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Controvérsias científicas e controvérsias sociais no rural contemporâneo

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Academic year: 2022

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Controvérsias científicas

e controvérsias sociais no rural contemporâneo

Ana Lúcia E. F. Valente (UnB) & Arilson Favareto (UFABC)

Paper apresentado no

XXXIII Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs)

Caxambu, Outubro de 2009

Resumo

Da questão agrária - já presente há décadas no repertório de pesquisas e no discurso de movimentos sociais - até a ênfase crescente na dimensão ambiental – que embora presente há tempos na agenda social e de pesquisadores, somente nos últimos anos alcança uma posição de maior destaque dentre os aspectos tomados como privilegiados para análise –, vários são os temas que hoje conformam este amplo e importante campo de pesquisa que envolve os estudos rurais. O artigo aborda a emergência, o alcance e a teia de sentidos que atuam na emergência ou na permanência de controvérsias, inseparavelmente científicas e sociais, presentes nos estudos sobre o rural contemporâneo, no Brasil em particular.

Introdução

Bourdieu (1982) afirmava que é legítimo tratar as relações sociais e de poder como interações simbólicas, ou seja, como relações de comunicação que implicam o conhecimento e o reconhecimento. Entretanto, afirmava também que não se pode esquecer que essas relações são trocas lingüísticas e também relações de poder simbólico nas quais se atualizam as relações de força entre os locutores e seus grupos respectivos.

Desse modo, todo ato de falar e toda ação é uma conjuntura que, de um lado, reúne as disposições do habitus lingüístico, envolvendo a propensão de falar e dizer determinadas coisas e a capacidade de utilizar adequadamente essa competência numa situação determinada. De outro lado, encontram-se as estruturas do mercado lingüístico que se

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impõe como um sistema de sanções e de censuras específicas: também o produto lingüístico se realiza como mensagem quando tratado como produto decifrado, e os esquemas de interpretação de que os receptores se valem em sua apropriação criativa do produto proposto podem estar mais ou menos distanciados daqueles que orientaram a produção. Por isso, o paradoxo da comunicação é que ele supõe um canal comum, mas que somente obtém êxito ao suscitar e ressuscitar experiências singulares e socialmente marcadas. Os diferentes sentidos de uma palavra se definem entre um núcleo invariável e a lógica específica de diferentes mercados, eles mesmos situados em relação ao mercado onde se define o sentido mais comum. Por tudo isso, descrever controvérsias pode ser uma tarefa primordial para as ciências sociais, como advoga Bruno Latour (2003): isto permitiria evidenciar os discursos e suas bases cognitivas e políticas.

Este preâmbulo pode ser considerado a base da justificativa que anuncia o objetivo deste artigo: analisar a emergência, o alcance e a teia de sentidos que atuam na emergência ou na permanência de algumas controvérsias, inseparavelmente científicas e sociais, presentes nos estudos sobre o rural contemporâneo, no Brasil em particular.

Como se sabe, da questão agrária - já presente há décadas no repertório de pesquisas e no discurso de movimentos sociais - até a ênfase crescente na dimensão ambiental – que embora presente há tempos na agenda social e de pesquisadores, somente nos últimos anos alcança uma posição de maior destaque dentre os temas tomados como privilegiados para análise –, vários são os temas que hoje conformam este amplo e importante campo de pesquisa muitas vezes denominado estudos rurais. É o caso do desenvolvimento rural, das políticas de identidade, dos usos sociais das amenidades rurais, das categorias de classificação das formas sociais de produção na agricultura. O que se pretende ao tomar alguns destes temas para análise é mostrar como as categorias explicativas e o discurso dos agentes sociais compõem uma unidade de análise, onde as significações emprestadas pelos diferentes campos – para mais uma vez voltar aos termos de Pierre Bourdieu –, o campo acadêmico, o campo econômico, o campo político, servem para a legitimação dos agentes e cada um desses campos e para a disputa, entre eles, pelo monopólio de poder falar desta ou daquela unidade do mundo social ou natural.

A abordagem que será aqui desenvolvida não pretende, portanto, oferecer um painel exaustivo dos estudos sobre o rural no período recente. Pretende tão somente abordar algumas das controvérsias fundamentais nesses estudos para, por meio de sua análise, evidenciar a emergência e a obsolescência de temas e teorias, os alinhamentos entre categorias de abordagem e interesses sociais latentes ou difusos no cenário

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brasileiro recente. Trata-se, portanto, de uma abordagem que, embora reconhecendo a especificidade do campo científico, rejeita a separação rígida dos domínios da epistemologia e da sociologia do conhecimento. Ao fazê-lo, o artigo busca mostrar alguns dos principais contornos de uma agenda de pesquisas e de debates sociais sobre o rural contemporâneo.

O texto estrutura-se em quatro partes, cada uma delas dedicada a um tema controverso da agenda contemporânea dos estudos rurais. Na primeira é analisada a oposição entre agricultura familiar e agronegócio. Na segunda, as idéias de pluriatividade e multifuncionalidade. Na terceira, a defesa da agroecologia e sua introdução nas políticas públicas. E na quarta a idéia de desenvolvimento territorial. Ao final, na conclusão, são sublinhados alguns traços característicos a estas quatro controvérsias.

Agronegócio versus agricultura familiar

A oposição da agricultura familiar e o agronegócio, defendida por movimentos sociais que lutam pela terra e incorporada por setores da academia e da imprensa nacional, está na base da classificação das formas sociais de produção no rural contemporâneo. O termo “agronegócio” - neologismo do conceito clássico agribusiness cunhado em meados do século XX por Davis e Goldeberg (1957) para designar, a partir da experiência norte-americana, as relações de dependência entre as indústrias de insumos, produção agropecuária, indústria de alimentos e o sistema de distribuição - desde então passou a ter por referência os negócios da agricultura de dentro para fora da porteira. Contudo, a polêmica é estabelecida, em que pese agricultores familiares e agricultores patronais participarem no processo de reprodução social no qual ambos estão implicados: da produção ao consumo.

José Eli da Veiga e Ricardo Abramovay reiteradas vezes afirmaram que o agronegócio no Brasil não é só uma atividade de grandes produtores e que não há oposição com agricultura familiar. Segundo eles, por exemplo, a agricultura familiar sustenta um dos ramos mais bem-sucedidos do agronegócio, como as exportações de frango. Marcas conhecidas, como Sadia ou Perdigão, são responsabilizadas por esse sucesso, mas é importante lembrar que 97% dos fornecedores da "matéria-prima" são granjeiros familiares. Na base de tão competitiva cadeia produtiva do agronegócio está a menosprezada agricultura familiar.

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Para Veiga (2004), esse menosprezo denuncia “um dos mais grotescos preconceitos discriminatórios instalados nos cérebros de formadores de opinião: a imagem de que a agricultura familiar seria ‘rudimentar’, sem competitividade, comparável à dos fazendeiros, os únicos inseridos em agronegócios”. Também atesta a ignorância de que “em toda parte o agribusiness é composto por um conjunto heterogêneo de cadeias produtivas, cujos elos primários contam com inúmeros tipos de agricultores e pecuaristas, majoritariamente de caráter familiar”. Em razão disso conclui “que é pura bobagem contrapor agricultura familiar a agronegócio”; ideologia no sentido de “‘falsa consciência’(...) que sempre se opôs, e sempre se oporá, à conquista de mais oportunidades de acesso à propriedade da terra pelo chamado ‘andar de baixo’”. No mesmo artigo, explica que, no país, “a lei classifica as empresas pelo volume da receita bruta anual” e que “é pequena empresa toda pessoa jurídica ou firma mercantil individual que não tenha receita bruta superior a R$ 1,2 milhão por ano”. Assim, os únicos

“estabelecimentos agrícolas que não devem ser considerados empresariais são os de auto- abastecimento, que costumam gastar mais do que recebem”. Como desdobramento, esbarra-se, segundo o autor,

“[...] em outra superstição: a fantasia de que não existe agricultura

‘patronal’ (...) Repudiar a expressão agricultura patronal é tentar negar um elementar fato da realidade do setor, além de esquisito reforço ao mito de que o Brasil rural seria apanágio dos agricultores, como pretende a bancada ruralista. Nada mais falso, pois a agricultura já não é o setor predominante da economia rural do Sul- Sudeste e nunca passou de apêndice no outro extremo, a região Norte” (VEIGA, 2004).

Para Abramovay, a oposição de agricultura familiar e patronal não é real:

“O agrobusiness é composto fundamentalmente por agricultores familiares. Eles conseguiram se firmar em setores extremamente modernos, como a produção de aves, suínos, fumo, produtos ligados a mercados internacionais. De maneira geral, no Brasil, esse segmento responde por cerca de um terço do valor da produção de toda a agricultura. Quando se fala no sucesso das exportações de frango, é bom lembrar que se deve à agricultura familiar. Um fato curioso é que os economistas vivem prevendo o fim desse tipo de atividade, mas ela persiste em todos os lugares do mundo” (O Estado de São Paulo, 2003).

Essa questão já havia merecido reflexão detalhada no livro Paradigmas do capitalismo agrário em questão. Nas páginas introdutórias Abramovay (1998, p. 21) afirma que um

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“[...] obstáculo teórico para a compreensão da realidade agrária contemporânea no capitalismo central está nas ambigüidades com que a noção de unidade familiar de produção tem sido tratada.

Convém insistir neste ponto, pois a associação entre esse tipo de estabelecimento e small farm, “pequena produção”, “produção de baixa renda”, ‘agricultura camponesa”, entre outros, é recorrente e impede que se perceba a dupla e fundamental especificidade da agricultura familiar tal como se desenvolveu, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, nos países capitalistas avançados: por um lado, seu dinamismo econômico, sua capacidade de inovação técnica, suas formas sociais inéditas com relação ao passado de que algumas vezes se origina, mas com o qual mantém laços cada vez mais tênues.

Por outro lado – e este é um aspecto decisivo – a agricultura familiar é um fenômeno tão generalizado nos países capitalistas avançados que não pode ser explicada pela herança histórica camponesa, de fato, em alguns casos existente: na verdade, o Estado foi determinante na moldagem da atual estrutura social do capitalismo agrário das nações centrais”.

Também Ignacy Sachs ao ser questionado em entrevista à Revista Desafios do desenvolvimento (WOLFFENBÜTTEL, 2007, p.15), sobre o que fazer para evitar os efeitos maléficos provocados pela experiência do Proálcool, respondeu:

Primeiro tem de acabar com essa falsa dicotomia entre agricultura familiar e agronegócios. O biocombustível é um grande negócio e também abrirá oportunidades para os pequenos agricultores. Mas, para que aconteça, é necessário a criação de uma agência de regulação que estabeleça critérios claros sobre como funcionará o setor; e o preço mínimo tem de ser apenas um dos critérios. É preciso humanizar o contrato do pequeno com o grande. A humanidade não pode se furtar ao debate sobre o meio rural.

Contudo, não é esta a compreensão de Sauer (2008, p. 23) ao afirmar que é [...]a dinâmica sócio-política do agro brasileiro – historicamente marcada por disputas entre grandes proprietários e setores marginalizados – estabelece uma oposição entre os conceitos de

“agronegócio” e “agricultura familiar”. Esse contexto e as estratégias de legitimação resultaram no uso corrente – e dominante – da expressão “agronegócio”. É fruto de um processo de modernização tecnológica excludente e de apropriação e/ou concentração da terra e da renda, associando o conceito ao modelo agropecuário dominante adotado com a implantação da Revolução Verde, a partir anos 1960/1970, no Brasil. Este conceito expressa, conseqüentemente, um antagonismo político e simbólico à agricultura familiar ou camponesa, como uma forma arcaica e pouco eficiente de produção e cultivo da terra.

Entre os que não consideram ser falsa a oposição entre agricultura, está Guilherme Delgado (2005), economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, que

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estuda de longa data a relação capital e agricultura no Brasil. Ele afirma ser a realidade do agronegócio brasileiro uma grande contradição, porque realiza a associação do grande capital agroindustrial e financeiro com a grande propriedade fundiária, perseguindo um projeto de expansão agrícola e territorial de caráter fortemente excludente. Alijados desse projeto estariam os índios, a reforma agrária, o emprego da força do trabalho não qualificada, o meio ambiente protegido, função social da propriedade fundiária etc. Mais ponderado em outra oportunidade, Delgado (2001, p. 166) ao comentar a conjuntura dos anos 1990 afirmou que a dualidade do debate agrário aprofundava-se:

“(...) de um lado as várias correntes que refletem os novos e velhos  dilemas da questãoagrária; de outro, os protagonistas do agribusiness,  adeptos de uma integraçãoexterna da economia rural, protagonizada  pelas grandes corporações internacionais do comércio e da indústria de  commoditiess,   livres  de  quaisquer  restrições  relativas às  políticas  nacionais,   mas   fortemente   impelidas   pela   política   comercial  norteamericana.Neste sentido, é muito mais uma integração busines  do que agro, já que não há qualquer vinculação explicita desse  projeto com a territorialidade nacional do setor rural e com os  grupos rurais tradicionais da “idade de ouro” damodernização. Mas,  talvez  até  mesmo  pelo  aprofundamento  da  dualidade  tenhamos  atingido um certo grau de unidade na problemática da crise agrária”. 

O texto Barbárie e modernidade: as transformações no campo e o agronegócio no Brasil produzido por Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2004)1, Professor Titular do Departamento de Geografia (USP), merece análise atenta por contrapor o “mundo do agronegócio” aos dos camponeses. Segundo o autor,

“[...] Os integrantes do mundo do agronegócio continuam a pedir o fim dos subsídios agrícolas nos países desenvolvidos, para que a produção mundializada da agricultura brasileira chegue ao mercado mundial.

Insistem também, na recusa em aceitar a Reforma Agrária como caminho, igualmente moderno, para dar acesso a terra aos camponeses que querem produzir e viver no campo. Como tenho escrito em meus textos, não se trata, pois de um retorno ao passado, mas, de um encontro com o futuro.

A incansável luta pelo acesso a terra no Brasil, tem esta dimensão da modernidade incompreendida pela elite latifundiária e por parte da intelectualidade brasileira (OLIVEIRA, 2004, p.1)”.

Ainda segundo ele:

1Texto cuja primeira versão foi apresentada para discussão em reunião da CPT Nacional (Goiânia-GO), em 22/10/2003. A segunda versão ampliada foi apresentada no XII Encontro Nacional do MST (São Miguel do Iguaçu – PR) em 19 a 24 de Janeiro de 2004.

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“[...] a injustiça da Justiça vai decifrando e interpretando as avessas a continuidade do processo de formação do campesinato brasileiro moderno em pleno século XXI. Um campesinato curtido na rebeldia de quem é capaz de revolucionar a história, mas, contraditoriamente, não ser compreendido pelas elites, em grande parte pela mídia, e o que tem sido mais cruel, não são reconhecidos por muitos intelectuais, cujo único trabalho tem sido ser pago com dinheiro dos próprios trabalhadores para pensar estratagemas contra os mesmos” (OLIVEIRA, 2004, p.3).

Na mesma linha de reflexão, destaca-se Bernardo Mançano Fernandes, Doutor em Geografia Humana e professor na Universidade do Estado de São Paulo (UNESP), campus de Presidente Prudente. Em entrevista ao jornal A nova democracia (NUNES, 2007), Fernandes afirmou que o agronegócio foi uma palavra criada na década de 1990 para tentar mudar a imagem latifundista da agricultura, buscando renovar a sua imagem, sem conseguir esconder o que está na sua raiz e na sua lógica: a concentração e a exploração. O agronegócio seria um novo tipo de latifúndio e ainda mais amplo, pois além de concentrar e dominar a terra, também domina a tecnologia de produção e as políticas de desenvolvimento. De acordo com a entrevistadora:

“Segundo ele, outra construção ideológica do agronegócio é convencer a todos de que é responsável pela totalidade da produção da agropecuária. Ele também refuta essa teoria, afirmando que toda vez que a imprensa burguesa informa os resultados das safras credita toda a produção na conta do agronegócio, quando a agricultura camponesa é responsável por mais da metade da produção do campo — com exceção da soja, cana e laranja — e nem sequer é citada” (NUNES, 2007).

Como Bourdieu (1982), pode-se argumentar que as palavras não são neutras ou inocentes, assim como as teorias. Desde a reflexão gramsciana (VALENTE, 2008), não há como deixar de identificar o que vem sendo dito e escrito na perspectiva dessa oposição com algumas tendências do marxismo que caíram na armadilha positivista, tornando-se dogmáticas ao substituírem as interpretações e construções históricas pela descrição exterior. Do mesmo modo, o sociólogo francês destaca a importância de se ter conhecimento da gênese de uma palavra. E além disso, afirma que o recurso a uma linguagem neutralizada se impõe todas as vezes que se trate de estabelecer um consenso prático de agentes dotados de interesses parcial ou totalmente diferentes, ou seja, no campo da luta política legítima, mas também nas transações e interações da vida cotidiana. De um lado, pode-se admitir que a comunicação entre classes represente sempre uma situação crítica para a linguagem utilizada e que cada palavra pode ser ameaçada de tomar dois sentidos antagônicos segundo a maneira como o emissor e o

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receptor irão interpretá-la. Mas, por outro, a eficácia simbólica das palavras não pode ser compreendida se for reduzida aos mal entendidos dos indivíduos em oposição. Para Bourdieu (1982, p. 103), desde que se trate a linguagem como objeto autônomo, aceitando a separação entre a ciência da língua e a ciência dos usos sociais da língua, condena-se a buscar o poder das palavras nas palavras, quer dizer, onde não está. Esse poder é aquele delegado ao porta-voz do discurso de diferentes instituições.

Como se disse, agronegócio é neologismo do conceito clássico de agribusiness, cujo corpo teórico de origem é positivista, proposto ao final dos anos 1950. Na última década consolidou-se um programa de pesquisa e ensino nesse campo. Talvez isso se explique por ter se fixado no significado superficial e imediato dessa expressão, tal como vem sendo manipulada e apropriada como senso comum por representantes do segmento vinculado ao agronegócio de base patronal. Dessa maneira, supervaloriza-se sua capacidade analítica para, empregando a linguagem popular, literalmente dar um “tiro no próprio pé”. Isso porque o espaço que reivindicam para a produção em pequena escala, de caráter familiar, há muito foi conquistado no agronegócio, como demonstram as estatísticas. Na verdade, capitula-se ante o que é considerada uma apropriação indébita do termo por aqueles segmentos considerados “adversários”, que lhes impõem o seu senso comum. Perdem a oportunidade de criticá-lo, ao perderem-se numa disputa que se dá no plano da linguagem, quando outras dimensões do real contribuem para sua contestação: a agricultura familiar já tem sua importância reconhecida na política de segurança alimentar, por prover o mercado interno de alimentos e matérias primas, por oferecer contribuições para a sustentabilidade e eqüidade de inclusão social, e também para importantes segmentos exportadores altamente competitivos.

Sem que se negue a contradição, categoria fundamental de compreensão da lógica capitalista, não se pode imaginar que a “realidade do agronegócio” deixe de denotar relações que se estabelecem entre classes mesmo no seu interior. Classes que, apesar de possuírem concepções de mundo antagônicas, de apropriarem-se diferentemente da riqueza social, têm nos negócios da agricultura um locus de cooperação. O problema não está, pois, no uso da palavra “agronegócio”, como se disse de caráter descritivo, mas na complexidade das relações que são engendradas sob essa rubrica.

Multifuncionalidade ou pluriatividade?

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Segundo Carneiro e Maluf (2003), a noção de multifuncionalidade surgiu como o objetivo de respaldar políticas públicas, reorientando o apoio do Estado às famílias rurais na abertura de espaços para o desenvolvimento da dimensão não-agrícola, considerando que a produção agrícola mercantil dessas famílias perdeu centralidade econômica. Além de realçar as demais funções da agricultura e não apenas a função primária de produzir alimentos e fibras, permitiria analisar a interação entre famílias e territórios na dinâmica de reprodução social, bem como a manutenção da identidade como agricultores que ultrapassam os significados meramente setoriais.

No tocante às fontes culturais ou ao significado histórico da expressão, Abramovay (1999; 2002) oferece importantes esclarecimentos. Segundo o autor, estudando a reforma da Política Agrícola Comum (PAC) de 1992, da União Européia (UE), o debate da multifuncionalidade é expressão de uma contradição fundamental que caracteriza as mudanças propostas. De um lado, pode encobrir interesses protecionistas, garantindo o lugar dos maiores produtores europeus no mercado mundial. De outro, aponta para a necessidade de superação de um modelo de caráter setorial que sinaliza para a gestão territorial, exprimindo novas demandas e estabelecendo novo pacto entre agricultores e sociedade que incorpora preocupações com a paisagem, a biodiversidade, os recursos naturais e geração de empregos. Entretanto, a maior parte dos recursos orçamentários e de transferências públicas da UE continua concentrada em algumas regiões, alguns produtos e para uma minoria de agricultores.

Como mostra Sacco dos Anjos e Caldas, (2003, p.7), também a pluriatividade emerge das sucessivas reformas da PAC, “como noção vinculada aos novos esquemas e ordenamentos fundados na defesa da multifuncionalidade do meio rural”. Para Schneider (2003, p.23), a pluriatividade seria o exemplo emblemático da mudança na “forma de ser”

do rural, referindo-se

“(...) à emergência de situações sociais em que os indivíduos que compõem uma família com domicílio rural passam a dedicar-se ao exercício de um conjunto variado de atividades econômicas e produtivas, não necessariamente ligadas à agricultura e ao cultivo da terra, e cada vez menos executadas dentro da unidade de produção”.

No Brasil, em trabalhos acadêmicos sobre o rural, tudo indica que em razão do contexto a partir do qual foram elaboradas, a noção de multifuncionalidade e a pluriatividade têm sido tomadas ora como sinônimas, ora como complementares. Embora possa ser afirmado que não são evidenciadas situações inéditas, deve-se admitir a freqüência crescente e a expansão das “unidades familiares pluriativas”. Isso sinaliza para

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mudanças no papel que a pluriatividade tem a cumprir no meio rural, exigindo que sejam pesquisadas as razões e condições que tornam cada vez mais freqüentes as relações de produção que a caracterizam. Essa é a direção que vem sendo tomada, como mostra por exemplo o trabalho de Conterato (2008). Já a idéia de multifuncionalidade, embora coerente com um discurso do que se pretende para a organização dos espaços rurais, esbarra nas particularidades da experiência brasileira onde a dimensão especificamente agrícola e agrária tem se sobressaído. Apesar da crescente importância dos fatores socioambientais nas dinâmicas das regiões rurais, é inegável que as políticas públicas ainda estão longe de absorver tais processos de maneira estruturante (Favareto, 2009).

Agroecologia e multidisciplinaridade?

Quando se trata de pensar a formação de “agentes do desenvolvimento rural”, é evidente que a utopia que se quer perseguir esbarra em muitas dificuldades. Não deixam dúvidas a este respeito à PNATER (BRASIL, 2007), recentemente proposta e em operacionalização no Brasil, que propõe caminhos alternativos de como conduzir a prática desses agentes. Ao inovar estabelecendo o compromisso de atender as demandas de agricultores familiares, marcados pela heterogeneidade social e étnico-cultural, fundamentada em princípios agroecológicos e metodologias de intervenção participativas, enfrenta justamente o desafio de romper com a tradição formativa e de intervenção hegemônicas que é capaz de colocar em xeque a sua coerência.

O processo de elaboração de uma política governamental implica em programas, recursos humanos, fundos públicos e avaliação quanto ao seu alcance operacional. Desde logo, a eleição dos agricultores familiares, assentados de reforma agrária, pescadores artesanais e aquicultores familiares, indígenas, quilombolas, atingidos pelas barragens, seringueiros, extrativistas etc., marcados pela diferença social e étnica, como atores a serem privilegiados exige a participação no debate sobre as diferenças culturais, que tem mobilizado o campo educacional brasileiro nos últimos quinze anos. Nesse debate pode- se destacar a progressiva incorporação acrítica da corrente de pensamento culturalista, que se expõe aos riscos do relativismo absoluto e essencialismo denunciados pela antropologia há ainda mais tempo. Isto porque elimina a possibilidade de compreensão da diversidade cultural para além do contexto de sua constituição, bem como dificulta a perspectiva de mudança de sociedades diferentes, imobilizadas em modelos ou padrões construídos pelos investigadores. Sem parâmetros rigorosos de reflexão, ganha projeção a

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necessidade quase compulsiva da prática e sobre a crença de que esta, por si, será capaz de promover grandes transformações sociais. Valente (1999) emprega a expressão

“pragmatismo utópico”, comportando termos aparentemente paradoxais para designar essa característica, que não deve ser considerada como negativa ou pejorativa na medida em que, sendo um espaço de conflito, no processo educacional sempre haverá lugar para a prática - que pode e deve animar a reflexão teórica. No entanto, o “pragmatismo utópico”

enfrenta o perigo de aprisionar-se na armadilha de práticas irrefletidas que podem deslizar em direção ao efeito contrário daquilo que se pretende alcançar.

A abordagem multidisciplinar intenta colocar em xeque o processo histórico de especialização do conhecimento. Entretanto, já na segunda metade do século XIX, a proposta de escola única, universal e gratuita que chegou aos trabalhadores passou a ter seu conteúdo progressivamente degradado, sofrendo um processo de fragmentação e esvaziamento que tornava impossível a compreensão do caráter histórico da sociedade em que viviam. Ao processo de fragmentação do conhecimento corresponde a crescente especialização em campos científicos cada vez mais delimitados. Nas duas últimas décadas do século XX, os sistemas escolares2 passaram a funcionar numa lógica econômica que se exprime concretamente pela coordenação entre planificação econômica e planificação escolar: o sistema escolar passou a ser pensado como uma empresa. Além de responder às necessidades da economia, era preciso promover a melhora de sua produtividade e rentabilidade. Espalhou-lhe um discurso sobre a qualidade e a eficácia e generalizou-se uma preocupação com a avaliação. No entanto, não é explicado o que vem a ser essa qualidade pretendida e a preocupação com a eficiência é manifestada por meio da crença de que ‘ quem conhece de perto é que pode propor’, promovendo o crescente distanciamento entre teoria e prática. Essa transformação passou a ser denominada como a deriva neoliberal da escola: nova perspectiva que obriga as instituições escolares responderem às demandas de sua clientela. Ao se tornar uma máquina de inserir jovens, para melhorar sua posição potencial no mercado de trabalho, a escola não difunde sentido, não é portadora de um projeto social, uma concepção de vida, de sociedade, de mundo que forneça esse sentido. A escola não tem mais sentido porque é mais importante sobreviver na escola do que aprender o conhecimento acumulado pela humanidade (VALENTE, 2006).

2 Nos anos 1960-1970 ganharam destaque a problemática da transformação do aparelho escolar e da democratização do ensino, mas na década seguinte não se acredita mais em grandes reformas e na autogestão do processo educativo. As agências formativas de intervenção rural, mais próximas da “lógica de mercado”, ainda repercutiam a dualidade do ensino, e não por acaso a “difusão” praticada desde os anos 1950 estava comprometida com os segmentos capitalizados.

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A especialização não carrega em si a negatividade, uma vez que é promotora de conhecimento aprofundado, de maior produtividade e alivia o homem das formas mais desgastantes e penosas de trabalho. Mas ao perder de vista o processo de construção social da existência, impede a compreensão das necessidades e problemas humanos. Não comportaria maior gravidade se não provocasse a perda da unidade do real, definida pela existência do homem, quando são abandonados os instrumentos que viabilizam a recuperação intelectual, como experiência pensada, da ação humana, que tornaria possível evidenciar que as linhas demarcatórias entre as diversas ciências são artificiais. Porém, a transposição desse artificialismo não parece resolver-se a partir da mera somatória de conhecimentos acumulados em muitos campos científicos, numa perspectiva inter, multi ou transdisciplinar. Ao invés de superarem os limites impostos pela especialização do saber, tal alternativa agrava os seus resultados: “deixam de ser um corpo marcado pelo olhar enviesado de um especialista para tornar-se uma massa não integrada de conhecimentos, produzida por tantos olhares enviesados quantos forem os especialistas reunidos” (ALVES, 2006, p.151).

Manifestação de dificuldade nesse tipo de abordagem é ressaltada por Caporal, Costabeber e Paulus (2006, p. 20-21), para quem a Agroecologia é “uma ciência do campo da complexidade” que requer uma colaboração multidisciplinar. Mas os três autores são engenheiros agrônomos e admitem haver necessidade de que “os vazios encontrados nestas reflexões possam ir sendo gradualmente preenchidos por especialistas das diferentes áreas do conhecimento científico e pelos agricultores e agricultoras, a partir de seus saberes históricos”. Há vários equívocos nesta concepção, para além do fato de a agroecologia exigir colaboração multidisciplinar - exigência partilhada por outras ciências consolidadas -, e paradoxalmente vir informada pela especialização do saber: no elenco das áreas de conhecimentos de que se valeria a “nova ciência” destacam-se aquelas que já integram os currículos dos cursos de agronomia. Neste caso, a questão fundamental é saber como esses conhecimentos são produzidos e transmitidos. Embora considerem que

“a nítida separação entre ciências humanas e ciências exatas é uma das principais heranças do paradigma cartesiano” e que a agricultura é uma construção humana e social (CAPORAL; COSTABEBER; PAULUS, 2006, p.16), toda a argumentação dos autores percorre o caminho inverso, e ciências como história, antropologia, sociologia e educação passam a compor conhecimentos de apoio à agroecologia por justaposição. Ao discutir o ecletismo metodológico ou a prática eclética, afeita à extração de conceitos dos corpos teóricos de origem e ao seu livre manejo, Valente (2006b) indica como elemento

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complicador, na utilização de estudos de diversas matrizes teóricas, se o processo de dá por incorporação-superação ou por justaposição. Para a autora, importa recuperar a perspectiva da totalidade, sem a pretensão de reverter um processo secular ou uma solução que implique a mera justaposição de ciências especializadas, via

“interdisciplinaridade”.

Neste sentido pode-se admitir que a agroecologia seja um campo da produção científica de recente estruturação, que vem ganhando importância à medida que aumentam as preocupações em torno dos efeitos da ação humana sobre o meio ambiente;

mas não tem condições de reivindicar para si o estatuto de ciência, como se o tratamento multidisciplinar fosse novidade exclusiva. Até porque seus propositores, por desconsiderarem os conhecimentos acumulados por outras ciências, incorrem numa confusão entre procedimentos de pesquisa e objeto da investigação, sem conseguir explicar a sua especificidade. Negligenciam, ainda, que, além da variedade, conceitos científicos mantêm compromissos com perspectivas teóricas diferenciadas que indicam os limites, alcance e desdobramentos de uma análise. Conforme se depreende da análise da PNATER, sob as condições atuais, os princípios agroecológicos podem mascarar um

“novo difusionismo”, que nega a diversidade que se pretende atender. Além disso,

“técnicas participativas” podem ser antidemocráticas, bem como promotoras de conhecimento míope sobre a realidade. Por fim, com base nos princípios que advogam os defensores da “ciência agroecológica”: qual a necessidade de hierarquizar conhecimentos científicos e não-científicos? Há, pois, um longo caminho pela frente para que o

“discurso” consiga atingir coerência plena.

Por sua vez, Zander Navarro chama a atenção para a necessidade de discriminar, de um lado, “uma ‘idéia agroecológica’, um guarda-chuva que abriga diferentes esforços científicos que procuram aperfeiçoar os sistemas agrícolas sob uma perspectiva ecológica”; de outro, “uma ‘doutrina agroecológica’, uma perspectiva ideológica que sugere que aqueles esforços organizados pelos agricultores supostamente são também

‘anti-capitalistas’ ou ‘progressistas’” (2008, p.29, grifo do autor). Em que pese esses

“esforços científicos”, considera prematura a institucionalização da agroecologia como uma ciência, considerando que esse tema não mereceu discussão ampla e sistematizada.

Para o sociólogo, a literatura internacional evidencia que:

“[...] não representa mais do que um “nome fantasia” para englobar as diversas experiências, esforços, iniciativas e situações em que agricultores desenvolveram sistemas agrícolas onde prevalece manejo aperfeiçoado dos recursos naturais, sendo também menos dependentes

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de insumos agroindustriais. Seus praticantes modificam as práticas agrícolas movidos por intenções as mais variadas, na maior parte das vezes meramente em função do objetivo de reduzir custos de produção.

Não implica, necessariamente, sequer uma “consciência ambiental”, embora esta possa, certamente, se desenvolver. Ou seja, sob tal rótulo poderiam ser agregadas situações empíricas de infinitas combinações, sem que nunca tenham uma “problemática teórica” que possa sustentar tais experimentos sociais como o produto de uma atividade científica” (NAVARRO, 2008, p.29-30).

A adoção de uma prática de extensão capaz de fazer jus às necessidades que a nova ruralidade traz consigo não deveria, portanto, se estruturar sobre uma dicotomia entre o difusionismo e a agroecologia. Ela precisaria se abrir à pluralidade de demandas do agro brasileiro e contribuir para, tanto difundir critérios capazes de internalizar a dimensão ambiental a essas demandas, como para difundir procedimentos coerentes com essas novas exigências.

A retórica do desenvolvimento territorial e as práticas setoriais das políticas para o rural brasileiro

O conceito de território é algo, claro, muito antigo. Desde suas origens e aplicações mais usuais no campo da geografia, mais de um século atrás, várias foram as abordagens em diferentes tradições disciplinares. O que é relativamente recente é a associação da idéia de território ao debate sobre desenvolvimento. Sobre isso, o marco talvez seja o já clássico estudo de Arnaldo Bagnasco (1977) – Tre Italie: La problematica territoriale dello sviluppo italiano – dos anos setenta. Naquele livro o autor se interrogava, em primeiro lugar, sobre onde estaria ocorrendo uma dinâmica econômica capaz de permitir que se escapasse da estagnação e do desemprego. A resposta não estava no sul, tradicionalmente agrícola, nem no norte industrializado, e sim naquela região que ficaria internacionalmente conhecida como Terceira Itália. Além disso, a segunda interrogação dizia respeito às causas desse desempenho relativamente inesperado. A resposta de Bagnasco é que ali se encontrava um padrão de organização social baseado numa estrutura social mais diversificada (portanto sem o predomínio franco da atividade primária como no sul, ou secundária como no norte) e mais descentralizada (com grande presença de pequenas e médias empresas). O mecanismo descrito por Bagnasco não pode ser resumido em poucas linhas. O que importa destacar aqui, é que esta combinação teria

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gerado um ambiente mais resiliente diante de mudanças desfavoráveis de contexto e mais propício à introdução de inovações e novas atividades.

As décadas seguintes – os anos oitenta e noventa – assistiram a uma apropriação das lições derivadas do caso italiano por parte dos organismos de promoção de apoio à expansão do emprego e à dinamização econômica, sobretudo na Europa. O conhecido estudo da OCDE do início dos anos noventa (OCDE, 1993) procurou mapear a dinâmica do emprego no continente e chegou a conclusões compatíveis àquelas obtidas por Bagnasco. Paralelamente, vinham sendo implementadas uma série de iniciativas, dentre as quais a mais conhecida talvez seja o Programa Leader: programa voltado ao desenvolvimento de regiões rurais. O escopo destas iniciativas é, claro, muito variado.

Mas há nelas um traço comum: a tentativa de promover a diversificação das economias locais, fortalecendo vantagens comparativas a partir de uma abordagem ascendente do planejamento do desenvolvimento regional (Saraceno, 2000). Políticas do tipo Leader seriam, assim, uma espécie de contraponto à especialização e à poupança de trabalho favorecidas pela PAC – a Política Agrícola Comum, um dos pilares da União Européia e fortemente criticada pelo seu viés concentrador e produtivista. Os resultados desse tipo de políticas e orientação de políticas é ainda bastante controverso (Benko & Lipietz, 1998;

Ray, 2002). Uma série de autores (Beccatini, 1998; Garofoli, 1998) destacaram desde cedo que induzir dinâmicas virtuosas como aquelas observadas nas regiões que venceram a crise não era algo simples. Mas elas logo se transformaram em referência para programas que viriam a ser adotados, por exemplo, em vários países da América Latina (Rimisp, 2009), dentre eles o Brasil.

Na experiência brasileira, a idéia de desenvolvimento territorial sustentável começa a ganhar corpo no final dos anos noventa. Àquele momento, importantes avaliações sobre o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) acompanharam o fechamento de um primeiro ciclo de implementação do programa. O Pronaf é tido, ainda hoje, como um dos programas mais bem sucedidos na esfera do governo federal, tendo já passado por cinco gestões diferentes à frente do Poder Executivo nacional. Seu surgimento deve-se a uma combinação de três fatores interligados: a) a experiência americana e européia que baseou suas estruturas de desenvolvimento agrícola predominantemente em unidades familiares; b) a existência de uma expressiva proporção de estabelecimentos deste tipo na estrutura do desenvolvimento agrícola brasileiro, mesmo após a brutal modernização que ocorreu a partir dos anos setenta e malgrado o predomínio da agricultura patronal; e c) a existência

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de um forte movimento social – capitaneado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (que congrega 2000 sindicatos de trabalhadores rurais que tem entre os produtores familiares sua principal base) e pela porção rural da Central Única dos Trabalhadores (que apesar do peso de segmentos urbanos com bancários e metalúrgicos tem o maior número de sindicatos filiados no setor rural) – e que fez da luta por um programa específico para a agricultura familiar a sua principal bandeira no início dos anos noventa.

Nas avaliações sobre o Pronaf no fim dos anos noventa, via-se que: a) o programa havia alcançado um relativo êxito em firmar-se como uma política de envergadura, a primeira de relevo a ter a agricultura de base familiar como seu público-alvo; b) não obstante, havia ainda a dificuldade em penetrar nos segmentos mais fragilizados deste segmento; e c) um de seus componentes, aquele voltado a fortalecer a infra-estrutura dos pequenos municípios apresentava maiores problemas na implementação, descolando-se dos outros componentes principais, as linhas de crédito para os agricultores. Este terceiro elemento de avaliação esteve na base de uma série de mudanças introduzidas desde então e que levaram à adoção da abordagem territorial nas políticas de desenvolvimento rural no Brasil. Num primeiro momento as ações de infra-estrutura do Pronaf foram regionalizadas, visando superar a fragmentação verificada até então. Num segundo momento, este componente do programa deu origem a um novo programa, complementar ao Pronaf, o Programa Nacional de Apoio aos Territórios Rurais. A expectativa inicial era, portanto, que a adoção da abordagem territorial das políticas de desenvolvimento rural pudesse superar dois problemas: o caráter excessivamente localizado dos investimentos, passando assim a uma escala intermunicipal ou regional; a necessidade de identificar e fomentar novas atividades capazes de fazer frente à tendência generalizada de diminuição da importância da atividade agrícola na formação das rendas e na ocupação de trabalho (Graziano da Silva, 1999; Veiga ET AL. 2001; Abramovay, 2003).

Entre as primeiras tentativas de adoção da abordagem territorial e sua plena institucionalização em 2003, já sob o Governo Lula, uma contradição fundamental se impôs: embora a essência da idéia de desenvolvimento territorial seja a diversificação das economias das regiões rurais, no Brasil este programa acabou alocado no interior de um ministério setorial e periférico: o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Isso só pode ser compreendido quando se tem em mente que, na estrutura do governo federal brasileiro, existem dois ministérios responsáveis por ações concernentes ao desenvolvimento agrícola e rural: o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) e o

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Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Este último foi criado no meio dos anos noventa, à esteira da criação do Pronaf, ambos como resposta a reivindicações do movimento sindical de trabalhadores rurais. A essa contradição inicial – uma política transversal e voltada à diversificação, confinada ao âmbito de um ministério periférico e setorial -, se somou uma outra, típica da tradição brasileira: as ações de desenvolvimento territorial foram adotadas privilegiando exclusivamente os segmentos mais fragilizados das populações rurais (agricultores familiares, trabalhadores sem-terra, remanescentes de quilombos e povos indígenas), definidos oficialmente como o público-alvo do MDA, e não o conjunto da economia das regiões rurais brasileiras.

Passada uma década desde as primeiras tratativas de introdução da idéia de desenvolvimento territorial, ou mais especificamente de desenvolvimento territorial sustentável, o balanço que se faz da experiência brasileira é bastante ambíguo. Por um lado, houve uma disseminação da retórica do desenvolvimento territorial sustentável, a ponto de se criar um outro programa, de ainda maior envergadura e agora abrangendo uma dúzia e meia de ministérios: o Territórios da Cidadania. Por outro lado, todas as avaliações (Abramovay ET AL. 2006; Favareto, 2007; Favareto, 2009) apontam que estas iniciativas estão longe de promover os resultados esperados por duas razões: apóiam-se somente nos atores organizados ligados à atividade primária (as organizações de agricultores) quando estas atividades apresentam franco declínio em sua capacidade de promover o desenvolvimento sustentável, e congregam os esforços dos ministérios tradicionalmente voltados ao agro ou responsáveis pela área social do governo, deixando de fora as ações que seriam mais importantes para o desenvolvimento territorial: aquelas reunidas sob a alçada dos ministérios da ciência e da tecnologia, da indústria e do comércio, do turismo, do planejamento. Isto é, reproduz-se a idéia de que, para as regiões rurais, as políticas que cabem são as políticas agrícolas e as políticas sociais, deixando para as regiões densamente urbanizadas os investimentos em infra-estruturas, inovação e fortalecimento da competitividade.

O que ocorre é que, na experiência brasileira, a idéia de desenvolvimento territorial emerge associada a instituições e políticas cujos portadores sociais foram segmentos ligados à agricultura e aos segmentos mais pobres da agricultura familiar. Esta emergência não se dá em vinculação com a necessidade de diminuir assimetrias regionais ou de favorecer dinâmicas sociais e econômicas coerentes com as tendências demográficas recentes, nas quais a rigidez setorial e a dicotomia rural-urbano se fragilizam. Se por um lado a emergência da retórica do desenvolvimento territorial

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favoreceu os segmentos intermediários da agricultura familiar, por outro os moldes em que ela se deu confina esses investimentos ao mesmo viés de outrora, bloqueando a possibilidade de que se estabeleçam mecanismos consistentes e duradouros de apoio ao desenvolvimento destas regiões rurais.

Conclusão

O traço marcante das quatro controvérsias abordadas nas páginas anteriores reside no fato de que elas mobilizam o conhecimento científico, mas não se sustentam somente sobre esta dimensão. Fica evidente em cada uma delas como há uma estreita interdependência entre o campo científico e outros domínios da vida social como o campo da política ou o campo econômico. Sem fazer referência a estas interdependências perde- se todo o conteúdo que estrutura e dá sentido às divergências de interpretação e de classificação da realidade social. Como enfatiza a tradição dos estudos de Pierre Bourdieu e Bruno Latour, seria errado separar as abordagens simplesmente entre mais ou menos politizadas, posto que toda forma de conhecimento científico é socialmente enraizada e, enquanto tal, tendem a sublinhar determinados aspectos explicativos em detrimento de outros, tendem a promover determinadas articulações empíricas e teóricas em prejuízo de outras. No caso específico do rural brasileiro, igualmente, a principal oposição não se dá entre velhos e novos temas, ou entre aqueles que destacam a particularidade brasileira e os que se inspiram na experiência internacional. A real oposição não é identificada nos textos e nos posicionamentos políticos, e sim no maior ou menor esforço em atualizar e complexificar os quadros teóricos a as abordagens aplicadas em uma direção capaz de absorver os ensinamentos mais recentes de uma realidade em mudança. Que o mundo rural mudou, não há dúvida. Que a tradição das ciências sociais aplicadas ao rural precisa de atualizações, idem. Não se trata de abandonar os clássicos, mas de utilizar as teorias para explicar o movimento das contradições no mundo rural, em vez de repetir lugares pré-estabelecidos ou o mero desejo de um porvir em outras bases, sem explicitar sua ancoragem nos processos sociais em curso.

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