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Vida sob as agruras da seca

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Academic year: 2021

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1 Vid a sob a s a gr ura s d a seca

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ORELHA

Pense o Cerrado brasileiro,estão lá o menino magro, de estômago revirado, invisível tal qual Irina, nascida velha e distanciada dos afazeres dos outros. Os personagens vão saltar das letrinhas e vão encafifar seus pensamentos. Não adianta tentar evitá-los, não funciona. Do livro da Sandra brotam amor, mas também vingança, que consome como carvão em brasa. Quem nunca leu Guimarães Rosa pode pensar pela leitura dele? O menino queria vingar a morte do pai carvoeiro. Como termina isso?

Se você já viu um tatu-canastra de perto, um ouriço caixeiro ou um gavião do Cerrado, então já andou pelas mesmas trilhas de Jeremias, desafiou o espanhol de bigode emproado e se indignou com a malvadeza humana que devastou tudo que viu pela frente. Na escola, o aluno de pernas bambas teme a reação da professora ao ler sua redação recheada de Serrados – assim mesmo, com S. Na tentativa faceira de argumentar ser uma referência às árvores nativas tombadas ao chão para dar lugar aos pastos de bois e vacas.

Os nove filhos de Dona Dalva, cada um ao seu modo, têm história rica pra contar. Cresceram à sombra do ingazeiro em torno da bica. E corriam, e brincavam e brigavam, mas cresceram. Para onde foram esses meninos homens, essas moças mulheres? As crias que viveram pra ver a bica secar.

Seja na cabeceira do Rio Tocantins, ou no “arto” de uma chapada, escutando moda, cantarolando Goiá, sonhando com a morena cor de açucena, difícil assistir ao fim de tanta boniteza, carregada sem dó pelo que chamam de progresso. Que bom que a literatura nos presenteia com o frescor do buritizeiro assobiado pelo sabiá do campo. Quero morrer aqui, mas quero viver também ao redor do cerrado vibrante, que não pode sucumbir.

Recorro a uma mineira lá de Juiz de Fora, Rosa Berg, admiradora desse nosso encanto esculpido no centro do Brasil: “Pena que não somos como o Cerrado. Fosse assim, quando chovesse dentro de nós, brotaria a primavera”.

Feche os olhos. Pense o Cerrado brasileiro na sua cabeça imaginativa. Igual criança quando vê forma nos seus sonhos. Agora pegue nessa imagem, brinque com ela, dê contornos bem coloridos no amarelo do ipê, nos pelos dourados do lobo-guará, na relva verdejante das temporadas chuvosas que levam um semestre todo pra passar. É isso que você vai viver nas páginas instigantes desta obra «Vida sob as agruras da seca».

Rogério Silva

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3 Vid a sob a s a gr ura s d a seca

Ivone Gomes de Assis

Evandro Valentim de Melo

(Orgs.)

Uberlândia (MG) 2020

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4 Vid a sob a s a gr ura s d a seca

© Assis Editora Ltda., 2020.

Projeto gráfico | Assis Editora

Revisão | Do autor, por se tratar de concurso Revisão técnica | João Davi Resende

Fotografia de capa | Aluizio Gomes de Assis Fotos-miolo e sinopse | Ivone Gomes de Assis Orelhas | Rogério Silva

Vida sob as agruras da seca [livro eletrônico] / Ivone Gomes de Assis, Evandro Valentim de Melo (orgs.). 2. ed. -- Uberlândia (MG) : Assis Editora, 2020.

352 p. (Vida sob as agruras da seca ; 3) ISBN 978-65-87354-19-4

1. Literatura brasileira 2. Cerrado – Literatura brasileira 3. Contos brasileiros 4. Crônicas brasileiras 5. Ensaios I. Assis, Ivone Gomes II. Melo, Evandro Valentim de II. Série

CDD B869 CDU 82(81) A865v

20-4136

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Angélica Ilacqua CRB-8/7057)

Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira.

Direitos Reservados em Língua Portuguesa à ASSIS EDITORA LTDA.

Rua José Antônio Teodoro, 76 – Aparecida CEP: 38400-772 – Uberlândia/MG Telefone: (34) 3222-6033

www.assiseditora.com.br / assis@assiseditora.com.br Reprodução proibida sem prévia autorização.

Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 2020

Impresso no Brasil

Sobre a capa:

A fotografia de capa apresenta o ser-tanejo Xisto Gomes de Assis, meu pai, no cerrado de Brasília, cidade que guar-da sua memória.

Sobre as orelhas:

A série “Cerrado e sustentabilidade” manteve as mesmas orelhas para os três volumes: 1) Da janela da vida; 2) Floresta de ponta-cabeça; 3) Vida sob as agruras da seca.

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5 Vid a sob a s a gr ura s d a seca

SUMÁRIO

CONTOS

A luta do povo de Santxiê contra o exército de concreto armado ...13

Aldenor Pimentel

Onde os ventos do amor se cruzam ...17

Aline dos Santos Felix

Flor de Pequi ...23

Alzira Chagas Carpigiani

O retorno de Tonho ...29

Ana Claudia Vargas

A morte do cerrado ...35

André Müller Bareño

Vingança em brasa ...39

Andre Telucazu Kondo

O fulgor e a relva ...45

Aruã Delfim

A Joia do Cerrado ...51

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6 Vid a sob a s a gr ura s d a seca O Lobinho-Guará ...59

Bruno Augusto Luvizotto de Campos

A Sustentável riqueza do Cerrado Brasileiro ...65

Clauber Ottoni

Falaria da saudade, se pudesse...71

Daguito Rodrigues

Meu pé de jacarandá ...75

Deliane Betania Lopes

Um pequi de esperança ...77

Denise Pereira de Toledo

Continuo Pura ...81

Divino Antonio de Sousa – Sergio

Leite empedrado ...85

Edih Longo

Orfeu do cerrado...91

Eduardo Nascimento

Nino Mãos-de-Terra e Zulu Coração-de-Madeira ...99

Evandro Luiz Gaffuri

Os cerratóides ...105

Felipe Saads Pereira Martins

O grão e a semente ...109

Francisco Carlos Falcão Junior

A mulher que secava ...115

Geovanna Ferreira Silva

A assembleia dos bichos ...121

Helvécio de Freitas

O Cerrado do futuro ...127

Igor de Carvalho Vecchi

A Origem do Bálsamo ...131

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7 Vid a sob a s a gr ura s d a seca Fumaça na pista ...135

José Nilson Trajano da Costa Filho

BOI VERDE ...139

Josy Almeida

O calango e o viajante ...145

Juliana Valentim de Moraes Silva

Eles viram fome ...147

Leonardo Piana Jordão Ribeiro

A essência de Nheambiú ...151

Lionizia Goyá

A insustentável lenda do Cerrado ...155

Lohan Lage Pignone

Princesa do Cerrado ...161

Lucas Palhão

Uma vida insustentável salva pela sustentabilidade ...167

Marinaldo Lima

O dono do rio ...173

Matheus da Costa Tatsch

Resistência Jovem ...179

Micael Pinto de Almeida

Nas Asas do Cerrado ...185

Michelli Oliveira

Reunião na fazenda do jatobá ...189

Moisés Gomes da Silva

A Nona Barragem ...191

Nando Nogueira

Maravilhas do Cerrado...195

Otávio Augusto Rodrigues

Pirulitos de Açúcar ...199

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8 Vid a sob a s a gr ura s d a seca Helmut Sick ...205 Pedro Franco Acrocomia Aculeata ...211 Roberto Santos

Um retorno ao meu lugar de paz ...217

Rodrigo Lima

O apocalipse de João ...223

Rogério Branco da Silva

Amarelo-cerrado ...231

Rosiane Carla de Figueiredo

Luxo de flor caída...237

Rubya Caroline

Parindo galáxias ...241

Silas Rodrigues Chaves

O pé de pequi ...243

Teresa Cristina Flordecaju

S.O.S Cerrado Brasileiro ...247

Teresinha Machado

Charles e a terra do cinza ...249

Thaciane Rollemberg Ramos

Odisséia ...253

Vergílio Silva de Alvarenga Morais

Árvore da vida ...259

Viviane Loyola

CRÔNICAS

Um Cerrado na infância ...265

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9 Vid a sob a s a gr ura s d a seca Pseudo Sustentável ...267

Ana Flávia da Silva

Cerrado – sua preservação mantém nossa água – ...271

Ana Rosa de Oliveira

Uma leitura ...275

Angélica de Barros Martins

O cerrado ...277

Antônio Pereira da Silva

Um Éden sugado pela ambição ...279

Arai Terezinha Borges dos Santos

O preço do progresso ...283

Cirene Nunes

Brasil de 2% ...287

Daniella Gomes de Lima

Resíduos da seca em Brasília ...291

Eduardo Carvalho

Cerrado: um futuro deserto? ...295

Elaine Ribeiro Taveira

Hotspot o desconhecido, o que deve ser reconhecido Hotspot ...297

Fábio Ferreira de Souza Junior

O Cerrado e a omissa consciência humana ...301

Fabrício Leite

O canto da seriema ...302

Fernando Fonseca de Melo

Bica d’água ...305

Flávio Túlio de Lima

Efeito dominó ...309

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10 Vid a sob a s a gr ura s d a seca Um bioma ameaçado ...313

Giordana Maria Bonifácio Medeiros

Das cores que estavam ali e hoje ficam a pastar ...317

Gustavo Jakitas Fonseca

Sustentabilidade no Cerrado Brasileiro ...321

Hilário Xavier dos Santos

Gisele do cerrado ...323

Jacque Soumelfe

Cerrado, irmão do Agreste ...327

Lana Amaro

Cachoeira do Boi Preto ...329

Luiz Guilherme Pilar Saraiva

Cerrado: a sustentabilidade e o equilíbrio humano e ambiental ...331

Nadia Junqueira Maciel Ferreira

Cerrado e sustentabilidade: lições que aprendi a

preservar ...335

Nívea Pimenta Braga

Serrado brasileiro: conceitos e pré-conceitos ...339

Paulo Henrique Alves Fialho

Sustentabilidade, como assim? ...343

Rô Mierling

Das águas e do fogo ...345

Roberto Carlos Soares Sobrinho

Autossustentável o Cerrado É...347

Rosane da Silveira Tietböhl

Ainda há tempo de salvar o cerrado ...349

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11 Vid a sob a s a gr ura s d a seca

Imagem: Bacupari-do-cerrado (Salacia crassifolia). Fotografia: IGA, em Grupiara(MG), outubro, 2020.

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13 Vid a sob a s a gr ura s d a seca

A LUTA DO POVO DE SANTXIÊ CONTRA O

EXÉRCITO DE CONCRETO ARMADO

Aldenor Pimentel Boa Vista, Roraima, Brasil

K

amuu tira do pescoço o crachá de funcionário público e bate o ponto. Passa pela catraca na saída da repartição e, na esquina, pega o ônibus onde se lê Noroeste. Desabotoa o nó da gravata e, pela janela, vê o cinza do concreto curvilíneo do Plano Piloto transformar-se, pouco a pouco, no verde queimado da vegetação rasteira e de arbustos retorcidos do cerrado, a disputar espaço com arranha-céus.

Em pouquíssimos minutos, solicita parada, desce e caminha alguns quilômetros, até chegar diante de um casal de ipês que, juntos, formam um portal verde. Kamuu tira os sapatos, pede permissão dos espíritos e, descalço, atravessa o portal, que o leva a outro universo. Do lado de lá, seus pés nus tocam o chão sagrado. Ele respira fundo, ouve o canto dos pássaros e sorri: está no Santuário dos Pajés.

Ali, onde não há reis ou presidentes, nada sobra ou falta, tampouco há por que se apressar, o tempo é suspenso: o presente anda de mãos com o passado e o futuro. Naquele lugar, colhe-se o que se planta, todos se olham nos olhos, e é possível enxergar o horizonte.

Kamuu nem dá o segundo passo sem ouvir os gritos eufóricos dos filhos, que correm em sua direção e o abraçam. Arrastam-no pelos braços e o levam até a fogueira, onde os demais

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o aguardam, enquanto entoam cantorias. Logo, passam-lhe o violão e ele toca canções que o fazem lembrar os irmãos que partiram. Os mais jovens registram tudo em fotos e vídeos e já postam na rede.

Entre uma música e outra, Kamuu conta a história do bravo guerreiro Santxiê, que lutou contra grandes inimigos para que pudessem repousar agora sobre aquela terra. A sensação é de que Santxiê está ali. E está mesmo! Kamuu o convida a se juntar à roda e as crianças pedem ao grande guerreiro que conte novamente sobre a batalha pelo Santuário.

Os olhos dos curumins não piscam. Ninguém quer perder um segundo dos passos do guerreiro que enfrentou espíritos funestos, gigantes de aço e exércitos de concreto armado.

Santxiê, então, conta que ele e os parentes, depois de muito caminhar, decidiram que ali seria seu refúgio, porque foi onde reencontraram o espírito dos ancestrais. No cerrado, a meia distância da capital de concreto em construção, podiam falar a própria língua, cantar como os antigos e dançar com os espíritos da natureza.

A casa foi feita com uma grande abertura no teto, por onde era possível ver as estrelas e se comunicar com os parentes mais distantes. Ali viviam em festa.

Mas, um dia, o toré foi interrompido por um ronco misterioso e assustador. Os mais velhos procuravam acalmar as crianças e as levaram seguras para dentro de casa. Os primeiros raios da manhã mostraram uma grande clareira no campo e estranhas e enormes pegadas que não poderiam ser feitas por nenhum dos animais que eles conheciam.

Nos dias seguintes, começaram a brotar do chão estacas de madeira pelos arredores. Eles as arrancavam pela manhã, mas as estacas reapareceriam ao anoitecer.

O pior estava por vir. Passados uns dias, foram até eles criaturas sinistras, vestidas como se nevasse, acompanhadas por uma tropa de homens trajados todos iguais, feito robôs fabricados na mesma fôrma.

Deixaram uns papéis em que se liam ordens para que abandonassem aquelas terras, onde seria edificado o futuro. Na mesma hora, o povo de Santxiê disse que haviam criado raízes ali e, se arrancados do chão, morreriam. Estava declarada a guerra.

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15 Vid a sob a s a gr ura s d a seca

Começaram a chegar máquinas e máquinas a derrubar árvores centenárias e o que mais estivesse pela frente. O povo pintou-se de urucum e preparou o arco e flecha. Do outro lado, as armas cuspiam fogo. Os filhos do Santuário resistiam bravamente: à dor, à lagrima e ao medo. Mas não eram páreo para os monstros de metal e concreto, e suas garras de arame farpado.

Os inimigos davam a guerra por vencida, quando, de repente, viram aparecer mais e mais gente de várias tribos e todos os cantos. Não entendiam de onde vinha aquele povo. Mal sabiam eles que o mundo inteiro tomou conhecimento da ameaça que sofria o Santuário e muitos foram somar força.

A abertura no teto da casa mantinha-os em sintonia com outras espalhadas por diferentes partes do planeta. E era exatamente por aquela fenda que chegava a multidão de guerreiros.

De mãos dadas e peito aberto, atentos à voz de Santxiê, enfrentaram o exército inimigo. Não estavam sós. Eram muitos. Eram muito fortes. As máquinas viram nos olhos do povo a vida e a vontade de viver. Acuadas, partiram em fuga. Para festejar a vitória, o povo de Santxiê fez uma grande roda e dançou e dançou por horas e horas.

Depois de ouvir a história, Kamuu e os outros se levantam para celebrar a vida e também dançam de mãos dadas em volta da fogueira. É possível ler no rosto de todos a alegria por estarem ali.

– Mas devemos nos manter vigilantes – alerta Santxiê. – O inimigo está sempre à espreita. E a qualquer momento pode voltar.

A vontade é de ficar mais um pouco no calor da fogueira, mas todos entendem que é hora de se recolher, porque a lua também precisa dormir e dar lugar ao sol.

Kamuu olha o horizonte e agradece por mais aquele dia. Eles vão repousar. Sabem que, com os primeiros raios da manhã, precisarão atravessar o portal, como fazem a cada nascer do sol. Mas igualmente levam no peito a certeza de que, ao fim do dia, estarão todos reunidos em volta da fogueira.

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ONDE OS VENTOS

DO AMOR SE CRUZAM

Aline dos Santos Felix São Paulo (SP)

O

nde o sol é forte, a terra é vermelha e os galhos das árvores são secos, ali desde pequena vive Estela, com seu pai Antônio, sua mãe Maria e seus dois irmãos gêmeos Clara e João, de apenas cinco anos.

De vestido até o joelho, floral em azul, vermelho, verde e lilás, Estela caminha todas as manhãs até ao mercadinho da esquina, para comprar pão e leite para seus irmãos, antes que eles possam ir à escola.

Na cidade, todos a conhecem, e a cada porta que passa é cumprimentada:

– Bom dia, Estelinha.

Sorridente ela responde timidamente aos seus vizinhos: – Tenham um bom dia!

Esta manhã parecia como qualquer outra, um dia de sol, de terra seca, sem brisa e sem chuva. Seu Alceu, dono do mercado havia comentado que chegaria um moço bem apessoado de São Paulo, para explorar a Savana.

Sem esboçar curiosidade ou interesse, Estela apenas sorriu ao seu Alceu e o desejou um ótimo dia.

No retorno para casa resolveu cortar caminho por detrás do mercado, pelo cerrado.

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18 Vid a sob a s a gr ura s d a seca

Não era um trajeto curto, mas Estela gostava. Passeava por ali de duas a três vezes por semana, e conversava com as milhares de borboletas que a rodeavam. Ela não entendia se era por seu vestido florido, ou porque apreciavam sua doce companhia.

Ao chegar em casa contou aos seus pais o que ouvira de seu Alceu. Seu Antônio, sempre muito rígido e ríspido com as palavras esboçou raiva em seu olhar. Claramente não gostou de saber que alguém de longe exploraria sua terra, a qual sempre amou de coração.

Às três horas da tarde, o moço bem apessoado chegou de São Paulo. Algumas pessoas saíam de casa e outras, observavam pela janela quem tinha acabado de chegar em sua cidade.

Andando com dois rapazes, ele se destacava por sua beleza, seu nome era Paulo. Alto, magro, e de óculos escuros, todos achavam que era alguém muito importante.

– Talvez este seja mais um comprador e destruidor de terras, indagou Antônio à Estela.

Sentindo uma pontada e uma forte dor no coração, pelo que seu pai falara, rapidamente ela correu até o cerrado e parou em frente a sua árvore preferida. A única no meio da savana que tinha uma casca dura e grossa. Sua preferida.

Não tinha muito o que observar naquele lugar, boa parte da paisagem, já não era tão bela como antes. Incêndios criminosos e provocados por pessoas de má-fé, tinha destruído grande parte de sua grandiosidade. Já não havia mais tantas lontras, tatus e seriemas. Quase não existia animais ali, haviam sido quase extintos daquele território.

Estela amava o cerrado. Era como se grande parte do seu coração fosse cheio dele, o ar, a terra, e, principalmente o céu. Tudo ali era um conjunto perfeito.

Sentada de frente para a árvore que ela chamava de Lola, Estela estremeceu, ao sentir um estranho colocar a mão sobre os seus ombros.

– O que faz aqui sozinha menina, este é um terreno particular, perguntou Paulo.

E então ela se virou e disse:

– Está vendo lá no fundo, no fim dessa paisagem, onde o céu parece tocar ao chão?

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19 Vid a sob a s a gr ura s d a seca

Pois então, é aqui que venho todos os dias para pensar e refletir sobre a vida. E essa beleza me proporciona devanear.

Paulo riu e indagou em tom de deboche:

– Isso aqui, menina? Onde moro existem paisagens mais bonitas do que uma terra seca e sem vida.

Estela irritada respondeu rispidamente:

– A beleza da vida só pode ser vista e sentida por pessoas que possuem um coração, e pelo visto, não existe nada dentro e você.

Surpreso com a reação de Estela, Paulo se desculpou: – Não foi minha intenção.

Sem se importar para as desculpas de Paulo, Estela se levantou, limpou o vestido sujo do pó da terra, olhou diretamente no olho de Paulo e disse:

– Não é porque o senhor veio de uma cidade grande, que pode vir insultar as belezas vista diante de meus olhos. E fique sabendo, que não vai explorar o meu cerrado, esgotando seus recursos naturais.

Paulo ficou surpreso com a reação de Estela e mais uma vez tentou se desculpar. Sem sucesso, Estela virou-se e foi embora.

Por um minuto, parado em frente a tudo aquilo que ele acreditava não ter vida, Paulo

pensou em tudo o que ela havia dito. Sorriu para o horizonte e foi para o Hotel.

Preocupada com o fato de que o tamanho do cerrado vem diminuindo mais e mais

conforme os anos se passam, Estela passou a ir mais vezes à Savana.

Paulo, incomodado e ao mesmo tempo encantado por Estela, começa a ir também, só que para encontrá-la. Quando ele chega, ela está lá, sempre no mesmo lugar. Ao lado da árvore Lola de casca dura e grossa.

Neste dia, ele senta-se ao seu lado e pergunta:

– Por que esse amor todo por este lugar? O que você vê aqui que eu não consigo?

Sorridente, Estela vira-se para Paulo e diz: – Eu vejo vida onde você enxerga morte.

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20 Vid a sob a s a gr ura s d a seca Ele indaga:

– Mas que vida, só vejo secura, animais quase não existem aqui. Olhe este horizonte, quase todo queimado por incêndios, árvores podadas…

Com tristeza e cabeça baixa ela responde:

– Pois é, pela falta de manejo sustentável dos recursos e exploração predatória de material lenhoso para a produção de carvão, tudo aos poucos desapareceu, principalmente os animais. A vida onde você não vê, eu ainda consigo sentir.

Paulo e Estela passaram a tarde trocando perspectivas de vida e conversando sobre o cerrado.

À noite, Paulo bateu na porta da casa de Estela. Seu pai Antônio abriu e fechou a porta. E mais uma vez ele bateu.

– Por favor, abra! Gostaria de agradecer a Estela, disse Paulo ao bater na porta.

– Vá embora, gritou seu Antônio.

Sem obter sucesso, Paulo sentou-se na porta da casa e permaneceu ali até o dia seguinte.

Quando Estela saiu para ir até o mercadinho como fazia todas às manhãs, o viu ali, sentado e dormindo encostado em um vaso de flores que tinha do lado da porta.

– Paulo, acorde, pediu Estela.

Ele passou a mão nos olhos para acordar e disse:

– Desculpe-me, queria agradecê-la pelas conversas diárias e trouxe esta flor, mas infelizmente ela acabou murchando.

Estela sorriu, o agradeceu e seguiu em direção ao mercado. Ele levantou-se e pediu para caminhar junto a ela, e ela apenas, sorriu.

– Por que me segue, o que deseja, perguntou Estela

Paulo entrou na frente de Estela, colocou a mão sobre seus braços e disse:

– Gostaria de passar minha vida ao seu lado, mas sei que é precoce, então gostaria de passar mais dias com você.

– Seria impossível, disse Estela. Paulo indagou:

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21 Vid a sob a s a gr ura s d a seca

– Você mora em São Paulo, e eu não tenho vontade de sair desta cidade, minha vida está aqui. Mesmo que eu quisesse também passar mais tempo ao seu lado, meu coração diz que você é um homem mau, quer destruir a savana. Ela faz parte da minha vida!

Paulo sorriu e disse:

– Não sou mais um homem mau. Você me mudou. Você me faz uma pessoa melhor.

Quero ser diferente por você!

A partir deste instante, Paulo e Estela passaram a se ver com mais frequência. Seu pai, não aprovava essa amizade, mas aos poucos foi aceitando a mudança de Paulo.

No final daquele ano, eles se casaram no meio da Savana, a festa foi linda. Luzes foram colocadas em cada galho seco. E em frente a árvore Lola, eles uniram suas vidas diante da cidade com um sim apaixonado.

E daí em diante, passaram a lutar juntos contra os exploradores de terra. Como eu sei disso? Sou uma pobre e velha árvore, chamada Lola, que carrega a história de uma vida no cerrado.

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23 Vid a sob a s a gr ura s d a seca

FLOR DE PEQUI

Alzira Chagas Carpigiani São Paulo (SP)

D

izem que os bebês ao nascer conhecem apenas três tipos de medo: o de altura, o de cair e o de ruídos. Talvez, isso explique o fato de minha irmã, desde sempre, evitar os aviões. Nem para fazer uma visita em solo, Maria jamais se aventurou a explorar um avião por dentro. Como consequência disso, aqui estou eu, em plena madrugada de um sábado, a esperá-la na rodoviária.

Depois de muito ir-e-vir pela plataforma, com os olhos colados em cada ônibus que chegava, eu pude enfim vê-la. Ela trazia o rosto cansado, uma bolsa a tiracolo com a alça atravessada sobre o peito e uma pequena mala na mão direita. Percebi logo que, apesar do abraço sincero e um tanto demorado, a possibilidade de uma conversa regada a novidades do Cerrado estava descartada naquele momento. O que, de certa forma, decepcionou-me um pouco, afinal eu tinha tantas perguntas para lhe fazer. Queria saber da nossa mãe, do nosso pai e das meninas. Mas pelo jeito impaciente que ela arrumou o lenço em volta do pescoço, percebi que o melhor seria esperar.

Quando falou, ela apenas pediu para comer alguma coisa. Estava faminta, pois como eu já sabia, ela não gostava de comer nos pontos de parada do caminho. Seu estômago era sensível e a comida da estrada não costumava lhe fazer bem.

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– Mas você não comeu nada durante toda a viagem? – Perguntei admirado.

– Só as frutas que trouxe lá do nosso pomar.

Fomos para minha casa. Pedi a Júlia que preparasse o café e o leite e pusesse a mesa. Comentei que havia pão integral na geladeira, onde também havia manteiga e geleia. Mais alguma coisa? Maria sacudiu a cabeça negativamente. Aquilo seria o suficiente para ela.

Aos poucos, minha irmã foi se livrando do peso que carregava. Tirou o agasalho. Pois é, em São Paulo sempre fazia um friozinho inconveniente até mesmo no mês de setembro. Fiquei esperando pelas palavras, afinal eu tinha consciência de que em algum momento ela começaria a falar. Rever minha irmã reativava em mim a falta dolorida que eu sentia do Cerrado. Já fazia mais de cinco anos que eu não ia para lá.

Maria ensaiou um sorriso. Ela não disse nada, mas eu podia até adivinhar o que passava pela sua cabeça. O menino ansioso do passado ainda dava sinais de sua presença. O mesmo menino que, sentado na soleira da porta de casa, tantas vezes observara o sol a colorir a paisagem e o bando de emas a atravessar o campo. Havia filhotes no meio. Havia alegria naquela movimentação toda. Havia abundância de vida então.

Guardar o silêncio até o momento apropriado de falar, talvez um dia, eu ainda aprendesse isso, sem me sentir tão desconfortável. Apoiar os pés no chão com firmeza, sem permitir que as pernas balançassem ao ritmo da angústia, que por dentro agitava meus pensamentos e minhas emoções. Havia necessidade mesmo de eu me conter na presença de Maria? Por quê? Por ela ser sua irmã mais velha, extremamente séria e cônscia de sua posição na hierarquia familiar. Mas quem deu tanto poder a ela? A mesma pessoa que...

– Papai não está bem. – disse Maria, enquanto passava delicadamente um creme nas mãos.

Por que esse susto assim de repente, João? Sério mesmo que essa notícia pegou você de surpresa? Quanto tempo você pensou que a saúde de seu pai resistiria antes de começarem os problemas? Os velhos adoecem, meu caro, os velhos perdem a destreza dos braços e das pernas, há alguns até que caem e quebram o fêmur, sabia? Acontece com tanta gente. Mas os fêmures

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(cadê o revisor dos meus textos?) do velho estão intactos, já a memória dele oscila, a boca range noite e dia, mas ele ainda tem algum apetite, ele ainda sente prazer em beber seu suco de cagaita uma vez ou outra e também de caminhar devagar pelos arredores de casa, enquanto o sol se põe.

– Será que você é capaz de adivinhar por que eu estou aqui desta vez, João? – Diante de minha negativa, ela prosseguiu – Nosso pai me incumbiu desta missão. Ele disse que, de todas as pessoas que conhece, só você pode fazer alguma coisa para amenizar o sofrimento do nosso Cerrado. E, sem exagero, eu concordo com ele. É muito triste o que está acontecendo por lá. O desmatamento está acabando com o segundo maior bioma do nosso país, mas isso não é nenhuma novidade, não é? O crescimento desordenado da população, já ultrapassou um nível alarmante há muito tempo e a consequência desse descontrole, como você pode imaginar, é a poluição que toma conta de tudo. Cerrado e poluição são duas coisas que, decididamente, não combinam entre si, você concorda?

– Sim, eu concordo. Eu só não sei o que eu posso fazer para mudar isso.

Maria apontou para a estante. Lá estavam, lado a lado, os sete livros escritos por mim. Todos referentes às maravilhas do Cerrado.

– Você tem o dom da palavra, João. E não é só a nossa família que respeita isso. Você também tem o respeito de muitas pessoas da nossa região. Há certas batalhas que não podem ser vencidas com armas, sejam elas brancas ou de fogo, não importa. O verbo é mais poderoso. Não o verbo dos políticos, porque esse é sazonal e interesseiro. Eu estou falando do verbo permanente, daquele que só tem o poder de transformação, porque é gerado por alguém que tem muito amor pela sua terra natal.

De súbito, um medo estranho me invadiu. Eu não tinha certeza se estava disposto a abrir mão da minha zona de conforto por aquela causa. A verdade é que a coragem não é uma das qualidades mais marcantes da minha personalidade. Eu penso muito, praticamente o tempo todo, mas cadê a atitude? “Então, aproveita e pensa na quantidade absurda de animais mortos nas rodovias do Cerrado todos os anos. Cachorro-vinagre, tamanduá-bandeira, veado-campeiro, macaco-prego, tatu canastra, lobo guará. Está aproveitando o desfile? Então, guarde também um

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espaço na memória para aquela ema com os seus filhotes. Que destino você acredita que está reservado para eles? Extinção. Não é desse perigo que fala o jornal que Maria abriu sobre o sofá da sala ainda há pouco? De A a Z, todos esses bichos vão desaparecer, João! E o que você faz? O Cerrado é ou não é uma parte importante da sua vida? Claro que é! Ele, sem dúvida, é a melhor parte de mim. O Cerrado tem um invólucro vermelho, sabe o que significa isso? Significa que ele é tal e qual o sangue que flui nas minhas veias. Então, por que você fica aí parado? Quem é você aqui nesta cidade, João? Existe algum afeto importante que prende você aqui?” Observei, de relance, Júlia lavando a louça. Ah, Júlia, minha velha colaboradora, há tempos que percebo suas pernas cansadas. Seria justo mandar você embora agora? Além de você para zelar por mim, quem mais? Eu larguei o Cerrado por amor à Helena, e Helena me largou por amor a uma Paris qualquer. Pois é, eu perdi essa guerra. Só então me dei conta de que, indiferente aos meus devaneios, Maria continuava a falar.

– Se montam um palanque na frente de uma câmera, para alguma autoridade subir e dissertar sobre a preservação do meio-ambiente, pode ser até bonito, João, mas não é funcional. Se funcionasse, a metade do Cerrado que está faltando ainda estaria lá. Ele ainda estaria inteiro, entendeu? A fauna e a flora ainda estariam intactas. Mas é isso o que a gente vê? Não! Só estando lá para saber. Fugiu ao nosso controle, eu já pensei em inúmeras possibilidades, mas todas envolvem dinheiro, tempo, marketing, lobby, sei lá eu mais o quê. Só que eu não sou livre, eu tenho compromisso sério com o pai, a mãe e as meninas, você sabe. Não dá para fazer tudo. Eu juro que gostaria, mas a lógica diz que quando considero essa possibilidade, estou sendo, no mínimo, absurda. Enfim, chega de rodeios, eu acho que está mais do que na hora de você voltar para casa.

O som de um copo estilhaçando na cozinha me fez virar a cabeça repentinamente e no, mesmo instante, em que meus olhos se cruzaram com os olhos assustados de Júlia, também descobri que Maria colocara sobre a mesa um pote de vidro com ouro amarelo dentro: pequi em conserva!

De onde chega esse aroma que entra pela janela da memória e invade a minha alma inteira? Mês de julho em Aruanã, época mais feliz da infância, com seu tempo sem rédeas, nas praias

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de água doce do Araguaia com o Vermelho. Na hora da fome: galinha caipira com pequi! Arroz com pequi! A marca registrada de uma vida. Onde mais encontrar isso? Não adianta, tem coisa que não dá para explicar. É como se o tempo fizesse um resgate e me lançasse lá naquelas terras com suas árvores de troncos tortos, que pareciam pessoas a me chamar para um mundo bom. Barbatimão ou casca da virgindade, por aqui, quem conhece? Quem sabe de suas artimanhas? Quanta gabiroba docinha não enchia a minha barriga e a barriga dos cavalos ao mesmo tempo! Na época da seca, coisa mais linda era ver nos brejos, os buritis de Rosa matando a fome e a sede das araras Canindé, que aproveitavam até o tronco dos buritis mortos para abrigar seus ovos e garantir a sua descendência.

– Pequi em conserva. Você estava com saudade, não é? Eu sabia, por isso fiz questão de trazer. Sabe quem preparou essa maravilha? Suas sobrinhas. Elas aprenderam com a nossa mãe e fizeram essa conserva especialmente para você.

Lá estava ele, o pote luminescente de pequi a ostentar sua majestade no centro da mesa. Pouco a pouco, percebi que a resistência do início ia se afrouxando dentro de mim. Eu já não era eu. As minhas certezas tinham se diluído no ar. Eu já me desculpava com São Paulo, enquanto argumentava que, longe, outras vozes me chamavam. Eu tinha deveres a cumprir. Os registros calcados nos livros empoeirados da estante eram só um prenúncio do porvir que me aguardava. Já não havia uma expectativa artística; agora, era uma questão de ética. “Torna-te o que és”, julguei ouvir Píndaro arremessando de algum recanto sobre mim. Sim, eu fui tocado, eu senti o chamado dos antepassados, o chamado sagrado. Maria nem faz ideia do quanto lhe sou grato por me arrancar do limo da dúvida. Há realizações a serem feitas, não sei por onde começar, na verdade, não faço a menor ideia de como será isso, mas sei que é possível, sei que não estarei sozinho. Alguém tem que tomar a iniciativa. Maria fez isso por mim e finalmente parece que estou pronto. Agora é o momento, o medo não pode prevalecer o tempo todo. Afinal, como é que alguém pode se dar ao luxo de sentir medo em setembro, se é justamente nesta época do ano que o rio Araguaia fica todo enfeitado de amarelo com as flores de pequi?

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O RETORNO DE TONHO

Ana Claudia Vargas São Paulo (SP)

“A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele adentro. Sertão é dentro da gente!” – Guimarães Rosa.

N

aquela noite Tonho havia sonhado um daqueles sonhos que ele chamava de “sonhos em camadas” porque eram repletos de memórias e todas elas se entrelaçavam como centenas de fios enovelados. Os sonhos de Tonho reverberavam a passado porque era somente lá que ele vinha encontrando forças para encarar o presente. Tonho vivia seus dias ali naquele lugar distante de tudo que compunha sua identidade e enfrentava tempos cada dia mais opressivos, mas era de forma bastante corajosa que ele conseguia suportar a rotina estafante como faxineiro em um restaurante no qual ganhava uns dólares minguados e ainda aguentava calado as humilhações constantes dos povos civilizados daquele lado friorento do mundo.

De uns anos para cá, Tonho não achava mais graça nenhuma naquelas paisagens de cartão postal porque ao se tornar parte real delas, há mais de 30 anos, percebera o quanto havia de frustração também ali, no cotidiano ilusório daquele país de primeiro mundo. Ah, mas Tonho prometera a si mesmo que seria forte e que aguentaria tudo, ficaria meses sem gastar um dólar sequer e toda

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essa economia obsessiva ele faria para que conseguisse reunir o valor da passagem de volta para seu país.

Tonho, que já estava com quase 50 anos, se imaginava constantemente voltando para seu lugar de terra avermelhada e mato rasteiro e vivia sonhando com o dia no qual poderia, novamente, enfiar seus pés nas águas geladinhas dos riachos e das cachoeiras, comer aquelas frutas feinhas mas tão saborosas, sentir o vento suave sobre o rosto... Tudo isso Tonho sentia que precisava fazer logo, antes que enlouquecesse naquela cidade terrivelmente civilizada, naquela cidade que era o sonho de quase todos os humanos e que fora também, um dia, o seu sonho. Um sonho que se tornara pesadelo, que o transformara em um tipo de zumbi desprovido de identidade, em mais uma cara amarrotada de latino pobre, de cidadão invisível. Envolto por milhares de ondas de desprezo, raiva contida e um resto de amor próprio que ele conseguira preservar como forma de se manter vivo, foi que Tonho percebeu que somente voltando e pisando a terra do seu país, somente sentindo novamente que seus pés pisavam a terra avermelhada e quentinha da sua cidade interiorana, insignificante, desorganizada, mas tão sua; somente andando entre os seus iguais, é que ele poderia recuperar um resto de apreço por si mesmo e poderia viver o restante de existência que ainda lhe cabia de forma digna e feliz. Os seus sonhos em camadas lhe mostravam isso de forma clara e perfeita: neles ele se via atravessando a ponte do Brooklin com seu casaco sujo, pesado e gasto de sempre; suas botas quentes e acolchoadas e, então, ele ia se distanciando de toda a urbanidade impecavelmente ordenada que compunha aquela cidade enquanto uma bruma espessa envolvia os ares nova-iorquinos. Tonho então aspirava o ar profundamente e sentia que outra atmosfera, distante, mas tão próxima do coração dele; o atraía delicadamente. Naquele instante – Sonhado? Vivido? – Tonho quase podia sentir sobre seu corpo o calor intenso da sua terra natal e uma sensação de leveza e desprendimento por estar vestido com suas roupas de tecidos finos o deixava calmo como uma criança. Ele então sentia nos seus grandes pés descalços a mornidão de uma terra sanguínea que conhecia muito bem, sentia sob sua face branca de homem urbano um pouco de luz solar e achava que não deviam ser nem sete da manhã. E, então, Tonho já sabia, ou melhor, o seu coração sabia: estava na sua casa

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verdadeira, no seu lugar de origem e nascimento no mundo, estava no seu cerrado, o cerradão; estava de volta aos campos sujos das suas saudosas gerais.

Quando era menino e ia pescar com o avô lá no Ribeirão dos Porcos, aquele fiapo de riachinho que desaguava no glorioso rio São Francisco, Tonho ia prestando atenção em cada palavra que o avô falava. Seu Ventura, embora já contasse naquele tempo com uns oitenta anos, ainda adorava andar no meio da vegetação rasteira do cerrado e, sabendo que o neto o acompanhava com alegria, ia falando com seu vagaroso sotaque mineiro sobre todas as árvores, bichos, flores, insetos e tudo mais que avistava pela frente. Às vezes ele era quase pernóstico, pois quando via o olhar interessado de Tonho, desatava a falar sobre lobeiras ou ingás como se soubesse literalmente tudo sobre aquelas plantas. E talvez soubesse mesmo, pois o velho era, como Tonho, apaixonado por aqueles campos que ele chamava ora de campos limpos, ora de campos sujos, ora de cerradão ou cerradões, veredas, matas secas, matas de galerias... Assim quando Tonho o inquiria sobre o porquê do nome da lobeira, ele, todo prosa, já tinha na ponta da língua a explicação: ‘é porque os lobos gostam de comer essas frutas, menino... Lobo costuma ter muito verme e a lobeira é boa pra acabar com eles’. Assim dizendo, todo cheio de si, Seu Ventura voltava o olhar curioso para aqueles horizontes de árvores medianas ou pequenas nas quais sempre havia alguns pássaros barulhentos – quase sempre anus e tesourinhas e muitos, muitos pardais – e continuava sua caminhada como se fosse um pesquisador nato. Ao seu lado o menino Tonho ia quase correndo, mas tentava prestar atenção porque, apesar de não ter naquela época nem oito anos, já pressentia que um dia aquelas matas tão bonitas estariam longe dele e do seu coração. Aquele tempo era a metade da década de setenta e ali para aqueles lados a expansão agrícola já começava a acontecer. Ao redor da cidade de Tonho as pequenas fazendas familiares que antes produziam apenas para sustento próprio, começavam a ser vendidas para grandes corporações agrícolas que enxergavam naquelas terras apenas o lucro que poderia ser gerado por elas. Na modesta cooperativa da cidade já começavam a aparecer uns homens viajados e, diziam alguns, estudados, que gostavam de dizer que o mundo estava mudando, as populações aumentando e que era bobagem manter

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aqueles campos apenas para que crescessem aquelas árvores “feias” que davam frutos “ruins”. Como desconheciam o cerrado, aqueles homens ‘estudados’! Em momentos como aqueles, cada vez mais corriqueiros, Seu Ventura, que geralmente andava por ali em busca de algum equipamento ou adubo para suas lidas, engolia em seco e não ousava encarar os ‘homens estudados’ porque crescera achando que o que ele sabia sobre o cerrado, não interessava a ninguém a não ser ao seu neto Tonho. Mas à noite, antes de dormir, Ventura ficava pensando no futuro que aguardava aqueles campos tão absurdamente bonitos e temia que virassem plantações enormes de um só produto. Ele também sabia que se isso ocorresse mesmo, os ‘homens estudados’ jogariam muitos produtos químicos naquele chão para fazê-lo produzir tanto quanto fosse possível, para deixá-lo extenuado e a fauna e a flora dali haveriam de sofrer as consequências.

Foi assim a infância de Tonho, entre caminhadas de reconhecimento pelos campos do cerrado, entre pescarias vespertinas pelos açudes e córregos que circundavam sua cidade e, nessas andanças, ele crescia e aprendia com o avô, por exemplo, que o solo aparentemente árido do cerrado, era na verdade, úmido bem lá embaixo, nas entranhas. Seu Ventura falava assim para ele “veja menino, como aqui crescem árvores bonitas como o ipê amarelo, o jatobá, o pequizeiro, as goiabeiras e sinta como são deliciosas estas frutas! Você acha que se esta terra aqui fosse ruim a gente teria tantas árvores bonitas e estas frutinhas tão gostosas? Ora essa!”. Outra coisa que Tonho e o avô gostavam de fazer era de simplesmente se sentarem sobre as grandes pedras que encontravam às vezes quando saíam das matas fechadas que desembocavam em galerias ou pequenas grutas. Ao alcançarem o alto dos morros, suados e cansados, eles costumavam encontrar entre um caminhozinho e um riacho, estas pedras gigantescas e, se era final de dia, avô e neto se sentavam ali e ficavam só sentindo a força das ventanias – quando era mês de agosto – e apreciando lá de longe, a formação de redemoinhos ou o sol que, ao ir embora, deixava um rastro avermelhado e fulgurante lindo demais se ver ou como dizia Seu Ventura quase comovido ‘lindo toda vida’.

Por vezes, nesses momentos, eles também viam algo bastante triste: as queimadas que eram feitas por fazendeiros ou por seus empregados. De pé sobre os platôs, os dois conseguiam

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divisar o estrago que o fogo causava na vegetação e ficavam desolados. Quando estava ventando intensamente as labaredas se espalhavam de forma veloz, se tornavam imensas e devastavam tudo o que havia pela frente: árvores carregadas de frutos, animais como tamanduás, antas, lontras, tatus e, geralmente, no dia seguinte a tais tragédias, Tonho e o avô iam mais uma vez caminhar mas, agora, eles tinham os semblantes melancólicos e tristonhos. Naqueles momentos o menino Tonho não se conformava em encontrar nas trilhas antes tão bonitas, o mato todo queimado e os cadáveres dos muitos animais que haviam sido mortos pelo fogo estirados sobre a terra. Como doía no coração do menino Tonho ver aquelas cenas...

Quanto a Seu Ventura, que crescera fazendo queimadas porque aquilo era quase uma tradição naquelas paragens, ele também se revoltava pois aprendera, alguns anos atrás, fazendo cursos na sede da cooperativa, que existiam outras formas de tirar o melhor daquelas terras e que não era preciso feri-las daquele jeito para que ela recebesse, acolhedora, o adubo e a semente que seriam lançados. O cultivo de leguminosas como milho e arroz, por exemplo, em solo degradado, podia torná-lo produtivo de novo, quando feito sob orientação correta. Seu Ventura aprendera isso em um curso simples e rápido e, desde então, não fizera mais uso das queimadas em seu sítio e suas terras produziam fartamente tudo que ele plantava.

Pois assim crescera Tonho, caminhando ao lado do avô, aprendendo sobre o cerrado e percebendo que a aparente feiura dele talvez fosse somente uma forma de proteger a enorme diversidade de plantas e bichos que abrigava. Na sua inocência, Tonho pensava que Deus fizera o cerrado ‘feinho’ para preservá-lo... Quando estava entrando no começo da adolescência, ali pelos treze anos, Tonho também já descobrira que nos morros acidentados o cerrado guardava surpresas encantadoras como riachos entre pedras argilosas e prainhas de águas calmas nas quais ele e os amigos adoravam nadar.

O cerrado tinha esses fabulosos e encantadores mistérios. Pois, na semana passada, depois de trinta anos vivendo como um cidadão invisível na ‘América’, Tonho finalmente pôde voltar para sua cidade do centro-oeste de Minas Gerais. Dizem que assim ele chegou, jogou para longe suas malas enormes, tirou

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mais do que depressa suas roupas pesadas, abraçou a todos com espantosa alegria e sequer descansou da longa viagem.

Contam que ele pediu para a mãe, ainda atônita diante do ‘menino’ que ela não via há 30 anos, as suas roupas de ‘interior’ e, por mais estranho que pareça, dona Maria havia guardado as roupas do filho num baú e Tonho afoito, foi vesti-las.

É claro que algumas não serviram, mas Tonho, que sempre fora magrinho, encontrou algo aqui e ali, vestiu seu ‘uniforme’ antigo de andar pelo mato, chamou o amigo Pedro – que não o reconhecera, de início, quando o vira chegando– e os dois foram então andar nas matas ao redor da cidade como faziam quando eram adolescentes.

Depois Pedro contou que Tonho estava ‘tão feliz, mas tão feliz’ – segundo suas palavras – que parecia o menino que havia sido há tempos, andando descalço, comendo goiabas e araçás e se lambuzando despreocupadamente; parando diante de cada árvore e se lembrando do nome de cada uma com vagar e emoção; se lembrando, enfim, de tudo mais que Seu Ventura havia lhe contado, ou melhor, lhe ensinado, tantos anos atrás.

E quem estava perto naquele dia disse que nunca haverá de esquecer o dia em que Tonho voltou, o dia em que ele se aninhou novamente, como um passarinho que reencontra sua rota perdida, nos ‘braços’ do cerrado: sua casa, seu chão, sua essência, seu cais.

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A MORTE DO CERRADO

André Müller Bareño Vitória (ES)

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erço de diversos rios, dono de árvores pequenas com galhos retorcidos que formam imagens mais belas do que as constelações e que possui um verde claro espalhado em todas as direções. Como não amar o cerrado?

Osvaldo era um entusiasta desse bioma, talvez um dos maiores que já existiu. Ele trabalhava como caixa de um mercadinho em uma pequena cidade no interior de Goiás. Não que gostasse de trabalhar nisso, mas era algo que o permitia ser feliz apesar de tudo. Com o tempo, comprou a moto que tanto queria e uma quitinete, saindo do aluguel. Entretanto, não eram esses bens materiais que formavam a sua felicidade, mas sim as longas caminhadas que fazia após o trabalho.

Lá pelas cinco da tarde, pegava a sua mochila e caia na estrada. Antes tentava pegar carona, porém, agora, vai com a sua moto e dirige alguns quilômetros. A paisagem o encanta conforme vai passando apressadamente pelos os seus olhos. Cada peculiaridade e besteira na visão dos outros, o faz abrir um sorriso tímido, porém sincero. De repente, alguma voz em sua mente o diz para estacionar, então é isso que ele faz. Depois de pegar a sua mochila, trancar a moto e escondê-la com um pouco de mato para ninguém roubá-la, ele começa a caminhar para alguma direção aleatória. As suas pernas já não sentem mais o cansaço após fazerem isso todo dia, tornando mais difícil a tarefa de saber

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quando parar. Ele andava durante horas até achar algo que o fizesse interromper a sua caminhada. Na maioria das vezes, era alguma árvore diferente das demais e às vezes apenas por algum detalhe peculiar. Ele se sentava embaixo dela, desligava a lanterna e ficava observando as estrelas. Em meio ao silêncio e a escuridão, se sentia completo. Era o único momento do dia em que se sentia vivo. O cerrado preenchia o frustrado coração de Osvaldo, os tornando um único ser vivo.

Na hora de ir embora, ligava a lanterna, a mirava na árvore e colocava a mão calmamente nela enquanto se despedia. Algumas vezes, tanto na ida como na volta, parava para observar algum animal, como antas e capivaras. Mesmo com eles não sendo tão grandes como os das savanas africanas, o bioma irmão do cerrado brasileiro, a beleza deles atrai qualquer um. Na realidade, o pequeno e médio porte deles é que guarda o seu poder de atração, afinal, se fossem maiores, seriam assustadores. Alguns desses animais eram raros de serem encontrados por estarem em perigo de extinção, como o lobo guará que ele conseguiu observar somente uma única vez e de maneira apressada.

Quando voltava para casa se sentia leve. Toda a sua raiva havia ido embora e as suas preocupações não mais existiam. Dependendo do tempo que tinha ficado imerso no seu templo da sabedoria, não havia como fazer uma refeição decente, então comia qualquer coisa de rápido preparo até ter certeza de que o seu estômago não iria reclamar até a manhã seguinte. Ele sabia que isso não era o correto, mas não se importava com nada desde que ainda tivesse a oportunidade de ter mais uma longa caminhada em meio ao cerrado no dia seguinte. Esse era o único motivo para ele levantar cedo todo dia e o seu único motivo para viver.

Com o passar do tempo, começou a caminhar cada vez menos, mas não por vontade própria, algo o obrigava a fazer isso. Uma coisa com a aparência de uma parede com tons fracos de amarelo começava a ser vista no horizonte e avançava cada vez mais rápido. Isso poluía a sua visão e perturbava o seu equilíbrio, o forçando a parar em pontos que não queria somente para não ver aquele monstro. No decorrer do ano, o seu inimigo ficava mudando de cor, indo do verde até o marrom. Embora fosse um feito notável, não havia nem possibilidades de entrar em combate com a beleza e a riqueza do cerrado.

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Tendo isso em sua cabeça, Osvaldo decidiu caminhar até aquela coisa que perturbava a sua paz. Na direção em que ia, conseguia se lembrar de outras caminhadas que tinha feito naquela direção. Passou por árvores em que já tinha descansado, lugares em que já tinha visto animais e até mesmo onde ficou tremendo de medo pelos motivos mais diversos. Ao encarar o seu inimigo, ficou perplexo: tudo a sua frente era soja. Em alguns pontos ainda estava verde e em outros amarela, dependendo da maturidade dos grãos. Somente uma frágil cerca separava o cerrado daquela plantação. A partir daquele ponto em que estava, a sua visão só via a soja e nada diferente disso até o horizonte.

Ele ficou encarando aquela paisagem depressiva durante um longo tempo até que lágrimas saíram dos seus olhos. Ficou se lembrando de uma grande árvore que ficava a uns quinhentos metros dali e que tinha visitado no ano passado. Um de seus galhos fazia a forma quase perfeita de um coração enquanto uma única folha estava presa em sua ponta. Naquele dia, também teve a honra de ver um tatu-bola que provavelmente morava no pé daquela árvore. Em uma das poucas vezes das quais se lembrava, voltou do cerrado totalmente triste.

Nos dias seguintes daquele ano, observou que a cerca mais se movia do que ficava parada. Parecia que ela andava quilômetros em pouco tempo, deixando Osvaldo abismado. Estranhamente, ninguém parecia nem se importar com isso. Durante todo o dia em que ficava no mercadinho, não ouvia uma única palavra sobre como o cerrado estava sendo dizimado. As pessoas falavam sobre tudo, esportes, política, e quem se divorciou de quem, mas não sobre algo que estava acontecendo literalmente a sua volta.

Começou a ficar cada vez mais difícil achar algum bom lugar para adentrar no cerrado. Às vezes, simplesmente não conseguia ficar à vontade, porque parecia que a soja o acompanhava com olhos atentos de um vigilante. Por causa disso, a sua alma passou a ficar cada vez mais pesada e a sua tristeza misturada com apatia não parava de aumentar.

Certo dia, pegou a sua moto após o trabalho como sempre fazia e começou a rodar pela estrada. Percorreu um número atípico de quilômetros, mas parecia que não tinha andado um metro sequer. Tanto a sua esquerda como a sua direita, a paisagem não se modificava: a poucos metros do acostamento havia uma cerca e

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atrás dela soja. Ele deve ter rodado mais de trezentos quilômetros naquela noite, mas teve que voltar sem ver o cerrado.

Quando chegou em casa, estava inconsolável. Não teve vontade de jantar, de jogar ou assistir televisão, simplesmente não queria fazer nada. Ele não conseguiu entender o porquê do cerrado estar perdendo essa guerra contra a soja, afinal ele é mais belo e rico, e a soja somente ganha no quesito “gerar dinheiro”, algo superficial. De qualquer jeito, Osvaldo ainda não tinha desistido de ver o seu amor pelo menos mais uma vez.

No dia seguinte, decidiu faltar ao trabalho para procurar pelo cerrado. Logo quando acordou, pegou a moto e foi para a estrada antes mesmo de comer alguma coisa. O olhar dele estava o mais atento possível enquanto procurava uma estrada de terra, uma trilha ou alguma árvore distante indicando que o cerrado ainda estava vivo, mas não achava nada além da soja.

Já tinha ido para o norte, sul, leste e oeste quando o relógio deu dez da noite. Ele simplesmente não encontrava o cerrado, parecendo que ele foi sequestrado e não conseguiu deixar pistas indicando para onde foi levado.

A cada centímetro que andava, a sua esperança se esvaía um pouco. Lágrimas começavam a encher os seus olhos, mas se recusavam a sair. Um incômodo atingia o seu peito e fazia com que ele desejasse nunca ter existido ou que simplesmente sumisse apenas para que essa sensação cessasse. As suas pernas tremiam mais do que o motor da moto que dirigia enquanto os seus braços estavam firmes e duros como se não tivessem articulações. Numa hora, entretanto, tudo isso parou. A sua face estava séria com expressões neutras, os seus músculos estavam relaxados e ele guiava a moto de maneira calma em direção ao acostamento.

Quando a moto parou completamente, Osvaldo desceu dela, caminhou um metro na direção da cerca e se sentou na frente dela. A sua alma já estava completamente morta, então ficou meditando ali até que o seu corpo definhasse e também morresse. Pelo menos dessa maneira, conseguiria se juntar ao seu querido cerrado. Ironicamente, essas duas mortes, a da alma de Osvaldo e a do Osvaldo, poderiam ser evitadas com a preservação do cerrado por meio da instituição de leis mais rígidas, uma fiscalização mais forte e a determinação de áreas de preservação. Infelizmente, tanto na morte do cerrado como na de Osvaldo, as outras pessoas passavam pela estrada e não ligavam.

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VINGANÇA EM BRASA¹

Andre Telucazu Kondo Jundiaí (SP)

– O que é isso?

– Um livro – Sandra respondeu ao assustadiço menino. – Pra que serve?

– Ele conta histórias...

– Que histórias este livro conta?

– Este? Histórias de lutas, de vingança... – Vingança? O que é isso?

– Quando alguém faz mal a outra pessoa, essa pessoa pode querer revidar para fazer justiça. Isso é vingança... Ah, mas tem história de amor e...

– Eu acho que quero me vingar também... – interrompeu o menino.

Sandra não se intimidou. – Do que quer se vingar? – De tudo.

***

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– Vou me vingar, eu prometo!

O menino, com a cara coberta de fuligem, praguejava. O pai inerte em seus braços, a cara paterna dura como um toco que sobrevive a uma queimada no cerrado. Mas o pai não era pau nem pedra, era homem que não suportou os anos de queima na carvoaria, o pulmão preto como a noite a camuflar as torres de fumaça, que consumiam o cerrado e o coração das famílias, bichos que rastejavam em uma vereda sem fim.

– Vou me vingar! – repetiu o menino, agora sem o mesmo ímpeto, as chamas do peito se apagando.

O menino nunca havia lido Guimarães Rosa, nunca havia se deparado com as veredas das palavras. Não podia saber de vinganças dessa laia como a do bando de Vaz, com Riobaldo e Diadorim no encalço de algum cabra.

Tão fácil deixar se consumir como carvão em brasa... Mas o menino prometeu que não se deixaria apagar antes de se vingar. Quem havia matado o pai? O patrão. Ele sabia, era o patrão o culpado daquela desgraceira toda, não a desgraça da morte de um só homem, que isso era coisa pouca para quem vive por terras de ninguém. Ele havia era matado toda aquela gente do cerrado, com sua ganância sem fim. Matado assim, deixando-os meio-vivos, escondidos pela fumaceira, névoa de mortos-vivos. Queimou um sem fim de mata, chutou bichos pelos colhões, tacou fumaça nos olhos do povo que, sem enxergar, embrenhava-se pela terra cortando todo aquele mato bonito e, sem saber, cavando a própria cova.

– Vou me vingar!

Quando? Ele bem sabia que não dava pra ser naquele dia. Já não tinha mãe pra lamentar a morte do pai, nem a de ninguém. Cavou uma vala rasa e deitou o pai. Cobriu o homem de terra como quem puxa um lençol. Olhou para as estrelas e, na falta de alguém que o cobrasse no futuro, voltou a prometer a elas:

– Vou me vingar...

Ficou à espreita até o amanhecer. Ainda não era a hora. Naquele momento, sabia que era menos do que um nada e, assim sendo, o que poderia fazer diante do dono da carvoaria, bicho ruim, que sequer pagava pelo funeral dos que morriam empilhando a fortuna dele, em montanhas de pepitas negras? O carvão valia poucos cifrões, mas era um tesouro valioso, pois continha toda a

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alma do cerrado em sacrifício. E quando o sacrifício era muito, os cifrões aumentavam na mesma proporção.

O caminhão encostou para o primeiro carregamento do dia. Alguns rapazotes correram, como formigas, para jogar os sacos na caçamba, como se pudessem se livrar de uma maldição. Mas, logo em seguida, veio outro e mais outro. E a carga nunca aliviava. Em um desses caminhões, entre os sacos de carvão, o menino se lançou como mercadoria sem valia.

Nunca havia saído daquelas terras. Tinha medo, mas seguiu firme. Observou cuidadosamente o rastro de poeira, que ficava para trás, em busca de pontos de referência que pudessem levá-lo de volta. Não que quisesse voltar, mas havia prometido. E o pai havia lhe ensinado que promessa é como uma brasa que não se apaga até que seja cumprida, pois quem não pode mantê-la acaba consumido até o fim, até virar cinza misturada com a terra seca.

– Vou me vingar.

A garganta seca queimava. O menino não sabia, mas tinha o mundo entalado nela. Como teve coragem de fugir assim? Teria sido pela dor da perda, por conta da morte do pai? Não. Isso não seria o suficiente, pois a morte era coisa pouca por aquelas bandas. Muitos filhos perderam os pais e continuaram na carvoaria, até que tiveram os próprios filhos, que também se largariam por lá. Era assim. A miséria era hereditária. A única herança. Então, o menino desafiou o destino?

Não sabia ler, mas carregava na memória e no coração o nome escrito naquele cartão em suas mãos. Como poderia se esquecer do nome da única pessoa que havia lhe dado carinho em toda a sua vida? Será que aquilo é que era mãe? Nunca teve uma de verdade, então, não tinha a resposta. Sandra. Era esse o nome mágico que o fez abandonar tudo. Na verdade, não tinha nada. Então, abandonar o nada não deveria ser fácil? Não quando o nada é tudo o que se tem.

Sandra...

Tão logo o menino foi descoberto na caçamba, o motorista o botou a correr o mundo. Será que era ali que Sandra morava? O menino olhou ao redor e ficou maravilhado. Todas aquelas construções eram meros galpões caindo aos pedaços, casas de periferia, ruas mal asfaltadas. Mas era uma paisagem diferente de

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tudo o que havia visto. Aquilo era a cidade. E o menino permitiu-se ter esperança.

Perambulou como um cão pelas ruas, até cair exausto em uma esquina. Mesmo desmaiado, não soltou por um só segundo o cartão de suas mãos enegrecidas. O cartão salvador. Sendo aquela a única coisa que o menino possuía, foi para o número impresso naquele cartão que ligou a bondosa alma que o encontrou desprotegido. Um tempo depois, Sandra chegava.

O menino nos braços de Sandra... Ao abrir os olhos, viu a mulher sorrindo. Tentou um sorriso em resposta, mas estava muito fraco. Só conseguiu ouvir, antes de desmaiar novamente:

– Está pronto para começar a vingança?

***

Armado, trinta anos depois, o não mais menino estava pronto. Enquanto dirigia em direção às terras da carvoaria, tentava se lembrar de seu longínquo passado. Tentava se lembrar de alguma meninice naquelas paisagens. Mas não encontrou nada. Afinal, a carvoaria havia consumido sua infância. Mesmo assim, conseguiu arrancar um sorriso de suas lembranças. Não lograria fazê-lo se dependesse apenas de si. A lembrança que lhe veio apascentar o espírito foi o sorriso de Sandra. Aquela a quem chamaria de mãe...

Pensou como teria sido sua vida (ou morte) se aquela mulher não tivesse aparecido na carvoaria. Como era impetuosa, aquela mulher recém-formada, que já se embrenhava por áreas perigosas para mostrar a verdade que ninguém quer acreditar. Era a sua primeira reportagem, sobre o trabalho praticamente escravo que ainda assolava os rincões do país. A mulher era forte, idealista, revolucionária. Havia sido ela quem lhe instigou a se vingar das injustiças do mundo. À época, por total desconhecimento, o menino não sabia que era injusto viver daquele jeito, que era injusto matar os homens e o cerrado, os bichos e a esperança, tudo para empilhar sacos de carvão em caminhões que partiam dias a fio.

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Enfim, a vingança estava próxima.

Quem poderia acreditar que um menino carvoeiro poderia ter percorrido tantas veredas, ter deitado a mão vingadora em tantos cantos do cerrado que cobre um quarto de nosso país? Foi para a escola. Tornou-se pesquisador e elaborou técnicas sustentáveis para a produção de carvão, proveniente de áreas reflorestadas. No Tocantins, ensinou as comunidades a viver do artesanato do Capim Dourado, sempre respeitando o ciclo da planta. Implantou técnicas de plantio direto em várias áreas do Centro-Oeste, onde antes havia técnicas agressivas que esgotavam o solo do cerrado. Mostrou o quanto era importante observar e compreender o ciclo da natureza, como revolver o mínimo de terra para evitar erosão e assoreamento dos rios. E o mais importante, compreendeu o poder da palavra, do quanto era importante conversar com as pessoas das comunidades que viviam nessas áreas, para que todos pudessem compreender a importância de se viver da terra de forma sustentável, para que, ao invés de uma herança de miséria e morte, pudesse existir uma herança de renovação e vida.

Parou diante da carvoaria em ruínas. Não havia mais ninguém lá. Olhou ao redor e viu que a terra estava agonizando, a boca do deserto a mostrar os dentes. Seria tarde demais para se vingar? Não... Ao pegar a pasta com os planos de recuperação daquela terra, adquirida quase de graça, a sua arma deslizou em suas mãos. O exemplar de “Grande Sertão Veredas”, que Sandra disse que, um dia, ele seria capaz de ler. Pois essa era a vingança que ela ensinou ao menino. Somente com o conhecimento adquirido pelas palavras é que ele poderia cumprir a vingança, recuperando a justiça daquelas terras, onde, finalmente, os pais e os filhos hão de apagar as brasas de seus dias, entregando suas cinzas ao ciclo que sustenta o renascimento...

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O FULGOR E A RELVA

Aruã Delfim Rio de Janeiro (RJ)

Era o homem na verdade, ao mesmo tempo tão poderoso, virtuoso e magnífico, tão vicioso e torpe? (Mary Shelley, em Frankenstein)

E

ram dois. Andavam lentos sobre a areia áspera da trilha que mais parecia talhar um caminho no deserto. O sol caía retilíneo e o céu espraiava-se num azul intenso. Calangos pululavam de um lado e de outro e rabiscavam a passagem num pulso de sobrevivência, fazendo despontarem vívidas risadas na face ressequida dos patifes.

Começaram a caçada com pauladas ao léu. O azarado foi um pequeno lagarto de cabeça tingida, esta que o sujeito magricelo arrancou numa dentada furiosa de seu tronco, e esmagou o crânio com estalos abafados enquanto gritava torpezas sobre o calor do cerrado. O outro catou o resto da carcaça e dilacerou na boca escura; o bicho sumiu como que tragado por uma caverna, embora o rabo pendesse balouçante entre os dentes separados.

O magricelo era o Tobias Falado, o outro era o Turbino. Eram como o gordo e o magro: Falado errava sujo pela mata rasteira como um pau de cabide cheio de penduricalhos; Turbino vestia calça, colete e camiseta branca estufada pela barriga e acinzentada pelo suor.

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O sentimento que todos alimentavam pelo atípico magricelo era galgado na repulsa de uma terrível primeira impressão – esta que mais tarde seria invariavelmente confirmada por suas ladroagens e artimanhas: Falado expunha as costelas, as clavículas, as omoplatas e os ossos do metacarpo muito salientes mesmo quando grossamente trajado; seu rosto era sulcado e nodoso, e seu cabelo hirsuto era, por baixo dos chapéus que sempre portava, obliterado por queimaduras proeminentes. Por fim, ele era empregado de importante pecuarista da região, e para tal trabalhava com incessante disposição.

Enquanto o magrelo era astuto e repulsivo, Turbino era o santo gordo. Este não atropelaria uma mosca; seria capaz de atentar para a trilha das formigas, evitando esmagá-las, e sustentava permanente um sorriso terno na fronte arredondada. Contudo, no momento do despertar da fome, Turbino fazia ranger os dentes, e suas orelhas enormes pareciam movimentar-se a procura de ruídos, como as de um sabujo experiente. Ele atacava qualquer corpo móvel que não fosse o de seu companheiro, falhando resignado na maior parte das investidas e saciando-se com os restos que Falado o arremessava.

...

A trilha na qual prosseguiam começava a apresentar grandes pedregulhos interpostos que os faziam subir e descer repetidamente, e, após alguns minutos, avistaram de um mirante uma ravina sulcada num diminuto vale verdejante.

– É ali! – bradou Falado, eufórico.

– Eu não vou fazer parte disso... – devolveu Turbino.

Falado lançou-lhe um olhar déspota e o gordo persignou-se tristemente, concordando com um gesto rápido. Eles prosseguiram na trilha, que agora margeava de longe a descida do rio, e foram parar justamente onde se abria um poço turvo e circular, logo abaixo da queda d’água.

Encheram os odres, que amarraram de volta nas cinturas, beberam e lavaram os rostos e avançaram por um aclive que protuberava nos flancos pedregosos da ravina. Foram encharcados pela torrente que corria grave ao encontro do poço, e finalmente alcançaram o topo do pequenino precipício.

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