo de Carmen Morán Rodríguez e Enrique Pérez Benito, intitulado «Medea en la ópera». Este artigo difere-se dos demais sobretudo por seu carácter enciclopédico, privilegiando uma detalhada enumeração de várias versões operáticas que, desde o século XVII até aos dias atuais, puseram a tradicional heroína infanticida a cantar diante de uma orquestra sinfónica. Além de destacar o valor dramático do teatro operístico, muitas vezes valorizado apenas por suas qualidades musi- cais, os autores lembram ainda que, no que diz respeito à história da ópera, «en su origen se encuentra el descubrimiento de que (...) las tragedias griegas no eram declamadas, sino cantadas de principio a fin - tesis que hoy se ha probado falsa».

Em meio às muitas composições e encenações apresentadas pelo texto de Rodríguez & Benito, cabe destacar a figura de Maria Callas, cuja trajetória como prima donna, de certo modo, sintetiza o resgate e, ao mesmo tempo, a perpetuação do tema de Medeia na esfera operática. Foi o glamour de Callas que, sem dúvida, populari- zou Médée - música de Cherubini, libreto de Hoffman (cuja primeira encenação deu-se em 1797) -, ao interpretar a personagem-título nos anos cinquenta do século XX. Do século XIX, Callas levou ao palco a ópera Norma, de Bellini (libreto de Romani), versão moralizada do mythos de Medeia, na qual a heroína se arrepende do filicídio no justo instante em que pretendia cometê-lo. Mas parece mesmo que a definitiva marca deixada por Medeia em Callas (como se não bastasse a irónica semelhança de terem sido ambas, personagem e intérprete,

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abandonadas por um grego!) deu-se na magistral película de Pasolini, que recria de forma ao mesmo tempo fidedigna e autoral a tragédia de Eurípides.

Como se vê, Bajo el signo de Medea - Sob o signo de Medeia cumpre excelentemente seu propósito de apresentar - pela reunião de estudos aprofundados - uma visão global da trajectória de uma fábula que atravessou os séculos a fascinar plateias e a intrigar consciências. Trata-se, portanto, de um livro fundamental a quem queira familiarizar- -se ou aprofundar-se no tema, já que sua orientação multidisciplinar permite olhar Medeia por diversos ângulos. Fica, finalmente, a pergun- ta pelos desdobramentos do tema no século XXI, que já começa tão marcado por uma forte sensação de tragicidade, tragicidade esta cuja natureza Medeia pode sem dúvida nos esclarecer, e muito!

EMILIO SUÁREZ DE LA TORRE, MARIA DO CÉU FIALHO, coords., Bajo el signo de Medea/Sob o signo de Medeia, Valladolid/Coimbra: Universidad de Valladolid, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, 222 pp., ISBN 84-8448-395-9 (España); 972-8704-86-5 (Portugal).

Notas

<1) J. P. SERRA, Pensar o Trágico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a

Ciência e a Tecnologia, 2006, 68.

(2)Ibidem, 27.

<3> F. GARCÎA LORCA, «Yerma», in Teatro Completo v. Ill, 146, ed. y prólogo de Miguel García Posada, 4 vols., Barcelona: Contemporánea, 2004.

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