JOSÉ GERARDO
EDCBA
VASCONCELOS1BA
H IS T Ó R IA , M E M Ó R IA
E E S Q U E C IM E N T O E M N IE T Z S C H E E
L E O P A R D I
(H IS T O R Y , M E M O R Y , A N O
M E M O R Y L O S S N IE T Z S C H E A N O
L E O P A R O I)
R E S U M O
o
lkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
esco p o d o p resen te estu d o éexa m in a r o co n-ceito d e h istó ria e m em ó ria n o p en sa m en to d e
F ried ricli N ietzsch eê e su a a p ro xim a çã o co m o p o eta G ia co m o T a ld eg a rd o F ra n cesco L eo p a rd ií. M o stra -rem o s q u e a crítica a o sen tid o (fin a lid a d e) d a h istó
-ria p ro p o sta p elo F iló so fo a lem ã o já se en co n tra esb o ça d a n a p o esia e p ro sa d e G ia co m o L eo p a rd i.
Palavras-chaves: História, memória e esquecimento
A B S T R A C T
T h e p resen t stu d y exa m in es th e co n cep t o f h isto ry a n d m em o ry in th e w o rk o f F ried rid i N ietzsch e a n d h is a p p ro xim a tio n w itlt th e p o et G ia co m o T a ld eg a rd o F ra n cesco L eo p a rd i. W e w ill sh o w th a t
th e critics to th e m ea n in g (g o a l) o f th e h isto ry p ro p o sed b y th e G erm a n p h ilo so p h er is a lrea d y fo u n d in th e p o etry a n d p ro se o f G ia co m o L eo p a rd i
Keywords: History, memory and forgetness
IN T R O D U Ç Ã O
Poesia e filosofia fundem-se em campos extre-mamente aproximados. Leopardi e Nietzsche, cada
qual a sua maneira, encontram essa aproximação. Analisá-los é um risco e, nesse caso, as possibilida-des são inúmeras frente à beleza estilística de dois filólogos, que se movem em tomo de um complexo campo eivado pelos dilemas da vida humana. Pela poesia, Leopardi alça vôos imponderáveis e intem-pestivos. Sacode nas vielas da história os arcabouços de temporalidade removidos pelas lembranças, e en-contra no dor o mais poderoso elemento da m n
e-m õ n ica . Seguindo a mesma trilha não traçada
teleologicamente, pois continua difusa, arriscada e caótica nas rachaduras apalpadas pelo gênio de Leopardi, Nietzsche radicaliza contra a verdade e os elementos axiológicos que impedem as paixões hu-manas. Encontra na dor um elemento propulsor da lembrança. Consoante as suas afirmações na Genea-logia da moral, n u n ca n a d a se p a sso u sem sa n g u e,
m a rtírio , sa crifício , q u a n d o o h o m em a ch o u n ecessá -rio se fa zer u m a m em ó ria (Nietzsche, 1983a, p. 304).
É provavelmente uma genealogia da genealogia de Nietzsche. A pesquisa da origem pode ser encon-trada em Nietzsche ou Nietzsche bebe nas águas leopardianas? O Eterno retorno gestado na alter-nância do nascimento e perecimento não estaria, pelo menos em germe, no pensamento de Leopardi? Inici-almente, mostraremos a aproximação de Nietzsche com o poeta de Recanati em relação aos aspectos mais gerais do pensamento de Nietzsche; em seguida, ana-lisaremos a aproximação dos dois filólogos em rela-ção à idéia de progresso e felicidade; na seqüência do
IProfessor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará; Editor-Chefe da
Revista Educação em Debate da Faculdade de Educação da UFC; Bacharel em Filosofia, mestre e doutor em Sociologia
2 Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844 na cidade de Rocken, próxima a Leipzig. Aluno-modelo, era
chamado pelos colegas de escola de "pequeno pastor". Morre em 1900, na cidade de Weimar.
3 Nasceu em Recanati, em 29 de junho de 1798, no então Estado Pontifício das Marcas. Filho do Conde Monaldo Leopardi e da
Marquesa Adelaide Antici. Morre em 14 de junho de 1837, com 39 anos, vitimado por um ataque de asma e hidropsia cardíaca, numa casa em Vila Ferrigni. Ao seu lado, encontrava-se o seu amigo Ranieri. Foi sepultado na Igreja de São Vital, em Fuorigrotta. Em sua lápide, encontra-se a inscrição feita pelo seu amigo Pietro Giordani:A o C o n d e G ia co m o L eo p a rd i d e R eca n a til filó lo g o a d m ira d o fo ra d a Itá lia ! escrito r d e filo so fia e d e p o esia a ltíssim o / a co m p a ra r-se a p en a s co m o s g reg o s/ o q u a l cesso u a o s X X X IX a n o s d e
vid a ! em virtu d e d e co n tín u a s d o en ça s terríveis/fez a n tô n io R a n ieril d u ra n te sete a n o s a té a extrem a h o ra ! a o a m ig o a d o ra d o . M D C C C X X X V I/). Deixou-nos os versos em número de 41,4.526 páginas do diário que se intitulou ZibaIdone. Inúmeras cartas, além
dos textos satíricos contidos nos Opúsculos morais, dentre outros.
texto, examinaremos a crítica, teleologia e o conceito de genealogia em Nietzsche e, finalmente, procuraremos entender a importância da lembrança, esquecimento e dor para o Filósofo alemão e para o Poeta de Recanati.
BA
N IE T Z S C H E E L E O P A R D I: U M A
P R IM E IR A A P R O X IM A Ç Ã O
Refletir sobre o sentido da história no pensa-mento do Poeta de Recanati é embriagar-se pelo en-canto do filólogo e a erudição de um gênio que se estorva nos limiares da filosofia moderna e nos ritu-ais lúgubres da solidão. É pela poesia e pela prosa leopardiana que reencontramos os segredos e a vitali-dade de muitos conceitos nietzscheanos.
EDCBA
É nomisté-rio e na força viva de seus versos que as tragédias modernas são relançadas e coabitam nos diversos sen-tidos de um tempo marcado pela força da crítica, só comparada à tragédia" nietzsceana de Assim falou Zaratustra.
Énesse intempestivo poeta do mundo moderno
que o sentido da história, a felicidade, a verdade e o prazer são revisitados e a demonstração da infelicida-de e o diálogo com a morte não poupam ~equer os deuses, como acontece a Quíron que, entediado com a vida, pede licença a Júpiter e morre.
Se Nietzsche é o pensador que mais radicaliza contra a verdade", Leopardi prepara-lhe as bases. Consoante as afirmações de Nietzsche (1976, p. 32) no Crepúsculo dos ídolos ou a filosofia a golpes de martelo,
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o m undo verdade; um a idéia que não servem ais para nada, não obriga a nada; um a idéia que se
tornou inútil e supérflua; por conseguinte, um a idéia
refutada: suprim am o-la.
Leopardi (1996b, 354), noD iálogo de T orquato
T asso e seu G ênio F am iliar, dos Opúsculos morais,
diante da afirmação de Tasso sobre o sonho, o Gênio pergunta: O que é a verdade? Tasso afirma: P ila tos
não soube m ais do que eu. E o próprio Gênio
respon-e: B em , responderei por ti. Sabe que da verdade ao
sonho não vai grande diferença senão que este, às
ezes, é m uito m ais bonito e doce do que ela, que
ja-m ais o será.
Leopardi encontra na dor o mais poderoso ca-minho e a mais nobre saída para o tédio. Enquanto o
homem sofre, não se entedia pelos desprazeres do mundo, um mundo que caminha para o nada, que lan-ça os seus filhos à solidão e ao desterro. É um
cons-tante exílio de reposições tênues rescritas no passar de um tempo que sucumbe nas tempestades. Confor-me demonstra Leopardi no C ântico do galo silvestre!
Opúsculos morais" (1996c, p. 418),
C ada parte do universo apressa-se,
infatiga-velm ente, para a m orte com solicitude e
celeridade adm iráveis. A penas o próprio pla-neta parece im une àdecadência e ao declinio. C ontudo, se no outono e no inverno m ostra-se quaostra-se enferm o e velho, não m enos na nova estação, rejuvenesce sem pre. M as com o os
m ortais no prim eiro m om ento de cada dia
readquirem um a parte da juventude, assim en-velhecem todos os dias e finalm ente se extin-guem ; igualm ente o universo no princípio de cada ano renasce e nem por isso deixa de con-tinuam ente envelhecer. T em po virá em que ele e a própria natureza se apagarão. A ssim com o de grandes reinos e im périos hum anos com seus m ovim entos m aravilhosos.fam osissim os em outros tem pos, nada resta hoje, de indício ou fam a, do m undo inteiro, dos acontecim
en-tos infinien-tos e das calam idades das coisas
criadas, não restará um vestígio sequer.
Ao que parece, a teoria do eterno retorno
en-contra uma possível sustentação no Canto do galo silvestre, publicado com outros escritos satíricos nos Opúsculos morais, em 1827. Temos conhecimento de que N ietzsche, durante o verão de 1881, na peque-na aldeia de Silvaplapeque-na, durante um passeio, teve a . intuição de o Eterno retorno, que foi redigido logo depois em que afirma que o mundo passa pela alternância da criação e destruição, de alegria e de sofrimento de nascimento e perecimento.
Nietzsche (1983c, p. 59) cita Leopardi de uma maneira especial, o que raramente faz com outros pen-sadores. Nas considerações ertemporâneas I I
Da utilidade e desvantagem da história para a vida,m ostra que o pensador supra-histórico
- Machado (1997) procura relacionar o projeto de Assim falou Zaratustra com o ascimento da tragédia de 1871, primeira obra de _.íetzsche.
- Conferir sobre o assunto o livro de Machado ( 1999) e um artigo anterior de Vasconcelos (1998).
Em 1820tem a idéia de escrever algumas composições satíricas que, posteriormente, seriam denominadas Opúsculos morais. Esse conjunto de textos épublicado em junho de 1827 pelo editor S tella . Entre junho e outubro inicia a compilação do índice do Zibaldone,
e fora acrescido de novas correções como: M a q u ia velism o e S o cied a d e, A n iversá rio , A m iza d e, C a rá ter; E d u ca çã o , E g o ísm o , G a la teu m o ra l, Ju ven tu d e, M u n d o , S im p licid a d e e V elh ice.
ilumina a história dos povos e dos indivíduos de dentro para fora (...) pois como, na infinita profusão dos acontecimentos,não chegaria ele à saciedade, à saturação, e mesmo ao nojo! De tal modo que o mais temerário acabará,
talvez, a ponto de dizer, como
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G ia co m oL eo p a rd i, a seu coração.
Cita então um poema de Leopardi (1996d, p. 972) e, embora não se refira ao título do poema, tra-ta-se do
DCBA
A S i m e s m o , escrito em 1837, em Nápoles,com 35 anos, quatro antes de morrer, sofrendo de uma enfermidade que já o torturava por 50 dias. O trecho do poema citado por Nietzsche é o seguinte:
N a d a vive q u e fo sse d ig n o / D e tu a s em o
-çõ es, e a T erra n ã o m erece u m só su sp iro .!
D o r e téd io é n o sso ser e o m u n d o é lo d o
-n a d a m a is.! A q u ieta -te (Leopardi apud
Nietzsche, 1983c, 59).
Nietzsche fora convidado, através de uma car-ta do escritor e pianiscar-ta Hans von Bülow, de 1874, a traduzir a obra de Leopardi, ou nas palavras de Bülow,
tra d u zir a p ro sa d o g ra n d e irm ã o ro m â n tico d e-A rtu r
S ch o p en h a u er. D izia -lh e p recisa r d e u m p en sa d o r q u e
lh e fo sse p ró xim o e a fim (Bülow a p u d Lucchesi, 1996,
p. 19). Nietzsche, apesar da admiração pelo Poeta ita-liano, segundo Lucchesi (1996, p. 20),d eclin a d o co n
-vite, p o r n ã o d o m in a r d e to d o a lín g u a ita lia n a .
C o n h ecia -o em tra d u çã o e sen tia -lh e o p eso d a
existên cia .
A aproximação entre Nietzsche e Leopardi é imensa.
EDCBA
É , contudo, em relação a crítica da história,que encontraremos essa aproximação de forma mais contundente.
o
BA
P R O G R E S S O E A F E L IC ID A D E : C R Ê SQ U E , D E F A T O , A E S P É C IE H U M A N A V A I
M E L H O R A N D O A C A D A D IA ?
o
gênero humano, segundo Leopardi afirma noD i á l o g o d e T r i s t ã o e u m a m i g o (1996a, p.450), a
cre-d ita sem p re, n ã o n a verd a d e, m a s n a q u ilo q u e é o u
p a rece ser m a is verd a d eiro a o s seu s p ro p ó sito s. A
busca da felicidade passa então a integrar essa ânsia de sentido na história. É pois nesse referido diálogo
que o amigo pergunta de forma irônica: C rês, en tã o ,
n a perfectibilidade in d efin id a d o h o m em ? (1996a,
p.451) E Tristão responde: S em d ú vid a . O Amigo
In-daga: C rês q u e, d e fa to , a esp écie h u m a n a va i m elh o
-ra n d o a ca d a d ia ? (1996a, p.452) Ou ainda, pergunta
o Amigo: C o m o co n seq ü ên cia , a cred ita s q u e este
sé-cu lo seja su p erio r a to d o s o s p a ssa d o s? (1996a,
p.453). E finalmente, Tristão parece despertar quan-do afirma:
.i.d ig o -lh e fra n ca m en te q u e n ã o m e su b m eto
àm in h a in felicid a d e, n ã o b a ixo a ca b eça a o
d estin o e n em fa ço a co rd o s co m ele, co m o to
-d o s o s o u tro s h o m en s; o u so -d eseja r a m o rte e
a lm ejá -la a cim a d e q u a lq u er co isa co m ta n
-to a rd o r e ta n ta sin cerid a d e co m o creio
fir-m efir-m en te q u e ela é a p en a s p a ra p o u q u íssifir-m o s
h o m en s n o m u n d o (Leopardi, 1996a, p. 455).
Nesse caso, a história deverá ser pensada como alternância de dor e felicidade. A idéia de progresso associa-se à idéia de felicidade que passa a ser de-nunciada pelo poeta Leopardi. É no Z i b a l d o n i ,
con-tudo, que Leopardi (1996e, p.593) apresenta mais substancialmente a crítica da história e da felicidade. Inicialmente temos a crítica da eternidade;
A h ip ó tese d a etern id a d e d a m a téria n ã o
se-ria o b jeçã o e esses p en sa m en to s. A etern id a
-d e, o tem p o , co isa s q u e fo ra m tã o d iscu tid a s
p elo s a n tig o s, n ã o sã o , co n fo rm e o b serva ra m
o s m eta fisico s m o d ern o s, n a d a m a is d o q u e o
esp a ço , d o q u e a exp ressã o d e a lg u m a id éia
n o ssa , rela tiva a o m o d o d e ser d a s co isa s, e
n ã o co isa s o u seres, co m o p a recia m co n sid
e-ra r o s a n tig o s (Leopardi, 1996e, p. 593).
Segue-se a essa crítica a desconstrução da feli-cidade associada à história.
E m m u ita s o u tra s co isa s, o d esen vo lvim en to ,
o p ro g resso , a h istó ria d o g ên ero h u m a n o a
s-sem elh a m -se àd o in d ivíd u o , co m o u m a fig u
-ra q u e, a m p lia d a rep resen ta sse a m esm a em
m en o r ta m a n h o , m a s en tre o u tra s co isa s, a
seg u in te. Q u a n d o o s h o m en s d esfru ta va m a
l-g u m a felicid a d e o u u m a in felicid a d e m en o r
q u e a p resen te, q u a n d o p erd en d o a vid a p
er-d ia m a lg o , a rrisca va m co m m a io r d esp ren d
i-m en to (Leopardi, 1996e, p. 594).
É esse ponto-chave da crítica da história que, a
partir da idéia do risco, aproxima Leopardi e Nietzsche. Essa idéia encontra na possibilidade do acaso a contraposição ao reino dos fins e da vontade. Nietzsche (1983f, p. 89), no Aurora, mostra que o
o é desprovido de sentido. E Foucault (1986, p. 28), ao analisar a história em Nietzsche no texto Nietzsche, a genealogia e a história, publicado no Brasil na
Microfísica do poder, mostra-nos que é preciso
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C om preender este acaso não com o um sim
-ples sorteio, m as com o o risco sem pre
reno-vado da vontade de potência que a todo
surgim ento do acaso opõe, para co n tro lá -lo , o risco de um acaso ainda m aior. D e m odo que o m undo, tal qual nós o conhecem os não é essa figura sim ples onde todos os aconteci-m entos se apagaraaconteci-m para que se aconteci-m ostreaconteci-m , pouco a pouco, as características essenciais,
o sentido final, o valor prim eiro e últim o; é ao contrário um a m iríade de acontecim ento.BA
G E N E A L O G IA O U T E L E O L O G IA ?
Buscando os dissabores do tempo é que se en-ontra, nas entranhas das tempestades, os significa-os múltiplsignifica-os e, ao mesmo tempo, as diversas tilidades de uma determinada coisa, gênero ou ideal e verdade.
EDCBA
O instituído axiológico vivido n.a históriaemana de acasos, vielas e descaminhos de uma rota ão traçada e de um sentido sem sentido. Todas as tilidades, conforme NIETZSCHE (1983a, p. 308) emonstra na Genealogia da moral, w
são apenas sinais de que um a vontade de tência se tornou senhora de algo m enos po-deroso e, a partir de si, im prim iu-lhe o sentido
de um a função.
É, então, que a história inteira de uma determi-da coisa ou de um órgão pode ser simplesmente uma
continuada série de signos de sem pre novas iru erp
re-ta çõ es e ajusre-tam entos (NIETZSCHE 1983a, p. 308).
A .história passa, então, a seguir caminhos já traçados • elo desenvolvimento de um a priori
pleonas-micamente teleológico.
Faz-se então necessário desconstruir o dito, revisitar os lugares e os signos da história; por mais sa-grados e onipotentes que pareçam, por mais justos e no-res que os conceitos se apno-resentem, o seu sentido foi zmprimido em postulados rígidos fixados nas gôndolas que transportam conceitos eternos. A genealogia apare-ce como neapare-cessidade de reparação de um dano que fora usado à história com a rigidez de uma mão de ferro.
A genealogia segue o múltiplo e o diverso. En-canta-se com os segredos. Caminha passo a passo nas
pegadas meticulosas e nas vielas mais estreitas. Rescreve os códigos de honra, reabilita o anti-herói. Apraz-se no desdém do nada. Ajunta os pedaços do tempo. Devolve os lamentos e os prantos funestos de ritos e símbolos. Galopa nos sinais já quase apagados pelo tempo, pois o tempo não é dado, é reinventado. Conforme relata NIETZSCHE no
DCBA
H u m a n o d e m a s i a d oh u m a n o (l983b, p. 92), tudo veio a ser; não há fatos
eternos: assim com o não há verdades absolutas.
Nesse caso, a crítica ao sentido da história jus-tifica-se contra toda e qualquer desdobramento do "espírito absoluto" e Nietzsche (l983c, p. 68), nas
c o n s i d e r a ç õ e s e x t e m p o r â n e a s 1 1 - D a u t i l i d a d e e
d e s v a n t a g e m d a h i s t ó r i a p a r a a v i d a , chega a
ironizar com o divino hegeliano, quando afirma que
... essa história entendida hegelianam ente foi
cham ada com escárnio e peram bulação de
D eus sobre a terra, D eus este que entretanto, por seu lado, só é feito pela história. E sse
D eus porém tornou-se, no interior da caixa
craniana de H egel, transparente e inteligível
para si m esm o e já galgou os degraus
dialéticos do seu vir-a-ser, até chegar a essa auto-revelação (Nietzsche 1983c,p .68)
É que, para Nietzsche (l983c, p. 69) está m ais
do que no tem po de avançar contra os descam inhos do
sentido da história, contra o desm edido gosto pelo
pro-cesso. Todavia, essa crítica encontra a complementação
no método filológico, considerado um método crítico que procura fazer falar o que permanece mudo. É na
G e n e a l o g i a d a M o r a l que esse procedimento se toma
transparente. É na primeira dissertação que Nietzsche
(l983a, 299) mostra esse procedimento:
T odo respeito, pois, pelos bons espíritos que possam reinar nesses historiadores da m oral! M as o que é certo, infelizm ente, é que o próprio espírito histórico lhes falta (...). A incom -petência de sua genealogia da m oral vemàluz
logo no início, quando se trata de averiguar a proveniência do conceito ejuizo "bom ".
Diriam então os historiadores da moral que o conceito bom tem na origem as ações não - egoístas, louvadas e/ou denominadas boas ou que, simples-mente, pudessem ser louvadas como boas de acordo com a utilidade de seus criadores. Essa idéia acaba reproduzindo um desenvolvimento ou meta na his-tória, em que o bom é o que produz a compaixão e a piedade dos outros. Nietzsche desconstrói essa idéia,
mostrando que os "genealogistas" procuraram o foco no lugar errado.
o
juizolkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
"bom " não provém daquele a quem foi dem onstrada a bondade! F oram antes "osbons" eles próprios, isto é, os nobres, pode-rosos, m ais altam ente situados e de altos sen-tim entos, que sentiram e puseram a si m esm os e a seu próprio fazer com o bons, ou seja, de prim eira ordem , por oposição a tudo o que é inferior, de sentim ento inferiores, com um e
plebeu (Nietzsche, 198~a, p. 290).
Ao demonstrar que a produção de conceitos é um ato de disputa, segue-se a idéia de que esses mes-mos conceitos não são, não podem e não devem ser tematizados como eternos. Ao contrário, são susce-tíveis de reinvenções, devendo, portanto, ser revis-tados. A produção de conceitos deve então ser entendida em meio ao grande emaranhado da histó-ria gestada em jogos de força. Conforme assinala Foucault (1986, p.25),
o grande jogo da história será de quem se apo-derar das regras, de quem tom ar o lugar daque-les que as utilizam , de quem se disfarçar para pervertê-ias, utilizá-ias ao inverso e voltá-ias contra aqueles que as tinham im posto.
É seguindo esse jogo de forças que poderíamos pensar: se os nobres geram os conceitos, poderíamos encontrar a resistência nos escravos. Nietzsche dis-corda dessa idéia. Os escravos construíram uma mo-ral fundada na piedade e na compaixão. É o que Nietzsche denominou moral do ressentimento, que efetivamente não conseguem se opor à produção de conceitos gerada pelos nobres. Segundo Nietzsche (1983a, p. 302)
o
hom em do ressentim ento não é nem fraconem ingênuo, nem m esm o honesto e direto
consigo m esm o. Sua alm a se enviesa; seu es-pírito gosta de escaninhos, vias dissim uladas e portas dos fundos, tudo o que é escondido lhe apraz com o seu m undo, sua segurança,
seu refrigério; ele entende de calar, de não
esquecer, de esperar, de provisoriam ente
apequenar-se, hum ilhar-se.
O homem do ressentimento vive a sua des-graça justificada no mundo exterior. Busca um cul-pado pelas adversidades de sua vida. Sua ação é
sempre através de reação. Necessita de estímulos externos para sobreviver. Diante da possibilidade de construir o seu caminho, ele procura reagir a partir do culpado ou de um possível culpado pela sua dor, ao invés de voltar-se para si próprio e cons-truir o seu caminho.
BA
M E M Ó R IA E H IS T Ó R IA E M L E O P A R D I E
N IE T Z S C H E : S O N H O , L E M B R A N Ç A ,
E S Q U E C IM E N T O E D O R
A utilização da memória como possibilidade de recomposição do passado, ligado à consciência de temporalidade, insurge-se no pensamento de Nietzsche (1983a) como desconstrução de um possível sentimen-to de prazer imanente à história. A pergunta lançada na Segunda Dissertação da
DCBA
G e n e a l o g i a d a m o r a l - C om ose faz no anim al- hom em um a m em ória? Ou então,
C om o se im prim e algo a esse em parte em botado, em
parte estouvado entendim ento de instante, a essa viva
aptidão de esquecim ento, de m odo que perm aneça
pre-sente? As duas perguntas elaboradas neste texto de
Nietzsche (1983a, p. 304), na realidade, já apresen-tam uma inseparabilidade entre lembrança e esqueci-mento. A resposta nietzscheana tem sua origem
naquele instinto que advinha na dor o m ais poderoso
m eio auxiliar da m nem ônica.
Giacomo Leopardi (1996f, p. 186), em um
po-ema S o b r e o m o n u m e n t o a D a n t e , - que se preparava
em Florença, afirma com meio século de antecedên-cia em resposta à mesma questão proposta por Nietzsche:
P or que nos são os tem pos tão cruéis?/ por que o nascer nos deste ou, m ais atrás,! N ão nos deste o m orrer,/ D estino am argo? V endo de infiéis/ E estranhos nossa pátria serva e escrava! E um a lim a m ordaz/ R oendo a sua
força, um a sa id a / U m m ínim o conforto/ À dor m alvada que a dilacerava! Jam ais lhe perm i-tiste desfrutar.
Ou ainda em outra poesia, composta nos meses de agosto e setembro de 1829, quinze anos antes do nascimento de Nietzsche. Nessa poesia intitulada As
l e m b r a n ç a s , Leopardi (1996g, p. 248) verseja:
R ecordo-m e, este som , nas m inhas noites! Q
uan-do, m enino, eu vigiava o escuro/ D e terrores assíduos, suspirando/pela m anhã. P ois não há coisa algum a! Q ue um veja ou sinta sem que dela surja! U m a im agem ou doce rem em brançaJ
D oce por si; porém com dor assom a
Em um fragmento de 7 de outubro de 1823, do Zibaldone, Leopardi (l996e, p. 669) mostra a relação da dor com o tédio e, principalmente, a impossibili-dade de o homem experimentar o verdadeiro prazer.
esse caso,
lkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
sem pre que o hom em não experim entaprazer algum , experim enta o tédio, quando não
expe-rim enta a dor, ou m elhor um d esp ra zer qualquer.
Ora, se a memória é fixada pela dor, o homem deve encontrar canais que possam abreviar o sofrimen-to e a infelicidade. O sono é apresentado por Giacomo Leopardi (1996e, p. 681) no ZibaJdone, em um frag-mento de 28 de novembro de 1821 como uma imagem do fun da vida. E o suicídio seria contra a natureza? Leopardi (1996e, p. 680) responde com uma pergunta.
Q ue natureza? E ssa nossa atual? E responde:
... nossa verdadeira natureza, que em nada se
relaciona àdos hom ens do tem po de A dão,
perm ite, antes, exige o suicídio. Se nossa
na-tureza fosse ainda a prim eira natureza
hum ana, não seríam os infelizes, e isto, inevi-tavelm ente e irrem ediavelm ente; e não
dese-jaríam os, antes, aborreceríam os a m orte
(Leopardi 1996e, p. 680).
É desse ponto que poderemos pensar a impor-tância do esquecimento em Nietzsche e Leopardi. Para _-ietzsche, em um texto de 1873, Sobre a verdade e a entira no sentido extra-moral (l983d), o sono é a ssibilidade de desvio da verdade sem que o senti-ento moral possa impedir. Contudo, é somente pelo esquecimento que o homem algum dia pode supor uma erdade. Para Nietzsche ( 1983c, p. 58), esquecer é rescindível.
É
possível viver quase sem lem b ra n-e m -esm o viver feliz, com o m ostra o anim al; m as é
eiram ente im possível, sem esquecim ento, sim
ples-nte viver. O esquecimento, fazendo parte da vida,
regra-se no limiar do desprazer onde seleciona-se
.aou evita-se os eventos e acontecimentos capazes de
_ mover a dor ou alegria/felicidade. Para Nietzsche _983c, p. 58), todo agir requer esquecim ento: assim
- m o a vida de tudo o que é orgânico requer não
so-m e luz, so-m as taso-m béso-m escuro.
Em Leopardi (1996e), a dor é algo presente na e o homem busca formas de escapar à dor e ao tédio és do sono, suicídio, esquecimento ou do silêncio, orme Vasconcelos (1998). Isso não implica que a xão deva ser suprimida. No Zibaldone, fragmento de e outubro de 1820, encontramos a seguinte asserção:
N ão é necessário suprim ir a paixão por m eio
da razão, m as converter a razão em paixão;
fazer com que o dever, a virtude, o heroism o, etc. se tornem paixões. A ssim o são por natu-reza. A ssim o eram entre os antigos e as
coi-sas corriam m uito m elhor. M as quando a
única paixão do m undo é o egoísm o, então é
racional que se insurja contra a paixão.
(Leopardi, 1996c, p. 597)
BA
C O N C L U S Ã O
O elo entre esses dois pensadores é inegavel-mente muito forte. Certainegavel-mente a paixão que une os dois filólogos ultrapassa a temporalidade. O risco da vida reintegra-se no risco que acabo de correr quan-do me propus estudar os elementos nietzscheanos e leopardianos da história e da memória. Essa é uma discussão inicial, porém apaixonada. Pelo estilo de Leopardi, pelo modo intempestivo com que a filoso-fia de Nietzsche se apresenta no mundo atual. É ne-cessário mergulhar também de forma apaixonada nas vielas e entrelinhas desses gênios da humanidade, pois, segundo Leopardi (1996c, p. 597),
...0hom em desprovido de paixões não se m
o-veria por elas, nem m esm o pela razão, porque as coisas são assim e não se pode m udá-las, porquanto a razão não é força viva nem m o-triz, e o hom em acabará por tom ar-se indo-lente, inativo, im óvel, indiferente, apático, com o se tem tornado em grandissim a parte.
B IB L IO G R A F IA
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