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ELA ESTÁ NOS VERSOS: Percepções do Feminino na Literatura de Cordel

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ELA ESTÁ NOS VERSOS: Percepções do Feminino na Literatura de Cordel Bruna Caroline da Silva Graduanda na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)

brunca1011@gmail.com; Viviane Souza de Oliveira Graduanda na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)

vivianne.soouza@hotmail.com.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a representação do feminino frente os folhetos

de cordel, uma vez que essa literatura perdurou por séculos sendo produzida eminentemente por cordelistas masculinos imbuídos em uma cultura sexista, o que contribuiu para que as mulheres fossem representadas dentro de uma abordagem machista e preconceituosa. Com intuito de identificar e analisar as desigualdades de gênero e os discursos que designam o que seria o feminino e seus papéis sociais presentes nessa literatura, selecionamos três folhetos de poetas diversificados. Como aporte teórico, utilizamos os estudos de gênero enquanto relações de poder proposto por Joan Scott e o conceito de representação, desenvolvido por Roger Chartier.

Palavras-chave: Literatura de Cordel; Relações de gênero; Representações do feminino.

Introdução

A literatura de cordel tem sido construída como uma forma de manifestação sócio-literária, pois suas narrativas estão repletas de representações acerca do cotidiano social, político e religioso. Ou seja, o contexto histórico está inserido no decorrer dos textos e imagens que compõe esse gênero literário. Pensando no cordel como literatura capaz de delinear a visão social, política, religiosa e cultural vigente em um determinado momento histórico, acreditamos que por meio dela, e com a problematização de suas representações, também podemos entender quais as percepções coletivas acerca do feminino e do masculino.

Levando em consideração que essa literatura se alastra ao longo do tempo como prática eminentemente masculina – estando ainda imbuída dentro de um modelo social sexista em que é predominante o olhar patriarcal-católico sobre a mulher –, foram propostas do presente trabalho: identificar e analisar as representações identitárias do feminino presentes em três folhetos de cordel de autorias distintas, buscando demonstrar que essas estão relacionadas com os

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costumes nordestinos arraigados, próprios de uma religião popular construída ao longo do século XX.

Para tal, acreditamos ser de grande importância a utilização do estudos relacionados à representação, desenvolvidos por Roger Chartier, bem como o uso do gênero como categoria de análise histórica, como nos mostra Joan Scott, adotando o conceito de gênero definido por ela.

A Literatura de Cordel como Prática Regional e Cultural

A literatura de cordel chega ao Brasil, mais necessariamente no nordeste brasileiro, com a colonização portuguesa, onde foi influenciada por diversas matrizes além da portuguesa, como a indígena e a africana, o que lhe conferiu uma existência autônoma (GRILLO, 2013, p. 1). Esse gênero poético inicialmente de tradição oral, com as cantorias, passa a fazer parte, após alguns anos, também de uma tradição escrita, com os folhetos. Segundo Larissa Teixeira (2008, p. 12-13), uma das primeiras cantorias de produção brasileira conhecida foi a cantoria de viola do grupo de poetas da Serra do Teixeira, no Estado da Paraíba, no final do século XVIII. Enquanto que somente no século XIX que houveram registros de folhetos de cordel impressos. Sendo alguns dos poetas mais afamados: Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista, João Martins de Athayde.

Os temas que o cordel pode abarcar são ricos e plurais, a classificação dada a ele por Sebastião Batista é uma síntese da classificação feita por Ariano Suassuna e pela Casa de Rui Barbosa, os assuntos foram distribuídos por ele em três grandes grupos, destacando nos dois primeiros os assuntos mais recorrentes:

1. Temas Tradicionais: a) romances e novelas; b) contos maravilhosos; c) estórias de animais; d) anti-heróis: peripécias e diabruras; e) tradição religiosa; 2. Fatos circunstanciais ou acontecidos: a) de natureza física: enchentes, cheias, secas, terremotos, etc.; b) de repercussão social: festas, desportos, novelas, astronautas, etc.; c) cidade e vida urbana: d) crítica e sátira; e) elemento humano: figuras atuais ou atualizadas (Getúlio, ciclo do fanatismo e misticismo, ciclo do cangaceirismo, etc. ), tipos étnicos e tipos regionais, etc.; 3. Cantorias e pelejas (1977, p. 10).

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Tanto os temas tradicionais como os fatos circunstanciais, ou noticiosos, podem indicar tanto a mentalidade coletiva social, quanto a leitura de mundo daquele que escreve o folheto. Ao abordar sobre a prática da escrita e de leitura, Chartier (2002, p. 70) afirma que os textos “podem ser diversamente apreendidos, manipulados, compreendidos”. Olhando por esse ângulo, vemos que as narrativas imbuídas nos folhetos de cordel, assumem um caráter de “apropriação” dos elementos social, político e religioso do ambiente no qual está inserido. Dessa forma, a prática literária, a partir da escrita e leitura são atribuídas como práticas culturais, assim, o cordel se constitui na conciliação entre a produção e apropriação, “Essas práticas tecem a trama das relações cotidianas e constroem representações” (SILVA, 2006, p. 283). Por isso, ele também assume outra característica, a de uma literatura de sentido móvel e instável, pois, suas significações são plurais e móveis.

Para Chartier (1990, p. 26) “a apropriação tem por objectivo, uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais e inscrita nas práticas específicas que as produzem”. O autor deixa claro a importância de questões vinculadas a apropriação e interpretações, sendo a interpretação, a compreensão que existe de si mesmo e do social. A literatura de cordel acompanha o contexto de sociabilidades e está a todo o tempo se apropriado, por ser como mencionado, plural, móvel e instável.

Outro elemento característico do cordel diz respeito às identidades regionalistas que atribuem as posições sobre o que seria considerado o masculino e feminino. Essa identidade é construída através dos discursos, conceitos e temas na formação discursiva nacional-popular e culturalista. A identidade nordestina regional está atribuída em formação a partir da década de 1930, trazendo à tona termos como “cabra macho”. (ALBUQUERQUE JR, 2003, p.165 apud SILVA, 2000, p.284).

Durval Muniz de Albuquerque Junior problematiza a identidade dada ao homem nordestino:

Quando dizemos, entretanto, homem nordestino, não é apenas porque estamos reproduzindo a generalização do discurso humanista, em que a palavra homem serve a se referir a toda a espécie, o que já é sintomático de que esse homem em geral também é pensado no masculino, mas porque os discursos que analisamos não deixam dúvida de que o homem nordestino é um homem, ou seja, é macho, é pensado no masculino, não há lugar para o feminino nesta figura. [...] o nordestino é cabra macho, é cabra da peste, homem de fibra, uma reserva de virilidade nacional (2003, p. 165).

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O discurso da figura masculina como “cabra-macho” trouxe a imagem de um Nordeste rude e violento, que estruturou a identidade do homem nordestino como viril e possuidor. A mulher, por outro lado, foi-lhe atribuída uma identidade ligada à moral e ao catolicismo, figura para os prazeres do marido, para cuidados do lar e para a educação dos filhos. Contudo, Há de se levar em conta que a identidade não é fixa e definitiva, nem um fato natural. “É uma construção”, um processo a estar sempre em desenvolvimento, “está ligada a estruturas discursivas, narrativas”, implicando, por sua vez, nas relações de poder (SILVA, 2000, p. 96-97).

Sem transpor o limite do lar, a atividade intelectual escrita era, portanto, inviabilizada para as mulheres, impedidas de participar e de expressarem nos ambientes acadêmicos ou mesmo nos espaços públicos, onde os saberes “eruditos” circulavam, mantinham-se no anonimato. Seguramente tínhamos exceções, mas o caminho dessas não era fácil, mesmo porque a mulher com idéias avançadas para seu tempo era vista como um perigo público e má influência para as demais. A mulher do século XIX e até meados do XX, deveria ser uma boa dona de casa, cuidar bem dos filhos e do marido, a atividade intelectual, além de ser algo reconhecidamente masculino, era vista como perigosa, contrária à natureza feminina. (SANTOS, 2009, P. 05)

Além do homem ser possuidor do meios de produção cordelista, é ele o grande consumidor desta literatura. Observa-se, no entanto, que as mulheres são exclusas não somente sobre a questão de produção. A figura do cordelista se firma como sendo, exclusivamente masculina, onde o homem se torna possuidor e define formas e regras “apropriadas” para a literatura. Muito se discute sobre o fato presenciado do caráter de dominação nos meios de comunicação e do sistema patriarcal atingindo com peso o campo comunicativo. A literatura de cordel não fica de fora, tendo em vista o contexto histórico atribuído como sendo exclusivamente masculino.

Bordieu no entanto, salienta sobre essa presença de relações de poder sobre os meios de comunicação, onde, observa acerca dos “sistemas simbólicos”, que cumprem funções de impor, legitimar ou assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica); que existem lutas no campo intelectual pelo monopólio da violência simbólica legítima (CARVALHO, 2005, p. 146 apud BOURDIEU, 1998b, p. 10-12).

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A década de 1960 é marcado por muitas mudanças ao que se refere ao social, a política e a cultura, além dos avanços tecnológicos.

[...] Durante o Século XX e início do XXI, a literatura de cordel reinventou-se. A comercialização do cordel [...] era realizada nas feiras populares, especialmente nas pequenas cidades do Nordeste do país, com a disposição dos folhetos [...] As vendas eram incentivadas através de versos pelo/a poeta/isa [...] contudo, ao atingir o contexto das grandes cidades, essas práticas comunitárias foram perdendo a sua funcionalidade [...] (BARROS, 2014 p. 20).

Os que leem os folhetos de cordel serão afetados pela chegada televisiva e do rádio, mas não se refere que as produções de cordéis diminuem. Ocorrerá nesta determinada época uma maior valorização pelo cordel, além das inovações atribuídas.

As novas tecnologias não diminuem a produção dos folhetos, mas transforma-a significamente. Ela passa a ser articulada com esses novos meios. O resultado do chamado processo modernização ocasionou mudanças no formato, na capa, na impressão. Novas táticas e estratégias passam a ser usadas no intuito de atender as novas demandas: o público leitor deixa de ser predominantemente rural, e entra em cena um público urbano e universitário (SILVA, 2006 p.285).

A literatura de cordel é uma representação de idas e vindas. Enquanto os novos modelos sociais, culturais e tecnológicos vão surgindo, nos folhetos transparecem a tradição e a renovação. “Eles constroem pontes entre passado, presente e futuro e nessa condição emergem as relações entre identidade e diferença.” (SILVA, 2006 p. 286) O cordelista dessa forma traz em seus folhetos, articulações sociais e históricos que estão inseridos no momento. Pode-se afirmar, no entanto, que o cordel pode ser considerando um projeto literário de valor, onde é reinventado a tradição, expressão e a sabedoria popular como uma forma de saberes e entretenimentos.

Mulher Produz Cordel, Mas Não Vende

A literatura de cordel foi durante maior parte da história reduto eminentemente masculino. A sociedade patriarcal traz para as sociabilidades, a exclusão feminina

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em grande escala, o que acarreta na invisibilidade de mulheres se tratando da atividade intelectual, sendo impedidas de expressarem/participarem dos ambientes acadêmicos ou espaços públicos.

A mulher mais precisamente do século XX aparece com características de virtude e de moralização, sempre vista através da ótica masculina, acarretando em limitações aos cuidados do lar e satisfação do marido.

Assim a presença da mulher era incomum na imprensa oficial, que as considera incapazes para o trabalho intelectual e na literatura de cordel que a excluía de igual maneira, por não considerar de bom tom sua entrada nesse universo na condição de autora [...] (SANTOS, 2009, p.05).

A historiografia no entanto, registrou eventos que atribuem a descoberta das primeiras mulheres como autoras no início do século XX. Diante do predomínio masculino e em um contexto nem um pouco propício para a representação feminina, que não seja conforme as condutas patriarcais, onde, a figura feminina devia ser relativa a condição de beata, muitas escritoras trouxeram estratégias para adentrar nesse universo masculinizado, como é o caso de Maria das Neves Batista Pimentel contrariando várias destas condutas estabelecidas. As obras de Maria das Neves foi uma dos primeiros vestígios de mulher escrevendo cordel, sendo folhetos publicados em 1938, a estratégia utilizada por esta mulher foi a de atribuir o pseudônimo do marido em suas obras, sendo Altino Alagoano. Como a própria expõe em entrevista a Maristela Mendonça (1993), não foi tarefa fácil expor suas obras em praça pública. Local este, servindo de vendas e cantorias, frequentado por homens cordelistas. Foi a partir do receio de não atribuir credibilidade e da própria noção das limitações adquiridas do ser mulher em um universo masculinizado que Maria das neves atribuiu-lhe o pseudônimo em seus escritos.

Todos os folhetos que foram vendidos na Livraria de meu pai ou que foram impressos, tinham nome de homem, eram homens que faziam, não existia naquele tempo, folheto feito por mulher, e eu, para que não fosse a única, né? meu nome aparecesse no folheto, não fosse eu a única, então eu disse: – Eu não vou botar meu nome. Aí meu marido disse: – Coloque Altino Alagoano (PIMENTEL, MENDONÇA, 1993, p. 70).

A cordelista dessa forma, termina optando por esconder sua face, acreditando que teria seus folhetos aceitos. No entanto, a autora além de se ocultar frente as suas obras, ela teria outro desafio:

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Os valores transmitidos por sua poesia não podiam transgredir o modelo que vinha sendo seguido desde a Idade Média na Europa: suas protagonistas deviam continuar ocupando o mesmo lugar ocupado na tradição por Porcina, Genevra e Genoveva; suas mulheres não podiam aparecer ostentando corpos dissidentes nem transmitindo opiniões por meio de vozes dissonantes. Elas deviam permanecer ocupando, com resignação, o território da aceitação e da renúncia (CARVALHO; OLIVEIRA, 2016, p.118 )

Maria das Neves muitas vezes em suas obras, acabaria se apropriando e reproduzindo atribuições de uma sociedade patriarcal. A autora passou a inserir personagens femininas, porém, ridicularizando-as, como é o caso em, O violino do diabo. Tal obra, se refere a personagens que protagonizam condutas não aceitas para a época. Pois, as mulheres deveriam exercer o papel de serem fiéis, honestas e virtuosas ao seus maridos. Uma das mulheres protagonistas, Elizabeth, abandona o marido chamado Luís, para se casar com um velho rico, o que acaba reforçando o estereótipo da mulher interesseira.

A amante respondeu: - Luiz, peço-lhe perdão! Encontrei um homem rico Que pretende minha mão

E eu seria uma tola Perdendo esta ocasião. Pois eu convidei o velho

P’ra chá comigo tomar Quero dar-te adeus Luiz Embora fique a chorar! ...

Pois eu só quero o dinheiro Depois mando o velho andar!

Porém Luiz eu te amo Nunca deixei de te amar Eu só quero os milhões E com o velho casar Depois que pegar o peixe

Irei contigo falar Perdoa caro marquês

A minha ingratidão Mas preciso aparentar

Ter boa reputação Apesar de ter-te dado Alma, vida e coração! (ALAGOANO, 1981, p. 19-20).

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Décadas após os folhetos de Maria das Neves outras mulheres começam a firmar suas próprias visões de mundo e sociedade se consolidando como autoras e resistindo ao universo machista e patriarcal onde, abordam anseios e criticam valores políticos e sociais que cabiam apenas aos homens. Autoras como Maria Godelivie e as mais contemporâneas Salete Maria da Silva e Jarid Arraes, visam a partir de uma nova perspectiva, a vida feminina, deixando para trás e desconstruindo os estereótipos masculinos vigentes na primeira metade do século XX. Atualmente o cenário é outro, a mulher produz cordel e vende.

Entre Práticas e Representações

Entendendo a literatura de cordel como capaz de trazer à tona imagens e discursos correntes na sociedade, sobretudo quanto aos papéis do feminino e do masculino, enxergamos como necessário aplicarmos o gênero como uma categoria de análise para compreendermos melhor a constituição de identidades de gênero representadas em tal literatura.

Para Joan Scott o conceito de gênero pode ser dividido em duas proposições, a primeira traz o gênero como “um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” que abarca quatro elementos inter-relacionados: os símbolos culturalmente disponíveis; os discursos normativos que expressam interpretações dos significados dos símbolos; as organizações e instituições sociais e a identidade subjetiva. E a segunda preposição define o gênero como “uma forma primária de dar significado às relações de poder. Seria melhor dizer: o gênero é um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado” (1995, p. 86-88).

Considerando o caráter sócio-literário da literatura popular em versos, analisamos três folhetos de cordel com intuito de perceber em suas representações a construção e concepção do que seria a identidade feminina. Através da problematização dos textos e das imagens presente nas capas, nos será possível entender as ideias e discursos perpetuados sobre as identidades de gênero e os papéis do feminino e do masculino. Nesse trabalho nos detemos de forma especial

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às percepções sobre o feminino, mas não nos impediu de abordar às percepções sobre o masculino, já que quando um papel é designado a um, automaticamente se designa um papel ao outro, e quando se estabelece uma identidade do feminino, automaticamente também se atribui uma ao masculino. Segue abaixo as análises.

O primeiro folheto analisado é de Elias A. de Carvalho, e tem como título O desafio da mulher. Ao examinarmos a imagem presente na capa (Fig. 1.), vemos uma mulher batendo o pé e gritando e um homem de costas despreocupado, em cima dela há a palavra “curtição”, o que dá a entender que ela está irritada porque o marido vai sair. Essa figura retrata a mulher como histérica e o homem como despreocupado, livre, que não se importa com a opinião alheia, ou que não segue ordens. Essa imagem atribuída a ambos os sexos vai ser intensificada ao longo dos versos.

Figura 1. Capa do folheto de cordel O desafio da mulher, de Elias A. de Carvalho, 1982. Fonte: Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.

A parte textual do folheto foi feita em décima1 e sua temática se encaixa na

categoria de fatos circunstanciais ou acontecidos, já que discorre sobre o elemento humano e sobre o comportamento social. Seu enredo começa com um personagem observando uma discussão entre um casal, essa discussão, no entanto, toma forma

1 A décima é uma das modalidades mais utilizadas pelos cordelistas brasileiros. Como no cordel

chama-se as estrofes de “versos” e os versos propriamente ditos de “linhas” ou “pés”, denomina-se de décima, um verso com dez linhas ou dez pés. Outras modalidades comuns são a setilha, verso com sete linhas e a sextilha, verso com seis linhas.

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de peleja ou desafio2, o que explica o título do cordel. Mas, por que o título colocado

não fora “o desafio do homem e da mulher” ou “o desafio do casal” e etc.? acreditamos que por ser mais comum os desafios entre homens, e outrora integralmente, se quis acentuar que tal desafio terei a participação de uma mulher.

A discussão, que começa porque a mulher diz querer se separar de seu marido, acaba se transformando numa peleja em que um tenta superar o outro por meio da argumentação e da rima. Nesse duelo, ambos passam a designar alguns adjetivos para os sexos. Para ela, as mulheres são sublimes, essência do amor, fonte da vida, donas da beleza e do um charme tentador; para ele, os homens são fortes, reis dos animais, provedores da família e batalhadores. Assim, a natureza da mulher é o amor, a pureza a reprodução e a do homem é a força, a coragem, ele é o rei, aquele que está acima. É importante mencionar para o caráter de representação inserido nas imagens. Chartier defende a ideia da falta de neutralidade nos discursos que o mundo das representações atribuem, pois produzem táticas com a tendência de imposições e interesses diversos. Pois: “Produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas." (CHARTIER, 1991, P.17) Tendo isso em questão, pode-se trazer em pauta a questão representativa não somente nas imagens como nos próprios textos de trazer o homem como um meio de imposição e dominador sobre a mulher.

Dessa forma, no cordel eles continuam defendendo seu gênero e ofendendo o outro:

[...] ELA – Mulher é coisa sublime, a essência do amor, o homem só tem valor tendo ela em seu regime.

Por ela, ele vai ao crime, perde a personalidade. Mulher tem capacidade pra transformar o destino de qualquer ser masculino

2 A peleja, ou desafio, é uma disputa entre poetas e/ou poetisas para mostrar suas habilidades e conhecimentos.

Para tal, fazem uso de versos já prontos, os chamados “Obra feita”, ou de versos improvisados, abordando temas tradicionais ou fatos circunstanciais.

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com muita facilidade ELE – É tão comum a mulher,

tida como sexo frágil, ser astuta e muito ágil para iludir a quem quer.

E se a arte lhe trouxer consequência desastrada

ela está preparada para ostentar seu encanto,

ou apelar para o pranto,

pra não perder a parada [...] (1982, p. 2)

Nesses versos a mulher é representada como astuta, esperta, capaz de manipular e enganar o homem se aproveitando da imagem de “sexo frágil” atribuída a ela. Já o homem é tido como dependente da mulher e facilmente manipulado por ela.

Nos versos seguintes o casal fala do comportamento do homem e da mulher diante do matrimônio:

[...] ELA – Casa a moça com um rapaz toda cheia de esperança, pensando em lar, em criança...

o que toda moça faz. Mas ele é um satanás, bebe, joga e bate nela. Falta-lhe pão e tutela mas esta não perde os trilhos

luta pelo bem dos filhos e proteje o nome dela. ELE – Traz a moça um sofrimento

vivendo desde pequena num estado de dar pena, doente e sem alimento. Porém, um bom casamento

fez essa jovem importante. Com o marido é constante

em seu papo confidente, dizer que está doente

pra se entregar ao amante [...] (Ibid., p. 3-4).

Ao dizer que toda moça sonha com um casamento, com um lar e com filhos, o cordel acaba evidenciando os discursos que foram incutidos na mentalidade da mulher ao longo dos séculos, discursos que fizeram com que essa visse sua vida e suas funções sociais limitadas ao campo doméstico. Também é mostrado a consciência da mulher em relação a liberdade e violência dadas apenas ao homem,

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no entanto, ela é mostrada como a paciente que suporta tudo pelos filhos e pela sua honra. No segundo verso a mulher é representada como interesseira, pois vê no bom casamento, isso é, no casamento com um homem de boa condição financeira, uma forma de viver bem, sem deixar, contudo, de lhe enganar com a traição.

Uma vez finda a peleja o personagem que a observava então o último verso: [...] Mulher, nosso complemento,

tem idéia de jerico e um talhe muito rico desprovido de talento. Seu contraditório intento termina nos convencendo. Mas, mesmo reconhecendo

que o homem é superior, trate a mulher com amor para não sair perdendo [...] (Ibid., p. 8).

Nesse último verso fica claro a construção social em que a mulher é vista como inferior ao homem. Suas ideias tidas como absurdas, e apesar de seu “talhe”, ou seja, sua configuração física ser reconhecida como bonita, admirável, é vista como desprovida de talento, isso é, não consegue realizar o que um homem é capaz. Apesar de ser tida como inferior ela é representada como complemento do homem, e por ser necessária ao homem o personagem adverte que é melhor tratá-las bem, “para não sair perdendo”. Nessa narrativa podemos enxergar o gênero como uma forma de constituição de poder de um sexo sobre o outro. Ela também concebe à mulher três identidades centrais: a de inferioridade; a de astúcia e a de pureza.

O segundo folheto analisado é de José Bernardo da Silva, e tem por título Descrição das mulheres conforme seus sinais. Observando a capa (Fig. 2) podemos ver duas mulheres com traços físicos iguais aos falados ao longo do folheto: pernas finas, nariz alongado, pelos no queixo e pele branca, características ridicularizadas e tidas como negativas em tal cordel.

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Figura 2. Capa do folheto de cordel Descrição das mulheres conforme seus sinais, de José Bernardo da Silva, 1963.

Fonte: Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.

A parte textual do folheto foi feita em setilha e se encaixa na categoria de fatos circunstanciais ou acontecidos, já que sua temática é composta pela sátira e pelo elemento humano. Ela inicia falando que através da configuração física de uma mulher é possível saber o seu perfil psicológico e comportamental:

Um cientista me disse, eu tenho prestado atenção

que os sinais da mulher predominam o coração antes de mostrar seus feitos

conforme sinais e jeitos vemos a decifração (1963, p. 1)

Nesse cordel, as mulheres com pernas grossas e com pelos no queixo são tidas como loucas, devassas e namoradeiras; as com pernas finas e pescoço comprido são tidas como malvadas, pessimistas e aproveitadoras; as que vão a festas, pagodes, novenas, feiras e outros locais de lazer, são acusadas de pensar maldades. Mas as mulheres que tem a aparência física dentro do padrão considerado como “bonito”, são tidas como puras e honradas:

Também a mulher que tenha corpo bem feito e delgado as faces lindas e risonhas cabelo preto embolado

é onde existe pureza fidelidade e firmeza

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O discurso contido nos folhetos diz que a aparência está diretamente ligado ao comportamento e a identidade. A mulher é advertida a manter uma certa conduta, a conduta vista como adequada para uma mulher, isso é, mansa, conservadora, que se retrai no ambiente doméstico. Novamente vemos a designação de papéis e o modelo de conduta que a mulher deve seguir para ser respeitada:

[...] A mulher da fala mansa que no andar tem bom jeito

os olhos apetitosos pescoço curto e bem feito

por dar muita liberdade fica sem dignidade porém merece o respeito

A mulher que preferir boa conceituação deve conservar-se sempre

numa certa posição muito pouca liberdade tratar com sinceridade em sua conversação (Ibid., p. 4-5).

O terceiro folheto analisado é de José Francisco Borges, e tem como título A mulher vampiro e o exemplo das costas nua. Em sua capa (Fig. 3) podemos ver a imagem de uma mulher vampira pronta para atacar uma mulher que veste mini saia. Ao longo dos versos a mini saia é apresentada como roupa inadequada para as mulheres consideradas decentes, o que justifica o ataque da vampira.

Figura 3. Capa do folheto de cordel A mulher vampiro e o exemplo das costas nua, de José Francisco Borges, [19--] ³.

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A parte textual do folheto foi feita em sextilha e se encaixa tanto na categoria de temas tradicionais, quanto na de fatos circunstanciais, pois aborda elemento humano; ___________________________

³ No folheto abordado, não há uma data precisa, a mais aproximada se encontra na década de 1982. [...]

seres fantásticos; seres mitológicos e valores morais. Esse cordel também se encaixa na categoria de conto de exemplo, ou seja, que carrega em si uma ação doutrinária. Nesse caso, a mulher vampira é o ser mitológico que morde as mulheres que aderem às roupas da modernidade: as mini saias e as blusas de costas nuas, essas são vistas como sem vergonha e sem respeito:

Sabemos que o vampiro É o homem ou a mulher Que por meio de maldição

Ou influencia qualquer Espécie dum lubisomem Mordendo que bem quiser.

E agora està correndo Uma mulher de desse geito

Quando pegá uma mulher Sem vergonha e sem respeito

Ou moça de costas nuas

Morde nas costas e no peito (BORGES, 19--, p. 1)

A vampira é vista como a disciplinadora, a que castiga as pessoas que precisam se “endireitar”, as que não segues os valores morais daquela sociedade:

[...] A policia fez um cerco Só poderam lhe avistar Mas ela logo invultuou-se

Ouviram ela falar Dizendo desta maneira

Eu venho pra ageitar O sargento lhe falou Quem è que você ageita

Ela disse as mulheres Que o marido não respeita

As que usam frente única Comigo se endireita As que usam mini-blusa

E que usam costa nua Eu enfico estas presas

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Todinhas na carne sua Chupo tanto que ela enverga

Igual um arco de pua Vou sangrá gente ruim

Que vive de anarquia Mulher que vende o cabelo

Moça que vive em folia Cabra que rouba no peso Encontro com ele um dia (Ibid., p. 2-4).

Os valores morais aqui, estão imbricados com os valores católicos, Para a Igreja, os

modernismos – se enquadrando nesse aspecto roupas, maquiagem, livros, jornais, revistas – são criticados constantemente, recebendo uma denotação pejorativa (LEON; FARIA FILHO, 2015, 3). Assim, se apropriando dos valores católicos tão em voga socialmente, esse cordel transmite os discursos da Igreja Católica. O castigo trazido pelos modernismos, no entanto, podem ser evitados, basta o homem ou a mulher se agarrem com Deus, Maria e Padre Cícero, basta andarem conforme a moral cristã:

[...] Estão todos avisados Seja ruim quem quiser Se peguem todos com Deus

Que seja homem ou mulher E não deixe pra se lembrar

Quando o vampiro vier [...] isso è mais um castigo

Para quem faz anarquia Ninguém pode ignorar Ta se aproximando o dia Dos exemplos e dos horrores Que padre Cícero dizia (Ibid., p. 7-8). Considerações Finais

A Literatura de cordel traz em evidência como são produzidas as representações e identidades. Os discursos aqui encontrados transmitem uma produção marcada pelo conservadorismo, valores religiosos e machismo. No entanto, não se deixa de lado a desconstrução que envolve muitos dos cordelistas, tendo em vista que tal literatura acompanha o contexto histórico e social que está

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inserido, uma gama de autoras que hoje se fazem parcialmente inclusas no meio poético, buscam justamente corromper com essa marca do cordel como sendo um meio literário preconceituoso, através de críticas e questionamentos para a sociedade patriarcal vivenciada.

Ao analisar os folhetos, observa-se homens e mulheres sendo apontados e marcados por variadas facetas. Tal multiplicidade aparece justamente por conta da pluralidade na condição histórica e para a produção das variadas identidades que sempre estão em construção. Como Fabiana C. Leão escreve: “A nossa literatura de cordel também é um mundo inacabado [...] eterna metamorfose [...] Tudo se troca, se constrói e desconstrói. Toda desconstrução é uma recriação.” (2005, p. 84)

Referências

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BARROS, Miguel. O Masculino e o Feminino na Literatura de Cordel publicada em São Paulo. São Paulo, 2014.

CARVALHO, Francismar Alex Lopes de: O Conceito de Representações Coletivas segundo Roger Chartier. Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 9, n. 1, p. 143-165, 2005.

CARVALHO; OLIVEIRA, Maria das Neves Batista Pimentel: A voz por trás do verso. Campina Grande, v. 16, n. 2, 2016.

CHARTIER. Roger: O mundo como representação. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 200.

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Referências

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