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Sobre os conceitos de indivíduo em Sören Kierkegaard e de pessoa em Carl Rogers: semelhanças e diferenças

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

MESTRADO EM PSICOLOGIA

Carlos Roger Sales da Ponte

Sobre os conceitos de Indivíduo em Sören Kierkegaard e

de Pessoa em Carl Rogers: semelhanças e diferenças

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Carlos Roger Sales da Ponte

Sobre os conceitos de Indivíduo em Sören Kierkegaard e

de Pessoa em Carl Rogers: semelhanças e diferenças

Dissertação apresentada ao Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Área de concentração: Psicanálise e Epistemologias das Psicologias.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Lincoln Laranjeiras Barrocas Universidade Federal do Ceará.

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Dissertação defendida e aprovada em 06 de agosto de 2010, pela Banca Examinadora constituída pelos professores:

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Lincoln Laranjeiras Barrocas – Orientador Universidade Federal do Ceará – UFC

______________________________________________ Profa. Dra. Márcia Alves Tassinari

Universidade Estácio de Sá – UNESA

____________________________________ Prof. Dr. José Olinda Braga

Universidade Federal do Ceará – UFC

____________________________________ Profa. Dra. Ilana Viana do Amaral

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DEDICATÓRIA

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Ricardo Barrocas, pelas indicações iluminadas e o apoio valioso nas horas oportunas, quando estive em um beco sem saída e, sobretudo, quando decidi mudar radicalmente meu tema de pesquisa. E agradeço pela liberdade que me deu quando foi necessário para que eu caminhasse por mim mesmo e por mais tempo a sós com meu espanto e meu gosto por fazer aquilo que eu queria.

Aos professores Olinda Braga, Ilana Amaral e Márcia Tassinari, membros componentes da Banca Examinadora, pelas palavras de salutar interlocução e as pelas valiosas contribuições ao conteúdo da minha pesquisa.

Aos professores Ilana Amaral e Cavalcante Júnior, que na minha Qualificação, forneceram-me valiosas sugestões que aclararam e nortearam minha pesquisa naquilo que concerniu tanto à filosofia kierkegaardiana como na psicologia rogeriana.

À minha esposa, Susana e minha filha, Amanda, que mais uma vez viram e me aguentaram em meus momentos de angústia e de satisfação no feitio deste segundo percurso de Mestrado.

Aos meus estudantes em minhas salas de aula quando, ao ministrar minhas aulas de Abordagem Centrada na Pessoa, de um modo ou de outro, com suas questões e inquietações, foram bons parceiros de diálogo e me proporcionaram algumas ideias que aqui desenvolvi.

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RESUMO

A partir de uma leitura epistemológica de vários escritos do psicólogo estadunidense, Carl R.

Rogers, em que ele declara “afinidades” teóricas com o pensamento do filósofo dinamarquês,

Sören Kierkegaard, o objetivo maior deste estudo é confrontar os conceitos de “Indivíduo”,

delineado por Kierkegaard, e o conceito de “Pessoa”, formulado por Rogers, em suas

similaridades e diferenças. Contribuindo na constituição de mais uma faceta da epistemologia da Abordagem Centrada na Pessoa (criada e desenvolvida por Rogers), é também intenção desta pesquisa, aproximar estes conceitos apoiando-se na hipótese de que a suposta influência kierkegaardiana na obra de Rogers não é tão significativa como ele (Rogers) e, sobretudo, seus comentadores, querem fazer crer. Estando Kierkegaard numa dimensão filosófica e epistemológica de um cristianismo pietista e angustiado, em que sua meta maior era mostrar o

verdadeiro “devir cristão”, e que o “Indivíduo” é aquele que escolhe existir ligado

subjetivamente numa relação tensionada com Deus, dificilmente poderia sua filosofia servir de base em outro contexto tão heterogêneo como era o da psicologia humanista

norte-americana, onde Rogers tinha seu espaço e que considerava a “Pessoa” como um “organismo

digno de confiança” que guarda em si mesma as potencialidades de se construir em todas as suas esferas e em direção a uma existência congruente e autêntica. Aproximando os conceitos

de “Indivíduo” e de “Pessoa” em suas semelhanças e diferenças, descrevendo até onde a influência de Kierkegaard no pensamento rogeriano é verídica, pretende-se mostrar o lugar de fato da filosofia kierkegaardiana na construção da psicologia centrada na pessoa efetuada por Rogers.

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ABSTRACT

From a epistemological reading of some writings of the American psychologist, Carl R.

Rogers, in which he declares “theoretical affinities” with the thought of the Danish philosopher, Sören Kierkegaard, the biggest objective of this study is to collate the concepts

of “Individual”, delineated by Kierkegaard, and the concept of “Person”, formulated by

Rogers, in its similarities and differences. Contributing to the constitution of one more face of the Person-Centrered Approaching epistemology (created and developed by Rogers), is also intention of this research, to approximate these concepts taking as support the hypothesis of that the supposed kierkegaardian influence in Roger‟s production is not so significant as he (Rogers) and, over all, his commentators, wants to make to believe. Being Kierkegaard in a philosophical and epistemological dimension of a pietistic and anguished Christianity, where its biggest goal was to show the true “Christian-to-be”, and also that the “Individual” is that one who chooses to exist subjectively in a tensioned relation with God, hardly could his philosophy stand as another so heterogeneous context as it was the case of Humanist North

America Psychology, where Rogers had space and that considered the “Person” as a “reliable worthy organism” that keeps in itself the potentialities of constructing itself in all its spheres

and in direction to an authentic existence and congruence. Approaching the concepts of

“Individual” and “Person” in its similarities and differences, describing until where the

influence of Kierkegaard in the rogerian thought is veridical, it is intended to show the place in fact of the kierkegaardian philosophy in the construction of the psychology centered in the person effected by Rogers.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO / 10

CAPÍTULO 1 – KIERKEGAARD: FILOSOFIA DO INDIVÍDUO / 19

1.1 – O que significa uma filosofia da existência? / 21 1.2 – Kierkegaard: pensador religioso/existencial / 25

1.3 – Pseudônimos: o modo de ser poeta/ator em Kierkegaard / 32 1.4 – Subjetividade e Verdade: vivência de tensão / 40

1.5 – O Indivíduo / 45

1.6 – Kierkegaard e a Psicologia / 54

CAPÍTULO 2 – ROGERS: PSICOLOGIA DA PESSOA / 59

2.1 – Caracterizações gerais da Psicologia Humanista / 59 2.2 – Tendência à Realização / 67

2.3 –O “Si-Mesmo” e o Organismo / 71 2.3.1 –O “Si-Mesmo” / 71

2.3.2 – O Organismo / 73 2.4 – A Pessoa / 77

CAPÍTULO 3 – “INDIVÍDUO” & “PESSOA”: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS /

84

3.1 – O contato de Rogers com Kierkegaard / 85

3.2 –“Indivíduo” e “Pessoa”: semelhanças e diferenças / 88 3.3 – Kierkegaard e a Abordagem Centrada na Pessoa / 97

PALAVRAS FINAIS / 104

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VERBUM

Uma época escrevi estórias com tanta ansiedade

que não podia comer uma maçã.

Não havia tempo para o detalhe.

Palavra, eu fui palavra.

Poderás avaliar o que é ser palavra?

Fecha os olhos e compõe com tua lembrança

um território exaurido e descarnado,

pasto de animais melancólicos,

lagoas, cacimbas secas.

Na terra, debaixo da oiticica, um monte de ossos.

Preço que paguei sendo palavra.

Marly Vasconcelos, poeta cearense

O paradoxo é a paixão do pensamento, e o pensador sem um paradoxo é como o

amante sem paixão, um tipo medíocre.

Kierkegaard

A pessoa é um organismo digno de confiança

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INTRODUÇÃO

Todo aquele que venha a se debruçar nos estudos epistemológicos da psicologia humanista surgida nos EUA nos anos 60 do século passado, em algum momento vai deparar-se com a suposta ligação que existiria entre a psicologia centrada na pessoa e a filosofia kierkegaardiana. Em inúmeros trabalhos acadêmicos acena-se a presença de tal filosofia da existência danesa nesta psicologia norte-americana.

A história das tentativas (psicológicas ou filosóficas) de compreender o significado possível da existência humana tratou de fazer com que estes enfoques pudessem encontrar-se em meio ao turbulento século XX, o qual, entre tantas características, foi rico de mentes e corações apaixonados em expor as dimensões de uma subjetividade existencial que não se cansa de procurar seu lugar neste mundo que parece não lhe caber em lugar algum.

O sentimento de parecer estar perpetuamente em trânsito sempre é desconfortável, para dizer o mínimo. O sentido da existência vivida e devídica também foi alvo da atenção de Kierkegaard e Rogers. Este estudo que ora se apresenta quer mostrar como esta

“hermenêutica existencial” empreendida por eles resultaram, inclusive, em modos de ver o ser

humano nem sempre tão consoante ou tão simétrico como a mão e a luva.

Dentro dos estudos levados à cabo pelos continuadores da psicologia de Carl Rogers, têm-se um certo consenso de considerar Kierkegaard como uma das influências

“certas” no pensamento rogeriano porque o próprio Rogers assim afirmou em diversas ocasiões (EVANS, 1979; ROGERS & ROSENBERG, 1977; ROGERS, 2009), fazendo referência a uma leitura empreendida por sugestão de alguns estudantes seus de Teologia que

perceberam haver “similaridades”, assim eles disseram, entre as ideias de Rogers e as

filosofias de Buber e Kierkegaard. Assim colocado, os estudiosos da Abordagem Centrada na Pessoa aparentemente tomam estes ditos como verdadeiros e procedentes (como por exemplo, as pesquisas de PINHEIRO, 2004; MOREIRA, 1993/1994; LEITÃO, 1986; ROGERS & WOOD, 1978) tendo apenas a palavra de Rogers como garantia, não tecendo maiores considerações sobre esta suposta filiação epistemológica.

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cego), a qual prega um modo de conceber o humano como “digno de confiança” (nas palavras de Rogers) e responsável por si mesmo?

Minha intenção é questionar esta filiação indevida e apressada de Rogers a Kierkegaard mediante uma exposição dos conceitos de Indivíduo em Kierkegaard

(focalizando em especial as diversas “máscaras” pseudonímicas kierkegaardianas) e de Pessoa em Rogers mostrando (1) em confronto as perspectivas de ser humano1 destes autores, muitas vezes aproximados dentro de uma perspectiva dita “existencialista” e (2) suas possíveis aproximações e diferenças.

Todavia, vejamos mais de perto os autores a serem trabalhados neste estudo.

Søren A. Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês do século XIX, foi um

filósofo cristão por excelência. Adentrando no cristianismo mais do que como um simples crente, ele caminha como pensador em quem pulsa uma ânsia de esclarecimento conceitual e sobretudo de ordem pessoal. Ele mesmo o atesta quando escreve em um trecho de seu Diário:

[...] o que me falta é, no fundo, ver claramente em mim mesmo o que devo fazer e não o que devo conhecer, salvo na medida em que o conhecimento sempre precede a ação. Trata-se de compreender o meu destino de ver o que Deus2 quer propriamente que eu faça, isto é, de encontrar uma verdade que seja verdade para mim, de encontrar a idéia pela qual quero viver e morrer. (KIERKEGAARD, 1986a, p.39).

Também como nos informa Amaral (2008, p.19) o “lugar a partir do qual fala Kierkegaard é o de um polemista, cuja perspectiva não se explicita senão pela relação com

aquilo que lhe mobiliza mais direta e imediatamente, a fé”. E assim o fez de modo tão apaixonado que o levou até a própria aniquilação quando, esgotado por uma querela com a Igreja Luterana danesa, cai na rua, agoniza e morre em um hospital em Copenhague.

Vivendo numa época de mudanças drásticas, turbulentas, tanto na Dinamarca como em toda a Europa, Kierkegaard assistiu, depois de uma guerra inútil com a Inglaterra, a nação dinamarquesa cair de um patamar rico ao nível de país diminuto. Também testemunhou a mudança (em 1848 e 49) do regime absolutista para a democracia, resultado de uma

1 Usar-se-á neste estudo, como já se deve ter percebido, o termo humano e não „homem‟, „sujeito‟, „pessoa‟ ou

„indivíduo‟. Com „humano‟, fala-se de nós mesmos: este „húmus‟ que não encontrou e talvez nunca encontre uma tradução total de si mesmo no mundo, próprio ao devir que é. Decidi assim para evitar extensos esclarecimentos conceituais daqueles termos. Exceção será feita quando se tratar do conceito de Indivíduo em Kierkegaard e do conceito de Pessoa em Rogers, uma vez que são estes os termos que ambos utilizam

abundantemente e dão uma significação muito precisa. Fora estes casos, o termo utilizado será “humano”.

2

Acatando a oportuna sugestão da professora Ilana Amaral, neste estudo, usarei a expressão “Absolutamente

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fortíssima pressão popular, frutos tardios da Revolução Francesa e do ideário socialista propagado pelo Manifesto. (HARBSMEIER, 1993)

Em sua trajetória de pensador e escritor eminentemente religioso como ele mesmo afirmou em vários momentos de sua obra, Kierkegaard, foi, sem dúvida, um humano bastante atormentado e angustiado devido aos vários dissabores em sua vida particular. Além disso, era constantemente assaltado pela realidade danesa de sua época, na qual ouvia de homens e

mulheres a afirmação de que eram “cristãos” sem que realmente o fossem (e que ele

qualificava jocosa e ironicamente de “cristandade”). No entender de Kierkegaard, eles estavam longe de uma vida autenticamente cristã: uma existência de renúncias e de sofrimentos, os quais seriam as provas da verdadeira vida em Jesus Cristo. Se Cristo sofreu, deve o cristão também sofrer. Para Kierkegaard, não havia concessões a serem feitas ou meio termo: ou se era cristão ou não. Isso evidencia o sentido de Tornar-se Cristão que Kierkegaard tanto falou. É um devir sempre a caminho e em constituição, e não uma condição que em algum momento se conseguiria de uma vez por todas. Como o humano não pode ser igual a Cristo com todas as vivências que este teve, pode, outrossim, comprometer-se com um vir-a-ser em direção a Cristo. Sendo assim, e na intenção de mostrar o que significa este devir no cristianismo, Kierkegaard preferiu a solidão do claustro, vivendo uma vida solitária e reclusa (KIERKEGAARD, 1986b). Um cristianismo às avessas e diferente da radicalidade da mensagem evangélica, impregnado de hegelianismo e ligado ao Estado eram, no seu entender,

“sintomas da decadência do crístico” (PAULA, 2009, p.27).

Amaral (2008), numa interpretação bem diferente de outros comentadores kierkegaardianos que apóiam a crítica de Kierkegaard a Hegel, nos informa também que nem sempre o danês foi totalmente “justo” com o pensador alemão, posto que os objetivos da trajetória kierkegaardiana encontravam-se por demais centrados nele mesmo para permitir-se relacionar-se de forma justa e equilibrada com a filosofia hegeliana. Não poucas vezes o parodia e faz caricatura da filosofia daquele pensador.

De todo modo, Kierkegaard reflete, ele se interroga acerca da verdade, onde encontra sua ocupação infinita (KIERKEGAARD, 1986b). Parafraseando Platão no Sofista, Kierkegaard pensa o pensamento que se pensa, isto é, dialoga consigo mesmo. E muito! Deixou atrás de si uma obra que, em suas palavras,

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Tal entrega ao “serviço da verdade” deixa clara sua “necessidade interior” de busca de compreensão da vontade divina. Embora Kierkegaard diga que sempre foi um autor religioso (KIERKEGAARD, 1986b), ele é um philo-sophos: um humano que se disponibiliza a corresponder ao apelo do Ser (HEIDEGGER, 1979). Quanto a este apelo advindo do absoluto, entendido não hegelianamente, Paula (2009) explica que

a filosofia kierkegaardiana dirige um convite ao indivíduo, que nada é, para olhar-se na sua própria subjetividade e lançar-se diante do absoluto que, contrariamente ao que pensava Hegel, não reside na história, mas num totalmente outro. Assim, diante do absoluto, resta decidir-se pela fé ou desesperar-se. (PAULA, 2009, p.26)

Saindo da Dinamarca e do século XIX, vamos encontrar o interlocutor de nosso pensador danês.

Carl R. Rogers (1902-1987) foi (e ainda é) um dos mais conhecidos

representantes da psicologia humanista norte-americana e criador da Abordagem Centrada na Pessoa (doravante ACP).

Constituindo sua psicologia dentro da área clínica, foi o criador de uma nova forma de psicoterapia (Terapia Centrada no Cliente). Além de atuar em consultório, Rogers foi um grande investigador do processo psicoterápico: mediante uma postura extremamente científica, efetuou pesquisas minuciosas de seus atendimentos, os quais eram analisados a fim de que se pudesse ajudar cada vez mais e melhor o cliente.

Partindo de uma perspectiva nova a respeito do humano, diferente para a sua época, Rogers compreende-o como possuindo em si mesmo potencialidades que o fazem progredir em direção a um crescimento bio-psico-social. Por outros termos, “todo organismo é movido por uma tendência inerente para desenvolver todas as suas potencialidades e para desenvolvê-las de maneira a favorecer sua conservação e enriquecimento” (ROGERS & KINGET, 1977, p.160). Esta tendência, no entender de Rogers seria “natural”, possibilitando uma auto-realização e uma auto-regulação organísmicas. Dentro deste parâmetro, Rogers postula que a pessoa é a única capaz de guiar sua própria existência em termos de responsabilidade e autonomia. Ou seja, as potencialidades da pessoa não são possíveis de deter ou destruir sem que se destrua o humano mesmo.

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pessimista do humano (guiado por forças inconscientes) advinda psicanálise freudiana e a

visão do humano “autômato e condicionado” do Behaviorismo de B.F. Skinner.

A psicologia humanista, lançando mão de observações sociais e clínicas, construiu

uma visão do humano visando ao comportamento “saudável” e que, por tal diferença

marcante em relação às teorias acima mencionadas, chegou a ser nomeada de Terceira Força em Psicologia. Esta perspectiva está baseada na credibilidade no próprio humano em si mesmo, como um ser capaz de perceber suas potencialidades, aprender a lidar com elas e desenvolvê-las. Os humanistas privilegiam, assim, a compreensão do humano vendo nele algo

de “positivo”, “otimista”, trazendo para a uma concepção de crescimento psicológico

saudável.

Assim colocado os pares deste percurso, a pesquisa confrontará um aspecto da psicologia humanista rogeriana à filosofia kierkegaardiana do Indivíduo enquanto Matrizes epistemológicas, seguindo um raciocínio de Figueiredo (1995).

Segundo este autor, a ACP se tem sua inserção na Matriz Vitalista e Naturista, que centra sua atenção em aspectos qualitativos, espirituais, criativos e intuitivos do humano. Deixa de lado qualquer pretensão de conceituação exaustiva a respeito dos fenômenos

estudados, preferindo valorizar o processo de “tornar-se”; o “devir” da vida que merece ser vivida apaixonadamente e não conceituada formalmente. Portanto, esta Matriz não daria importância ao rigor epistemológico dos seus enunciados, importando mais a vivência

existencial, ou seja, o “devir”. Isso exibiria uma visão ingênua e romântica do humano. Este, surgindo como um ser incompleto e sua existência um perpétuo vir-a-ser, haveria uma valorização da vida que se desdobra indefinidamente e não cientificamente. Por conta disso, esta Matriz não se liga em demasia para questões metodológicas a fim de apreender a vivência pré-reflexiva do humano, bastando a apreensão intuitiva. Em suma, e de acordo com esta Matriz, a metodologia científica tradicional nunca poderia dar conta do humano em suas características mais importantes.

Ainda seguindo as exposições de Figueiredo (1995), a filosofia kierkegaardiana faz parte do pensamento existencialista (dentro da Matriz Fenomenológica e Existencialista), isto é, todas aquelas correntes que partem de uma descrição-reflexão da existência concretamente vivida, fruto de atos da liberdade constitutiva do humano que se afirma como um ser livre. Kierkegaard e Nietzsche são considerados precursores deste movimento,

embora, estritamente falando, eles não poderiam ser considerados “existencialistas”, no

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Kierkegaard (principalmente) e Nietzsche não seriam os “pais” do existencialismo, mas seus avôs.

O confronto conceitual entre Kierkegaard e Rogers se torna viável, já que o cerne da pesquisa gira em torno da importância crucial que Kierkegaard dedica à noção de Indivíduo, sobretudo mostrados em seus diversos pseudônimos; e na valorização humanística de Rogers com relação à Pessoa, esclarecendo estes aspectos.

Uma das razões para aproximar estes autores se deve também a influência religiosa sofrida por Rogers em sua juventude. Leitão (1986) sugere que a influência familiar (de forte marca protestante) e a ida de Rogers, por algum tempo, para um Seminário que o

tornaria um Pastor, lhe inculcou um certo espírito “missionário” e que sua fé e otimismo no

humano (que transparece claramente no conceito de Tendência à Realização3) em muito lembra algumas premissa básicas do cristianismo a respeito do humano. Todavia, nada garante que Rogers tenha lido Kierkegaard ainda no Seminário, posto que em nenhum momento ele mencione o filósofo danês até quase o final dos anos 50. Pode-se, igualmente, ressaltar que esta herança religiosa de Rogers deve tê-lo feito mais sensível às palavras apaixonadas de Kierkegaard quando as obras deste lhe caíram nas mãos.

Na obra de Kierkegaard, “a questão do Indivíduo é decisiva entre todas”

(KIERKEGAARD, 1986b). O Indivíduo é aquele que pode se tornar “único” perante o Absolutamente Outro; alguém que nada tem de especial ou possuidor de algum dom. Simplesmente ele opta, decide querer, existencialmente, ser o Indivíduo. E ele só pode ser por

auxílio da graça divina porque é algo do “mais elevado grau”, ultrapassando “as forças humanas” (KIERKEGAARD, 1986b). Em suma, o humano em Kierkegaard, é um espírito, síntese tensa entre finito e infinito, muito mais definido por sua paixão do que por sua razão, posto que a subjetividade apaixonada seja a única que pode almejar chegar a esta condição ímpar, em sua relação pessoalíssima com o Deus cristão (PENNA, 2004).

Em Rogers, o conceito de Pessoa coincide, em parte, com o conceito de Tendência à Realização, que é o constructo pilar da ACP. Mas não só isso: a pessoa não é só

“tendência a...”, mas um ser que busca sua autenticidade e liberdade experienciais, tentando

ser o que ela é: alguém que se descobre como experiência em fluxo e não algo fixo; que se abre a esta experiência com o mínimo de defesas; que confia no próprio organismo como critério de seu comportamento, estando atento a um foco interno de avaliação de si e de sua

3Em vez de usar o termo “Tendência Atualizante” para designar este conceito fundamental da ACP, usarei o

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relação com o mundo; e um desejo íntimo de continuar a existir como um devir em vez de ser alguém com uma identidade rígida (ROGERS, 2009).

Pode-se ver que, apesar do tema da decisão existencial seja algo mais ou menos comum aos dois autores, o Indivíduo e a Pessoa, conceitualmente falando, a primeira vista, são bem diferentes.

Enfim, existem as correlações tantas vezes propagadas entre Kierkegaard e Rogers? Quais seriam? Sobre o Indivíduo kierkegaardiano e a Pessoa em Rogers, existiriam outros pontos temáticos em comum? Todavia, a junção e o diálogo entre filosofia e psicologia quase sempre é um empreendimento temerário. Então, o que autoriza a juntar dois autores de regiões tão díspares?

Piaget (2003), num capítulo intitulado “Sobre as relações das ciências com a filosofia”, expõe algumas diferenciações importantes entre estas duas modalidades de conhecimento, louvando o esforço de reflexão dos cientistas (e não dos filósofos) sobre os conceitos e métodos das ciências sem fazer uso de pressupostos filosóficos, isto é, dedicam-se à pesquisa sem ter que necessariamente lançar mão de conceitos e argumentos vindos da filosofia antes de iniciarem suas investigações.

Seguindo as pistas de Piaget (2003), tradicionalmente a oposição entre o conhecimento científico e o filosófico se dá pelo fato de que as ciências trabalhariam com realidades experimentais e a filosofia com a dedução; as ciências têm sempre interesse pelo relativo e a filosofia interessa-se pelo absoluto. Todavia, sustenta Piaget, o cientista precisa crer em certo absoluto advindo da realidade que estuda, mesmo que nunca o atinja em totalidade. As ciências representariam, então, o saber em si mesmo e a filosofia uma reflexão deste saber? Mas as ciências precisam de reflexão de vez em quando. Às vezes elas reveem seus métodos e princípios. Pode-se refletir em ciência sem que lance mão de alguma corrente filosófica. Deste modo, um critério pode ser estabelecido sem que seja definitivo: as ciências se ocupariam com questões particulares, enquanto a filosofia tenderia para o conhecimento total. Porém, o conhecimento total é uma impossibilidade, pondo-se mais como uma síntese provisória.

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psicopatologia é de implicação e não de aplicação. O que isso significa para o presente estudo?

Significa que não se pretende usar de um expediente por vezes usado por alguns psicólogos humanistas que é prover-se de um sistema ou pensamento filosófico e simplesmente derramá -lo dentro de uma psicologia. Tal procedimento pode incorrer em confusões acerca de como lidar com o humano, posto o caráter eminentemente clínico-intervencionista das psicologias humanistas. Não se aplica filosofia na ciência. As relações entre as duas se dá por implicação: uma discussão que não se finda sobre o que uma pode contribuir em compreensão e destinação do humano.

Penso que esta ideia de implicação também é válida para se encarar a problemática aqui abordada entre Kierkegaard e Rogers.

Do exposto, a metodologia far-se-á num confronto temático e interpretativo a partir da leitura dos textos de ambos os autores (e de comentadores, quando necessário) em que o questionamento incidirá sobre a visão de humano de cada um deles.

A fim de descrever o confronto que se dará entre os conceitos de Indivíduo e de Pessoa, o presente estudo epistemológico-bibliográfico se dará em três capítulos.

No primeiro capítulo, dedicado a Kierkegaard, far-se-á uma exposição breve sobre o sentido de uma filosofia da existência. Em seguida, será mostrado Kierkegaard como um filósofo, ao mesmo tempo, religioso e existencial, preocupado em esclarecer o que significa

sua concepção do verdadeiro “tornar-se cristão”. Já tocando no conceito kierkegaardiano de Indivíduo serão explicitadas as tensionantes categorias existenciais de subjetividade e verdade. Segue-se uma pequena exposição acerca dos pseudônimos e sua função (ponto importante desta pesquisa) na filosofia existencial de Kierkegaard, mostrando como este filósofo era, ao mesmo tempo, um poeta e um ator. Assim, dar-se-á abertura para que seja mostrada a categoria de Indivíduo, ponto central na filosofia de Kierkegaard. Ao final, algumas considerações são tecidas acerca de Kierkegaard e sua (suposta) importância na psicologia.

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Expostas concepções do humano nestes dois autores, o terceiro capítulo tratará de mostrar, em primeiro lugar, como a figura de Kierkegaard surge na obra de Rogers e quais os reais efeitos deste encontro para a constituição do percurso rogeriano. Em seguida, os conceitos de Indivíduo e de Pessoa são colocados em confronto aberto no intuito de mostrar as semelhanças e diferenças entre os mesmos. Por fim, Kierkegaard é situado em relação na sua verdadeira importância (ou não) para a ACP. Tudo isso explorado tendo vista os contextos epistemológicos de Kierkegaard e Rogers.

Este percurso tornar-se necessário para responder à questão: é viável dizer que a filosofia do Indivíduo em Kierkegaard influencia o pensamento de Rogers a respeito da Pessoa? O que se quis verificar foram as possíveis implicações (e não aplicações, repito) da filosofia kierkegaardiana dentro da psicologia rogeriana.

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CAPÍTULO – 1

KIERKEGAARD: FILOSOFIA DO INDIVÍDUO

“Se a questão de „o Indivíduo‟ fosse para mim uma futilidade, poderia deixá-la cair, e até o faria com prazer e vergonha para mim se não estivesse disposto a isso com toda a atenção possível. Mas não é o caso; para mim, como pensador e não pessoalmente, a questão do Indivíduo é decisiva entre todas”1.

Kierkegaard, ao que tudo em sua obra nos mostra, não tentou realizar uma ontologia. Bem entendido, não há um escrito seu em que ele se disponha a falar

explicitamente de Deus na intenção de fornecer alguma “prova ontológica”. Não foi sua intenção fazer algo semelhante a Santo Agostinho, Santo Anselmo, Descartes ou Leibniz. Ele não se interessava por isso.

A escuta de Deus que Kierkegaard praticava em sua existência, possuía um caráter de acontecimento: uma relação acontecente na interioridade daquele que se volta para Deus. Kierkegaard reflete Deus (ele que é, do princípio ao fim, reflexão2) na intenção de, escutando-o, poder compreendê-lo e não de explicá-lo, o que seria, para este pensador cristão, um enorme desrespeito com a divindade.

A compreensão não é de um aspecto particular de Deus, mas do próprio Deus. Em que sentido? Não seria, em certo sentido, a realização de um certo tipo de ontologia ? Pode parecer estranho esta afirmação uma vez que pareça contradizer o que foi afirmado acima.

Todavia, ela encontra seu significado, primeiramente, pelo simples fato de que Kierkegaard, cristão que era, acreditava no Deus cristão. Em segundo lugar, porque, de todo modo, ele pergunta-se sobre a possibilidade de perceber Deus como acontecimento gerador de sentido para aquele que se pergunta perante o caráter provocador desse mesmo Deus: um sentido que é subjetivamente experienciado como verdade. Isso leva Kierkegaard a afirmar que verdade e subjetividade coincidem na vivência do Indivíduo.

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Ora, se a filosofia é o pensar/dizer entendido como entabular um diálogo que perscruta indiretamente a verdade do ser porque empreende a pergunta pelo sentido deste ser, então, implicitamente, Kierkegaard falou sobre a possibilidade de compreender Deus como fundamento ontológico do existir, proporcionando um sentido.

Assim colocado, em Kierkegaard, talvez seja mais justo falar não de uma ontologia (como se supôs), nem mesmo de uma teologia, mas de um Teo-Logos: um discurso sobre Deus como um aparecer, desvelamento como não-esquecimento (Alétheia) que se dá pelo simples perguntar por Deus em sua solicitação muda. Ao perguntar, minha pergunta implica-se a si mesma e contém, de certo modo, a matéria-prima da resposta como um enunciado3. Deus como pergunta/resposta.

Deus não foi, propriamente, uma escolha objetal de Kierkegaard, mas algo que insistiu para ele como algo digno de ser pensado4. Deus é o pensável que dispôs Kierkegaard a pensá-lo em sua estranheza de aparecer. Daí Kierkegaard exprimir indiretamente suas considerações sobre a divindade, que para ele assumiam a reverência própria de um devoto, para em seguida refletir sobre o alumbramento dessa relação5. Por outras palavras, Deus é um acontecimento tão digno da reflexão filosófica quanto qualquer outro acontecimento/tema inquietante ao pensar/dizer humano. E Kierkegaard a empreendeu, com toda força, em sua reflexão.

Mas este Deus não é lógico, ele é opaco a uma conceituação sistematizável. E embora possa aparecer-nos como um mistério insondável, esse “mistério” se torna inquietante ao ponto de levar o humano, não suportando esse brilho que cega mais que a escuridão, a poder-perguntar ou poder-pensar. Por essa razão, Deus não é impenetrável ao pensar/dizer. E esse movimento mostra-se como uma constatação existencial de que nem tudo conhecemos

ou sabemos como se fôssemos um “espírito absoluto”.

Estamos finitos. Estamos em situação; em trânsito. Talvez por isso, empreendemos relações amorosas de qualquer tipo: cortejando de longe uma unidade da qual não dispomos, mas que nos dispõe. Nada mais doloroso! Nada mais humano e divino! Por isso filosofamos.

Nada mais decisório do que esta finitude que somos. O que nos remete cada um em sua individualidade e singularidade, a se rever e decidir pela própria existência. Se Deus é o horizonte perto/longe de nossos encaminhamentos existenciais como queria Kierkegaard, há

3 Gadamer, O que é a verdade? In: Verdade e Método II, p.67. 4

Heidegger, O que quer dizer pensar? In: Ensaio e Conferências, p.113.

5 Isto sem falar que, expressando-se indiretamente, Kierkegaard deixa em aberto a possibilidade da comunicação

(22)

que saber quem é este Indivíduo exemplar que dirige um duplo olhar: para si mesmo e para Deus numa síntese não-concluída e tensionada em sua destinação.

Mas este olhar para si mesmo não se faz num “além-mundo”, mas na situação enraizada no mundo vivente e vivido. Numa palavra: existência. Mas este é outro lugar-comum. Julgamos saber, por antecipação, a amplitude do significado da existência. Podemos nos arrogar saber em toda amplitude como é o trágico do estar-lançado no mundo? Que se faça, pois, um pouco de luz sobre aspectos já sabidos sobre o existir humano (porém, muitas vezes esquecidos) para que possamos saber para onde vamos neste mundo cheio de veredas trágicas.

Farago (2006) afirma que Kierkegaard é um pensador subjetivo, dizendo o que vive e vivendo o que diz, que tende a romper com a maneira de se fazer filosofia nos moldes universitários e outras instâncias oficiais de mesmo porte. Logo, seria perfeitamente lícito apontar Kierkegaard como um filósofo existencial. Qual o sentido de tal afirmação?

1.1 – O que significa uma filosofia da existência?

Quando ouvimos falar em filosofia da existência, em geral remetemos ao movimento filosófico-literário de meados do século XX conhecido como Existencialismo (este termo foi cunhado pelo seu principal representante, o filósofo e escritor Jean-Paul Sartre). Tal filosofia nasceu na França no período de grande turbulência social e política devida às consequências das duas Grandes Guerras. Perante a destruição em grande escala e o genocídio sistemático levado adiante pelo Nacional-Socialismo, os valores (e desvalores) do humano foram postos em questão, gerando reflexões também ao nível filosófico, donde se nutriu o existencialismo.

Mesmo assim pergunta-se: de onde o existencialismo retira suas questões e respostas aos seus anseios filosóficos? Ora, da existência humana. Todavia, é um engano querer concluir que só existencialismo sartreano levou a cabo um radical questionamento dentro da perspectiva da existência vivida, concreta, contingente e jogada no mundo; uma

filosofia colada ao vivido e que não fosse uma “idealização” do existir. Existiram outros

modos de fazer filosofia da existência. Kierkegaard, aparentemente, foi quem mais destacou de modo profundo os principais traços característicos deste tipo de reflexão filosófica.

Pode-se começar enunciando que aquilo que chamamos de “filosofias da

(23)

fenomenológico, abre um espaço totalmente novo e possível para a reflexão acerca do humano existente. Este humano que vive, pensa, se emociona; que constitui crenças e valores; compreendido como ser-no-mundo portador de uma subjetividade livre e responsável por suas escolhas que afetam a si mesmo e sua relação com o outro. É deste humano, que somos nós mesmos, que as filosofias da existência dirigem sua atenção. Assim descrito, não foi certamente o contexto filosófico fenomenológico, husserliano que inspirou o pensador danês; pois, como nos diz Colette (2009, p.20), “Histórica e filosoficamente, as filosofias da existência têm seu tempo e lugar lá onde não se trata mais de proceder à postulação de um

fundamento que torne possível a construção de um edifício conceitual”.

Na compreensão de Jean Beaufret (1976), existir vem do termo latino existere e que designa uma ação de sair de um lugar para outro num sentido de que aquilo que estava escondido agora sai à luz. É um mostrar-se. Mas o que se mostra nesta ação? O humano. Ele se mostra a cada vez que busca construir o que pode vir-a-ser, sendo ele mesmo o fundamento sem fundo e inconclusivo de seu existir. Só no existente humano (e não em conceitos científicos e/ou filosóficos) é que pode gerir-se a realidade humana desde que ela possa tornar-se sensível ao que ela é: um devir. Por ele existir, o humano é tomado por uma estranheza que o solicita e o angustia. Posto que parece não ter uma “essência” (algo como

uma “natureza” que lhe fosse inerente), o humano sente-se compelido a construir-se enquanto ainda errante neste mundo. Daí dizer, com Colette (2009, p.20) que a “existência é a unidade e de ser e do aparecer” e donde provém o primeiro princípio do existencialismo sartreano: a existência precede a essência.

Então, ainda consoante com Beaufret (1976), pode-se chamar de Filosofia da Existência, “uma maneira de filosofar” a qual, lidando diretamente com o humano, visa-o “na

força mesma de seu „existir‟”, a fim de retirar uma verdade de sua opacidade fundamental. Uma “audácia” para ir às certezas que o humano pode erigir e dirigir a si mesmo. Em suma,

(24)

É claro, muitos pensadores dedicaram tempo, pensamento, suor e paixão na busca de compreender o trágico-alegre existir humano. Além de Kierkegaard e Nietzsche, Heidegger e Sartre são outros nomes bem conhecidos. Todavia, poder-se-ia incluir os não menos importantes nomes de Martin Buber, Maurice Merleau-Ponty, Albert Camus, Karl Jaspers e Gabriel Marcel, pelas suas relevantes e profundas incursões acerca da existência.

Certamente, quem já leu algo da filosofia kierkegaardiana, provavelmente vai encontrar grande semelhança com as ideias de Sartre. Na verdade, se retirarmos de Kierkegaard todo pano de fundo da relação do humano com Deus (cerne de sua inquietação filosófica) e a reflexão acerca do cristianismo desatrelado das filosofias sistemáticas, há de se encontrar alguns temas do existencialismo sartreano. Apesar de tais proximidades, várias são as temáticas em Sartre que passam bem longe da filosofia kierkegaardiana. Uma delas, certamente, é a compreensão do significado da existência. Então, como se elucida a existência no percurso kierkegaardiano?

Uma das fontes do pensamento de Kierkegaard foi, com certeza, Kant. Não o Kant da Crítica da Razão Pura, mas o Kant da razão prática, do dever-ser. Desde que este filósofo retirou do humano as pretensões de um conhecimento da coisa-em-si, fazendo ver que ele continua na pura fenomenalidade, foi inevitável perceber que não se pode esperar que

qualquer “transcendência” possa vir em socorro do humano dizendo a este o que deve ou não

deve fazer de si mesmo. Instaura-se a liberdade decorrente do domínio prático. A filosofia da liberdade onde o humano erige sua própria normatividade. É justo poder responder a pergunta

kantiana “Que é o homem?” não com alguma definição essencialista, mas como uma estrutura

de sensibilidade vivente, munida de uma razão que nada tem de natural. (FARAGO, 2006). É uma razão enraizada no mundo. Existencial.

Embora se esteja falando aqui de certa influência de Kant, a resposta kierkegaardiana da questão exposta acima (e que se coaduna perfeitamente com uma Filosofia da Existência) pode ser resumida de acordo com Farago (2006). Escreve ele:

Se o homem não é descrito como essência, isto se deve ao fato de que é, na sua humanidade, uma existência, um ser livre que corre o risco de se perder e não alcançar a compreensão da instância instituinte da sua humanidade. O homem constitui uma exceção dentro da natureza: está na dependência de uma essência muito particular que é não ter essência nenhuma. O homem é, por conseguinte, livre, capaz de autodeterminação em ato, livre do determinismo natural, capaz de libertar-se da eslibertar-sencialidade característica da natureza. Sua existência puramente humana não se reduz à sua vida animal como desdobramento previsível de uma natureza prédeterminada. Pelo contrário, consiste em fazer desta natureza um meio para um fim supra-sensível, determinado pela liberdade. O homem é, nestes termos, um dever-ser: dever de se determinar sem se deixar determinar. A resposta à pergunta:

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lhe cabe vir a ser. O homem é, por conseguinte, o ser em perpétuo vir a ser, que tem como tarefa infindável trabalhar incansavelmente em sua humanidade, desatrelar-se sem cessar da animalidade onde corre sempre o risco de tornar a cair. (FARAGO, 2006, p.65s)

Mesmo sendo de inspiração kantiana, pode-se notar o quanto Kierkegaard guardou, em suas inquietações filosófico-religiosas, a abertura dada pelo filósofo prussiano no que se refere ao exercício da razão prática. Esta, levada às últimas consequências, reflete numa filosofia da existência em devir, ainda que com vistas ao Absolutamente Outro (Deus) como horizonte de sentido existência. Uma reflexão que tem seu estatuto mais forte encontra-se numa dualidade entre finito e infinito. (COLETTE, 2009)

A influência de Hegel na filosofia kierkegaardiana, já bastante comentada e documentada, e que se rege na base de fazer um contraponto ao pensador alemão, começa a tomar seus contornos quando Kierkegaard não aceita e se exaspera com a diluição da religião nos percursos da razão e da consciência pensante. Como o pensar poderia abarcar o real devir existencial e revelar limpidamente seus percursos tortuosos?

Farago (2006) expõe bem a marcação kierkegaardiana da existência e aponta que

dado que a existência é uma potência dialética de renovação, existe uma paciência e uma seriedade da experiência, da qual nenhum conceito poderá jamais dar conta. A verdade da existência não se entrega de uma vez, e sim por etapas sucessivas, ao longo de uma caminhada, de uma história que somente a morte surpreende em seu acabamento constitutivo. Portanto, importa menos começar do que recomeçar

sempre de novo, passar de um “momento” ao outro, dialeticamente, em uma

ascensão rumo a si mesmo, sem que jamais se conclua no tempo o processo ao qual a própria vida nos destina. Não se poderia, por conseguinte, encerrar em um esquema aquilo que por definição lhe escapa. (FARAGO, 2006, p.69s)

Farago (2006, p.75) conclui que “a existência é algo que jamais será objeto, é a origem a partir da qual cada um experimenta, pensa e age”. Não sendo “objetificável”, a existência pode e deve ser compreendida em processo; em devir. Os conceitos que usamos e construímos podem e devem ser jogados fora quando as nuances do humano mostrarem uma face nova, seja trágica ou alegre; dura ou leve. Experienciando o existir, cada um pense e aja como melhor lhe aprouver. E conceitue, mesmo que comece de novo lá na frente.

Isso só reforça o que o próprio Kierkegaard diz, de modo sucinto acerca da existência (sem encerrá-la num conceito). Ele diz que a essência da existência se parece muito com a concepção platônica sobre o amor conforme se encontra no Banquete: uma união entre

(26)

gerado pelo infinito e pelo finito, o eterno e o temporal, e que, por esta razão, está

constantemente no esforço”6

.

Apesar de Kierkegaard ter sido um humorista, fazendo graça com suas várias máscaras pseudonímicas (veja-se, por exemplo, o Hilário, o encadernador, que resolve

“editar” uma obra filosófica sobre o amor e que o “acaso” fez com que esta lhe caísse em suas

mãos7) que confundiam os seus conterrâneos daneses, tentando mostrar o que significava o devir humano mesclado ao devir cristão, ele não perdia a seriedade da imagem da existência vista como uma contradição viva. Tomava e exercia em si mesmo, como pensador, o logos cristão em detrimento do logos grego que se rege pela identidade e pela não-contradição. O logos cristão tenta unir a razão e o paradoxo da encarnação do eterno no tempo, escândalo para a razão reflexionante de gosto hegeliano. A existência, devindo como abertura, e não de uma vivência completa que se adquire com a um objeto qualquer, é um pathos que dispõe o humano na direção de um existir que lhe seja mais veraz, mais autêntico. Mais Indivíduo. Pode vir a ser ato de fé.

Assim exposto, a filosofia de Kierkegaard poderia muito bem ser qualificada como uma filosofia da existência como também o foram aquelas outras filosofias que vigoraram no século XX. Todavia, será que bastaria, de um ponto de vista epistemológico, somente referir a herança kantiana, hegeliana e o próprio romantismo alemão no pensamento do danês e confiná-lo numa categoria conceitual dentro da História da Filosofia? Como qualificar com justiça o pensar kierkegaardiano e afirmar com propriedade que se trata de uma filosofia da existência?

1.2 – Kierkegaard: pensador religioso/existencial

Mais uma vez pergunta-se: como qualificar com justeza o pensamento de Kierkegaard? Apenas mais um existencialista? Rotulá-lo tão-somente como uma espécie de antecipador das ideias do existencialismo francês me parece um exagero (nem tudo coincide com as reflexões de Sartre), uma injustiça para com a riqueza das interrogações kierkegaardianas. Como qualificá-lo então? Quando se fala aqui em qualificar, não é somente incluí-lo no rol cronológico dentro da História da Filosofia: não seria mais do que repetir o já amplamente divulgado em compêndios bastante difundidos, para não dizer repetitivos.

6

Kierkegaard, Post-Scriptum, apud Farago, 2006, p.77.

7A dita “obra” chama-se O Banquete, ou In Vino Veritas e é uma das partes de uma obra maior de Kierkegaard

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É nítido ver em Kierkegaard dois aspectos que lhe são complementares: por um lado existe o pensador religioso; de outro, o pensador existencial. Em geral nos livros de História da Filosofia somente o pensador da existência é levado em conta, enquanto que o Kierkegaard religioso é pouco lembrado e falado. Em Kierkegaard, o ser religioso e existencial não era problema: ele não carecia de vivê-los em separado; os dois eram ele mesmo.

É sobre estas dimensões de seu ser que se pretende rapidamente esboçar aqui. No que concerne ao autor religioso, é mais interessante deixá-lo falar sobre como ele vê a si mesmo. No entender de Kierkegaard, seu percurso tem a ver com loucura e intenção.

As palavras loucura e intenção não são arbitrárias, mas usadas como epígrafe pelo próprio Kierkegaard no início do seu Ponto de Vista8, como um modo de ver e interpretar suas próprias intenções que animavam sua investigação existencial e a linha tênue sobre a qual sua abnegação obrigava-o a andar ao ponto da loucura poder abatê-lo a qualquer momento.

Sua inspiração socrático-platônica não lhe permitiu quedar na desrazão, mas lançar-se cada vez mais na reflexão profusamente dialogal da alma consigo, ainda que guardado um silêncio pessoal diante de seus contemporâneos ao escrever suas várias obras pseudonímicas (como p.ex., A Retomada; Temor e Tremor; O Conceito de Angústia; Migalhas Filosóficas, entre outras) nas quais os “autores” se declaravam mais ou menos

“filosóficos” e se mostravam como tipos existenciais. O próprio Kierkegaard não se declarava como filósofo, preferindo o qualificativo de “autor religioso”. Com isso visava a problemática do devir cristão como motivação e meta; sua fonte de alegria e sua paixão (pathos); sua perplexidade e seu espanto. Enfim, esse questionamento dominava-lhe numa reflexão propriamente filosófica.

Com isso, Kierkegaard deixava entrever o ideal filosófico (o qual, aliás, ele viveu) como a preparação para a morte9, se que com isso se compreenda um exercício de desprender-se de si mesmo no tocante aos entraves do corpo, já que a filosofia é justamente essa preparação.

Kierkegaard é, portanto, reflexão do início ao fim e não um irracionalista como já se apregoou alhures. Ele é somente alguém que existiu e viveu, como ele mesmo diz, a exumar os conceitos cristãos10. Vale-se da especulação (embora seja contra ela no sentido

8

Ponto de Vista, p.19

(28)

sistemático e enclausurado), mas numa modulação diferenciada, pois acreditava que o puro especular desvinculado do devir humano é oco, sem sentido, como os sistemas filosóficos de então. Procedendo assim, a reflexão só tem sentido se for uma retomada constante do vir-a-ser humano e propriamente cristão11.

Na justificação do humano perante Deus, Kierkegaard se torna objeto de si mesmo em suas infindáveis interrogações que eclodiam na forma de discursos assinados sob seus estranhos pseudônimos (eis alguns “nomes”: Frater Taciturnus; Johannes de Silentio; Vigilius Haufniensis; Nicolaus Notabene; Victor Eremita; Constantin Constantius; Johnannes, o Sedutor; Johannes Clímacus; Johannes Anticlímacus; Hilário Bogbinder). Bem parecido com Platão, não fala em nome próprio, mas por um outro para transmitir o quão ignorante somos de nós mesmos, do mundo e, sobretudo, de Deus. Não assumir essa espécie de docta ignorantia o levaria à perdição.

Kierkegaard não se ilude sobre a iminência de se perder se a reflexão do ideal cristão não for realmente levado a sério. O que está em jogo é uma preocupação com um sentido que abrange o humano, sua história e o mundo. Por outras palavras, está em jogo o que há de mais fundamental no humano quando vem à baila sua possível relação com Deus.

Para Kierkegaard, portanto, o Deus cristão é o Modelo12 que não pode ser deixado de lado na busca de compreendê-lo, embora não possa explicado em Sua totalidade. O religioso e as exigências da razão, para Kierkegaard, tornam-se um13, mesmo que, às vezes, seu cristianismo exiba (Kierkegaard parece querer mostrar essa imagem) algo incrivelmente terrificante e sombrio. A existência é uma vocação que não se cansa até repousar nos braços divinos; que se pensa e que se vive ao mesmo tempo numa relação dialética que consumiria as forças de qualquer humano. Isso também consumiu as forças de Kierkegaard. A diferença é que, estando inexoravelmente aguilhoado ao cristianismo pietista advindo da bizarra e sombria relação de amor e temor com o seu pai, Kierkegaard talvez tenha ficado mais sensível

para as exigências radicais do que significa estar na condição de “cristão”.

11Paula (2009, p.37), todavia, chama atenção que Kierkegaard tinha sua sistematicidade própria, isto é, “um

determinado método ou estratégia de comunicação”. A maneira como ele organizou seus escritos, interca lando-os as obras pseudonímicas e aquelas assinadas por ele mesmo, a ordem dlando-os assuntlando-os que muitas vezes lando-os uniam, formam um verdadeiro corpus kierkegaardiano. Isto posto, não há, em Kierkegaard, “uma recusa total do sistema, mas uma tentativa de inserir nele a preocupação com o indivíduo e com o ponto de vista subjetivo”.

12 Mais uma vez aqui aparece a figura de Platão quando assume, no Banquete, que a sabedoria é o ideal

inatingível do filósofo e, por isso mesmo, faz-se filósofo pela busca interminável desse ideal.

13 Neste sentido pode-se afirmar que a filosofia de Kierkegaard não deixa de ser uma filosofia da religião.

(29)

Intitular-se um autor religioso configura-se, para Kierkegaard, de um modo todo especial que ultrapassa e muito o rótulo de simplesmente teólogo e que poderia ser outorgado por causa dos temas religiosos constantes em seu pensamento. Na Introdução de seu Ponto de Vista ele fala de modo muito categórico como se intitula e a quem se destina seu empenho. Diz ele que

Esta pequena obra propõe-se, pois, dizer o que sou verdadeiramente como autor, que fui e sou um autor religioso, que toda a minha obra de escritor se relaciona com o cristianismo, com o problema de tornar-se cristão, com intenções polêmicas diretas e indiretas contra a formidável ilusão que é a cristandade, ou a pretensão de que todos os habitantes de um país são, tais quais, cristãos. (KIERKEGAARD, 1986b, p.22)

Sua intenção não poderia ser mais clara: pregar o cristianismo em meio à cristandade. E a maneira de fazê-lo só poderia inspirar-se em Sócrates: de modo indireto, fazendo-se mais ou menos ignorante, ou, quando muito, apenas “bem informado”. Constrói-se uma ilusão para lidar com outra ilusão, sendo a primeira a serviço da verdade. Kierkegaard, reconhece estar sozinho nesta empreitada, pois não buscava o reconhecimento de ninguém, embora o futuro poderia ser-lhe mais clemente14.

Kierkegaard desaparece15 até para si mesmo como escritor. Seus textos

“estéticos” (aqueles assinados por pseudônimos) deixam um espaço, em si mesmo, para um outro que não existe de fato, sendo, talvez, a ilusão de um ideal pessoal não realizado ou de

como se processaria as “etapas no caminho de tornar-se indivíduo”, quem sabe.

Estas obras também o matam para prevalecer suas ideias, opiniões, transgressões, silêncios, e seu pathos. Sua imortalidade acaba por prevalecer, apenas, quando se sabe que tal obra foi escrita, na verdade, “por Kierkegaard”. Em suma, Kierkegaard desaparece atrás de si mesmo a cada linha que escreve. E isso vale inclusive, para sua “produção religiosa” que leva o seu nome: vê-se o Magister Kierkegaard a falar de Deus para os humanos. Não são simplesmente sermões, são discursos16. Mais uma vez ele se anula, como toda abnegação cristã, para que Deus possa se mostrar.

A obra sobrevive, mas não o autor. Melhor: dizer que Kierkegaard é um autor significa, ao mesmo tempo, descrever e designar algo de sua obra que não os caracteres pessoais, psicológicos do que disse ou tenha querido dizer. Descrição no sentido de apontá-lo

como “pai do existencialismo moderno”, ou “o filósofo do desespero”, ou ainda, “o escritor

14 Ponto de Vista, p.22. 15

Foram utilizadas aqui as reflexões de Foucault (1992, p.34s).

16 Valls (2000, p.186) fala sobre o caráter filosófico destes discursos religiosos conhecidos como Discursos

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que sublimou sua decepção amorosa em Filosofia ressentida”, etc. Estas rotulações são

problemáticas, pois designam aquilo mesmo que descrevem. E Kierkegaard fica a meio caminho entre um e outro.

Como autor, Kierkegaard nos confunde: ao mesmo tempo em que se diz um autor, não confirma tal designação. E fê-lo conscientemente para não atrair a atenção para si mesmo (afinal, como aquele dândi vadio poderia ser autor de obras, ao mesmo tempo, densas e provocadoras?) em vista de seus concidadãos daneses, apontando na direção de Deus. Kierkegaard se apaga para se mostrar; não se defende, mas se explica para que melhor o compreendam no porvir17. Talvez, e apesar de tudo, quisesse alguma estima pelo bem que tentou em vida realizar. Do contrário não teria escrito páginas nas quais não se esforçaria para ter uma visão de conjunto de sua obra18. Não guardou tanto o silêncio que almejava para si mesmo e como requeria o serviço da verdade. Entretanto, precisava dialogar consigo. E isso ele o fez com uma profusão sem igual.

O problema do devir cristão concerne à relação do crente com seu Deus. Kierkegaard aponta para este Deus de relação; para este cristianismo exigente usando do expediente do filósofo calado/eloquente. No entender dele, Deus tem sua parcela de participação, seja naquilo que ele produziu enquanto autor religioso; seja como agiu para sua

felicidade pessoal, apesar de uma existência “infeliz e penosa”19.

E por ter tomado como diretriz existencial o tornar-se cristão como a forma de existência autêntica para o humano, justifica-se dizer de Kierkegaard que ele é um pensador existencial.

Nunca é demais dizer que Kierkegaard foi aquela figura que talvez melhor tenha descrito a postura, a atitude, a convicção de que nenhum sistema filosófico (ou mesmo científico) consegue abarcar a existência humana em seu devir, em suas contradições, em sua facticidade; enfim, em sua tragicidade (no sentido nietzschiano). Kierkegaard viu perfeitamente, ao mesmo tempo em que Schopenhauer e antes de Nietzsche, como qualquer vontade de ordenação sistemática e explicação última resultam em aporias.

A existência é, segundo o próprio pensamento de Kierkegaard, uma opacidade; um nebuloso percurso. Uma impossibilidade lógica: esta não consegue abarcá-la, posto que

trabalha com critérios demarcadores da “verdade” ou do conhecimento considerado como

17 Ponto de Vista, p.22 - 23.

18 Além de fornecer uma explicação que justifique a temática do tornar-se cristão, esta é outra intenção que

animou o feitio do Ponto de Vista. Vale dizer também que Kierkegaard deixou instruções expressas de que o Ponto de Vista só fosse publicado após sua morte.

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“válido”. Assim, a lógica só pode tratar da existência exteriormente a ela. Adentrar na existência é submergir num rio heraclítico imune a paralisações lógicas e/ou abstratas.

Que não se pense que a existência de que aqui se fala seja uma espécie de categoria generalista de um certo modo de ser que poderia não se dar. A existência é o processo de devir do indivíduo singular que constrói a si mesmo numa decisão apaixonada e em prol de si como singularidade. O indivíduo que assim procede em sua decisão é devir (com o perdão da contradição forçada).

E que não se confunda o existir com o viver simplesmente dado. Viventes somos todos nós dentro da condição fatídica de entes biológicos. Sim, somos viventes. Segundo Kierkegaard, existir não é tão simples como a simples constatação de sermos viventes. Diz ele que

existir em verdade e penetrar sua existência por sua consciência, ao mesmo tempo quase eternamente, muito além dela e, não obstante, presente nela e, não obstante, no devir: é verdadeiramente difícil.20

Neste caso, nós, os viventes que assim somos e nos conduzimos na maior parte do tempo, abstraímos a existência no que ela contém de contradição e paradoxo. Por outros termos, pensamo-la como se fosse um dado eterno, que segue a cotidianidade, quase ignorando nossa finitude. Não conseguimos vê-la sempre como um movimento, um devir que atesta incisivamente nossa destinação cumpridora da nossa finitude.

E a paixão? Kierkegaard escreve, nas Migalhas Filosóficas, que um pensador sem

paixão é um “tipo medíocre”. Por ser a existência uma enorme contradição, um pensador

filosofante e sistemático se vê confuso, inquieto, perdido, sem referências. No entanto, o pensador subjetivo, existencial sendo, antes de tudo, um existente, é certamente um pensador. Sem que seja necessário fazer abstrações, o pensador subjetivo se vê embolado no pensar e no existir simultaneamente; não está de fora da existência, mas apaixonadamente imiscuído

(afinal, “todos os problemas da existência são apaixonantes”). Kierkegaard concluiu que

“sempre tem o bastante para pensar”.21

Por conta de que em Kierkegaard, pensar e ser não são a mesma coisa22, o pensador subjetivo é, ele mesmo, a própria compreensão em sua existência23. Ele é um humano estético, ético e dialético. Todavia, Kierkegaard prefere dizer que é um “artista”, um

20 Textos Selecionados, p.226. 21 Textos Selecionados, p.252. 22

Diferente de Parmênides, pois se fosse ele procuraria buscar as categorias, os aspectos, as características da existência fora dela mesma e Kierkegaard seria um pensador objetivo, abstrato, lógico.

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“poeta”; alguém tão apaixonado por seu existir/pensar que lembra-nos um pensador grego. Afinal, escreve Kierkegaard que “compreender-se a si mesmo na existência era o princípio

grego”.24

Este “princípio grego” do existir/pensar fazia com que o filósofo grego antigo não esquecesse sua condição de existente submetido ao devir; o que lhe aperreava, criando as mais diversas filosofias que o possibilitassem suspender ou sair desta condição. Sua criatividade em tecer e viver estas filosofias atestava, segundo Kierkegaard, o quão apaixonado deve ser um pensador: o grego também se escolhia e se compreendia.

Bem semelhante a isso será a palavra que Nietzsche dirá mais tarde quando na Filosofia na Era Trágica dos Gregos ele escreve que

por consideração à vida, por meio de uma necessidade ideal de vida, os gregos domaram seu intrinsecamente impulso ao conhecimento – porque desejavam viver, de imediato, aquilo que aprendiam. (NIETZSCHE, 2008, p.34)

Ora, e ainda segundo Nietzsche, os gregos não procuravam tornar-se eruditos pelo puro e simples acúmulo de conhecimento enciclopédico. Perceberam que era de interesse maior, mais apaixonante, transformar em vida aquilo que aprendiam. Com isso, eles

inventaram as “mentes tipicamente filosóficas” (NIETZSCHE, 2008, p.35) e em relação a

qual a posteridade dos filósofos não conseguiu se igualar.

Kierkegaard justificou uma aproximação destes filósofos apaixonados com o

pensador existencial. A “saúde” dos gregos fez deles inventores que tomaram para si as

contribuições dos seus vizinhos para ir bem mais além. O grego não é especulativo. Pelo menos os filósofos que Nietzsche chama de trágicos, isto é, aqueles que perceberam na existência, na vida, o que vige como movimento. O pensador aurido na paixão pode refletir o que está em volta de si mesmo: o vir-a-ser, não como uma tese ontológica, mas como condição mesma do existir sem que se apele para um “outro mundo”. De certo modo, tudo isso foi ofuscado por Platão...

Mas Kierkegaard não chega a fazer uma equiparação simétrica ao pensador grego com o pensador existente/subjetivo que tem em mente. Não. Ele também nos diz que o compreender-se a si mesmo é um “princípio cristão”25, uma vez que lidar com os difíceis paradoxos cristãos da graça, do pecado, de Deus encarnado no tempo contingente humano, gera uma paixão bem maior do que no grego. Kierkegaard quer o pensador cheio de paixão.

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Todavia, uma paixão própria que afirme a si mesmo se escolhendo no salto da fé em direção aos braços de Deus, opção bem mais radical. Longe de ser um desrazoado, o pensador

existente/subjetivo “insere a razão no processo de fundamentar o sentido da existência” 26. Construindo uma subjetividade relacional com Deus, não chega a surpreender que considere que subjetividade e verdade coincidam. Paradoxalmente, Kierkegaard era, apesar de tudo, cristão e grego (alguém que uniu o logos grego e o logos cristão) numa junção saudável de tensão existencial/pensante. E mesmo aí, entrevado por tanta tensão em seu viver, Kierkegaard não deixou sua veia literária, artística, teatral, poética, deixar de fluir por dentro e para fora em seus escritos.

1.3 - Pseudônimos: o modo de ser poeta/ator em Kierkegaard

Quando é lembrado o aspecto da obra kierkegaardiana a respeito do uso de pseudônimos, é perfeitamente lícito perguntar: quem fala nas obras assinadas por estes

“autores”? Kierkegaard ele mesmo? Mas se usou da pseudonímia, por que teria medo de se expor? Teria sido o receio da crítica que lhe seria certamente dirigida? Ou tão-somente queria ficar no anonimato?

Kierkegaard apreciava os românticos alemães, os quais, por seu turno, usavam de pseudônimos que lhes davam o anonimato desejado. Tais escritores usavam deste artifício para construir personagens que funcionavam como modelos possíveis de vida. Kierkegaard, sem dúvida, também usou deste instrumento não só do ponto de vista da estilística literária, mas para se furtar à luz pública que o deixaria exposto aos olhares alheios. Preferiu construir

“personas”. (FARAGO, 2006)

Quando se contempla os pseudônimos kierkegaardianos, uma das coisas que pode vir à mente, por analogia, são os antigos filósofos ditos pré-socráticos. Eles parecem bem distantes, e realmente estão. Não se está falando aqui, todavia, a algo da doutrina de alguns deles, mas a pouca ou nenhuma informação biográfica dos mesmos. São quase fictícios. Quase míticos. A idealização tem permissão para alçar voo, bem como a reflexão dialógica.

Assim, nos informa Colette (2009, p.24) que o “gênio de Kierkegaard foi conceber e dar

corpo a um estilo de comunicação duplamente refletida, feita de artifícios constantemente renovados na ordem da criação literária de ficções e ensaios”

No que toca aos pseudônimos, pode-se dizer mesmo: Kierkegaard não se

preocupou em traçar biografias detalhadas e extensas para estas “personas” literárias criadas

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para fins da comunicação indireta. Era uma estratégia para chegar à cristandade danesa de sua época. Afinal, precisava usar de uma linguagem que todos pudessem entender; uma

linguagem para cada um dialogar consigo através do que diziam aqueles “autores”. Por usar

de uma linguagem literária, bem ao gosto romântico de seu tempo e por gosto pessoal, também romântico, Kierkegaard insiste em transmitir a paixão do existir e de como existir é doloroso em razão da distância insuperável entre Deus e o humano. Os pseudônimos

funcionam como modelo, digamos, e como “educadores” a fim de expor o apelo de Deus e do humano em busca de uma suposta completude. Mesmo sabendo da tarefa ingrata, pois não há resolução possível, a busca é propriamente humana e aí permanece, não atingindo nunca o ser de Deus. Filosofia ou não, Kierkegaard não é a personagem principal, mas suas “personas”.

Kierkegaard nos diz incisivamente que aquilo

que foi escrito é, pois, meu, mas somente na medida em que me coloco na boca da personalidade poética real, que produz sua concepção de vida tal como se percebe pelas réplicas, pois minha relação com a obra é ainda mais exterior que aquela do poeta que cria personagens e, no entanto, é ele mesmo o autor do prefácio. Sou, com efeito, impessoal ou pessoalmente um assoprador na terceira pessoa, que poeticamente criou autores, os quais são os autores de seus prefácios e mesmo de seus nomes. Não há, pois, nos livros de pseudônimos uma só palavra que seja

minha. (KIERKEGAARD, Textos Selecionados, p. 47. Os negritos são meus)

Tal como os românticos alemães (e Kierkegaard também era um romântico), Farago (2006) assevera que o pensador danês

vai apresentar sua obra ao público escondendo-se atrás das máscaras dos pseudônimos, técnica que lhe permitirá fazer falar na primeira pessoa autores que endossam opções existenciais diferentes correspondente aos possíveis. (FARAGO, 2006, p.59)

Ricoeur (1996) afirma que, se é difícil enxergar filosofia num autor religioso

como Kierkegaard, que se mantém como ele mesmo diz “fora da filosofia”, bem diferente são

Referências

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