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O triunfo do formalismo

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Academic year: 2021

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O triunfo do formalismo

Am´ılcar Sernadas

Dep. Matem´atica, Instituto Superior T´ecnico, Universidade de Lisboa, Portugal SQIG, Instituto de Telecomunica¸c˜oes, Lisboa, Portugal

acs@math.ist.utl.pt

14 de Fevereiro de 2013

Resumo

N˜ao obstante o programa de formaliza¸c˜ao da Matem´atica proposto por David Hilbert ter sido abandonado ap´os os resultados negativos obtidos por Kurt G¨odel e Alan Turing, a l´ogica simb´olica e outros sistemas formais tˆem vindo a assumir papel cada vez mais determinante em diversos dom´ınios do saber, como se demonstra atrav´es de alguns exemplos paradigm´aticos. Conclui-se com a necessidade de rever a relevˆancia da l´ogica formal nas diversas ciˆencias e na forma¸c˜ao dos cientistas.

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Ningu´em contestar´a a importˆancia da l´ogica no trabalho do cientista. Afinal ´e essencial saber distinguir o racioc´ınio falacioso da inferˆencia leg´ıtima. Espantoso ´e verificar a pouca aten¸c˜ao que ´e dada ao assunto na forma¸c˜ao dos cientistas.

Mas o que me traz aqui hoje n˜ao ´e apenas lembrar o papel essencial da l´ogica na metodologia cient´ıfica. Pretendo ir bem mais longe, argumentando que a l´ogica simb´olica, em particular, e os sistemas formais, em geral, devem fazer parte da bagagem cultural de todo o cientista.

Ora a l´ogica simb´olica (ou l´ogica formal), criada no seio da matem´atica, nem na pr´opria matem´atica ´e hoje considerada como componente essencial do dia a dia do investigador.

Vale a pena uma pequena incurs˜ao `a hist´oria da matem´atica no s´eculo XX para recordar o motivo desta rejei¸c˜ao do formalismo pelos matem´aticos e mostrar que ´e um erro que ter´a prejudicado o desenvolvimento da ciˆencia em geral.

No dealbar do s´eculo XX, David Hilbert, preocupado com as quest˜oes pertinentes (todos se recordar˜ao do paradoxo de Russell) que estavam a ser levantadas sobre a coerˆencia da matem´atica, propˆos um programa de for-maliza¸c˜ao de toda a matem´atica assente nos princ´ıpios seguintes (conforme veio a detalhar j´a em 1920):

• adop¸c˜ao de uma linguagem (l´ogica dir´ıamos n´os) precisa e manipul´avel mecanicamente de acordo com regras formais (gramaticais e de in-ferˆencia) bem definidas;

• utiliza¸c˜ao dessa linguagem para escrever todas as asser¸c˜oes e dedu¸c˜oes matem´aticas;

• identifica¸c˜ao de um conjunto de asser¸c˜oes mecanicamente identific´aveis e obviamente verdadeiras que seriam tomadas como axiomas;

• demonstra¸c˜ao de que toda a asser¸c˜ao matem´atica verdadeira ´e de-riv´avel nessa l´ogica a partir dos axiomas (completude da axioma-tiza¸c˜ao);

• demonstra¸c˜ao de que nenhuma contradi¸c˜ao ´e deriv´avel nessa l´ogica a partir dos axiomas (coerˆencia da axiomatiza¸c˜ao);

• apresenta¸c˜ao de um processo mecˆanico (algor´ıtmico dir´ıamos n´os) para decidir da veracidade ou falsidade de qualquer asser¸c˜ao escrita nessa l´ogica (decidibilidade).

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V´arios matem´aticos contribu´ıram para o desenvolvimento de tal l´ogica a qual ´e hoje conhecida por FOL (do inglˆes First-Order Logic), a l´ogica de quantifica¸c˜ao de primeira ordem, cuja linguagem ´e actualmente uma autˆentica l´ıngua franca dos matem´aticos, mesmo daqueles que rejeitam a utilidade da formaliza¸c˜ao.

Quando Kurt G¨odel, em 1929, na sua tese de doutoramento, demonstrou o teorema da completude (repito, da completude) da l´ogica de primeira ordem, o caminho parecia estar aberto para formalizar toda a matem´atica. Vale a pena debru¸carmo-nos um pouco sobre o significado deste teorema da completude. Kurt G¨odel foi capaz de demonstrar que toda a asser¸c˜ao verdadeira sobre os conectivos l´ogicos (e, ou, n˜ao, implica¸c˜ao, etc.) e sobre os quantificadores (qualquer que seja, existe pelo menos um) era mecani-camente deriv´avel usando as regras da l´ogica de primeira ordem a partir dos seus axiomas. Este era j´a um resultado muito significativo pois toda a matem´atica tem por n´ucleo as propriedades dos conectivos l´ogicos e dos quantificadores.

Anos mais tarde, em 1936, Gerhard Gentzen provou, por meios pura-mente simb´olicos, a coerˆencia da l´ogica de primeira ordem, o que teria con-firmado a viabilidade do programa de Hilbert sen˜ao tivesse entretanto, em 1931, o pr´oprio Kurt G¨odel demonstrado os seus famosos teoremas da in-completude da aritm´etica (aritm´etica dos n´umeros naturais).

Ser´a de sintetizar aqui o significado dos teoremas da incompletude de Kurt G¨odel.

Uma vez demonstrada a completude do sistema formal desenvolvido para lidar com os conectivos l´ogicos e com os quantificadores, o passo seguinte seria provar a completude do sistema formal dispon´ıvel para capturar as verdades aritm´eticas (formaliza¸c˜ao em FOL da axiomatiza¸c˜ao de Peano).

O primeiro teorema da incompletude mostra que nem esta axiomatiza¸c˜ao de Peano nem qualquer outra coerente pode ser completa. Por outras pa-lavras, ´e imposs´ıvel obter por meios formais (simb´olicos) todas as verdades aritm´eticas.

O segundo teorema da incompletude diz respeito `a quest˜ao da coerˆencia: numa axiomatiza¸c˜ao suficientemente forte da aritm´etica n˜ao ´e poss´ıvel de-rivar como teorema a f´ormula que afirma a coerˆencia da pr´opria axioma-tiza¸c˜ao.

A estes surpreendentes resultados negativos juntaram-se ainda mais dois resultados de indecidibilidade: o de Alan Turing e o de Alonzo Church que trabalhavam na no¸c˜ao de computabilidade.

O resultado de Turing surgiu no contexto da sua tentativa de formalizar a no¸c˜ao do que ´e comput´avel (mecaniz´avel). Para o efeito introduziu m´aquinas

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de computar com acesso a mem´oria ilimitada (hoje conhecidas por m´aquinas de Turing) e concebeu uma m´aquina universal capaz de emular todas essas m´aquinas.

Estes resultados negativos levaram a comunidade matem´atica a abando-nar a ideia de formalizar a matem´atica.

Esta ´e a raz˜ao por que a maioria dos matem´aticos ignora e at´e rejeita a l´ogica formal. Mas, esta rejei¸c˜ao, rapidamente estendida a outros dom´ınios do saber, ´e um erro grave, como passo a justificar. Sen˜ao vejamos:

Embora a aritm´etica dos n´umeros naturais (com adi¸c˜ao e multiplica¸c˜ao) n˜ao seja axiomatiz´avel e portanto n˜ao seja decid´ıvel, entretanto foram iden-tificados v´arios fragmentos muito interessantes da matem´atica que s˜ao de-cid´ıveis. Por exemplo a aritm´etica elementar dos n´umeros reais e a aritm´etica elementar dos n´umeros complexos.

Mais, as t´ecnicas da l´ogica formal tˆem sido usadas para capturar partes significativas do que ´e verdadeiro no mundo dos conjuntos (sobre os quais toda a matem´atica assenta) e permitiram a demonstra¸c˜ao de alguns resulta-dos muito significativos, como por exemplo os resultaresulta-dos de independˆencia relativos ao axioma da escolha e `a hip´otese de cont´ınuo de Georg Cantor.

Na frente da formaliza¸c˜ao do que ´e comput´avel, as contribui¸c˜oes de Alan Turing e outros lan¸caram as bases da teoria da computabilidade e foram determinantes no desenvolvimento da tecnologia das m´aquinas de computar universais (que conhecemos hoje como computadores).

Entretanto, desenvolvimentos igualmente profundos na ´area das teleco-munica¸c˜oes, nomeadamente por Claude Shannon, estabeleceram os limites do que ´e transmiss´ıvel e lan¸caram as bases da teoria da informa¸c˜ao, outra pe¸ca essencial no estudo dos sistemas formais.

N˜ao insistirei no impacto econ´omico e social da tecnologia da informa¸c˜ao (computa¸c˜ao e comunica¸c˜ao) que alguns consideram ser mais uma revolu¸c˜ao industrial que mudou e continua a mudar completamente o modo como vivemos, talvez mais ainda do que as revolu¸c˜oes industriais anteriores.

Lembro aqui apenas que os computadores s˜ao m´aquinas formais e que as linguagens de programa¸c˜ao s˜ao linguagens formais. Mais, todo o utilizador de um computador ou de qualquer gadget electr´onico moderno (telem´ovel, etc.) interactua com esse equipamento usando uma linguagem formal. Toda a informa¸c˜ao guardada nos in´umeros sistemas inform´aticos e bases de dados em que assenta a vida econ´omica actual est´a escrita em linguagens formais. Portanto, no plano econ´omico e social estamos ditos: o formalismo che-gou, vai continuar connosco e certamente ainda teremos visto muito pouco do seu impacto nas mais variadas vertentes da actividade humana.

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for-mais (l´ogica simb´olica, linguagens formais, aut´omatos, sistemas de reescrita, etc.) no trabalho dos cientistas?

Uma coisa ´e certa. A larga maioria dos cientistas n˜ao aprende sistemas formais, como tais, nos bancos da universidade.

Os sistemas formais foram relegados para o canto das curiosidades pelos matem´aticos e, depois, pela comunidade cient´ıfica em geral.

Com excep¸c˜ao dos l´ogicos que trabalham em teoria de conjuntos ou teo-ria de modelos, os sistemas formais nunca chegaram a fazer parte da baga-gem dos matem´aticos, muito menos dos cientistas em geral, e s˜ao hoje em dia, como seria de esperar, componente da forma¸c˜ao apenas dos cientistas da computa¸c˜ao e dos engenheiros inform´aticos e electrot´ecnicos, a que se juntaram os linguistas computacionais, os bioinform´aticos e outros especia-listas.

Dos sistemas formais apenas a programa¸c˜ao de computadores, (ou pelo menos a utiliza¸c˜ao de sistemas computacionais) ´e cada vez mais instrumento de trabalho dos cientistas e tecn´ologos, pelo que este aspecto (e apenas este) tem vindo a surgir nos curricula universit´arios dos mais diversos ramos do saber. No entanto, este contacto com os sistemas formais ´e demasiado redutor. Por exemplo:

• Ser´a que um especialista em qu´ımica (que ter´a aprendido uma qual-quer linguagem de programa¸c˜ao e que usar´a rotineiramente o sistema Matlab ou equivalente) reconhece a gram´atica da linguagem formal das reac¸c˜oes qu´ımicas? Ser´a que ´e capaz de montar um sistema de reescrita para raciocinar sobre essas reac¸c˜oes?

• Ser´a que um especialista em gen´etica reconhece o ADN como um sis-tema formal? Ser´a que se preocupa se ´e poss´ıvel e ´util apresentar sem redundˆancia um determinado genoma ou apresent´a-lo com a re-dundˆancia necess´aria para obter um determinado grau de recupera¸c˜ao de erros?

• E qualquer deles ser´a capaz de verificar se o problema que tem entre m˜aos ´e decid´ıvel? E ser´a capaz de verificar se o problema ´e decid´ıvel em tempo ´util?

• Ser´a que um especialista em direito (que apenas ter´a aprendido l´ogica n˜ao matem´atica) avalia correctamente o impacto da formaliza¸c˜ao da lei (feita por outrem) a jusante do processo legislativo? Por exemplo, que jurisprudˆencia informa o engenheiro inform´atico quando programa o que est´a omisso no c´odigo fiscal?

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• Ser´a que um cardiologista saber´a que um algoritmo de compress˜ao lhe pode poupar muitas horas de an´alise de cardiogramas, permitindo que concentre a sua per´ıcia nos casos patol´ogicos?

• Ser´a que um music´ologo saber´a que um algoritmo do mesmo tipo pode agrupar rapidamente trabalhos musicais nos diversos estilos ou distin-guir int´erpretes?

Estes exemplos ilustrar˜ao a importˆancia dos sistemas formais no trabalho dos cientistas de diversas ´areas.

Mas, ao cientista n˜ao bastar´a saber usar m´aquinas formais (computa-dores). O seu conhecimento dos sistemas formais ter´a de ser bem mais substantivo e profundo para que possa entender e responder a perguntas do tipo: O que ´e decid´ıvel? O que ´e semidecid´ıvel? O que ´e comput´avel? O que, sendo comput´avel, o ´e em tempo ´util? O que ´e compress´ıvel? O que ´e transmiss´ıvel sem erros? Ou melhor, com recupera¸c˜ao de erros? O que ´e poss´ıvel aprender? O que vale a pena reorganizar? O que ´e poss´ıvel demonstrar com transferˆencia nula de conhecimento?

Concluo que ´e urgente reavaliar a importˆancia dos sistemas formais na forma¸c˜ao do cientista.

A recente fus˜ao da UL e da UTL d´a-nos a oportunidade de, no con-texto de uma verdadeira universidade, abrangendo todos os dom´ınios do conhecimento, retomar esta quest˜ao.

Fa¸co votos para que o futuro n˜ao nos possa acusar de (mais) uma opor-tunidade perdida. Fa¸co votos que, pelo contr´ario, a alargada UL decida educar cientistas, nos diversos ramos do saber, que dominem o “formal” e o saibam colocar ao servi¸co das suas especialidades.

Referências

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