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Latusa Digital ano 0 N 2 setembro de 2003

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Latusa Digital – ano 0 – N° 2 – setembro de 2003

A Orientação Lacaniana em “Improvisação sobre a Rerum Novarum”

Mirta Zbrun *

Para falar da psicanálise de Orientação Lacaniana e da sua atualidade neste início de século escolhemos, no recente livro de Jacques-Alain Miller, Le neveu de Lacan, o escrito Improvisação sobre a Rerum Novarum. Por sua maneira particular de pensar a relação da psicanálise pura e aplicada com as psicoterapias, esse texto fornece elementos múltiplos e fundamentais sobre o assunto.

Trata-se da fala de Miller a psicanalistas italianos no Palazzo delle Stelline, em Milão, em 21 de dezembro de 2002. Ele se pronuncia por uma psicanálise atualizada com o espírito do nosso tempo ao dizer:

“[...] a psicanálise não existe no céu das idéias, existe através de nós e conosco. Ao mesmo tempo, ela é um discurso que tem sua estrutura, sua lógica e desenvolve suas conseqüências. Tentamos nos orientar no meio dessas conseqüências que a existência da psicanálise traz”.

Miller toma como referência o Syllabus, considerando-o um acontecimento comparável à revolução francesa, à descristianização do mundo, à destruição sistemática das Igrejas. O movimento de descristianização não durou muito, mas constituiu um verdadeiro terror para os crentes. Esses eram tempos regidos pelo exame pessoal de qualquer questão: toda crença era interrogada em seus fundamentos racionais e toda forma ritualizada de comportamento

* Analista praticante – AP. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP).

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era dispensada. Tratava-se do espírito do Iluminismo que tomou sem dúvida uma forma militar, imperial, a ponto de Napoleão requisitar a presença do Papa, na época Pio VII, para abençoá-lo em sua ascensão ao trono.

Por que a referência ao Syllabus? O exame dos fatos e das condições de sua publicação assim como, posteriormente, dos da Rerum Novarum permitiu a Miller tirar conclusões a respeito da atualidade do movimento psicanalítico de Orientação Lacaniana.

O que é o Syllabus? Trata-se de um catálogo de proposições que sob nenhum pretexto deveriam ser aceitas pela Igreja. Foi publicado em 1864 pelo papa Pio IX (1846 a 1878), o mesmo que proclamou os dogmas da Imaculada Conceição e da Infalibilidade Pontifícia e que viu desaparecer, durante seu papado, o poder temporal da Santa Sé. Seu antecessor, Pio IV, fora feito prisioneiro pelos franceses, mas o Concordato com a França só veio a ser firmado por Pio VII que, como já foi dito, esteve presente à coroação de Napoleão Bonaparte.

A última de suas proposições, a mais inaceitável, diz: “A Igreja católica, apostólica e romana deve se reconciliar com o espírito de seu tempo”. Não, isso nunca, o espírito do tempo, a democracia, não! Era inaceitável.

Na história da Igreja, o Syllabus marca um primeiro tempo no qual era necessário afirmar a posição da Igreja, sua doutrina, seus dogmas. Como a história é dialética, novos tempos se seguiram. Num segundo tempo, apenas 27 anos depois, em 1891, durante o papado de Leão XIII, surge a Rerum Novarum. Ela permitirá a efetivação justamente das proposições que, até aquele momento, eram consideradas inaceitáveis.

Para Miller, a Rerum Novarum de Leão XIII seria uma atualização do espírito do Syllabus de Pio IX, devido ao próprio movimento dialético da história do pensamento da Igreja. Para ele a dialética dos tempos modernos, a hegeliana, não passa de uma teologia laicizada nascida da dialética do Antigo e do Novo Testamento. Nela, a matriz da Aufhebung, conservada em suspensão, é a

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crucifixão e a ressurreição de Cristo em sua glória: ele morre e reaparece depois em ascensão, deixando seu túmulo vazio. A dialética moderna seria, desse modo, a meditação hegeliana sobre a Bíblia e a história da Igreja. O Antigo Testamento corresponderia ao Syllabus e o Novo Testamento à Rerum Novarum, constituindo o primeiro o estabelecimento das normas dos profetas, a lei de Moisés, e o segundo a renovação da antiga lei pela palavra do Messias. Leão XIII, que se distinguiu por seu espírito progressista e moderno, publica a Encíclica Rerum Novarum a respeito das normas que devem reger as relações entre patrões e operários. Ele não preconiza a reconciliação com o espírito do tempo, porém efetivamente o faz ao levar em conta a classe operária, a democracia. Miller vê realizar-se com isso um deslocamento da aristocracia à democracia.

Há então o tempo do Syllabus, o tempo de dizer “não às tais proposições e depois o tempo da Rerum Novarum: três tempos do “modo” (more) milleriano de ler a história e a psicanálise. A Igreja mantém seu olhar sempre dirigido para o futuro, porque seu horizonte está mais além do terreno. Ela mantém uma relação dialética entre “uma verdade eterna” e as diferentes épocas que a humanidade atravessa, entre essa verdade que não muda e “as diferentes formas que ela adquire segundo a época”. Há, porém, na psicanálise relação com a verdade? Há uma verdade? Há um real? Miller diz que:

“[...] a forma que a verdade toma quando aparece nunca é a mesma sob a qual subsiste. Porque uma verdade que emerge só perdura se for capaz de uma mutação interna, se aqueles que a servem não estiverem presos a uma inércia subjetiva. Porque quando uma coisa acaba, c’est fini. Se a psicanálise não se modificar e ficar entravada por sua inércia subjetiva, estará acabada, sepultada”.

Estamos de acordo com ele quando diz que a psicanálise não vai durar muito tempo em suas formas antigas. “Não basta uma cosmética, há coisas que não se reinventam mais. [...] A psicanálise sobre um pedestal, o psicanalista

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mágico, aquele a quem não se pede provas porque está endossado por uma forte instituição que lhe dá suas credenciais”. Como exemplo ele dá a psicanálise nos EUA, especificamente na Califórnia, onde “a busca da linhagem do analista, como se fossem linhas principescas e aristocráticas, teria terminado. O que o paciente quer saber é se o tratamento oferecido funciona”. Seria exagero dizer que se trata de uma aristocracia, porém há as linhas psicanalíticas, assim como as aristocráticas. Os pacientes, na atualidade, querem saber o que realmente faz um psicanalista; se ele está bem, por seu lado, verdadeiramente curado, para cuidar deles.

São essas as perguntas que os sujeitos de hoje começam a se formular sobre o verdadeiro e o falso em relação ao tratamento. Os sujeitos querem ser tratados em pé de igualdade, diz um psicanalista da IPA, o americano Owen Renik. Esses pacientes californianos seriam considerados insolentes na Europa, porque lá as relações são mais distantes, digamos mais aristocráticas. No entanto, isso precisa ser mudado se a psicanálise quiser ganhar o campo das psicoterapias.

Não se trata então de continuar pensando segundo a dualidade IPA/lacanianos, como os psicanalistas estão acostumados. Trata-se hoje de enfrentar o desafio da psicanálise nesse início do século XXI. Miller propõe como mudança a abertura da instituição analítica aos novos tempos, com a dimensão da psicanálise aplicada. Não se trata do psicoterapeuta, mas do psicanalista na terapêutica ou do psicanalista no exercício da psicanálise aplicada.

A psicanálise tem que se aproximar da cidade. Estamos no tempo de uma Rerum Novarum, no sentido de que essa renovação veio depois de uma afirmação dos princípios do Syllabus, para se abrir às novas realidades do mundo. A Igreja abriu-se para o mundo moderno, abertura que vem realizando até agora junto aos movimentos sociais. Miller compara o momento atual da psicanálise com essa abertura e renovação, na qual a psicanálise deverá introduzir uma nova organização em seu fazer e em seu estilo. Esse argumento outorga vida e sentido aos Centros ou Clínicas de Atendimento,

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uma vez que a psicanálise não está mais restrita apenas aos consultórios, permanecendo fora das instituições. Lacan constituiu assim o momento terminal de uma maneira de fazer psicanálise. Quando Miller fez a leitura dos textos de Lacan posteriores a 1964, um século depois da Rerum Novarum, muitos psicanalistas não gostaram. Até então predominara a reafirmação de princípios, o retorno a Freud. Estamos agora com Miller e a Orientação Lacaniana no momento da abertura da psicanálise para os novos tempos, em que surge a psicanálise aplicada e seus efeitos. Tempo em que a psicanálise procura fazer uma aliança com sua forma chamada “aplicada”, cujo exercício terapêutico irá se concentrar, essencialmente, nos Centros e Clínicas de atendimentos, instituições criadas para tal fim.

Por isso podemos afirmar que estamos verdadeiramente em tempos de Rerum Novarum, de renovação das coisas. Não se trata apenas de uma nova maquiagem, diz Miller, “a maquiagem é uma coisa muito importante na vida moderna. Baudelaire lhe havia consagrado um capítulo no seu texto Peintre de la vie moderne. Trata-se de uma transformação muito profunda da psicanálise”.

O Programa PIPOL – Programa Internacional de Investigação sobre a Psicanálise Aplicada de Orientação Lacaniana – anunciado por J-A. Miller antes de sua “Improvisação sobre a Rerum Novarum”, no III Congresso da AMP, em julho de 2002 em Bruxelas, também caminha no sentido dessa transformação da psicanálise. Sinaliza que as questões da psicanálise pura encontram sua razão de ser na prática analítica, na qual é possível preservar a especificidade, pois, se não houver psicanalistas, também não haverá psicanálise.

Não podemos porém admitir que, “em nome da pureza da psicanálise, os psicanalistas descuidem de suas aplicações, ou seja, aprimorem o instrumento para depois não se servir dele, da psicanálise aplicada à terapêutica”, diz Judith Miller em entrevista sobre o Primeiro Encontro Americano (Buenos Aires, setembro de 2003). E mais:

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“[...] se PIPOL concerne à psicanálise aplicada nos consultórios privados dos psicanalistas da AMP, concerne também à psicanálise aplicada nas instituições, sustentada pelos membros da AMP e por outros praticantes. É sem dúvida nas instituições onde hoje se fazem as mais numerosas demandas terapêuticas e nós, psicanalistas, não podemos ficar surdos a essas demandas”.

Podemos ainda lembrar Miller ao dizer:

“[...] é necessário que a psicanálise passe por toda uma nova aliança com a forma que se chama de psicanálise aplicada. Há uma forma de psicanálise que permanecerá no consultório, uma forma privada. Uma outra forma de psicanálise passará às instituições. O exercício terapêutico da psicanálise tenderá a se concentrar nas instituições enquanto a formação se fará nos consultórios. É o que suponho. Trata-se de uma hipóteTrata-se”.1

Essa renovação das coisas na psicanálise corresponde ao que Edgar Poe, citando Baudelaire, chama de “utilidade direta”, o deus moderno. Miller acrescenta que a ratio essendi de todas as coisas não é mais a causa que as faz existir, e sim sua utilidade direta. A inutilidade, se existe, está destinada a desaparecer e, se ainda for um projeto, a não nascer. Os sujeitos querem saber quantas sessões, ou quantos meses de tratamento serão necessários para se obter resultados. De que forma podemos fazer frente a essa época em que o ser é definido, cernido pela “quantidade”? Por isso é necessário avançar no campo social, no campo institucional e nos prepararmos para a “mutação da forma da psicanálise” frente àquilo com que nos deparamos neste século.

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