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Violência no Trabalho e o Homem Descartável: um Estudo de Aproximação entre a Sociologia Clínica e a Psicodinâmica do Trabalho

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Violência no Trabalho e o Homem Descartável: um Estudo de Aproximação entre a Sociologia Clínica e a Psicodinâmica do Trabalho

Autoria: Marcus Vinicius Soares Siqueira

Resumo

O presente estudo é uma análise teórica do tema da violência no trabalho à luz de duas filiações teóricas específicas: a sociologia clínica e a psicodinâmica do trabalho. O artigo desenvolve algumas idéias quanto à gestão atual que, além de estar doente, provoca situações de violência, mesmo de teor simbólico, nos trabalhadores nas organizações, comprometendo as relações de trabalho. O estudo preenche uma lacuna nos estudos na área, especialmente na busca do diálogo entre os referidos campos de estudo, que tem inúmeros elementos comuns, apesar de serem epistemologias diferentes. A violência está presente sob a forma de casos de assédio moral, por meio da presença de líderes narcisistas destrutivos e também por meio de uma gestão que pressiona crescentemente o indivíduo dentro e fora das organizações, gerando efeitos danosos para sua saúde física e psíquica. Pode-se verificar também nas organizações contemporâneas a presença da auto-violência ou da submissão voluntária, como modalidade de violência. Neste sentido, desenvolver estudos de tal natureza auxilia na discussão da presente problemática, fomentando ainda pesquisas empíricas que gerem novos conhecimentos na área.

Quando se aprofunda a análise da temática da violência no trabalho, abre-se novo campo de abordagem nos estudos organizacionais, relacionado às sutilezas das diversas modalidades de agressões, como o assédio moral, ou outras não tão sutis assim, mas muito presentes no mundo do trabalho, como a atuação de líderes narcisistas destrutivos. Há ainda um conjunto de fatores internos e externos às organizações que catalisam a violência no ambiente de trabalho. Na dimensão externa, o desemprego torna-se ameaça constante ao trabalhador, fazendo com que o indivíduo se submeta frequentemente, a situações degradantes de trabalho. No contexto interno, a gestão se torna cada vez mais violenta, mesmo em sua dimensão simbólica, gerando constante pressão nos membros das organizações. Tem-se uma organização do trabalho, delineada a partir unicamente da racionalidade instrumental, reificando o indivíduo e considerando-o como descartável. Surge daí inúmeras perversidades cotidianas no trabalho, intensificando sua precarização e auxiliando na fragmentação de identidades individuais. A relação indivíduo-empresa se torna cada vez mais violenta no momento em que o indivíduo tem sua subjetividade subtraída pela organização e se torna um joguete – de modo voluntário, à disposição da empresa em que trabalha.

Dessa forma, é necessário estabelecer parâmetros teóricos para se analisar a problemática da violência nas organizações. Um dos campos de estudo mais tradicionais no contexto das teorias organizacionais refere-se à teoria crítica frankfurteana, com o questionamento das relações de dominação nas organizações, as formas de controle do indivíduo no espaço organizacional e a falta de espaço para que o indivíduo percorra o caminho da auto-emancipação. Um segundo campo de estudo refere-se à psicodinâmica do trabalho, que analisando a organização do trabalho e as relações socioprofissionais, estabelece um quadro teórico que permite aprofundar uma discussão acerca de várias temáticas como a subjetivação, a servidão voluntária em que o indivíduo se insere, as vivências de prazer e de sofrimento vivenciadas pelos indivíduos no espaço de trabalho e as estratégias de defesa e de enfrentamento traçadas para o indivíduo manter certo nível de normalidade na organização. Uma terceira filiação teórica é o da sociologia clínica, uma disciplina indisciplinada e que por

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tal razão é rica no que se refere às interfaces entre diversos campos de estudo, como a sociologia, a psicologia e a psicanálise. Propõe-se a análise dos fatos, enquanto fatos sociais totais, não se negligenciando de nenhuma dimensão necessária para a devida análise de situações concretas do mundo do trabalho: a dimensão individual/pulsional, a grupal, a organizacional e a social são articuladas de modo a conferir à análise da gestão de forma integrada e que se permita desconstruir o discurso organizacional contemporâneo, mostrando como o sujeito tem a sua libido canalizada pela organização, estabelecendo novas formas de controle do indivíduo na organização, prendendo-o nas amarras das estruturas estratégicas e inovadoras.

Neste contexto, o presente artigo visa contribuir na compreensão da questão da violência no trabalho, a partir das contribuições da sociologia clínica e da psicodinâmica do trabalho. A violência analisada pode ser considerada também como sendo uma violência simbólica, em que a sutileza e a cumplicidade entre os atores envolvidos definem um cenário de sofrimento no ambiente de trabalho. E ao se proceder à análise da violência sob estas perspectivas, é mister elaborar concomitantemente um quadro explicativo sobre as duas filiações teóricas abordadas no artigo.

A sociologia clínica analisa os fenômenos sociais à luz de várias filiações teóricas, que estão inclusive, na formação do composto da referida disciplina, como a psicossociologia, que se funde, em certa medida com a sociologia clínica, a antropologia, a escola de Frankfurt e a psicanálise. A clínica em ciências sociais, ponto de referência para se compreender os fenômenos sociais, pretende analisar a perspectiva individual e a social da realidade. De acordo com Sévigny (2001:22), “o clínico vai explorar o ponto de vista dos atores individuais, mas também tentará circunscrever o contexto social ou coletivo das representações individuais (...) considerando a relação dialética entre esses dois pontos de vista”. Partindo do pressuposto de que a sociologia clínica é uma sociologia dos fatos sociais totais, é necessário romper com a oposição da sociologia com a psicologia, fazendo com que temáticas pertencentes, a priori, aos campos da psicologia e da psicanálise, tais como as dimensões afetivas e psíquicas, possam estar no campo de análise da sociologia. Mesmo em Durkheim é possível se buscar um apoio à entrada da dimensão psíquica na explicação de um fenômeno social, ainda que a discussão do método sociológico proposto por Durkheim desenvolva argumentos contrários ao auxílio da psicologia e da psicanálise, na explicação de fatos sociais totais. Em Gaulejac (2007:30), temos que, ao se analisar o fato de que ao mesmo tempo com que as instituições se impõem sobre nós, nós as amamos, como nos revela Durkheim, “as relações entre os indivíduos e as instituições, ou as organizações, é uma relação social (ela se impõe a nós) e uma relação afetiva (nós a amamos e a odiamos)”. Percebe-se, dessa forma, a dificuldade e o gap de uma análise mais aprofundada, que se formaria ao ignorarmos a dimensão psíquica/afetiva da dimensão individual, ao se explicar determinado fenômeno social. As contradições sociais não podem ser efetivamente explicadas, sem que haja uma análise, no contexto das relações do homem com a sociedade, dos processos de recalcamento por que o homem passa em sua relação com as instituições. Dessa forma, o inconsciente do indivíduo não pode ser ignorado na explicação de um fenômeno social que nunca é meramente social, mas sim sócioclínico. É necessário resgatar o lugar do sujeito na abordagem sociológica.

A partir desse pressuposto essencial, identifica-se, em Gaulejac(2007), algumas premissas relevantes, tais como: a importância do que o ser humano vivencia, o estudo do homem em sua realidade, a preocupação com as representações, os sentimentos e as emoções, compreender o ser humano, a partir de todas as suas dimensões, estar atento aos sentidos que as pessoas dão às suas próprias vidas, ou seja, estarmos atentos à história de vida, enquanto fator essencial para uma análise clínica em ciências sociais. Ainda segundo o autor, “a sociologia clínica recorre à psicanálise para explorar as dimensões inconscientes dos

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processos sociais, como por exemplo, os aspectos familiares do processo de constituição de uma personalidade autoritária. Ou ainda, no estabelecimento de um retrato sociolibinidal do pequeno burguês, em suas características de amor à possessão, ao puritanismo, a paixão pela ordem...” (GAULEJAC, 2007:43).

Daí a importância da sociologia clínica enquanto fruto de processos de intervenção que colocam o sujeito em sua relação com as instituições, em primeiro plano, não restringindo a análise sociológica, às grandes estruturas. A partir destas considerações, é necessário analisar como a violência pode ser objeto de análise, à luz da sociologia clínica, como a violência pode ser percebida nos atos cotidianos da gestão e da organização do trabalho. A vida nas organizações é permeada por situações de violência. Dessa forma, reafirmamos, a partir de Lévy (2001:77), o fato de que a violência não precisa ser espetacular para ser percebida como tal, ou seja, “trata-se sempre de uma questão de interpretação, relativa à cultura, às pessoas, ao contexto. Assim, um simples sorriso, uma palavra alusiva, um olhar, podem denotar uma grande violência (ou, em todo caso, podem ser sentidos como tal), se forem interpretados (com justeza ou não, e conforme as circunstâncias) como um estupro, um deboche ou uma expressão de desprezo”. Pode-se dizer, ainda, que a violência permeia nossa vida, de tal forma, que não conseguimos nos ater o quanto somos violentados cotidianamente, dentro e fora do ambiente de trabalho. É claro que temos situações que, em princípio, não são violentas, mas que podem ser percebidas como sendo de extrema violência para que a está vivenciando. Neste sentido, a violência não pode ser definida apenas a partir de agressões físicas, mas também quando há a negação do outro, de sua subjetividade. A violência está relacionada à alteridade, mas em um sentido inverso, ou seja, nega-se a vida, o pensamento diverso, a liberdade do outro em ser diferente, de sua singularidade. A violência está presente, no contexto organizacional, ao se limitar a expressão do indivíduo, de sua palavra, da representação que ele tem de sua contribuição na construção de sua própria realidade.

Valorizar a diversidade é estar aberto à subjetividade de cada um nas organizações, e não seqüestrá-la, como é típico das organizações atuais. O respeito à diversidade exige um aprofundamento das relações de trabalho, no que tange à criação de espaços públicos para a fala, para a participação, que não seja a mera pseudoparticipação presentes no discurso organizacional. Percebe-se, entretanto, que não existe nas organizações, de modo geral, uma abertura para o diferente, para o que pensa diferente. Este é visto, não raras vezes, como sendo traidor, uma pessoa que não comunga das crenças e valores da cultura organizacional. Há a tendência em se estabelecer nas organizações modernas, especialmente as de estrutura estratégica, um jogo de homogeneização de condutas individuais e grupais, que estejam alinhadas aos desejos e objetivos da organização. A doutrinação, a socialização organizacional, a educação corporativa e as universidades corporativas são alguns exemplos de mecanismos que podem levar ao seqüestro da subjetividade do indivíduo na organização, impedindo ou ao menos desestimulando o pensamento e as ações contrárias ao que dita a organização e o que se estabelece em sua cultura.

Dessa forma, é necessário refletir sobre a gestão atual e como o trabalho está organizado, assim como as relações de trabalho nas organizações contemporâneas. Neste sentido, é possível se vislumbrar aspectos inerentes à violência, e de modo mais específico, da violência sutil nas organizações. Gaulejac (2006) utiliza um termo apropriado ao caracterizar a organização como estando doente, ou seja, apesar dela ser fundamental e ter o seu papel de organizar o mundo e racionalizar a produção, ela invade o mundo e pressiona o indivíduo, ao invés de melhorar as relações humanas. A competitividade torna-se presente nos diversos campos de atuação humana, fazendo com que cada um procure, a partir de uma ação individual e não coletiva, um lugar ao sol. A gestão privada é percebida como sendo a principal solução para os diversos setores, como o Estado ou o terceiro setor. Apenas existiria a efetivação do processo de modernização quando do resgate destas tecnologias gerenciais,

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que a partir da dimensão ideológica, podem ser consideradas como sendo práticas de controle, coisificando o indivíduo e tornando-o mero instrumento à disposição do sistema produtivo. Gaulejac (2006:22) nos lembra que a gestão é um sistema de organização do poder que “sob uma aparência objetiva, operacional e pragmática, a gestão é uma ideologia que traduz as atividades humanas em indicadores de performance, estas performances em custos ou benefícios...ela constrói uma representação do humano como um recurso a serviço da empresa, contribuindo, assim, para a instrumentalização”.

Existe pressão pelo quantitativo, por números, pelo que pode ser mensurável, comparado e classificado. A flexibilização torna-se palavra chave, flexibiliza-se tudo, inclusive os contratos de trabalho que tornam-se cada vez mais temporários, instáveis e isentos de direitos aos trabalhadores. A estratégia de flexibilização é, segundo Chanlat (1996:16), diretamente responsável “pelo aumento do pessoal temporário externo, pelo desemprego de executivos e profissionais, pela diminuição de empregos estáveis e bem pagos e, pelo aumento da precariedade e da exclusão”. É necessário ser mais adaptável, se ajustar às transformações do mercado, de modo a responder rapidamente às demandas dos consumidores. A rapidez é exigida do empregado, e não basta ser rápido, é necessário ser o mais rápido e o mais eficiente, pois o mercado de trabalho está continuamente mais enxuto, havendo espaço apenas para aqueles que colocam o trabalho e a organização em que presta os seus serviços, em primeiro lugar, em uma posição privilegiada em suas vidas. Enriquez (1997) nos traz a questão de que a idéia do trabalho enobrecer o homem está mais presente em nosso consciente e em nosso inconsciente, excluindo, muitas vezes, dimensões importantes da vida do homem. “O valor de cada um é mensurado em função de seus critérios financeiros. Os improdutivos são rejeitados porque eles se tornam os inúteis do mundo. Assistimos o triunfo da ideologia de realização de si mesmo. A finalidade da atividade humana não é mais de fazer sociedade, ou seja, de produzir um lugar social, mas de explorar os recursos, materiais ou humanos”. (GAULEJAC, 2006:57). O homem se torna descartável na lógica gerencialista atual.

Nessa ideologia gerencialista e perversa, fundada no cálculo e na quantificação, a violência assume papel de relevância no momento em que os valores são colocados em segundo plano e apenas a racionalidade instrumental tem o seu espaço. As grandes empresas detém poder crescente na sociedade atual, sendo que a riqueza de algumas empresas são maiores do que o PIB de parte significativa das nações. E a violência pode ser visualizada nas mais variadas dimensões, seja coletiva, seja individual. Coletiva, no momento em que, em nome do “progresso” a empresa se percebe como detentora dos recursos ambientais e os usam de modo arbitrário; ou quando a empresa que tornou-se núcleo central da vida econômica de uma pequena cidade se transfere repentinamente para outro município, utilizando-se de justificativa técnica que venha a legitimar esta forma de violência. Individual, quando a pessoa é submetida a determinadas violências institucionais, como a de ser reificada, coisificada e considerada como se fosse uma peça inerte do processo produtivo, tendo sua subjetividade seqüestrada pela empresa e vendo estas ações serem legitimadas por uma racionalidade discutível. Além disso, é difícil nomear um responsável por esta violência institucional, como menciona Levy (2001:78), ao dizer que “essas formas de violência não são personalizadas, encarnadas por sujeitos individuais ou por sujeitos coletivos. E suas vítimas, também, não são identificadas ...”, ou seja, o poder está nas regras, eximindo de culpa qualquer pessoa física que esteja envolvida em situações de violência.

A organização faz uso de determinadas operações no sentido de alcançar maior comprometimento afetivo do indivíduo na organização, ou seja, joga-se com o amor, com a afetividade, de modo a se adequar o indivíduo às propostas da empresa. Sedução e fascinação falam mais alto nos complexos jogos de poder e de desejo das organizações. A sedução pode ser considerada como sendo uma modalidade de violência no momento em que uma das

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partes tem consciência que o seduzido apenas está sendo alvo dos seus investimentos em virtude de um interesse de curto prazo, quando não houver mais necessidade, ele é lançado à fogueira, muitas vezes perplexo e desorientado. Da mesma forma, a fascinação enquanto controle amoroso pode ser fator de violência à medida em que auxilia na transformação do indivíduo em um elemento de determinada massa acrítica, em que dificilmente o indivíduo vai poder ou mesmo desejar, se emancipar frente aos processos de dominação no contexto organizacional. Há mais do que identificação do indivíduo à cultura, percebe-se em determinadas situações a substituição do ideal de ego do indivíduo pelo da organização, do imaginário do indivíduo pelos desejos e projetos organizacionais. Perder o senso crítico, colocar em risco a sua identidade e os seus sonhos são algumas das piores formas de violência que o indivíduo pode se sujeitar no mundo do trabalho.

Considerando tais argumentações, levanta-se ainda o fato das promessas que não são cumpridas na relação que o indivíduo mantém com sua organização. Enriquez discute, neste sentido, a presença do imaginário do logro, que ao invés do imaginário motor, que tem no desenvolvimento da criatividade e da palavra as suas características principais, o imaginário do logro, o é do engano, das promessas realizadas pela organização, pela gestão, sendo que ela sabe que dificilmente serão cumpridas. Tem-se um jogo no diminutivo, causando sofrimento para o indivíduo que se julga pouco apto a alcançar as expectativas da organização e de si mesmo. Esta é uma modalidade de violência que é sutil, que não é tão percebida pelo indivíduo, que é instigado a ser o responsável, o gestor da sua própria carreira. Violência à medida em que o indivíduo se dedica arduamente mas não perde constantemente o jogo, um jogo que é jogado sabendo-se quase sempre o resultado. É violência no momento em que o indivíduo chega em casa exausto em virtude da sua dedicação exclusiva à empresa, sempre na expectativa de ser reconhecido, de ser promovido e de alcançar um lugar ao sol. A violência que ocorre a partir da afetividade do indivíduo, que joga com os seus desejos mais profundos está presente no cotidiano perverso das grandes empresas. O reconhecimento serve, portanto, a dois objetivos, o de gerar prazer, objeto de discussão da psicodinâmica do trabalho e desenvolvida também pela sociologia do trabalho; mas, por outro lado, pode-se perceber o reconhecimento como objeto de manipulação psicológica no mundo do trabalho.

Além do reconhecimento, que pode ser uma forma de mediação, ao recompensar o indivíduo simbolicamente por determinado aumento de seus esforços no alcance dos objetivos organizacionais, percebe-se nas organizações, que o indivíduo tende a ser levado a desenvolver uma atitude sempre positiva em relação à ela, ignorando a dimensão crítica da análise da organização do trabalho. Esta talvez seja uma das modalidades mais sutis de violência, a do desenvolvimento de uma aversão frente à inserção crítica do indivíduo, fazendo com que ele seja efetivamente sujeito de sua própria história, o que se torna ainda mais desafiante quando o trabalhador sofre com as demandas contraditórias do discurso, e, em especial com o discurso da autonomia, que é, paradoxalmente, controlada.

A psicodinâmica do trabalho também é um campo de estudos rico para se analisar a questão da violência nas organizações. Vivências de prazer e de sofrimento, estratégias de defesa, de mediação, subjetivação, a mobilização subjetiva no contexto da organização do trabalho, dar um sentido ao trabalho realizado, a servidão, a questão do reconhecimento são alguns dos temas propostos e discutidos no referido campo de estudo, que tem em sua origem os estudos vinculados à psicopatologia do trabalho. Mas diferentemente da psicopatologia que tem um foco no sofrimento, a psicodinâmica enfoca a normalidade, o trabalho prescrito e o real, e por meio de um intercâmbio com a sociologia e com a ergonomia, lança mão, por exemplo, de uma reconceitualização do trabalho que está relacionado com o trabalho real e as modificações que são necessárias serem realizadas para transformá-lo em um trabalho real. Além disso, como mencionado por Lhuilier (2007) o trabalho é fator imprescindível para o

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equilíbrio psíquico do indivíduo, em sua ligação com o social e na construção de sua própria identidade.

Como já se disse, a psicodinâmica do trabalho analisa não apenas o sofrimento e a mobilização subjetiva que a organização do trabalho demanda do trabalhador, mas como as estratégias de mediação utilizadas pelos indivíduos para que eles mantenham a normalidade, são também utilizadas pelas empresas na busca do aumento de produtividade e de seus resultados. O sofrimento é negado, racionaliza-se de forma que ‘é assim mesmo em todo lugar’. As defesas utilizadas pelos indivíduos auxiliam no não adoecimento do indivíduo, mas pode levar à sua alienação em relação ao processo produtivo de que faz parte, como bem nos lembra Mendes (2007:39), que ainda nos expõe que “ocorre uma articulação entre um funcionamento perverso da organização do trabalho e o comportamento neurótico que os trabalhadores passam a assumir, submetendo seu desejo ao desejo de produção”. O indivíduo deixa-se levar, em um contexto de flexibilização organizacional, pelas promessas da empresa e da organização do trabalho, seja em termos de promoções sejam em termos de um sentido para o trabalho que realiza, por exemplo. Além disso, o coletivo de trabalho se desestrutura de tal forma que o individualismo reina nas organizações, revelando, a dimensão humana da agressividade e da pulsão de morte, dificultando a concretização de um espaço coletivo para a palavra, que auxilia na conquista da emancipação do indivíduo na organização. Não tendo este espaço e não podendo exercitar sua criatividade tendo em vista a inflexibilidade do trabalho prescrito, do que é formalizado pela organização, dos processos de trabalho que são altamente padronizados, o indivíduo se depara com a desesperança no ambiente de trabalho e pior, dissemina esta desesperança para outras dimensões de sua vida e dos que os rodeiam.

O trabalhador vivencia nas organizações, sejam do setor público ou do privado, inúmeras modalidades de sofrimento e é submetido e se submete a várias formas de violência. E não é necessário uma violência espetacular para que ela seja considerada como tal. Segundo Dejours (2007:19), “trabalhar é, antes de tudo, fazer a experiência do sofrimento”. Ainda segundo Dejours (2000), identifica-se facilmente nas organizações atuais algumas modalidades de sofrimento dos que trabalham, tais como: o medo da incompetência, a pressão para se trabalhar mal e a falta de esperança de ser reconhecido na organização em que trabalha, o que poderia transformar o sofrimento em possíveis vivências de prazer. E apesar de todos estes fatores, o indivíduo luta para manter a normalidade frente às inúmeras dificuldades e pressões no ambiente de trabalho, e esta busca da normalidade não é isenta de sofrimento. Há de acordo com Dejours (2000:36), “uma dura luta contra a desestabilização psíquica provocada pelas pressões do trabalho”. Esta pressão no trabalho está inserida em um contexto mais amplo da organização do trabalho. Há necessidade de que os indivíduos suplantem o sofrimento, transformando em prazer, a partir de determinadas estratégias que conferem sentido à tarefa realizada no seu universo particular de trabalho (Mendes, 2007). Esta mobilização individual exige também o envolvimento do coletivo, para que haja o redirecionamento das relações que o indivíduo mantém com o seu trabalho. Ainda segundo Mendes (2007:51), a identidade é fundamental para dotar o trabalho de vivências de prazer. Segundo a autora, “o trabalho quando funciona como uma fonte de prazer (identidade, realização, reconhecimento e liberdade), permite que o trabalhador se torne sujeito da ação, criando estratégias,e com essas possa dominar o seu trabalho e não ser dominado por ele, embora nem sempre isso seja possível, em função do poder da organização do trabalho para desarticular as oportunidades para uso dessas estratégias”.

E todas estas dimensões do sofrimento no trabalho presentes no processo de trabalho real não são lembradas no discurso organizacional, apenas a vitória pelas metas alcançadas são evidenciadas. O discurso organizacional que tinha como foco o ambiente externo, de modo a melhorar a imagem institucional da empresa, se estende para o ambiente interno, a fim de que haja a interiorização da cultura organizacional por parte dos membros da

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organização. O sofrimento é frequentemente negado, especialmente quando este envolve algum processo chave para a organização, e possa colocar em risco os números em termos de produtividade e de resultados organizacionais. E a felicidade em trabalhar na empresa passa a ser objeto constante da mídia oficial das empresas. (DEJOURS, 2000). Há o discurso do superexecutivo de sucesso, ou seja, empresa e empregado fomentam um discurso de hipervalorização do sucesso, e do que é necessário ser investido para alcançá-lo. Siqueira (2006:110) nos escreve que “o indivíduo está disposto a se dedicar e se sacrificar cada vez mais à organização, assim como para alcançar seus próprios objetivos. Neste sentido, cada uma das partes tentará seduzir a outra, aprofundando os jogos de poder e de desejo”. Um segundo discurso é o do comprometimento organizacional, em que se busca o coração, a afetividade do indivíduo, ou seja, “as empresas e, mais ainda as de grande porte, querem ter em seus quadros pessoas leais à organização, à sua missão; estão atrás de indivíduos que se envolvam com seus objetivos e com seus valores, pois, no fim das contas, é o que pode garantir um diferencial competitivo no mercado: de acordo com o discurso organizacional, o grande fator competitivo é o empregado” Siqueira (2006:141). E um terceiro discurso que não pode ser esquecido refere-se à participação dos empregados nas decisões organizacionais. A participação pode ser vista na realidade atual das organizações não como algo que permita a emancipação do indivíduo, com a abertura de um palco de abertura para a livre-expressão; ela é frequentemente utilizada para referenciar decisões previamente tomadas.

Um das principais facetas do sofrimento vivenciado pelo indivíduo na organização é o ser passível da violência moral. Fala-se muito atualmente em termos de assédio moral, mas muito pouco tem sido feito efetivamente pelas empresas para que haja a diminuição de tal prática, que começa a se cristalizar nas culturas organizacionais, como se fosse algo natural de um mercado competitivo. É necessário aprofundar as discussões sobre situações de assédio, mas não apenas, isso porque mesmo que determinada situação de violência moral seja pontual, ela deve ser plenamente combatida nas organizações. Dessa forma, questiona-se o que tem se feito em termos de prevenção e combate a situações de violência moral, ou seja, pode-se dizer que a violência moral tem sido objeto de políticas internas, especialmente da área de gestão de pessoas, enquanto fomentador de diretrizes desta natureza? Observa-se a ausência de uma política que puna efetivamente e de modo exemplar líderes narcisistas destrutivos que alcancem ótimos resultados. Os resultados alcançados por um dirigente podem torná-lo imune mesmo que tenha sua gestão apoiada no despotismo e no terror. Além do líder, pode-se questionar o modo com o trabalho está organizado, ou seja, esta organização do trabalho permite que o indivíduo esteja submetido a pressões acima do razoável, causando efeitos danosos a sua saúde? No que se refere a esta questão, o indivíduo vêm sofrendo com a pressão que o trabalho tornou-se em sua vida. As práticas organizacionais e de gestão privilegiam de forma desmedida a produtividade e os resultados organizacionais, que obviamente são necessários, mas não se pode omitir o ser humano desta dinâmica, ou considerá-lo apenas na dimensão instrumental. Em longo prazo, o indivíduo se percebe como sendo cada vez mais esquecido pela organização em que trabalha, começando a surgir um sentimento de desamparo institucional.

Por fim, concluímos este estudo, levantando uma última modalidade de violência que talvez seja uma das mais perversas no mundo do trabalho: a auto-violência, ou seja, a servidão voluntária. Não pretende-se aprofundar esta análise e sim deixar como fomento a um estudo posterior, cabendo daí, uma analise das razões que levam o indivíduo a se tornar uma peça do processo produtivo: o processo de interiorização de obrigações conduz os empregados a se identificar com a organização, de tal modo com que a identidade funcional se funde à identidade pessoal, o que já é uma das funções da cultura organizacional. É necessário repensar as relações de trabalho, do ponto de vista do desamparo do indivíduo e dos seus medos, inclusive da solidão. O indivíduo se permite a uma infinidade de situações grotescas,

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nas organizações, em virtude do medo do desamparo, de não ser amado e descartado pelo mundo do trabalho. Dessa forma, surge uma situação de masoquismo, não em virtude do prazer em sofrer, mas o de preferir a servidão do que o abandono. A auto-violência ou a servidão voluntária acaba-se por constituir-se, então, como sendo uma das principais formas de sofrimento do indivíduo não apenas nas organizações, mas em seu convívio social. O desejo de servir se relaciona estreitamente com o medo da perda, da dificuldade em se abrir mão de algo, para se manter a liberdade. O desamparo torna-se figura central enquanto construção subjetiva no contexto das diversas modalidades de violência que assolam a humanidade. Tal apego e o medo da solidão fazem com que o indivíduo se submeta voluntariamente, no que se refere ao mundo do trabalho e, de forma mais abrangente, no contexto social. Dessa forma, estamos falando em uma servidão voluntária, termo cunhado por La Boétie no século XVI. O homem se submete porque ele deseja, como nos coloca Birman (1999:08), ou seja, “somos servos e assujeitados porque queremos, por algo decidido pela deliberação humana, já que é da servidão voluntária que se fala agora”, não existindo mais a onipotência humana, e sim a preponderância do discurso da ciência e da autonomia individual.

Enfim, é fundamental desenvolver o diálogo entre os diversos campos de estudo, no sentido de aprofundar pesquisas quanto à violência no trabalho, a servidão voluntária, a manipulação psicológica no mundo do trabalho, dentre outros temas. É mister incentivar a compreensão de fenômenos que vêm gerando sofrimento ao homem em sua relação com o trabalho e fomentando a violência dentro e fora das organizações.

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