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Ciclo econômico global e vulnerabilidade externa estrutural do Brasil. Reinaldo Gonçalves 1 Versão

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Ciclo econômico global e vulnerabilidade externa estrutural do Brasil

Reinaldo Gonçalves1 Versão 07.08.2012

A fase ascendente do ciclo econômico internacional implicou melhoras expressivas nos indicadores de vulnerabilidade externa conjuntural da maioria dos países no período 2003-07. Nesta fase houve crescimento significativo da renda, exportações e reservas internacionais. O Brasil também se beneficiou deste ciclo e, portanto, os indicadores convencionais apontam claramente para melhora da situação conjuntural externa do país (Carcanholo, 2010; Filgueiras et al, 2010). Este é um fato inegável. O resultado é que a maior parte dos analistas se precipitou e afirmou que, frente fatores desestabilizadores externos, a economia brasileira encontrava-se “blindada”. Aliada à precipitação há a incapacidade de se distinguir entre vulnerabilidade externa conjuntural e vulnerabilidade externa estrutural. É como se um cidadão que sofre de doença grave tivesse reduzida sua febre e, em conseqüência, médicos se precipitassem a afirmar que o doente tem “saúde de ferro”.

Vale repetir, vulnerabilidade externa é a capacidade, em razão inversa, de resistência a pressões, fatores desestabilizadores e choques externos. Conforme discutido em outro trabalho (Filgueiras e Gonçalves, 2007, p. 35), vulnerabilidade externa conjuntural reflete a capacidade de resistência no curto prazo em função das opções de política e dos custos do ajuste externo. A vulnerabilidade externa estrutural, por seu turno, reflete a capacidade de resistência no longo prazo; portanto, ela expressa características estruturais da economia como: estrutura produtiva, padrão de comércio exterior, eficiência sistêmica, dinamismo tecnológico, robustez financeira e institucional.

O ponto central deste texto é a questão estrutural, especificamente a vulnerabilidade externa estrutural. O argumento é que, apesar de haver melhoras nos indicadores de vulnerabilidade externa conjuntural (principalmente até 2008), a vulnerabilidade externa estrutural da economia brasileira aumentou nestes primeiros anos do século XXI. Portanto, o país defronta-se com dois problemas: (i) custos

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elevados de ajuste externo; e (ii) menor capacidade futura de desenvolvimento econômico.

O texto é dividido em 4 seções. A primeira discute a tese acerca da blindagem da economia brasileira, ou seja, sua maior capacidade de resistência às crises internacionais em função da melhora de indicadores conjunturais. Contrario sensu, argumenta-se que o Brasil tem “blindagem de papel crepom” em decorrência da sua elevada vulnerabilidade externa estrutural. A segunda seção examina a evolução das contas externas do país, tanto os indicadores de fluxos como, principalmente, os de estoque, que são os mais apropriados para a análise de riscos futuros. Nela mostra-se a evidente deterioração dos indicadores externos após a eclosão da crise global em 2008. A terceira seção compara o retorno dos ativos brasileiros no exterior com o retorno dos ativos estrangeiros no país. O resultado principal é que Brasil tem um sério problema estrutural na medida em que o seu passivo externo tem custo (retorno para o investidor estrangeiro) que é muito maior do que o retorno dos ativos externos do país. Este fato incorpora um componente de déficit estrutural nas contas externas do país. A quarta e última seção apresenta síntese dos principais resultados da análise.

1. Deterioração das contas externas

Até meados de 2008, quando eclodiu a crise financeira nos Estados Unidos, a quase totalidade dos analistas brasileiros argumentava que o país havia reduzido significativamente sua vulnerabilidade em relação à economia mundial e, portanto, haveria blindagem em relação aos choques externos. Estes analistas eram incapazes de fazer a distinção entre: (i) vulnerabilidade externa conjuntural e vulnerabilidade externa estrutural; e (ii) desequilíbrios de fluxos e desequilíbrios de estoque. Alguns analistas mais afoitos, antes da eclosão da crise, trombeteavam: “a restrição externa que vem lá de trás, desde o começo dos anos 1980, está equacionada” (Tavares, 2005). O argumento era que o Brasil tinha concluído seu acordo com o FMI em 2005. Outros analistas, com base na evidência a respeito da acumulação de reservas internacionais, mesmo depois da eclosão da crise, persistiam em afirmar que o Brasil estava blindado. O destemor era tanto que acreditavam, no início de 2008, que a economia brasileira tinha “blindagem de aço” visto que “nossa moeda - já com seis meses de crise - é hoje uma das mais fortes e estáveis no mundo emergente. Nesse período, o real praticamente não se moveu” (Mendonça de Barros, 2008). Restrição externa equacionada, blindagem de aço: Retórica muita, acerto nem tanto!

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Naturalmente, havia exceções no minúsculo conjunto de analistas independentes. Fazendo a distinção entre vulnerabilidade externa conjuntural, comparada e estrutural, Filgueiras e Gonçalves (2007, p. 20-21) afirmavam que “os indicadores de vulnerabilidade externa conjuntural, que estavam com tendência de melhora desde a crise cambial de 1999, continuam progredindo durante o Governo Lula. Entretanto, não houve melhora na vulnerabilidade externa da economia brasileira comparativamente ao resto do mundo durante o governo Lula. Trata-se, aqui, da vulnerabilidade externa comparada, ou seja, de se analisar a evolução dos indicadores brasileiros em relação aos indicadores do resto do mundo. Ademais, as políticas do governo Lula tendem a reforçar o avanço de estruturas de produção e padrões de inserção internacional retrógrados, que tendem a aumentar a vulnerabilidade externa estrutural do país.”

Filgueiras e Gonçalves (2007, p. 225-226) vão adiante e também afirmam que “as circunstâncias internacionais favoráveis não são aproveitadas, pelo Governo Lula, para reduzir estruturalmente a vulnerabilidade externa do país. Muito pelo contrário, embalado por elevados superávits comerciais, o modelo liberal periférico (MLP) tem se mantido intacto, abrindo ainda mais a conta financeira do balanço de pagamentos. Assim, a eventual reversão da atual conjuntura – caracterizada por grande liquidez internacional e por uma fase ascendente do comércio –, que favorece enormemente as exportações de todos os países da periferia, inclusive o Brasil, terá impactos decisivos sobre a dinâmica da economia brasileira. Essa mudança, que poderá ocorrer a partir da desaceleração das economias americana e chinesa, cada vez mais articuladas comercial e financeiramente, terá um efeito desestabilizador tanto maior quanto mais frágil for a inserção internacional de cada país.”

A realidade mostrou que os otimistas estavam equivocados. Em 2008, entre o início de julho e o início de dezembro, a taxa de câmbio (R$/US$) saltou de 1,60 para 2,50. Ou seja, depreciação cambial de quase 60% - uma mega-desvalorização cambial – em poucos meses.

Na realidade, a crise de 2008-09 mostrou que a economia brasileira tinha “blindagem de papel crepom”. Aos primeiros sinais de crise o país experimentou os seguintes problemas: variação extraordinária da taxa de câmbio; PIB caiu 0,3% em 2009; valor das exportações diminuiu 23% em 2009; saldo das contas externas (transações correntes) saiu do superávit de U$ 2 bilhões em 2007 para o déficit de US$ 28 bilhões em 2008; o superávit da balança comercial já não conseguia cobrir o déficit

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da conta de rendas (salários, lucros, dividendos e juros) do balanço de pagamentos a partir de 2008; e grandes empresas e bancos tiveram problemas. Para ilustrar o forte impacto da crise global cabe mencionar que a Petrobrás (maior empresa do país) teve que recorrer a empréstimo de curto prazo junto à Caixa Econômica Federal para fazer frente ao aumento das despesas com compra de divisas estrangeiras e saldar seus compromissos externos. Ademais, bancos (Unibanco) e grandes empresas (Sadia, Votorantim, Aracruz, etc) tiveram sérios problemas ou quebraram.

A Tabela 5.1 mostra o desempenho relativamente fraco da economia brasileira no período 2003-12. A única exceção, que confirma a regra, foi o ano de 2010 quando, sob forte influência das eleições, o PIB teve forte crescimento via expansão do consumo (impulsionado pelo crédito), pelo gasto público e pelos investimentos. Assim, em 6 dos 10 anos do período a taxa de variação do PIB brasileiro foi inferior à média e a mediana mundial (painel de 182 países que compõem a base de dados do FMI). E mais, a média de crescimento econômico do Brasil (3,8%) foi inferior à média (4,3%) e à mediana (4,1%) da economia mundial. Vale destacar ainda que o Brasil, no ranking de 182 países (em ordem decrescente da taxa de variação do PIB) ocupou a 98ª posição tomando-se a média das posições nos 10 anos do período em questão. Ou seja, 84 países tiveram desempenho inferior ao do Brasil enquanto 97 países tiveram melhor desempenho. Portanto, pelos padrões internacionais o desempenho da economia brasileira não foi nem “ótimo” nem “bom” e, sim, sofrível ou fraco.

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No que se refere ao impacto da crise, o PIB brasileiro caiu 0,3% em 2009 enquanto, neste mesmo ano, a média e a mediana das taxas de variação do conjunto de países do painel foram 0,1% e 0,2% respectivamente. E, ademais, neste ano o país teve a 96ª maior taxa de variação do PIB no painel de 182 países, ou seja, 95 países tiveram taxas de variação do PIB superiores à do Brasil (portanto, menor impacto da crise sobre a renda) e 86 países tiveram quedas do PIB maiores do que o Brasil. E, considerando o os quatro anos do período pós-eclosão da crise em 2008, o que se constata é que a taxa de variação do PIB brasileiro é menor que a média e mediana do resto do mundo em três anos (2009, 2011 e 2012). Somente em 2010 a economia brasileira teve desempenho superior ao resto do mundo. Aqui, naturalmente, entrou em ação o ciclo político-eleitoral que fez com que as políticas públicas tenham sido fortemente expansionistas.

O equívoco do argumento acerca da “blindagem de aço” da economia brasileira também é evidente quando se analisa a natureza, profundidade e alcance da crise internacional que eclodiu em 2008. As crises dos anos 1990 tiveram origem na retração dos fluxos financeiros para alguns mercados emergentes. Entretanto, a crise global de 2008 derivou de problemas na esfera financeira da maior economia do mundo, repercutiu internacionalmente nas esferas real, comercial e tecnológica e, em consequência, atingiu as esferas monetária e fiscal. Naturalmente, os efeitos da crise econômica global atingiram as dimensões social, política e institucional; efeitos esses que têm repercussões de longo prazo. O Brasil não saiu ileso da crise.

O falso argumento da blindagem brasileira assenta-se em três aspectos: (i) menor dependência das exportações brasileiras em relação ao mercado dos Estados Unidos; (ii) elevado nível das reservas internacionais; e (iii) dinamismo do mercado interno.

O primeiro argumento refere-se à distribuição geográfica das exportações. É verdade que a participação dos Estados Unidos como mercado para as exportações brasileiras de bens reduziu-se de 23,9% em 2002 para 15,6% em 2007. A crise econômica nos Estados Unidos reduziu ainda mais esta participação nos anos seguintes (10% em 2011). Entretanto, neste período houve aumento da participação relativa da China como destino para as exportações brasileiras (de 2,0% em 2000 para 6,7% em 2007). Outrossim, houve aumento do peso relativo das exportações como fonte de expansão dos gastos, da produção e da renda. O coeficiente de abertura (exportação de bens/PIB) passou de 8,5% em 2000 a 11,8% em 2007. O resultado destes processos é que, no conjunto, as duas principais economias do mundo (Estados Unidos e China)

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tornaram-se ainda mais importantes para a geração de renda no Brasil. Por um lado, houve queda na participação total destes dois mercados nas exportações de bens do Brasil de 25,9% em 2000 para 22,3% em 2007. Por outro, com a elevação do grau de abertura da economia brasileira e a maior importância relativa da China nas exportações do país, EUA e China passaram a ter maior impacto direto sobre o PIB brasileiro. O impacto direto sobre as exportações é calculado como: participação relativa de cada país no valor das exportações de bens multiplicada pelo grau da abertura no ano e por 10. Ou seja, é o impacto do crescimento de 10% das exportações para cada mercado sobre o crescimento do PIB. Assim, o crescimento de 10% das exportações para estes dois grandes mercados tem como efeito direto o aumento do PIB brasileiro de 0,22% em 2001 e 0,26% em 2007. Ao longo dos anos a queda do peso específico dos Estados Unidos foi mais do que compensada pelos aumentos do grau de abertura da economia brasileira e do peso específico da China. Vale notar que a própria evolução da economia chinesa depende do dinamismo da economia dos Estados Unidos, que absorve aproximadamente um quinto das exportações chinesas.

Ademais, a redução do peso relativo dos EUA como mercado para os produtos brasileiros implicou, de fato, em piora do padrão de comércio exterior do país com o avanço do processo de reprimarização das exportações. Para ilustrar, os produtos básicos representaram 34% do valor das exportações do Brasil para os EUA em 2011. Neste ano, os produtos básicos responderam por 85% do valor das exportações do Brasil para a China. Portanto, os processos de queda dos EUA e a ascensão da China como parceiros comerciais tiveram como principal resultado o aumento da vulnerabilidade externa estrutural do país na esfera comercial via maior dependência em relação às commodities, cujos preços são mais sensíveis à conjuntural internacional. E vale mencionar que este processo parece ter sido parte da política econômica externa do Governo Lula!

O segundo argumento diz respeito ao nível das reservas internacionais. Houve crescimento extraordinário, principalmente, a partir de meados de 2006. Entretanto, a situação externa do Brasil está marcada por dois problemas sérios que reduzem o potencial estabilizador das reservas: (i) desequilíbrio de estoque derivado do crescimento do passivo externo a partir de 2003; e (ii) forte deterioração dos fluxos do balanço de pagamentos a partir de 2007. Estas questões são tratadas em maiores detalhes na próxima seção. Entretanto, vale notar que o passivo externo do país triplicou visto que passou de US$ 343 bilhões em 2002 (final do ano) para US$ 1,1 trilhão em

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junho de 2008. Neste mesmo período, o passivo externo líquido (passivo menos ativo) cresceu de US$ 230 bilhões para US$ 657 bilhões. Como proporção do PIB o passivo externo líquido encontrava-se no final de 2007 em nível não muito diferente daquele de 2002 (aproximadamente 44%), quando houve crise cambial. O principal item do passivo externo era o investimento estrangeiro indireto ou em carteira, cujos principais itens são as ações de empresas brasileiras e os títulos da dívida pública interna que têm alta liquidez. Isto é, ações e títulos públicos podem ser vendidos e todo o montante pode ser convertido em dólares e remetido ao exterior.

Ainda em relação ao passivo externo, vale notar que parte expressiva deste passivo é de curto prazo: empréstimos intercompanhias; investimento em ações no país; investimentos em títulos de renda fixa no país; empréstimos; depósitos; e derivativos. Em junho de 2008 o passivo externo de curto prazo era US$ 358 bilhões. Então, o passivo externo de curto prazo era quase o dobro do nível das reservas internacionais de aproximadamente US$ 200 bilhões em meados de 2008. Isto significa, na prática, que caso o governo decidisse garantir certa estabilidade da taxa de câmbio havia o risco de queda abrupta das reservas internacionais em pouco tempo. E isto caracterizaria crise cambial.

Neste ponto cabe destacar o argumento frequentemente divulgado de que o país não tinha, na prática, dívida externa. Isto decorre do fato de que no final de 2007 o valor total da dívida externa (empréstimos e financiamentos) não ultrapassava US$ 140 bilhões enquanto as reservas internacionais eram superiores a US$ 180 bilhões. O grave e evidente erro deste argumento é que se deixa de considerar os outros itens do passivo externo do país, principalmente, os investimentos em carteira no país feitos por estrangeiros que superavam US$ 500 bilhões. Este passivo financeiro inclui investimentos em ações, títulos de renda fixa e derivativos. Ou seja, a dívida externa é somente um dos componentes do passivo externo.

Além do desequilíbrio de estoque, o Brasil defronta-se com o problema de desequilíbrios de fluxos derivados da acelerada deterioração das contas externas. Houve forte queda do superávit comercial de bens e, principalmente, do surgimento do déficit da conta corrente a partir de 2008. Na medida em que os desequilíbrios de fluxos afetam o mercado de divisas e as expectativas, a situação pode se tornar mais crítica na hipótese de saída abrupta e significativa de capitais internacionais. Para ilustrar, as contas correntes do balanço de pagamentos saíram do superávit de US$ 2 bilhões em 2007 para o déficit de US$ 28 bilhões em 2008.

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O terceiro e último argumento destaca o dinamismo da demanda interna como amortecedor da retração da demanda externa derivada da crise internacional. Entretanto, a economia brasileira é marcada pelo padrão retrógrado de inserção no sistema mundial de comércio e pela sua fragilidade em relação ao sistema financeiro internacional. A dependência do país em relação as commodities é um problema sério na medida em que a crise econômica internacional provoca forte queda de preços no mercado internacional. A reversão e forte queda dos preços das commodities afetaram o desempenho do agronegócio exportador a partir de meados de 2008. Mesmo na indústria, houve elevação do grau de abertura e há setores com elevada dependência em relação ao mercado internacional. Vale notar que as exportações de bens caíram de US$ 198 bilhões em 2007 para US$ 153 bilhões em 2008, ou seja, queda de 23%.

O coeficiente médio de exportação (exportação/valor da produção) da indústria brasileira era 15,8% em 2002 e 21,5% em 2007. O coeficiente de exportação é muito elevado (maior do que 40%) nos seguintes setores: extração de minerais metálicos; outros equipamentos de transporte; extração de petróleo; produtos de madeira; e, preparação de couros, seus artefatos e calçados (Ribeiro et al. 2008). Para ilustrar, o coeficiente de abertura da indústria de veículos automotores é 19,7%. Neste caso, a queda das exportações de 20% provoca redução da produção interna de 4%.

Ademais, as dificuldades de obtenção de financiamento externo afetam o agronegócio, o sistema financeiro brasileiro e os planos de captação de recursos pelas empresas de todos os setores. Estes fatos implicam, na realidade, problemas de acesso ao capital externo e maior custo de captação tanto no mercado externo como no mercado interno. Estes fatos inibem a oferta de crédito para consumo, a disponibilidade de capital de giro e o investimento. As dificuldades crescentes no sistema financeiro internacional são ilustradas pela forte elevação do spread dos títulos brasileiros. Em 2008, este spread aumentou de 179 em maio, para 305 em setembro, 509 em dezembro e fechou o ano em 425 pontos-base.

Ainda no que se refere ao efeito estabilizador da demanda interna é importante destacar que esta precisou ser “turbinada” com políticas fiscais e creditícias fortemente expansionistas. Estima-se que o total das isenções fiscais para as empresas no período 2007-11 chegou a R$ 98 bilhões, o que representou 38% do superávit primário do governo federal no período (O Estado de São Paulo, 24 de março de 2012). No que se

refere à política de expansão do crédito vale mencionar que a relação entre o valor das operações de crédito ao setor privado e o PIB aumentou de 30,2% em 2007 para 39,7%

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em 2011. Na realidade, “as desonerações não foram adotadas como uma estratégia ou política de governo, mas foram reações aos efeitos da crise global que deprime a economia mundial desde meados de 2008 e afetou gravemente a competitividade da indústria brasileira. Porém, o avanço dos importados e a tendência de desindustrialização parecem imunes à atuação do governo.” (Ibid).

Em síntese, conforme previram Filgueiras e Gonçalves (2007, cap. 1), com a crise econômica internacional, “as fragilidades do país reaparecerão com toda a força, evidenciando mais uma vez os limites estruturais do Modelo Liberal Periférico e da sua política macroeconômica. Os efeitos sobre a economia brasileira e a resposta das autoridades econômicas são conhecidos. A desaceleração do comércio mundial terá um impacto imediato sobre o valor das exportações, com a redução das quantidades exportadas e a queda dos preços das commodities agrícolas e industriais. A redução dos saldos da balança comercial e, em conseqüência, da conta de transações correntes do balanço de pagamentos, implicará aumento da dependência em relação aos fluxos de capitais internacionais – necessários para o equilíbrio do balanço de pagamentos. Como essa situação será a regra dos países periféricos, as taxas de juros exigidas pelos capitais de curto prazo – e com tendência de buscar proteção nos títulos do governo americano – tenderão a se elevar, provocando, em cadeia, a elevação das taxas de juros domésticas. Em resumo: reaparecerá a vulnerabilidade externa estrutural da economia brasileira – mascarada até aqui pelos grandes saldos obtidos atualmente no comércio exterior –, agora também explicitada pelo seu lado comercial e reforçada pelo lado financeiro.”

2. Desequilíbrios de fluxos e estoques

O impacto da crise global sobre as contas externas do país foi ainda mais marcante. Os fluxos do balanço de pagamentos melhoraram na fase ascendente do ciclo da economia mundial em 2003-07, houve inflexão em 2008 e deterioração a partir deste ano (Tabela 5.2). O saldo da balança comercial de bens, que havia mostrado tendência de crescimento a partir de 2002, começou a cair já a partir de 2007. A conta de serviços e rendas tem crescente saldo negativo a partir de 2005. O saldo das contas externas (transações correntes), que foi superavitário no período 2003-07, passou a apresentar elevados déficits a partir da crise em 2008. O superávit da conta de transações correntes, que havia oscilado em torno de US$ 13 bilhões em 2004-06, transformou-se no déficit de US$ 28 bilhões em 2008. Em 2010 este déficit foi US$ 48 bilhões e chegou a US$ 53

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bilhões em 2011. As previsões do FMI são de este déficit cresça continuamente e chegue a US$ 110 bilhões em 2017 (IMF, World Economic Outlook database).

A evidente e forte deterioração das contas externas do país a partir de 2007 (fim da fase ascendente do ciclo econômico internacional) é mostrada no Gráfico 5.1. Este gráfico faz a desagregação entre o déficit da conta de serviços (transporte, seguro, viagens, etc) e da conta de rendas (juros, lucros, dividendos e salários). Ele mostra, inclusive, que o déficit da conta de rendas em 2008 que chegou a US$ 41 bilhões, maior que o déficit de US$ 29 bilhões em 2007. Houve forte aceleração de remessas de juros, lucros e dividendos, principalmente no segundo semestre de 2008 quando eclodiu a crise internacional. Ademais, o gráfico permite constatar que a partir de 2008 o superávit da balança comercial já não consegue cobrir os déficits da conta de rendas. Em 2010, por exemplo, o superávit da balança comercial (US$ 20 bilhões) representa metade do déficit da conta de rendas (US$ 40 bilhões).

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Dentre os indicadores mais expressivos da situação dos fluxos externos cabe destacar: (i) a relação entre o saldo da conta de transações correntes do balanço de pagamentos e o PIB; e (ii) a relação entre as remessas de juros, lucros e dividendos e o superávit da balança comercial de bens. A evolução destes indicadores mostra claramente a forte deterioração a partir de 2007 (Gráfico 5.2). O saldo da conta de transações correntes que foi positivo durante a fase ascendente do ciclo econômico internacional (2003-07) passou a ser negativo a partir da eclosão da crise global. Como proporção do PIB o saldo (déficit) piorou pois passou de -1,8% em 2008 para -2,3% em 2010. Por seu turno, a relação entre as remessas juros, lucros e dividendos e o superávit da balança comercial aumentou continua e fortemente a partir de 2006. De fato, esta relação mais do que triplicou entre 2006 (73%) e 2010 (231%).

Na realidade houve a passagem da trajetória de fraco crescimento econômico no primeiro mandato do Governo Lula (3,5% a.a.) para a de razoável/bom crescimento no segundo mandato (4,5% a.a., idêntico à média secular do Brasil e um pouco acima da média e mediana mundiais no período de crise 2008-10). O maior crescimento veio, entretanto, acompanhado por forte deterioração das contas externas. Naturalmente, não foi somente o aumento da taxa de crescimento do PIB que provocou esta deterioração. Há outros determinantes: baixa competitividade internacional, em um sistema mundial de comércio mais protecionista e competitivo; forte presença de empresas

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transnacionais, que aceleraram as remessas de lucros; e os erros de política econômica, com destaque para a forte apreciação cambial.

A contrapartida da deterioração das contas correntes é a necessidade de recursos externos para financiamento dos déficits. O financiamento implica aumento do passivo externo do país. Este passivo aumentou de US$ 343 bilhões no final de 2002 para US$ 1.503 bilhões no final de 2010 (Tabela 5.3). Este passivo (repito, US$ 1,5 trilhão) é um aspecto fundamental do aumento da vulnerabilidade externa estrutural do país. Naturalmente, há que se destacar a elevação dos ativos externos do país, ou seja, os investimentos e aplicações de brasileiros (indivíduos, empresas e governo) no exterior. Os ativos externos aumentaram de US$ 113 bilhões em 2002 para US$ 618 bilhões em 2010. Neste último ano aproximadamente metade dos ativos correspondia às reservas internacionais do país.

O conceito usado internacionalmente para se avaliar os desequilíbrios de estoque é o da posição de investimento internacional (PAP – posição de ativo externo menos passivo externo). No caso do Brasil o PAP é historicamente negativo, ou seja, estrangeiros possuem mais ativos no país do que brasileiros têm de ativos no exterior. O saldo negativo do PAP aumentou de US$ 231 bilhões em 2002 para US$ 886 bilhões em 2010. Ou seja, caso todos os ativos estrangeiros no Brasil e todos os ativos de brasileiros no exterior fossem liquidados, o país estaria “short” ou “a descoberto” em cerca de US$ 900 bilhões. Entretanto, há duas considerações importantes. A primeira tem a ver com a composição do passivo externo. Em 2010 o passivo externo na forma de investimento estrangeiro direto no país era US$ 580 bilhões. Este valor correspondia ao investimento de empresas estrangeiras no país e que não têm liquidez imediata e,

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portanto, não devem ser levados em conta no cálculo do passivo externo líquido de curto prazo.

A segunda consideração é que, por outro lado, o país não pode contar com os recursos investidos no exterior por brasileiros (indivíduos e empresas) no caso de uma crise cambial. Muito pelo contrário, nesta situação a tendência é que se acelerem as remessas e os investimentos no exterior. De fato, no que se refere aos ativos externos o país só pode contar com as reservas internacionais sob a responsabilidade gerencial do Banco Central. Conforme mencionado acima, em 2010 as reservas internacionais de US$ 289 bilhões respondiam por menos da metade dos ativos externos do país (US$ US$ 618 bilhões).

Portanto, o conceito mais relevante para se analisar a vulnerabilidade externa estrutural, expressa por desequilíbrios de estoques nas contas externas, é o passivo externo financeiro líquido (PEL). Este conceito é definido como: passivo externo total menos investimento estrangeiro direto (participação no capital) menos as reservas internacionais. Este conceito mostra o quanto efetivamente o país está exposto no curto prazo no caso de algum fator desestabilizador, seja externo seja interno, que gere crise cambial. No período 2002-05 o PEL oscilou em torno de US$ 250 bilhões. A partir de 2006 há clara tendência de aumento, com a exceção de 2008. No final deste ano houve forte contração do passivo externo em decorrência, principalmente, de dois fatores: (i) forte queda dos preços das ações de empresas brasileiras nas mãos de estrangeiros, e (ii) elevação extraordinária da taxa de câmbio do Real em relação ao dólar. Nos anos seguintes o passivo externo financeiro líquido voltou a aumentar e superou US$ 635 bilhões em 2010.

A análise dos desequilíbrios de estoque das contas externas do país deve destacar também a evolução da composição do passivo externo. No Brasil há um argumento que é tão freqüente quanto equivocado. Este argumento é que a dívida externa já não é mais um problema visto que as reservas internacionais são mais do que suficientes para pagar esta dívida. A partir de 2007 o valor das reservas internacionais tornou-se maior do que a dívida externa. Em 2010, por exemplo, a dívida externa (crédito de fornecedores e empréstimos) totalizou US$ 244 bilhões enquanto as reservas internacionais eram US$ 289 bilhões e, portanto, aparece o argumento equivocado de que Brasil encontrava-se “protegido”.

De fato, é impressionante constatar como este argumento (na realidade, uma ilusão) tornou-se popular. A obviedade de que a dívida externa é somente um dos

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componentes do passivo externo já desmonta este argumento. Trata-se da simples questão da composição do passivo externo brasileiro. O fato é que a participação da dívida externa no total do passivo externo do país caiu de 35,0% em 2002 para 16,2% em 2010 (Gráfico 5.3). Este processo reflete, por um lado, o avanço do processo de liberalização dos fluxos internacionais de capital promovida no país, que começa no início dos anos 1990 e se aprofunda na primeira década do século XXI. Por outro lado, a própria globalização financeira implica a recomposição do portfólio internacional na direção do investimento externo indireto (ações, títulos de renda fixa, derivativos etc).

Portanto, na avaliação da vulnerabilidade externa do Brasil no final do século XX e no século XXI é necessário considerar tanto a dívida externa como, principalmente, os outros componentes do passivo – com destaque para o investimento estrangeiro indireto. Na realidade, a queda da importância relativa da dívida externa (que, em termos relativos, basicamente se reduz à metade entre 2002 e 2010) é compensada, em parte, pelo aumento da participação do investimento estrangeiro indireto. Este último aumentou seu peso relativo no passivo externo do país de 40,1% em 2002 para 44,4% em 2010. Tendo em vista este fato, na análise da evolução da vulnerabilidade externa do Brasil no final do século XX e no século XXI, o indicador informado pela relação dívida externa/exportações é pouco adequado.

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A maior vulnerabilidade externa estrutural da economia brasileira torna-se ainda mais evidente quando se analisa a evolução das relações econômicas bilaterais entre Brasil e Estados Unidos, principalmente, a partir da crise global de 2008. O fato de maior relevância nestas relações é que frente à crise os Estados Unidos engajou-se em significativo processo de ajuste das suas contas externas. Neste processo, parte do custo de ajuste estadunidense recaiu sobre o Brasil.

No último ano da fase ascendente do ciclo internacional 2003-07 os Estados Unidos tinham déficit na balança comercial de bens com o Brasil de US$ 1,5 bilhão, ou seja, os EUA importavam mais do que exportavam para o Brasil. Tendo em vista o superávit crônico e estrutural da balança de serviços dos EUA em relação ao Brasil, o superávit da conta de rendas dos EUA (ingresso líquido de salários, lucros, dividendos e juros) e o déficit das transferências unilaterais (remessa de emigrantes brasileiros), o saldo da conta bilateral de transações correntes foi favorável aos EUA (US$ 10 bilhões) em 2007 (Gráfico 5.4).

A crise de 2008 implicou inflexão nas relações econômicas bilaterais Brasil-Estados Unidos. O primeiro aspecto importante é que a balança comercial bilateral, que anteriormente era deficitária, passou a ser superavitária para os EUA. O déficit dos EUA de US$ 1,5 bilhão em 2007 transformou-se em superávit de US$ 11 bilhões em 2010. O segundo aspecto é que o superávit da balança de serviços dos EUA duplicou no

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período 2007-10. O terceiro é que o superávit da conta de rendas dos EUA aumentou mais de 50% neste período. O quarto é que a crise nos EUA causou a queda de renda dos imigrantes brasileiros e, portanto, a redução do superávit do Brasil nas transferências unilaterais. E, como resultado dos aspectos acima, o saldo das transações correntes bilaterais Brasil-Estados Unidos mais do que triplicou no período 2007-10. O superávit dos EUA em relação ao Brasil aumentou de US$ 10 bilhões em 2007 para US$ 34 bilhões em 2010.

Este incremento representa, de fato, a contribuição do Brasil ao ajuste externo dos EUA a partir da crise internacional de 2008. Vale mencionar que o déficit total das transações correntes do balanço de pagamentos dos EUA caiu de US$ 710 bilhões em 2007 para US$ 471 bilhões em 2010. Portanto, o Brasil contribuiu com 1,4% para o financiamento do déficit dos EUA em 2007 e aumentou esta contribuição para 7,1% em 2010. Talvez isto explique porque Obama jocosamente chamou Lula de “o cara”!

Neste ponto cabe chamar a atenção que a política econômica externa brasileira durante o governo Lula, parece ter tido como diretriz reduzir a dependência em relação aos EUA, teve como importante resultado a crescente contribuição do Brasil ao processo de estabilização econômica dos EUA após a eclosão da crise internacional em 2008. Ou seja, o Brasil cada vez mais ajudando o hegemon a sair da crise que ele mesmo causou!

3. Retornos sobre ativos e passivos externos

Conforme discutido acima o passivo externo do Brasil é maior do que o seu ativo externo, ou seja, a posição de investimento internacional do país é crônicamente negativa. A situação de vulnerabilidade externa estrutural do país é marcada por esta posição fortemente negativa.

O Brasil, no conjunto das maiores economias do mundo, ocupa a 3ª posição quando o valor líquido do estoque de investimento internacional (PAP – posição de ativo externo menos passivo externo) é ordenado do menor para o maior valor (Gráfico 5.5). Em 2010 os Estados Unidos ocuparam a 1ª posição no ranking mundial com PAP negativo (US$ 2,5 trilhões). A segunda posição era ocupada pela Espanha (US$ 1,3 trilhão) e a terceira pelo Brasil (US$ 698 bilhões). Os países com as melhores situações de estoque de PAP eram Japão, China e Alemanha. Assim, enquanto os EUA estavam a “descoberto” em US$ 2,5 trilhões, o Japão tinha ativos no exterior que superavam em

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US$ 3 trilhões os ativos de investidores estrangeiros no Japão. A situação da China também era muito confortável com PAP de US$ 1,8 bilhão.

No entanto, a situação dos EUA é singular visto que este país é o centro do sistema monetário internacional. O dólar estadunidense não somente é aceito como é necessário para o funcionamento do sistema econômico internacional. O dólar desempenha as principais funções de moeda em escala global: meio de pagamento, unidade de conta e reserva de valor. A oferta de dólares estadunidenses no exterior também é determinante do nível de liquidez internacional (quantidade de moeda no mundo). Os EUA, que desempenham o papel de hegemon na arena internacional (ainda que com rivalidade crescente por parte da China), também têm peso determinante no sistema financeiro internacional. Não é por outra razão que a crise do sistema de crédito hipotecário nos Estados Unidos causou a crise financeira global de 2008.

Assim, a posição negativa de investimento internacional dos EUA deve ser vista como elemento importante para o próprio funcionamento da economia mundial. Isto não implica, naturalmente, que a centralidade do dólar na economia mundial seja somente caracterizada por benefícios. Para não se estender no tema cabe destacar que moeda e poder caminham de mãos dadas na arena internacional (Spero, 1977, cap.2). As moedas-chave da economia mundial são instrumentos de exercício de poder efetivo por parte dos Estados-nacionais que emitem estas moedas. A questão-central é que no horizonte previsível o dólar dos EUA continuará sendo a principal moeda usada no sistema econômico internacional. Portanto, crise de risco soberano (incapacidade de

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pagar o serviço da dívida pública) é um não-tema para estrangeiros detentores de títulos emitidos pelo governo dos EUA. Vale notar que após a eclosão da crise global em 2008 os EUA tornaram-se ainda mais atrativos para o capital internacional.

Estes argumentos não são válidos para outros países com posições externas fortemente negativas, como Espanha e Brasil. O caso da Espanha é particularmente relevante após a eclosão da crise global em 2008. A deterioração da situação econômica espanhola desembocou em grave crise de risco soberano que levou a taxa de juros sobre títulos públicos a níveis recordes em meados de 2012. A Espanha tornou-se, então, candidato imediato para operações de resgate financeiro por parte do Banco Central Europeu após as intervenções para proteger Grécia, Irlanda e Itália.

É neste contexto de elevado risco soberano que o Brasil se encontra armadilhado em função do extraordinário nível elevado do seu desequilíbrio de estoque (passivo externo financeiro que é um múltiplo das reservas internacionais do país). Este fato caracteriza mais um aspecto da vulnerabilidade externa estrutural do país.

A questão da vulnerabilidade externa estrutural da economia brasileira também é evidenciada em tema raramente tratado no Brasil, a saber, a diferença entre as taxas de retorno dos ativos no Brasil de propriedade de estrangeiros (não-residentes) e as taxas de retorno dos ativos no exterior de propriedade de brasileiros (residentes no país). Estas taxas de retorno têm como referências valores medidos em divisas estrangeiras (dólares dos EUA). Elas correspondem à relação entre receitas (juros e lucros) sobre ativos reais ou financeiros no exterior, ambos medidos em dólares estadunidenses. Os fluxos de receita correspondem aos valores acumulados em um ano e o estoque de ativos é a média geométrica dos valores no início e no final do ano em questão.

O argumento central é o seguinte: na medida em que passivo e ativo externos do país aumentam, a existência de um diferencial entre as taxas de retorno (maior para capital estrangeiro no Brasil) implica crescente pressão sobre a conta de rendas do balanço de pagamentos. Esta pressão significa, na realidade, aumento do déficit crônico na conta de rendas e, portanto, tem impacto cada vez maior no saldo das contas externas (transações correntes).

Para ilustrar o argumento, tomemos como referência as taxas médias de retorno obtidas no período 2003-10: 2,3% para ativos no exterior de propriedade de brasileiros e 5,3% para ativos no Brasil de propriedade de estrangeiros. Para cada US$ 100 bilhões de investimento de brasileiros no exterior o retorno anual esperado é US$ 2,3 bilhões. Por outro lado, para esta mesma quantia aplicada por estrangeiros no Brasil o retorno

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anual esperado é US$ 5,3 bilhões. Mesmo que não haja variação na posição de investimento internacional do Brasil, visto que os incrementos do passivo e do ativo externos foram iguais, o país precisa financiar a diferença entre os retornos. No caso do nosso exemplo, este valor é US$ 3 bilhões. Portanto, supondo saldo nulo em outras contas das transações correntes no ano seguinte, o passivo externo aumentará de US$ 100 bilhões para US$ 103 bilhões. Em 10 anos este passivo aumentará para US$ 134 bilhões enquanto o ativo externo se manterá em US$ 100 bilhões. Este processo é, de fato, perpétuo enquanto persistir este passivo.

O processo cumulativo de crescimento do passivo externo depende do diferencial das taxas de retorno e também da evolução do saldo da conta de transações correntes. Partindo do exemplo acima, tomemos 3 situações distintas. A primeira é a do próprio exemplo, que supõe saldo nulo nas transações correntes. O resultado é que o ingresso de capitais externos é todo ele usado na compra de ativos no exterior. A segunda situação é quando há déficit nas transações correntes. No caso de déficit de US$ 20 bilhões, supondo o fluxo de ingresso de investimento estrangeiro no país de US$ 100 bilhões, restam US$ 80 bilhões para compra de ativos no exterior. O resultado é que, dadas as taxas de retorno mencionadas acima, a despesa (saída) de remessa de lucros e juros é US$ 5,3 bilhões, como anteriormente, enquanto a receita (ingresso) do país na forma de lucros e juros é US$ 1,8 bilhão (2,3% de US$ 80 bilhões). Esta diferença de US$ 3,5 bilhões precisa ser financiada e, em consequência há crescimento do estoque de investimento estrangeiro no país de US$ 100 bilhões para US$ 103,5 bilhões. A terceira situação é quando há superávit nas transações correntes de, por exemplo, US$ 20 bilhões. Neste caso, supondo ainda ingresso de investimento estrangeiro no país de US$ 100 bilhões, o superávit global do balanço de pagamentos é US$ 120 bilhões, que se transformam em ativos no exterior (haveres externos) de propriedade de brasileiros. As remessas de lucros e juros continuam sendo US$ 5,3 bilhões, porém as receitas correspondentes aumentam para US$ 2,8 bilhões. Neste caso a diferença entre receita e despesa na conta de rendas se reduz para US$ 2,5 bilhões e o financiamento deste déficit implica aumento do passivo externo no país de US$ 100 bilhões para US$ 102,5 bilhões.

De fato, a única possibilidade de não haver incremento do passivo externo induzido pelo diferencial entre taxas de retorno ocorre quando a receita (ingresso) do país, na forma de lucros e juros dos investimentos externos, é igual à despesa (saída) via remessa de lucros e juros de investimentos estrangeiros no país. Para que isto aconteça é

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necessário que o superávit das transações correntes (CC) seja um múltiplo do fluxo de entrada de investimento estrangeiro no país (IE). A fórmula para o cálculo deste superávit de equilíbrio é simples: CC = IE [(eE – eB)/eB]. Os coeficientes eE e eB

correspondem às taxas de retorno do investimento estrangeiro no Brasil e do investimento de brasileiros no exterior, respectivamente. No nosso exemplo, o superávit da conta corrente de equilíbrio é US$ 130 bilhões, que acrescidos da entrada de investimento estrangeiro no país de US$ 100 bilhões, resultam em investimento externo do país de US$ 230 bilhões. Dada a taxa de retorno de 2,3% sobre ativos externos, a receita de lucros e juros (US$ 5,3 bilhões = US$ 230 bilhões x 2,3%) do país equivale à despesa com lucros e juros relativos ao estoque de investimento estrangeiro (US$ 100 bilhões x 5,3%) no país. Desta forma, não há crescimento do passivo externo induzido por diferencial de taxas de retorno entre aplicações no Brasil e no exterior.

Na hipótese de que a taxa de retorno dos ativos do país no exterior é maior do que a taxa de retorno dos ativos estrangeiros no país, é possível incorrer em déficit nas contas correntes sem que haja necessidade de financiamento externo, ou seja, incremento do passivo externo. No exemplo acima, podemos inverter a situação: agora o investimento estrangeiro no país rende 2,3% enquanto os ativos externos de propriedade de residentes rendem 5,3%. Neste caso, e na hipótese de entrada de capital externo de US$ 100 bilhões, o déficit de conta corrente de US$ 56 bilhões gera saldo global do balanço de pagamentos de US$ 44 bilhões. Este superávit global do balanço de pagamentos resulta em investimentos no exterior que geram receitas (ingressos) de lucros e juros de US$ 2,3 bilhões (US$ 44 bilhões x 5,3%) que equivalem às despesas (remessas) de lucros e juros de US$ 2,3 bilhões (US$ 100 bilhões x 2,3%). Esta é precisamente a situação dos Estados Unidos, Canadá, França e Reino Unido. Outros países desenvolvidos (Itália, Espanha, Portugal e Grécia) têm déficits nas transações correntes, porém não têm receitas de investimento no exterior que compensem estes déficits e, portanto, entraram em trajetória de aumento do passivo externo, cujo resultado foi a crise da dívida soberana e financeira que eclodiu em 2008.

Voltemos à situação brasileira. Como vimos acima o passivo e o ativo externo cresceram no passado recente. Entretanto, a posição de investimento internacional (PAP) ou o passivo externo financeiro líquido têm crescido significativamente desde o início do século XXI. Este crescimento deixou o Brasil desprotegido em valores superiores a US$ 600 bilhões em 2010. Vale relembrar que o Brasil, depois dos Estados e da Espanha, é o país com o 3º maior PAP negativo do mundo.

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A situação brasileira é particularmente grave quando se considera que o grande diferencial entre a taxa de retorno dos investimentos estrangeiros no Brasil e a taxa de retorno dos investimentos do país no exterior (Gráfico 5.6). O retorno médio do passivo externo brasileiro foi 5,3% no período 2003-10 enquanto o retorno médio do passivo externo foi 2,3%. Ou seja, a taxa de retorno do passivo externo brasileiro total é mais do que o dobro da taxa de retorno do ativo externo total. Este diferencial é a média observada. No entanto, este diferencial é mais elevado no caso do investimento externo direto (capital investido por empresas estrangeiras no país e por empresas brasileiras no exterior). Empresas estrangeiras no Brasil tiveram retorno médio (expresso pelas remessas de lucros e dividendos para o exterior) de 6,3% no período em análise, enquanto as empresas brasileiras que investiram no exterior tiveram retorno médio (expresso no ingresso no país de lucros e dividendos) de 1,2%. Este diferencial pode refletir, de um lado, a maior rentabilidade do capital no Brasil comparativamente aos países avançados, que recebem a maior parte dos investimentos brasileiros e, de outro, a menor propensão das filiais e subsidiárias de empresas brasileiras no exterior a remeter lucros e dividendos para suas empresas matrizes no Brasil. Na realidade, principalmente no caso de empresas de propriedade de grupos familiares, esta menor propensão à remessa de lucros reflete a estratégia destes grupos de se protegerem do risco-Brasil. Ou seja, o lucro obtido no exterior é reaplicado no exterior como mecanismo de hedge, que é condizente com as incertezas e alto risco do Brasil.

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Os diferenciais de rentabilidade dos outros tipos de investimento oscilam em torno de 3% (empréstimo intercompanhia = 3,2%; ações = 2,6%; títulos de renda fixa e outros investimentos = 3,0%). Este diferencial, na realidade, aproxima-se do spread médio dos títulos públicos brasileiros negociados no mercado internacional. Ainda que no período 2003-10 este spread tenha variado significativamente em decorrência das conjunturas doméstica e internacional, os dados do JPMorgan mostram média e mediana de 3,3% e 2,8% respectivamente.

4. Síntese

Este texto inicia-se confrontando dois argumentos diametralmente distintos a respeito da capacidade de resistência do Brasil a fatores desestabilizadores externos no século XXI. De um lado, a grande maioria dos analistas que utilizam indicadores de vulnerabilidade externa conjuntural defendem a tese de “blindagem de aço”, ou seja, o país estaria protegido dos mecanismos de transmissão internacional de crises. De outro, um pequeno número de analistas independentes contra-argumentam que, apesar de haver melhora conjuntural, a vulnerabilidade externa estrutural da economia brasileira tem aumentado, principalmente com a implantação do Modelo Liberal Periférico a partir de 1995 e sua consolidação a partir de 2003. O foco da análise empírica é o impacto da crise global que eclodiu em 2008. A análise apresentada mostra que a crise global tem tido efeitos negativos e significativos sobre a economia brasileira. Estes efeitos não se restringiram à desaceleração da geração de renda e à evidente piora das contas externas. Também houve impacto sobre bancos e grandes empresas visto que muitos passaram por sérias dificuldades e até mesmo foram vendidos para evitar a falência. Assim, no lugar da “blindagem de aço” da economia brasileira é mais apropriado reconhecer a “blindagem de papel crepom” em decorrência da sua elevada vulnerabilidade externa estrutural.

A significativa deterioração das contas externas no pós-2008 é discutida em detalhes. Esta deterioração é evidente para os indicadores tanto de fluxo (balança comercial, conta de rendas etc) como de estoque (passivo e ativo externos). Os desequilíbrios de fluxos e estoques referentes às relações econômicas internacionais expressam, de fato, a elevada vulnerabilidade externa estrutural da economia brasileira. Os dados mostram que passivo externo financeiro no final de 2010 era praticamente o triplo das reservas internacionais e, portanto, o país encontrava-se em “posição descoberta” ou sem cobertura cambial de pelo menos US$ 600 bilhões. No caso de

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deterioração das expectativas ou crise internacional, o potencial desestabilizador desta falta de cobertura cambial é enorme visto que as reservas internacionais podem cair rapidamente.

A situação brasileira piorou no século XXI em decorrência da significativa mudança na composição do passivo externo. A participação da dívida externa no total do passivo externo caiu de 35% em 2002 para 16% em 2010. O processo de liberalização dos fluxos internacionais de capital e a globalização financeira têm sido determinantes do investimento estrangeiro indireto (ações, títulos de renda fixa e derivativos). Houve substituição do passivo externo na forma de dívida denominada em dólares (contratos que envolvem serviço anual, juros e amortizações) por passivo na forma de compra de títulos denominados em reais (ações, títulos de renda fixa e derivativos), que também têm serviço (juros, lucros e dividendos que são convertidos em dólares e remetidos para o exterior). Ambos envolvem pressão sobre os fluxos de saída de divisas.

Entretanto, o potencial desestabilizador dos títulos comprados por não-residentes é muito maior do que o da dívida externa visto que todo o estoque de títulos pode ser vendido no país e o valor correspondente em Reais pode ser convertido em dólares e enviado ao exterior. Para simplificar, supondo títulos da dívida externa no valor de US$ 100 milhões com taxa de juro de 10%, a remessa anual é de US$ 10 milhões. Quando a percepção sobre o risco-Brasil piore o que acontece é a queda dos preços dos títulos brasileiros no exterior. Por outro lado, quando o estrangeiro compra títulos do Tesouro Nacional no valor de US$ 100 milhões com juros líquidos de 10% ele envia para o exterior os mesmos US$ 10 milhões. Entretanto, a qualquer momento estes títulos podem ser vendidos, a receita convertida em dólares (US$ 100 milhões) e enviada ao exterior. Portanto, a substituição da dívida externa (títulos denominados em dólares e negociados no exterior) pelo investimento em títulos no Brasil (denominados em reais, negociados no país e convertidos em dólares para remessa ao exterior) aumenta a vulnerabilidade externa estrutural do país.

Em conseqüência, o argumento de que a vulnerabilidade externa reduziu-se porque a dívida externa é menor do que o montante das reservas internacionais é totalmente errado; pura ilusão. Na realidade, a menor importância relativa do endividamento externo e o crescimento do passivo externo na forma de investimento em títulos de renda fixa, ações e derivativos aumentaram significativamente a vulnerabilidade externa estrutural do país no século XXI.

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Por fim, o texto foca o sério problema de vulnerabilidade externa estrutural da economia em decorrência da posição negativa de investimento internacional do Brasil; a terceira mais negativa do mundo. A situação brasileira é ainda mais grave porque o custo do passivo externo para o país (retorno para o investidor estrangeiro) é muito maior do que o retorno (remuneração) dos ativos externos do país. Estimativas para o período 2003-10 mostram retorno médio do passivo externo brasileiro de 5,3% e retorno médio do ativo externo de 2,3%. Este fato implica déficit estrutural nas contas externas do país.

Referências

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FILGUEIRAS, Luiz; GONÇALVES, Reinaldo. A Economia Política do Governo Lula. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 2007.

MENDONÇA DE BARROS, Luis Carlos. Folha de São Paulo, 8 de fevereiro de 2008. RIBEIRO, Fernando J. et al. Coeficientes de comércio exterior da indústria brasileira,

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Referências

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