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A SOLDADEIRA E SEUS CLÉRIGOS: para uma leitura feminista de Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer (B 1455/V 1065), de João Baveca

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A SOLDADEIRA E SEUS CLÉRIGOS: para uma

leitura feminista de Mayor Garcia ssenpr' oy[o]

dizer (B 1455/V 1065), de João Baveca

Henrique Marques SAMYN1

RESUMO

O artigo apresenta uma leitura, desde uma perspectiva feminista, de Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer (B 1455/V 1065), uma das oito cantigas d'escarnho e maldizer compostas pelo jogral galego João Baveca, ativo no segundo e no terceiro quartos do século XIII. Baveca produziu duas cantigas satíricas sobre as soldadeiras – mulheres que acompanhavam, como dançarinas e cantoras, os trovadores e jograis galego-portugueses, cujo trabalho era desvalorizado pela sociedade patriarcal medieva: o nome soldadeira era também utilizado para designar as prostitutas, estigmatizadas e vistas como “mulheres caídas”. A interpretação proposta de Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer enfatiza o uso de topoi misóginos frequentes nas cantigas satíricas sobre soldadeiras, figurando a mulher como diaboli ianua e como sexualmente insaciável. O artigo está dividido em três partes: a primeira apresenta a relação de João Baveca com outros jograis peninsulares, como Pero d'Ambroa e Pedro Amigo de Sevilha, que também compuseram cantigas satíricas sobre soldadeiras; a segunda e a terceira partes desenvolvem a leitura da cantiga, analisando alguns de seus aspectos retórico-poéticos.

PALAVRAS-CHAVE: Soldadeiras. Cantigas de escárnio e maldizer. Trovadorismo galego-português. Crítica literária feminista.

ABSTRACT

The article provides a reading, from a feminist standpoint, of Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer (B 1455/V 1065), one of the eight cantigas "d'escarnho e maldizer" composed by Galician jogral João Baveca (second and third quarters of the 13th century). Baveca composed two satirical cantigas on soldadeiras, female dancers and singers that accompanied Galician-Portuguese trovadores and jograis, whose work was devalued by medieval patriarchal society: the name soldadeira was also used to designate the prostitutes, stigmatized and seen as "fallen women". The proposed interpretation of Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer emphasizes the use of misogynist topoi common to satirical cantigas on soldadeiras, portraying the woman as diaboli ianua and as sexually insatiable. The article is divided into three parts: the first part outlines the relation of João Baveca to other peninsular jograis, as Pero d'Ambroa and Pedro Amigo de Sevilha, both of whom also composed satirical cantigas on soldadeiras; the second and third parts offer a reading of the cantiga, with an analysis of its poetical-rhetorical devices.

KEYWORDS: Soldadeiras. Satirical cantigas. Galician-Portuguese troubadour poetry. Feminist literary criticism.

1Doutor em Literatura Comparada (UERJ), com Pós-Doutorado em Literatura Portuguesa. Professor Adjunto de Literatura Portuguesa

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I

NTRODUÇÃO

:

DO MALDIZER SOLDADEIRAS

Muito pouco sabemos sobre João Baveca, embora um número significativo de suas cantigas, não menos de três dezenas, tenha sido preservado nos cancioneiros medievais galego-portugueses – uma produção que, diga-se de passagem, contempla os três principais gêneros peninsulares: são 7 cantigas de amor, 13 cantigas de amigo e 8 cantigas de escárnio e maldizer, além de uma tenção e um partimen. O que se pode deduzir sobre a sua biografia é precisamente o que sugerem essas composições: a tenção com Pero d'Ambroa e o partimen com Pedro Amigo de Sevilha permitem supor sua presença nas cortes de Fernando III e Afonso X, o Sábio, provavelmente por volta do segundo terço do século XIII (OLIVEIRA, 1994, p. 358; TAVANI, 2002, p. 400-401).

A inserção de Baveca no ambiente cultural medievo pode ser estimada pelas referências, em suas composições, a outros agentes do meio trovadoresco: Bernal de Bonaval é provavelmente o "Bernal Fendudo" (B 1453, V 1063) contra quem ele, ao lado de Pero da Ponte e Airas Peres Vuitorom, desfere ataques visando à desqualificação da virilidade, a partir de topoi associados aos “sodomitas”; alusões no mesmo sentido surgem numa das cantigas que dirige a Pero d'Ambroa (B 1456, V 1066; B 1457, V 1067), ademais aparentemente pondo em questão, em uma composição que nos chegou bastante incompleta, uma suposta peregrinação à ermida de Santa Maria de Rocamador (LOPES, 2002, p. 200).

Todavia, não apenas a seus pares João Baveca dirige sua verve nas cantigas de escárnio e maldizer; de fato, ele é um dos muitos compositores peninsulares em cujo corpus de produção satírica encontramos ataques à discriminada categoria das soldadeiras – aquelas companheiras de ofício de trovadores e jograis que estavam entre os principais alvos da misoginia medieval. Com efeito, embora desempenhassem um papel fundamental no espetáculo trovadoresco, dançando, cantando e tocando instrumentos, não é por acaso que esse segmento profissional de mulheres surge assim denominado nos documentos medievais, ainda que ocasionalmente encontremos nomes como "jogralesas" ou "cantadeiras": para além de designar o profissional que vivia da soldada diária, o termo "soldadeira" designava "a mulher que vendia ao público seu canto, sua dança e seu corpo mesmo" (MENÉNDEZ PIDAL, 1962, p. 31; trad. nossa). Desse modo, em uma mesma categoria se reuniam todas aquelas mulheres que desafiavam as rígidas determinações que, a partir da exigência de castidade, cerceavam o comportamento feminino.

No conjunto de oito cantigas de escárnio e maldizer compostas por Baveca, metade tem por alvo essas mulheres. Se uma trata do diálogo de duas soldadeiras anônimas que encontramos "dizendo bem, a gran pressa, de si", do que resulta um catálogo de atributos vistos como indesejáveis nos corpos femininos (B 1458,

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texto poético e imediatamente reconhecidas por qualquer um afeito à literatura satírica trovadoresca: uma cantiga tem por objeto a famosa Maria Peres Balteira, aqui furiosa por sentir-se deostada pelos insultos que João Baveca direcionara a uma velha (B 1460, V 1070); as outras duas têm por alvo Maior Garcia, soldadeira que foi igualmente visada por aqueles jograis que comparecem ao lado de Baveca nas composições dialogadas – o que permite supor a formação de uma tríade masculina de fundo homossocial disposta a exercer o poder simbólico que lhes concediam as estruturas patriarcais por meio das práticas trovadorescas.

Com efeito, e de modo, aliás, bastante previsível, nesse conjunto de cantigas de escárnio e maldizer dirigidas a Maior Garcia se repete um mesmo conjunto de motivos, erigindo uma estereotipada efígie da soldadeira. Pero d'Ambroa figura uma mulher omiziada, que – alegadamente, para melhor guardar-se – em canto algum se detém, que qualquer homem só poderá achar “quando se quiser levantar”, evidentemente aludindo a uma reprovável agitação sexual (B 1578); Pedro Amigo de Sevilha, em cantiga que sobreviveu incompleta – a última do Cancioneiro da Vaticana –, fala de Maior Garcia como uma mulher que, vendo-se pobre, não hesita em recorrer aos favores do arcediago e do deão (V 1205). Como se poderia esperar, João Baveca percorre o mesmo território que seus companheiros, fazendo ressoar o riso masculino a partir de um compartilhado temário misógino: como Pedro Amigo, fala de uma Maior Garcia empobrecida, mas que dessa vez busca auxílio junto a um judeu e a um mouro (B 1454, V 1064); como Pero d'Ambroa, apresenta uma soldadeira que conta, entre os parceiros sexuais, figuras do clero – precisamente na cantiga que analisaremos neste artigo (B 1455, V 1065).

O caráter estereotípico desse jogo de representações não nos permitirá obter uma visão concreta de quem foi Maior Garcia, essa mulher que, no século XIII, viveu e atuou no meio trovadoresco peninsular; contudo, talvez devamos indagar se mesmo seus coevos não se limitaram a enxergá-la por meio das lentes que reduzem a alteridade ao clichê, sobretudo quando marginalizada desde um referencial estável e vasto como aquele composto pelo sistema de valores patriarcais. A esse propósito, pode-se notar que a cantiga de João Baveca apresenta notável similaridade com a única peça satírica de Fernão Velho que chegou até nós (B 1504), conquanto aquela se dirija à Balteira: Maria Peres, ao decidir confessar-se, “hun clerigo filhou /... / e diz que o terrá, mentre viver”; Maior Garcia, como veremos, precisará de um pouco mais para satisfazer-se, de modo a atualizar o lugar-comum da mulher sexualmente insaciável e carente de qualquer solidez moral. Em todo o caso, uma e outra aparecem como reflexos de uma feminilidade estereotipada, abrigadas sob a alcunha genérica de “soldadeiras”.

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L

EITURA PRIMEIRA

:

DA RECEPÇÃO INGÊNUA

Transcrevemos a mencionada cantiga de João Baveca (B 1455, V 1065) conforme a edição proposta pela equipe coordenada por Mercedes Brea, compilada em Lírica profana galego-portuguesa (1996, p. 417; LPGP 64, 15):

Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer, por quen-quer que [se] podesse guisar de ssa mort' e sse bem maenffestar, que non podia perdudo seer; e ela diz, por sse de mal partir, que, enquant' ouver per que o comprir, que non quer ja ssem clerigo viver. Ca diz que non sab' u x' á de morrer e, por aquesto, se quer trabalhar, a como quer, de sse d' esto guisar; e diz que á ben per hu o fazer

con o que ten de sseu, sse d' alhur non; dous ou tres clerigos, hun a sazon, …... [-er].

E Mayor Garcia, por non perder sua alma, quando esto oío, foy buscar clerigo et non ss' atreveu albergar …... [-er]

e ja tres clerigos pagados tem,

que, sse [é] hũu d' elles, sabede vós bem que a non pode a morte tolher.

À guisa de etapa preparatória à leitura interpretativa da composição, podemos ensaiar uma exposição meramente parafrástica da cantiga, assim reconstituindo o que poderíamos considerar como dimensão imediatamente acessível a um leitor ingênuo – ou, ao menos, não preparado para a percepção do aspecto obsceno presente na composição. Assim, dispensando a tarefa de expor uma rígida tradução, verso a verso, da cantiga de João Baveca – o que nos faculta a possibilidade de tentar expor, de modo mais claro, o sentido do texto –, e já aproveitando algumas poucas informações anteriormente expostas, temos a seguinte leitura: (I) Maior Garcia – que, já sabemos, é uma soldadeira – sempre ouviu dizer, sobre quem quer que pudesse cuidar da própria morte e se confessar, que não podia deixar de lado essa oportunidade; e, para afastar-se do mal, afirma que, enquanto tiver meios de cumpri-lo, não quer já viver sem ter consigo um clérigo. (II) Pois, diz a soldadeira Maior Garcia, não sabe quando há de morrer; assim, quer esforçar-se, a todo custo, para cumpri-lo; e assegura que tem como fazê-lo com o que já tem de seu, se não de outro lugar –

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passagem talvez obscura ao olhar ingênuo, mas que será facilmente preenchida por uma leitura maliciosa –: dois ou três clérigos, um por estação, haverá de conseguir. (III) E Maior Garcia, para não perder sua alma, quando isso ouviu, foi buscar um clérigo; mas não se atreveu a abrigar apenas um; e tem já consigo três clérigos satisfeitos, pois – sabeis bem! – sem um deles não quer arriscar-se a morrer.

Essa "versão ingênua" da cantiga, a bem da verdade, encerra já um reconhecível potencial cômico, cuja leitura buscaremos sintetizar nas próximas linhas. Cabe observar, antes de tudo e como clave fundamental para a leitura, a posição de Maior Garcia como soldadeira; ainda que a medievalística mais recente venha enfatizando a necessidade de rechaçar a vigência de um discurso clerical unívoco, abrindo espaço para que se percebam as nuances dos debates medievais em torno do gênero, no caso das soldadeiras parecem especialmente visíveis as tensões entre a noção teológica de uma possibilidade igualitária de salvação e a ordem social hierarquizada que sustentava a subordinação das mulheres (MURRAY, 1995). Por conseguinte, além do lugar subalterno que lhe cabia ocupar enquanto mulher, a soldadeira ainda ocupava uma posição marginal dentro do próprio ambiente trovadoresco, cuja élite era já constituída por ocupantes de posições subalternas no próprio seio da nobreza; isso, particularmente no caso peninsular, fazia dessas mulheres objeto de chacota compartilhado por trovadores e por jograis, sem que lhes fosse facultado, em qualquer momento, o direito à réplica. Considerando-se esse conjunto de relações de poder no âmbito de uma sociedade permeada por estruturas ideológicas teocêntricas, torna-se possível perceber a condição da soldadeira como inevitavelmente propensa à perdição, o que condiciona a leitura ingênua da cantiga de João Baveca.

Consoante essa perspectiva, assim poderíamos explicitar a comicidade da cantiga: Maior Garcia, a quem tantas vezes foi dito – pois ela “ssenpr' oy[o] dizer” – que aquele que pudesse cuidar de sua própria morte deveria fazê-lo, de uma hora para a outra resolve tomar as devidas providências. A insinuação de uma decisão súbita, legível na utilização do advérbio, é importante, uma vez que já caracteriza a protagonista como moralmente obtusa: se "ssenpr' oy[o] dizer", porque só agora faz aquilo de que já deveria ter cuidado há tempos? Não lhe teria, talvez, ocorrido a possibilidade de que algum dia poderia morrer – o que, para além da inconsequência que pode sugerir nossa mentalidade contemporânea, no âmbito medieval implicava um inexplicável alheamento de um dos temas mais presentes nas discussões cotidianas. Com efeito, na Idade Média a morte não era um assunto tabu, sendo constantemente evocado para tratar da renúncia aos interesses materiais e do destino da alma, especialmente nos discursos religiosos; como afirma Shulamith Shahar, “pregadores urgiam com pessoas para que estivessem prontas para morrer a qualquer momento e não

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postergassem o arrependimento até que estivessem velhas, uma vez que a morte poderia chegar a qualquer idade” (1997, p. 22; trad. nossa).

De todo modo, e ainda que tardiamente, Maior Garcia resolve tomar uma providência que lhe permita "de mal partir", quando enfim se conscientiza de que não pode saber ao certo quando morrerá – e que, portanto, sua alma corre sérios riscos. O leitor ingênuo poderá então entender que, ao contabilizar quantos pecados acumulou ao longo da vida, a soldadeira percebe que todo cuidado será pouco; que será preciso cercar-se de todas as precauções, de olhares vigilantes que lhe permitam não mais cometer deslizes que coloquem em risco o seu destino. Assim, primeiro decide ter consigo algum clérigo; mas apenas um seria suficiente para dar conta de seus pecados e impedi-la de recair em novos erros? Importa perceber como João Baveca obtém o efeito cômico ampliando a cada estrofe essa conta: a soldadeira que na cobra inicial “non quer ja ssem clerigo viver” passa a demandar “dous ou tres clerigos, hun a sazon”; todavia, no momento final, “ja tres clerigos pagados tem”, sempre com o objetivo de “non perder / sua alma”.

Por conseguinte, ainda que admitamos a possibilidade de haver um leitor incapaz de perceber a dimensão obscena da cantiga, a potência do escárnio é ainda reconhecível, sobretudo quando se mobilizam topoi da tradição misógina ocidental: a irresolução de Maior Garcia pode figurá-la como stulta mulier, que tem entre as mais influentes fundamentações aquela presente na Physiognomonica pseudo-aristotélica (1955, 809b, p. 110-111); por outro lado, sua condição pecaminosa não a diferencia das demais mulheres, percebidas por autores e clérigos medievais como especialmente propensas a emular Eva, isso quando as mulheres não serviam como personificações para o pecado (BARDSLEY, 2007, p. 176-177). Assim, a lição cômico-moralizante é clara: a estultice de Maior Garcia impede que perceba a perdição que encerra sua própria natureza; quando finalmente se dá conta disso, nada lhe resta, senão o gesto desesperado de procurar os clérigos – ou seja, as autoridades masculinas – que possam providenciar a sua salvação.

L

EITURA SEGUNDA

:

DA PERCEPÇÃO DA MALÍCIA

A anteriormente proposta leitura para Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer, conquanto possa ter o valor de explorar alguns aspectos da comicidade da cantiga, torna-se implausível precisamente pela condição específica de Maior Garcia como soldadeira – termo que, como anteriormente destacamos, era utilizado também para designar as prostitutas. Desde uma perspectiva feminista, não é difícil perceber que a ambiguidade dessa denominação está relacionada às estruturas patriarcais medievas: ainda que as soldadeiras não tenham sido, de fato, prostitutas – e não podemos ter certezas definitivas a esse respeito –, o papel por

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os quais a “natureza feminina” parecia sempre próxima demais da luxúria. Essas mulheres, afinal, desafiavam ostensivamente as regras de decoro prescritas ao seu gênero como forma de resguardar a castidade; invertiam, portanto, o que determinava a ordem patriarcal – e, como se isso não fosse suficiente, ainda eram financeiramente recompensadas por fazê-lo, mesmo que recebessem muito menos do que aqueles homens que as acompanhavam nas apresentações. Não havia, portanto, lugar para as soldadeiras entre as mulheres “honestas”.

Como que a espelhar na estrutura poética a natureza transgressora do ofício da soldadeira, João Baveca situa na metade da cantiga os versos que incitam à “leitura maliciosa” da composição. De fato, ao longo da primeira estrofe e dos primeiros versos da cobra intermediária, a leitura ingênua permanece plausível; todavia, a partir do décimo verso, ela se torna cada vez mais problemática. Enfim decidida a cuidar de sua alma, Maior Garcia resolve adotar as providências necessárias, e assegura que dispõe de meios para fazê-lo “con o que ten de sseu, sse d' alhur non”; mas onde lhe seria possível encontrar outros recursos? É nesse momento que a intervenção do leitor se faz necessária, preenchendo os silêncios do texto: não restam dúvidas sobre o que essa mulher estaria disposta a fazer para atingir seus objetivos quando se considera a posição que ocupa, ou seja, quando se evoca a sua condição de soldadeira; como não supor que sua natureza venal, mais cedo ou mais tarde, viesse a revelar-se? É aqui que João Baveca oferece ao leitor a confirmação de suas expectativas.

Com efeito, essa clave de leitura encerra novas possibilidades interpretativas para a relação que se estabelece entre Maior Garcia e os clérigos de que se rodeia. Não se trata mais de ler a soldadeira apenas como a mulher que vive em pecado, mas sim como aquela que, através do corpo, torna-se a porta de entrada para a vida em pecado; ou seja: aquela que, além de perder a si mesma, também arrasta os outros para a perdição. Embora a imoralidade clerical seja um tema comum no corpus das cantigas satíricas peninsulares, na composição de Baveca esse não é um assunto explícito; de fato, se a cantiga nada permite concluir acerca das intenções dos clérigos que passam a viver com Maior Garcia, isso talvez não ocorra por acaso: há nisso menos relevância do que na caracterização da soldadeira como aquela capaz de corromper toda e qualquer intenção, visto que disso decorre o potencial cômico do texto que escapara à leitura ingênua. Ainda que os “dous ou tres clerigos, hun a sazom” convocados por Maior Garcia efetivamente pretendessem salvá-la, uma vez ao seu lado não lhes restaria qualquer escolha: como poderiam escapar à malícia dessa filha de Eva?

Vale destacar mais uma eventual demonstração da mestria poética de João Baveca, compatível com a leitura que vem sendo proposta. Se é correta a percepção de que, ao longo da primeira cobra, a leitura ingênua tem alguma plausibilidade, e que é na segunda cobra que surgem os versos que determinam a leitura

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obscena da composição – podendo-se, a princípio, supor que haveria efetivamente alguma chance de salvação para a soldadeira, algo arruinado pela evidência de que Maior Garcia não apenas está condenada ao pecado, como também arrastará para a perdição aqueles que tencionavam salvá-la –, isso pode estar materializado na superfície textual pelo hábil recurso às cobras capcaudadas, que confere destaque a dois vocábulos legíveis como indícios das inclinações à salvação ou à perdição: viver/morrer. É suficiente evocar, a esse propósito, o versículo da epístola paulina aos romanos (Romanos, 5, 12) que produziria ampla fortuna teológica, sintetizada na lapidar fórmula vieiriana: “o pecado tira a vida espiritual, tira a vida eterna e também tira a vida corporal, porque do pecado nasceu a morte” (VIEIRA, 2008, p. 190). Ao fim, a vida de que se priva Maior Garcia acarreta a morte não só para si, mas também para aqueles que são por ela conduzidos para o pecado.

Por outro lado, importa perceber que tudo isso encerra um processo de inversão da ordem normativa: operando como diaboli ianua – para evocar a emblemática imagem proposta por Tertuliano –, Maior Garcia é quem sugestivamente arrasta os clérigos para a perdição, em vez de permitir-se lograr a salvação por seu auxílio; trata-se de algo especialmente transgressor se consideramos o significado desse gesto no contexto medieval. Se, para os homens da Idade Média, o afastamento do pecado é um modo de assegurar o caminho para a vida eterna, essa soldadeira que não apenas despreza sua própria salvação, como ainda desvia aqueles que poderiam retificar seus erros, constitui uma figuração daquilo que há de mais perigoso na feminilidade: Maior Garcia compartilha com suas pares uma essência lasciva que, em última instância, atenta contra a condição humana. E o risco que não apenas ela, mas todas as mulheres representam está patente na desmesura que a leva a ter consigo não apenas um, mas três clérigos, cujas demandas certamente satisfaz com gosto: se, como pensam os medievais, uma marca da sexualidade feminina é a insaciabilidade (SALISBURY, 1996, p. 86), decerto a soldadeira não encontra dificuldades para mantê-los “pagados”, e será incapaz de afastar-se deles até o fim de seus dias – porque seu corpo não o permitirá. Ao fim, quantos homens não serão desviados do reto caminho, seduzidos por mulheres dessa estirpe?

Uma síntese dessa leitura maliciosa da cantiga de João Baveca, buscando enfatizar sua potencial comicidade, pode orientar-se pelo modo como nela é empregado o recurso das cobras capdenals – que, ocorrendo na primeira e na última estrofes, confere ênfase a alguns de seus elementos basilares. Assim, o que temos é uma estrutura poético-retórica que pode ser assim figurada:

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(I.) Mayor Garcia ssenpr' oy[o] dizer, (→) que non podia perdudo seer;

↕ ↕

(") (→) que non quer ja ssem clerigo viver.

↕ ↕

(III.) E Mayor Garcia, por non perder [/ sua alma] (→) que a non pode a morte tolher.

O que enfatizam os segmentos destacados por esse expediente anafórico? Que a estultice de Maior Garcia faz com que imediatamente procure um clérigo que a acompanhe, e que não se permitirá morrer sem tê-lo consigo, supostamente para assim não perder sua alma; no entanto, sabemos que não é isso o que ocorre – uma vez que são os clérigos, já três em lugar de apenas um, que acabam por perder-se, arrastados para a perdição pela soldadeira. O risível, ao fim, deriva da própria “natureza feminina”, conforme concebida pelo misógino imaginário medievo, cuja inclinação para o desvio acaba por desestabilizar a ordem correta das coisas: sempre próximas demais do pecado, sempre conduzidas pelas baixas forças que em seus corpos encontram abrigo, não estão as mulheres condenadas a repetir o erro de Eva, como filhas gêmeas dessa mãe que delas em nada difere?

R

EFERÊNCIAS

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BARDSLEY, Sandy. Women's Roles in the Middle Ages. Westport: Greenwood Press, 2007.

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LOPES, Graça Videira. (Ed.) Cantigas de escárnio e maldizer dos trovadores e jograis galego-portugueses. Lisboa: Estampa, 2002.

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VIEIRA, Antônio. Sermão de Nossa Senhora de Penha de França. In: ______. Sermões. Ed. Joaquim Pereira. São Paulo: Loyola, 2008.

__________________________________ Data de submissão: jun./2014.

Referências

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