O Centauro no Jardim
Moacyr Scliar
Espaço: as ações têm início e encerram-se num
restaurante tunisino, em São Paulo, com lembranças
de Quatro Irmãos (interior do RS), Porto Alegre, São
Paulo e Marrocos.
Tempo: narrativa em primeira pessoa; vida de
Guedali Tartakovsky, desde o seu nascimento, em
1935, até seu aniversário de 38 anos, em 1973.
São Paulo: restaurante tunisino Jardim das
Delícias – 21 de setembro de 1973
“Agora é sem galope. Agora está tudo bem.” Assim Guedali abre a narrativa na comemoração do seu aniversário de 38
anos. Estão presentes Tita, os filhos e amigos. O narrador não se sente mais um estranho, embora sofra de insônia e crê ainda ouvir o ruflar das asas de um cavalo alado.
Pequena fazenda no interior do Distrito de Quatro Irmãos
– RS, 24 de setembro de 1935 a 12 de setembro de 1947
Nasce Guedali, filho de uma família de judeus russos. Quase todos os imigrantes já deixaram o campo, mas o pai, Leão Tartakovsky, mantém-se fiel ao Barão Hirsch, um bem-feitor que ajudou judeus permantém-seguidos pelos pogroms a migrarem para a América do Sul.
Guedali não é um bebê normal. É um centauro! A mãe, Rosa, ficará muito tempo em estado de choque. O irmão, Bernardo, fica horrorizado. As irmãs, Débora e Mina,
choram. O pai, desesperado, tenta entender a razão do acontecimento. A parteira cuida do bebê, faz a higiene, dá mamadeira de leite
misturada com alface. Leão Tartakovsky procura o Doutor Oliveira, médico, que também não tem explicação para o fato, mas pede para fotografar a criança a fim de enviar para uma revista médica. Quem sabe assim alguém poderia apresentar uma solução para o caso. No entanto as fotos revelam-se ruins e não podem ser aproveitadas... O tempo passa e a família acostuma-se com Guedali, que será finalmente aceito pela mãe. O pai busca um mohel na cidade para providenciar a circuncisão do centauro. Ao ver a criatura, o mohel tenta fugir, mas acaba realizando seu trabalho. Guedali cresce e se desenvolve.
Gosta de galopar pelo campo e fica escondido quando há estranhos na fazenda. Aprende com Débora a tocar um velho violino da família. Um dia, como uma corda rebentasse, Guedali joga o violino no rio e depois
arrepende-se. Ao ser repreendido por seu ato, o
centauro tenta o suicídio, ferindo-se com um prego. A família entende seu sofrimento e ajuda na recuperação. Guedali conhece um indiozinho, a quem dará o nome de Peri, mas não voltará a vê-lo. Em seguida, é descoberto por Pedro Bento, filho do
fazendeiro vizinho, que tenta montá-lo. Leão compreende que não
podem mais seguir vivendo ali e decide mudar-se com sua família para Porto Alegre.
Leão compra uma casa grande e um armazém no bairro ainda isolado naquele tempo. Guedali torna-se um autodidata, unindo sua inteligência à leitura de clássicos de todas as áreas do conhecimento. Faz também cursos por correspondência , acumulando inúmeros diplomas. Ao
completar treze anos, Guedali tinha de passar pela cerimônia do bar-
mitzvah, que deveria ser feito em casa, pois o centauro não poderia ir à
Sinagoga. Logo após, Bernardo deixa a casa dos pais e vai morar no
centro da cidade. Débora casa-se e vai morar em Curitiba. Aos dezoito anos, Guedali ganha um
telescópio e descobre uma vizinha linda e nua, que tomava banho de sol no terraço de uma mansão (“Foi então que me
apaixonei”). Decide, então, criar pombos para treiná-los e comunicar-se
com sua amada. Depois de muito treino, escolhe o pombo mais esperto (Colombo) e ata um bilhete à Adorável Desconhecida da
Mansão. O pombo “cretino” voou na direção oposta e desapareceu...
Para completar, aparece um homem mais velho no terraço – seria o pai da moça? “Mas ele se aproximou por trás dela, abraçou-a, tomou-lhe os
seios nas conchas das mãos...” Guedali adoeceu. Recomposto, deixa
uma carta para a família e parte a galope e sem destino.
Circo, 1953 a 1954
Guedali consegue um emprego em um circo, alegando usar uma fantasia com seu irmão que não gostava de aparecer. Faz sucesso e envolve-se com a domadora, mas esta descobre que Guedali é mesmo um centauro. Guedali foge.
Uma Estância no Rio Grande do Sul,
1954 a 1959
Guedali descansa em um rancho abandonado e desperta com uma cena inusitada: um velho a cavalo perseguindo uma centaura (!),
ameaçando atirar contra ela. Guedali aparece para defendê-la e o velho cai do cavalo e morre. Era Zeca Fagundes, rico fazendeiro que vivia em um castelo com sua esposa, Dona Cotinha. O filho do casal morava na cidade e não se dava com o pai. Zeca Fagundes tinha muitas amantes (um harém) instaladas no subsolo do castelo. De uma delas nasceu a centaurinha Tita, criada sem que o velho soubesse. Com a morte de Zeca, as amantes deixam a propriedade e Dona Cotinha aceita
Guedali. O casal de centauros vive na fazenda uma lua-de-mel, mas ambos sonham com uma vida normal. Descobrem, então, uma clínica no Marrocos que poderia ser a solução. Dona Cotinha
banca as enormes despesas e Guedali e Tita partem para a África.
Marrocos, junho a dezembro de 1959
Guedali e Tita submetem-se a uma complicada cirurgia para retirar a parte equina. Precisam usar botas especiais com encaixes para os cascos e aprender a andar como bípedes. Prestes a retornar para o Brasil, recebem a notícia da morte de Dona Cotinha, que legara boa parte de sua herança ao casal. Partem para Porto Alegre.
Porto Alegre, 25 de dezembro
de 1959 a 25 de setembro de 1960
Período em que o casal mora na casa
dos pais de Guedali, no bairro Teresópolis. Com o dinheiro da herança, Guedali
decide montar um negócio de importação e exportação em São Paulo.
São Paulo, 25 de setembro
de 1960 a 15 de julho de 1968
Na nova vida de Guedali os negócios vão muito bem. Certo dia, toma um táxi e depara-se com Pedro Bento no volante, mas este não o
reconhece. Guedali dá dinheiro a um rabino para que Tita receba o atestado de conversão ao judaísmo. Logo após, casam-se em Porto Alegre.
Em São Paulo, formam um círculo de amizade com jovens empresários, quase todos de origem judaica. Paulo, casado com Fernanda, é seu melhor amigo. A turma de amigos combina uma brincadeira durante o carnaval, na qual os fantasiados deveriam
descobrir-se em meio à multidão no centro da cidade, mas Guedali e Tita deparam-se com uma fantasia de centauro e ficam muito
assustados. Não bastasse isso, Guedali percebe que Pedro Bento e a domadora é que vestem a fantasia. Decide fugir dali com Tita.
perfeitos.
Guedali trai Tita com Fernanda, esposa de seu amigo Paulo. Paulo propõe à turma, empresários bem
sucedidos, que construam um condomínio horizontal e todos ficam animados. Paulo é abandonado por Fernanda, mas mesmo assim
decide seguir com o projeto. Tita e Guedali percebem que suas pernas se parecem cada vez com pernas humanas e os cascos caem,
revelando pequenos pés.
Condomínio Horizontal, 15 de julho
de 1965 a 15 de julho de 1972
Segue a vida de Guedali numa boa rotina, até que o condomínio contrata um motorista: Pedro Bento. Guedali decide chamá-lo e, na conversa, deixa claro que seu passado não pode ser revelado. Outro que também reaparece é irmão, Bernardo, agora hippie.
de centauro. Júlio então conta que nasceu com um rabo de vinte centímetros; Joel diz que tinha escamas. Irritado, Guedali revela a Paulo seu caso com Fernanda. Mais tarde, desculpa- se com o amigo.
Depois de uma longa viagem a Israel e à Europa, Guedali e Tita vão para o Marrocos visitar a famosa clínica. Encontram um ambiente
decadente, que agora vive de abortos.
De volta ao condomínio, Guedali surpreende Tita abraçada a um centauro na sala de sua casa. O centauro era fruto de uma rica família catarinense. Sua mãe tornara-se amiga de Débora, irmã de Guedali, que dera informações sobre a clínica do Marrocos. O jovem centauro vai para o Marrocos, mas não faz a cirurgia. Descobre a existência de Tita e Guedali e decide procurá-los. Em sua busca, fica conhecendo Bernardo, que o auxilia com indicações. Conhece Tita, que se entrega ao jovem na adega da casa. Estão apaixonados. Guedali ouve toda a história quando, de repente, os amigos invadem a casa aos gritos de
“Feliz Aniversário!” (era aniversário do condomínio). O centauro foge
Marrocos, 18 de julho de 1972
a 15 de setembro de 1972
Com o objetivo de voltar a ser centauro, Guedali retorna ao Marrocos. O cirurgião resiste inicialmente, mas depois concorda, advertindo o paciente do alto risco que o procedimento apresentava. Guedali
hospeda-se na clínica e conhece Lolah, uma esfinge: cabeça e busto de mulher e corpo de leoa. Os dois conversam muito e Lolah se
apaixona. Fazem amor, mas a esfinge é temperamental e possessiva. Guedali desiste da cirurgia, mas é sedado pelo médico. No momento crucial, Lolah foge de sua jaula, ataca a parte a ser transplantada e é abatida a tiros pelo auxiliar do cirurgião. O médico acusa Guedali de
“satisfazer instintos bestiais” com a esfinge, que ele
adorava. Na hora da partida, Guedali recebe de presente uma caixa com uma pata de Lolah.
Pequena fazenda no interior de Quatro Irmãos,
RS, outubro de 1972 a março de 1973
Guedali retorna à casa dos pais em Porto Alegre fazendo certos questionamentos, mas o pai o deixa sem respostas: “Mas, papai, eu
tinha patas ou não tinha?” “Depende, filho, do que chamas de patas.”
Em seguida, vai para o interior e compra a propriedade que fora de sua família, numa tentativa de resgatar o passado perdido. Reencontra o índio Peri (na verdade, Remião) e o convida para trabalhar com ele na fazenda.
Durante uma seca, Guedali encontra o violino que um dia havia
jogado no rio. Como Remião era pajé, Guedali pede que o índio o faça retornar à condição de centauro. Remião ensaia um ritual que não
resulta em coisa alguma.
Tita aparece e ocorre a reconciliação. Aparecem também os filhos, os pais e os amigos: “... senti que era tempo de voltarmos para a
Guedali observa Tita, que conversa com uma moça de óculos muito atraente. Está contando a história de Guedali em uma perspectiva
realista.
Guedali nasce em um parto difícil e sua mãe cai em depressão. Ele nasce com defeitos nos pés, mas sabe cavalgar muito bem. Peri é um amigo imaginado e Pedro Bento um inimigo da infância. Quando a
família se muda para Porto Alegre, Guedali recolhe-se em sua timidez, a ponto de realizar seu bar-mitzvah em casa. Apaixona-se por uma vizinha e frustra-se por ela ser comprometida, vindo a fugir. Consegue emprego em um circo, usando uma fantasia de centauro. Apaixona-se então pela domadora, que não corresponde, levando Guedali a fugir dali também. Chega a uma estância na fronteira onde conhece Tita, cujo pai, o fazendeiro Zeca Fagundes, morre no dia de sua chegada.
São Paulo: restaurante tunisino Jardim
Por esse tempo, Guedali começa a ter terríveis dores de cabeça e alucinações (imagina ser um centauro). É
examinado por vários médicos que diagnosticam um tumor cerebral. Em busca da cura, Guedali e Tita vão para o Marrocos. O médico retira o tumor com sucesso, mas Tita é atropelada e sofre várias fraturas, sendo operada pelo mesmo cirurgião. Com a herança de Dona Cotinha, abre uma firma em São Paulo. Guedali tem ciúmes de Tita e Ricardo, um jovem oriundo de uma rica família catarinense e militante de esquerda. Fora preso, mas conseguira fugir para Argélia. Através de um amigo, descobre uma clínica no Marrocos onde poderia fazer uma cirurgia para alterar seu rosto e poder retornar ao Brasil. Na clínica, desiste da cirurgia e anota o endereço de um brasileiro, afinal poderia precisar em uma eventualidade: era Guedali. Ao chegar na casa de Guedali, Ricardo conta sua história a Tita e apaixona-se por ela.
Tita não corresponde, mas o jovem insiste e a abraça no momento em que Guedali entra em casa. Em seguida, chegam de surpresa os amigos de Guedali para comemorar o
aniversário do condomínio. Apavorado, Ricardo foge e, confundido com um ladrão, é abatido pela segurança do condomínio. Perturbado com os acontecimentos, Guedali decide retornar ao Marrocos, novamente alucinado: agora quer voltar a ser centauro. Na clínica já decadente, envolve-se com uma enfermeira, Lolah, que lhe presenteia com um amuleto, uma pata de leão. Já recuperado, Guedali volta ao Brasil e decide viver na propriedade que pertencera à família no interior de
Quatro Irmãos. Acaba se envolvendo num ritual indígena com Remião, um bugre da região. Finalmente Tita aparece e convence Guedali a retomar a vida junto à família e aos amigos. Mudam-se, então, para a zona sul de Porto Alegre. Observe o fechamento do livro:
“Ainda rindo, a moça inclina-se para apanhar a bolsa. Nesse momento, a blusa entreaberta deixa ver um seio bem modelado, de contorno suave. E os colares com mil penduricalhos: uma estrela-de-davi, indiozinhos; mais abaixo, já no desfiladeiro entre os seios, uma pequena esfinge em bronze; um cavalo alado, de asas abertas; o centauro.
Abre a bolsa. Antes mesmo que fale, antes que diga que esqueceu os documentos no carro, antes que me peça para acompanhá-la, já estou me levantando, já estou de pé. (...)
Como um cavalo alado, prestes a alçar vôo, rumo à montanha do riso eterno, o seio de Abraão. Como um cavalo,
na ponta dos cascos, pronto a galopar pelo
pampa. Como um centauro no jardim, pronto a pular o muro, em busca de liberdade.”
Centauro
Imagem do gaúcho, o “centauro dos pampas”
Pode simbolizar mais força para o ser humano, mas Guedali tem de se mutilar para viver na sociedade
ser duplo = homem + cavalo sensibilidade + força
incluso + marginalizado góim + judeu
civilizado + selvagem
Guedali e sua necessidade de galopar judeu errante, inadaptado, perseguido,
estrangeiro em qualquer lugar Aparece associado ao inconsciente,
aos instintos primitivos
Realismo mágico
ou fantástico
O Jardim das Delícias (tríptico)
Hieronymus Bosch (1450-1516),
considerado o primeiro artista fantástico
Sobre o título:
O Centauro no Jardim
“O” – é um centauro específico, determinado.
“Centauro” – imagem já comentada anteriormente.
“Jardim” – o jardim é um símbolo de cultura por oposição à natureza selvagem, de reflexão por oposição à espontaneidade, da ordem por oposição à desordem, da consciência por oposição ao inconsciente. (...) o jardim representa um sonho do mundo.
Trítico fechado
O trítico fechado: A Criação do mundo, óleo sobre tábua, 220 x 195 cm.
O quadro fechado na sua parte exterior alude ao
terceiro dia da criação do mundo. Representa um globo terráqueo, com a Terradentro de
uma esfera transparente, símbolo, segundo
Tolnay, da fragilidade do universo. Há apenas formas vegetais e minerais, não há animais nem pessoas. Está pintado em tons grises, branco e preto, o que se corresponde a um mundo sem o Sol nem a Lua embora também seja uma
forma de conseguir um dramático contraste com o colorido interior, entre um mundo antes do homem e outro povoado por infinidade de seres (Belting).
Tradicionalmente, a imagem que amostra o
trítico fechado interpretou-se como o terceiro dia
da criação. O número três era considerado um
número completo, perfeito, já que em si mesmo encerra o princípio e o fim. E aqui, ao se fechar, transforma-se, no número um, no círculo: de novo nos permite vislumbrar a perfeição absoluta e, talvez, a trindade divina. No canto superior esquerdo aparece uma pequena imagem de Deus, com
uma tiara e a Bíblia sobre os joelhos. Na parte superior pode-se ler a frase, extraída
do salmo 33, "Ele o diz, e todo foi feito. Ele o mandou, e tudo foi criado". Outros interpretam que
Painel esquerdo: O jardim do Éden
O postigo da esquerda representa o Paraíso terreno.
Painel central: O jardim das delícias terrenas
A tábua central é o Jardim das Delícias Terrenas, propriamente dito. Um falso paraíso no qual a humanidade já sucumbiu em pleno ao pecado, especialmente à luxúria, e dirige-se à sua perdição.
Painel direito: O inferno
220 cm X 389 cm