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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas

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POR UM MÉTODO DE ANÁLISE DISCURSIVA DA CANÇÃO POPULAR

Álvaro Antônio CARETTA1 RESUMO: Um crescente interesse pela canção popular brasileira como tema de aulas, monografias, trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses tem sido observado em nossa atividade docente na área de Língua Portuguesa e Linguística. Apesar da extensa bibliografia histórica e sociológica, identificamos uma carência de estudos discursivos que possam orientar um trabalho com o gênero canção popular.

Como o discurso da canção compreende um complexo e rico sistema enunciativo, o presente trabalho tem como objetivo apresentar um método de análise para o gênero canção popular. Esse modelo propõe uma abordagem da canção a partir dos elementos discursivos presentes no enunciado, compreendidos como resultado de um processo de amplificação. O discurso de uma canção pode ser estudado observando-se como o enunciador cria a sua imagem, o seu ethos, como elabora a cena de enunciação e como dialoga com outros discursos.

Por se tratar de um gênero sincrético que relaciona a linguagem verbal e a musical, a canção só pode ser compreendida tendo como princípio essa característica fundamental. Por meio "do modo de dizer" do enunciador, podemos investigar o processo constitutivo da enunciação, que na canção reside na maneira como o cancionista relaciona letra e melodia.

A elaboração desse método de análise tem como finalidade orientar professores e alunos de ensino médio e superior no trabalho com o gênero canção, observando-se as particularidades discursivas e textuais que caracterizam esse gênero discursivo.

PALAVRAS-CHAVE: gêneros discursivos; Análise do Discurso; canção popular.

A amplificação

Partindo do pressuposto de que os gêneros discursivos constituem-se a partir de um ato de fala, Todorov (1980) propõe o conceito de amplificação para designar o processo de constituição dos gêneros por meio de elementos retóricos como a narrativização, a expansão temática e a representação verbal.

1 Universidade de São Paulo; Faculdade de Filosofia, letras e Ciências Humanas; Departamento de Linguística. Rua Iperoig, 749, apto 114; CEP 05016-000; São Paulo, São Paulo, Brasil;

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A nossa pergunta sobre a origem dos gêneros torna-se por conseguinte: quais as transformações que sofrem certos atos de fala para produzir certos gêneros literários? (TODOROV, 1980, p. 53).

No caso da canção, um gênero sincrético, composto pela relação entre a linguagem verbal e a musical, para analisar os processos que constituem a amplificação do ato de fala na sua enunciação, é necessário que primeiramente observemos os elementos que compõem a letra e a música e, o mais importante, como se estabelece a compatibilidade entre esses elementos.

A letra

Toda letra pressupõe uma situação de locução em que alguém está falando algo para alguém, pois a canção não pode prescindir do seu ato de fala original. Dessa forma, é muito comum as canções apresentarem gêneros da fala. Vemos, então, letras que representam um diálogo, como Eu dei, de Ary Barroso; um lamento, como Lamento, de Pixinguinha e Vinícius de Moraes; um apelo, como Volta, de Lupicínio Rodrigues; um conselho, como O

Mundo é um moinho, de Cartola; etc. A letra pode ainda trabalhar com gêneros da língua

escrita, como Cordiais Saudações, de Noel Rosa, que imita uma carta.

Os tipos de texto também definem a letra de uma canção. Determinadas canções são mais narrativas, como A banda, de Chico Buarque; outras mais descritivas, como Aquarela

do Brasil, de Ary Barroso e ainda outras mais argumentativas como Desafinado, de Tom

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A letra de canção, apesar de possuir as suas peculiaridades, é um gênero muito próximo da poesia2. No processo de amplificação do ato de fala, a versificação e a metrificação dos versos são elementos muito importantes. Ainda que crie uma impressão de que alguém está falando, a letra não obedece à mesma estrutura da língua falada; pois, além de ser um gênero artístico, ela deve compatibilizar-se com o elemento melódico que lhe impõe métrica, ritmo, andamento e estabilização melódica.

As letras de canções exploram bastante as rimas, que são um recurso de coesão sonora bastante expressivo. Além disso, a fim de trabalhar artisticamente com as palavras, as suas ideias e seus sons, o letrista lança mão das figuras de estilo como as metáforas, as inversões, as anáforas, as aliterações, as assonâncias etc.

Todos esses aspectos são responsáveis pela amplificação do ato de fala na letra de uma canção.

A música

A canção é um gênero discursivo da esfera musical, logo a amplificação do seu ato de fala original se dá também através de elementos pertencentes à linguagem da música.

Toda canção é construída tendo em vista um estilo musical3 que determina vários elementos musicais como a melodia, a forma e a instrumentação. O samba é sincopado; a marcha não. Esta, frequentemente, apresenta um refrão; o samba-de-breque, um breque. O

2 Não discutiremos aqui as diferenças e semelhanças entre poesia e letra de canção. Sobre esse assunto pode-se consultar Costa (2007, p.309).

3 Usamos o termo “estilo musical” para nos referirmos aos gêneros musicais (samba, marcha, valsa, baião etc) a fim de não causar confusões com o termo “gêneros discursivos”.

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baião é interpretado com zabumba, sanfona e triângulo; o choro com flauta, cavaquinho e violão.

O aspecto rítmico de uma canção é determinado pelo estilo musical. Isso também acontece com o perfil melódico (a sequência das notas, seus intervalos e durações), como no samba-canção, em que a melodia apresenta grandes saltos intervalares e extensas curvas que expandem a tessitura; entretanto, a organização das notas musicais em uma melodia é regida pelo princípio da diferença, da originalidade; enquanto o ritmo é orientado pelo princípio da identidade conforme ao estilo musical.

Além de determinar vários elementos da melodia, o estilo musical sugere elementos da letra como o conteúdo e a escolha lexical. No baião, o tema do sertanejo nordestino é muito presente; no samba dos anos 30, o do malandro. Um samba-canção não faz uma crítica política; uma marcha, sim. Com relação ao vocabulário, uma valsa-canção explora o poético; o samba-de-breque, o prosaico.

Outros elementos musicais como a harmonia, o arranjo e a interpretação também são muito importantes nesse processo de amplificação. No entanto, devido a critérios metodológicos, vamos nos deter no aspecto fundamental que define uma canção: a relação entre a letra e melodia.

Letra e melodia

Para compreender como a enunciação na canção realiza o processo de amplificação do ato de fala, é preciso analisar os elementos linguísticos e os aspectos musicais. Entretanto, o mais importante é observar como o enunciador compatibilidade esses

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elementos. Para isso, podemos lançar mão das propostas do semioticista Luiz Tatit, que desenvolveu um modelo para o estudo da significação na canção popular brasileira fundamentado nas relações entre o componente linguístico e o melódico. Em linhas gerais, o modelo apresentado por Tatit (1996) propõe três tipos de estratégias persuasivas utilizadas na composição das canções: a passionalização, a tematização e a figurativização.

A passionalização propicia ao enunciador apresentar estados passionais na canção. Nela, a melodia explora o percurso melódico com grandes curvas e saltos ascendentes e descentes, investindo na duração das notas que incidem nos sons vocálicos, recursos esses que desaceleram a melodia. As canções românticas que tratam da separação e do sofrimento amorosos são exemplo de passionalização.

Na tematização ocorre o processo inverso, reduz-se a duração das vogais e promove-se a reiteração dos motivos rítmico-melódicos, produzindo uma progressão melódica mais veloz, segmentada pelos ataques das consoantes. A tematização melódica é compatível com letras que descrevem sentimentos ou acontecimentos eufóricos. Ela também define gêneros musicais como o maxixe, o samba, a marcha etc., tendo em vista as particularidades musicais de cada um desses ritmos.

Na figurativização, a melodia submete-se às inflexões da fala, e a letra estabelece a presença dos interlocutores por meio dos dêiticos de pessoa, “eu-tu”; de tempo, “aqui”; e de espaço, “agora”, que determinam o momento presente da enunciação. Esse é um processo em que a voz que fala se sobrepõe à voz que canta, criando um efeito de sentido de situação locutiva. Um estilo musical exemplar da figurativização é o samba-de-breque.

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As Cenas da Enunciação

O enunciador não só representa o seu papel como também constrói uma cena, um “palco enunciativo”. Maingueneau (2001b, p.86), propõe que a enunciação constitui-se por três cenas: a cena englobante, a cena genérica e a cenografia.

A cena englobante é o tipo de discurso a que determinado enunciado está vinculado. Por exemplo, a cena englobante de um poema é literária; de uma oração, religiosa; no caso da canção, a cena englobante pode ser compreendida como artístico-musical. Por ser a canção um gênero do discurso artístico, o enunciador explora os recursos estilísticos da língua e da música.

A cena genérica é determina pelo gênero discursivo ao qual o enunciado está vinculado. Maingueneau (2001b, p.86) afirma:

Dizer que a cena de enunciação de um enunciado político é a cena englobante política, ou que a cena de um enunciado filosófico é a cena englobante filosófica etc. é insuficiente: um co-enunciador não está tratando com o político ou com o filosófico em geral, mas sim com gêneros de discurso particulares. Cada gênero de discurso define seus próprios papéis: num panfleto de campanha eleitoral, trata-se de um “candidato” dirigindo-se a “eleitores”; numa aula, trata-se de um professor dirigindo-se a alunos etc.

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No caso de uma canção, um enunciador assume o papel de cancionista, cantando para um co-enunciador, o ouvinte. Este espera um enunciado musical, cantado, com uma letra que lhe provoque um sentimento, uma reflexão, um estímulo corporal – como na dança - ou simplesmente um momento de lazer.

Não se pode ignorar a importância da cena englobante na constituição do gênero, pois ela está vinculada à esfera discursiva em que o gênero atua. Por isso, nem todo enunciado que apresenta a forma e o estilo da canção pode ser chamado de canção popular. Um jingle, por exemplo, usa a forma canção; porém, como a sua cena englobante é a publicitária, ele terá outra finalidade, a de vender um produto; ele também se dirige a outro tipo de co-enunciador, os prováveis consumidores, logo trata-se de outro gênero discursivo. A cenografia é a situação de enunciação que o enunciador cria a fim de legitimar a sua fala.

A cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra; ela legitima um enunciado que, em troca deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cenografia da qual vem a fala é, precisamente, a cenografia necessária para contar uma história, denunciar uma injustiça, apresentar sua candidatura a uma eleição etc. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 96).

Em gêneros que oferecem maior liberdade de criação, como a canção, o enunciador pode utilizar cenografias variadas a fim de conseguir a adesão do ouvinte. São comuns canções que nos parecem uma declaração de amor, uma confissão, um bate-papo. Nesse caso, apesar de o ouvinte estar consciente de que está frente a uma canção, o quadro cênico,

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composto pelas cenas genérica e englobante, passa para um segundo plano, dando lugar à cenografia. Esse processo discursivo é bastante comum em gêneros que procuram seduzir o co-enunciador, como os da esfera artística e publicitária.

Nem todos os gêneros de discurso são suscetíveis de suscitar uma cenografia. Certos gêneros, pouco numerosos, mantêm-se em sua cena genérica, não suscitam cenografias (cf. lista telefônica, os textos de lei etc.). Outros gêneros exigem a escolha de uma cenografia; eles se esforçam, assim, para atribuir a seu destinatário uma identidade em uma cena de fala. É o caso, por exemplo, dos gêneros ligados ao discurso publicitários: certas propagandas exploram cenografias de conversação, outras de discurso científico etc. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p.97).

Maingueneau propõe ainda o conceito de cenas validadas, estereótipos enunciativos instalados na memória coletiva que o enunciador utiliza em seu discurso.

De fato, as obras podem basear sua cenografia em cenários de enunciação já validados, quer se trate de outros gêneros literários, quer de outras obras, de situações de comunicação de ordem não-literária (cf. a conversa mundana, a fala da camponesa, o discurso jurídico...). “Validado” não significa valorizado, mas já instalado no universo de saber e de valores do público (MAINGUENEAU, 2001a, p.126).

Existem determinados modelos de enunciação disponíveis no universo da canção que são recorrentemente utilizados; por exemplo, um bate-papo com o garçom no bar, como em Conversa de botequim, de Noel Rosa e Vadico. Uma cena validada, além de uma

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situação de enunciação, pode ser uma imagem, uma expressão ou um conceito, valorizados ou desvalorizados no universo social; por exemplo, a imagem do malandro nos sambas da década de 1930.

O estudo das cenas validadas não se limita à sua simples identificação; pois, além de serem importantes na construção da cena de enunciação, elas são fundamentais para o reconhecimento dos vínculos que o enunciador estabelece no interdiscurso.

O Ethos

A Análise do Discurso compreende o enunciado como produto de uma enunciação, por exemplo, um ato de fala, um diálogo, um texto escrito, cantado etc. Toda enunciação pressupõe um enunciador, porém o mais importante para a análise não é apenas descobrir quem ele é, mas definir o seu ethos e compreender como ele foi construído.

O ethos é constituído por um caráter, conjunto de características psicológicas e ideológicas, e por uma corporalidade, determinada por suas características físicas. Essa constituição está relacionada ao papel que o enunciador pretende “representar” frente ao co-enunciador.

Compreendido como um efeito de sentido do discurso, o ethos é uma “maneira de dizer” que remete a uma “maneira de ser”. Particularmente na canção, essa “maneira de dizer” é uma “maneira de compor”, estabelecida pelo modo como o enunciador relaciona os componentes linguístico e musical.

Vejamos, por exemplo, a constituição do ethos malandro no samba Lenço no

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Meu chapéu de lado Tamanco arrastando Lenço no pescoço Navalha no bolso Eu passo gingando Provoco e desafio Eu tenho orgulho Em ser tão vadio [...]

O enunciador da canção cria para si a imagem de malandro, típica entre os sambistas cariocas na década de 1930. Esse é o papel que lhe permitirá parecer verossímil frente ao ouvinte. Conforme Maingueneau (2001b, p.99):

O universo de sentido propiciado pelo discurso impõe-se tanto pelo ethos como pelas “idéias” que transmite; na realidade essas idéias se apresentam por intermédio de uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser, à participação imaginária em uma experiência vivida. [...] O poder de persuasão de um discurso consiste em parte em levar o leitor a se identificar com a movimentação de um corpo investido de valores socialmente especificados.

O ethos do enunciador dessa canção é composto por sua caracterrização física, Meu

chapéu de lado, Lenço no pescoço, Navalha no bolso; seu modo de agir, Eu passo gingando/ Provoco e desafio; e sua filiação ideológica contrária ao trabalho, Eu tenho

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orgulho/ Em ser tão vadio. Essa apreciação social é expressada em seu estilo, portador de

um tom - uma maneira de dizer - característico do “malandro folgado”.

Visto que o enunciado é uma canção, o ethos do enunciador é constituído pela relação entre os elementos linguístico e musical. Como assinala Wisnik (2004, p.205),

O ritmo do samba [...] fazendo-nos lembrar aquilo que os gregos chamavam o ethos da música: o seu caráter, um certo padrão de sentido afinado segundo um uso, e que fazia com que algumas melodias fossem guerreiras, outras sensuais, outras relaxantes, e assim por diante. Na teoria musical que nos chegou dos gregos, o ethos estaria ligado à melodia musical, embora nada nos impeça de pensar o ritmo como um parâmetro decisivo de definição do caráter de uma música.

Na esteira das reflexões de Wisnik, no samba Malandro folgado, o explora uma melodia com ritmo sincopado, que guarda no deslocamento dos acentos uma “ginga”. O estilo do enunciador, compreendido na relação entre os elementos melódicos e linguísticos da canção revela um ethos de sambista malandro.

Discini (2003, p. 57) afirma que "Estilo é ethos, é modo de dizer, implicando esse

ethos um policiamento tácito do corpo, uma maneira de habilitar o espaço social [...]", logo

podemos considerar que o estilo do enunciador configura a sua imagem frente ao co-enunciador.

O gênero exige do enunciador um estilo que corresponderá a um determinado ethos. Por exemplo, no gênero aula, deve predominar um estilo claro, bem organizado, exemplificativo etc.; características que determinam uma ethos didático. Como esse gênero

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possibilita ao enunciador uma liberdade na escolha de seu "modo de dizer", permitindo-lhe optar por um ou outro estilo, uma ou outra cenografia para realizar a sua enunciação, ele pode assumir ethé diversos, como intolerante, compreensivo, humorístico, disciplinador etc. Seguindo esse raciocínio, propomos designar “inerente” o ethos exigido pela cena genérica e “assumido” o ethos pelo qual o enunciador pode optar na cenografia. Compreendemos também que, a fim de constituir o ethos inerente, o enunciador orienta-se pelo princípio da identidade em direção ao núcleo genérico, respeitando as regras impostas pelo gênero no que diz respeito à constituição textual e ao estilo. Entretanto, em gêneros que permitem uma liberdade de estilos, ao assumir ethé diversos, o enunciador adota o princípio da diferença e caminha em direção à instância textual determinada pela prática discursiva.

Pressupondo-se que o ethos é uma modo de dizer que remete a um modo de ser, o modo de dizer do enunciador nas canções estabelece-se pela manipulação dos componentes linguístico e melódico. Do ponto de vista discursivo, poderíamos entender que o ethos do enunciador constitui-se de forma passional, como no samba-canção; temática, como no samba-enredo; ou figurativa como no samba-de-breque. No entanto, na canção, a relação entre o modo de dizer do enunciador com o seu ethos apresenta algumas peculiaridades próprias desse gênero discursivo.

A cenografia na canção é constituída por um gênero da fala. Esse aspecto faz da canção um enunciado que apresenta duas instâncias enunciativas. A primeira, determinada pela cena genérica, é estabelecida pela relação entre um enunciador (cancionista) e um

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co-enunciador (ouvinte) através de um enunciado (canção). A segunda, presente na cenografia da letra da canção, ocorre entre um destinador que fala algo para um destinatário.

Por mais que uma canção receba tratamentos rítmico, harmônico e instrumental, o ouvinte depara, entre outras coisas, com uma ação simulada ("simulacro") onde alguém (intérprete vocal) diz (canta) alguma coisa (texto) de uma certa maneira (melodia) (TATIT, 1987, p. 6).

Esse processo de análise que executamos ao distinguir essas duas instâncias tem como finalidade demonstrar que o ethos do enunciador na canção é consequência da interação entre as instâncias do gênero e da cenografia. Dessa forma, os conceitos de ethos inerente e ethos assumido são pertinentes para compreendermos a formação da imagem do enunciador na canção, visto que nos permitem discernir a constituição do ethos pela cena genérica e na cenografia.

Como propusemos anteriormente, o ethos inerente é a imagem que o enunciador cria de si para o co-enunciador, tendo em vista as exigências do gênero. A canção, por pertencer à esfera artística, exige que o enunciador apresente um ethos inerente musical, criativo e poético para que possa validar a sua enunciação frente ao co-enunciador ouvinte.

A imagem que o destinador cria para si frente ao destinatário através da situação de fala, encenada na cenografia, propusemos designá-la ethos assumido. Como a canção é um gênero que permite a liberdade de escolha da cenografia, o enunciador pode criar inúmeras outras imagens para si no discurso. Ele pode, por exemplo, apresentar-se apaixonado como em Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro, em que é utilizada a estratégia da passionalização, produzindo um modo de dizer sentimental; pode ser suplicante e

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desesperado, como em Volta, de Lupicínio Rodrigues, que enfatiza ao extremo os aspectos passionais; ou pode ser também sutilmente malicioso, como na marcha O teu cabelo não

nega, de Lamartine Babo e irmãos Valença, que trabalha a estratégia da tematização para

exaltar a mulata brasileira.

As Relações Dialógicas

O pensador russo Mikhail Bakhtin elaborou o conceito de dialogismo, referindo-se às relações que todo enunciado mantém com os enunciados que já foram ou que ainda serão produzidos. Toda canção dialoga não só com outras canções, mas também com outros enunciados, seja na constituição de um gênero musical, seja na abordagem de algum tema, seja por uma resposta direta, como seja por uma citação.

Podemos estudar as relações dialógicas que a canção estabelece no interdiscurso observando os processos de intertextualidade e de interdiscursividade.

De acordo com Fiorin (1999, p. 30-32), “A intertextualidade é o processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo”. Podemos observar esse processo na construção da canção Peircing, de Zeca Baleiro:

Tire o seu piercing do caminho Que eu quero passar

Quero passar com a minha dor

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Tire o seu sorriso do caminho

Que eu quero passar com a minha dor Hoje pra você eu sou espinho

Espinho não machuca a flor

Já a interdiscursividade, “[...] é o processo em que se incorporam percursos temáticos e/ou figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro”. A interdiscursividade pode estabelecer uma relação contratual, como entre os sambas

Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e Brasil pandeiro, de Assis Valente, que exaltam a

brasilidade. Porém, a relação interdiscursiva pode ser polêmica como acontece no samba

Quem dá mais, de Noel Rosa, que ironiza as belezas do país.

Uma canção pode também estabelecer relações com outros tipos de discurso, por exemplo o poético, o prosaico, o publicitário etc. Por exemplo, a canção Divina comédia

humana, de Belchior, que cita versos do poema Via Láctea, de Olavo Bilac. Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso

Eu vos direi no entanto:

Enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não Eu canto

As relações dialógicas no interdiscurso definem posicionamentos discursivos e constituem uma identidade enunciativa. Vejamos, por exemplo, o tema do amor. Em muitas canções ele é tratado como um sentimento eufórico, associado à felicidade, como em

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Que me devora o coração E só assim então

Serei feliz, bem feliz.

Porém, em muitas outras ele é tratado de forma disfórica, pois só traz sofrimentos, como em Esses moços, de Lupicínio Rodrigues:

Esses moços, pobres moços Ah! Se soubessem o que eu sei Não amavam, Não passavam aquilo que eu já passei [...]

Vemos, então, dois posicionamentos discursivos antagônicos com relação ao tema do amor. No entanto, não é pelo fato de estarem em oposição que esses enunciados não estão dialogando, pelo contrário, para confirmar a sua posição discursiva, um discurso pode negar o seu oposto, processo conhecido como heterogeneidade constitutiva, no qual o discurso, compreendido no interdiscurso, constitui-se por meio da alteridade.

A análise discursiva da canção deve considerar tanto o contexto linguístico quanto o não-linguístico – político, social e cultural. Porém, o contexto não pode ser tomado como uma moldura que cerca o discurso, pois a canção não é apenas resultado de uma conjuntura social e cultural em que foi produzida, mas também colabora na constituição dela. Assim, o discurso é uma atividade condicionada pelo contexto, mas também formadora e até transformadora dele. Por exemplo, a canção Para não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, é fruto do contexto da ditadura militar no final da década de 1960, mas também é um enunciado que colaborou na constituição do discurso contrário àquela

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situação política, tornando-se um hino da luta contra a repressão, sendo até conhecida como a Marselhesa Brasileira.

Considerações finais

A proposta de um método de estudo da canção popular brasileira não se limita a oferecer um instrumental teórico para que o estudante possa realizar análises de canções. Dentro de um projeto mais amplo, esse método pretende possibilitar e incentivar a abordagem desse gênero discursivo nas escolas e faculdades.

Tendo em vista o caráter dialógico dos gêneros discursivos, a canção popular oferece a possibilidade de que várias disciplinas e áreas do conhecimento possam ser contempladas em um exercício de interdisciplinaridade. Não só o trabalho com a poesia e com a música, mas também com a história, a sociologia, a filosofia e várias outras áreas é possível de ser realizado nos cursos de ensino médio. Já no ensino superior, o estudo da língua portuguesa, da Análise do Discurso, da teoria do Círculo de Bakhtin e da Semiótica são possíveis, tendo em vista as devidas possibilidades e limitações de cada uma das teorias.

A aplicação de um método de estudo da canção popular brasileira seria, então, pertinente pelo fato de oferecer aos professores e estudantes uma orientação para a abordagem desse gênero discursivo, respeitando as suas principais características artísticas, que residem no sincretismo entre a letra e a música; e discursivas, que se constituem por meio do princípio dialógico da comunicação social.

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Referências Bibliográficas

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Referências

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