UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO
LUCAS ROMERO MONTENEGRO
O DIREITO COMO CONDIÇÃO PARA A PAZ PERPÉTUA EM IMMANUEL KANT
O DIREITO COMO CONDIÇÃO PARA A PAZ PERPÉTUA EM IMMANUEL KANT
Monografia apresentada ao Curso de Direito, da Universidade Federal do Ceará (UFC), como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Regenaldo Rodrigues da Costa.
FORTALEZA
O DIREITO COMO CONDIÇÃO PARA A PAZ PERPÉTUA EM IMMANUEL KANT
Monografia apresentada ao Curso de Direito, da Universidade Federal do Ceará (UFC), como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.
Aprovada em: __/__/____.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Prof. Dr. Regenaldo Rodrigues da Costa (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_______________________________________
Prof. Dr. Glauco Barreira Magalhães Filho
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_______________________________________
Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo
INTRODUÇÃO ... 11
1 A TERCEIRA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA E A LIBERDADE TRANSCENDENTAL ... 13
1.1 A postura crítica e a reviravolta copernicana ... 13
1.2 Ilusão transcendental e a terceira antinomia ... 16
1.3 A solução da antinomia e o duplo caráter da vontade ... 22
2 A DOUTRINA DO FATO DA RAZÃO E O DIREITO COMO PARTE DA METAFÍSICA DOS COSTUMES ... 29
2.1 O fato da razão ... 29
2.2 A “dedução transcendental inversa” da ideia de liberdade ... 34
2.3 O direito como parte da metafísica dos costumes ... 38
3 DIREITO, HISTÓRIA E PAZ PERPÉTUA ... 42
3.1 O conceito de direito e a dedução do “meu” externo ... 42
3.2 A paz e os três níveis do direito público ... 50
3.3 A história como “garantia” da paz através do direito ... 59
CONCLUSÃO ... 64
“Diante da triste visão, não tanto do mal que oprime o gênero humano por causas naturais,
mas do mal que os homens infligem uns aos
outros, o espírito, não obstante, é animado pela
perspectiva de que tudo poderia ser melhor no
futuro, e isso com uma benevolência
desinteressada, pois estaremos há muito no
túmulo e não colheremos os frutos que temos
Aos meus pais, pelo amor e apoio incondicionais, e a minha querida irmã, por todos os
prazerosos anos de sincera fraternidade.
Ao professor Regenaldo da Costa, não só pela orientação acadêmica e apoio institucional ao
longo de todo o curso de graduação, mas – o que reputo mais importante – por ter estimulado em mim o despertar para um questionamento mais profundo e responsável sobre o direito.
À querida Aninha, pelo seu imenso amor e carinho. Devo-lhe também a revisão criteriosa
deste trabalho, que eu não seria capaz de fazer com a mesma competência.
Aos meus amados avós Pedro Paulo Montenegro e Germana Montenegro, por tudo o que
representam para mim e pela companhia nas horas de estudo no gabinete de sua casa.
Aos amigos do Grupo de Pesquisa em Filosofia dos Direitos Humanos, sobretudo Bruno
Weyne, Ary Salgueiro, Renato Barbosa e Victor Mota, que alimentam implicitamente este
trabalho através das inúmeras e interessantes discussões sobre filosofia e direito.
Aos professores Glauco Barreira Magalhães Filho e Hugo de Brito Machado Segundo, tanto
pelas importantes lições nas respectivas disciplinas, como por terem gentilmente aceitado o
convite para avaliar este trabalho.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por ter
financiado minhas atividades de iniciação científica nos anos 2009 e 2010. Devo também
agradecimentos ao Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD), cujo financiamento
para curso de alemão contribuiu para que conseguisse ler parte da obra de Kant citada neste
A paz e os meios para sua realização têm sido objeto dos esforços de teóricos de diversos
pensadores ao longo da história. Uma importante contribuição foi, sem dúvida, a de Immanuel
Kant, que concebeu a paz perpétua como um fim racional para seres humanos em estreita
conexão com a ideia de direito. Dessa forma, busca-se recompor, considerando o caráter
sistêmico de seu pensamento, a argumentação kantiana que concebe o direito como uma
condição para a paz a perpétua. Para a consecução de tal objetivo, foram lidas as principais
obras do filósofo que se relacionam com o tema, sem deixar de considerar importantes
contribuições de alguns de seus principais comentadores. Após um tratamento do problema da
liberdade no domínio da razão teórica e de sua dedução a partir do fato da razão, inicia-se
uma abordagem da ideia de direito e de sua importância na discussão da paz. Conclui-se então
que o direito pode ser concebido como condição da paz perpétua sob dois pontos de vista
correlacionados: (i) como condição necessária para que se possa pensar a paz como um fim
racional para os homens; e (ii) como condição suficiente da efetivação da paz no âmbito das
ações humanas.
Peace and the means to achieve it have been an aim to the theoretical striving of many
thinkers throughout history. An important contribution in this way was undoubtedly that of
Immanuel Kant, who conceived perpetual peace as rational end to human beings in narrow
connection to the idea of right. Thus, we shall attempt to reconstruct, from a systemic
perspective, Kant’s arguments that support his view of right as a condition to perpetual peace.
This end has been attained by means of the analysis of Kant’s works that relate to the theme and also the important contributions of some main scholars. After an approach to the problem
of freedom in the realm of theoretical reason, the idea of right and its importance to peace is
discussed. As a conclusion, it is argued that right can be conceived as condition to perpetual
peace from two different correlated perspectives: (i) as a necessary condition to the possibility
of thinking peace as a rational end to human beings; and (ii) as a sufficient condition to the
realization of peace in the realm of human actions.
Obras de Immanuel Kant:
Aufklärung. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? / Resposta à pergunta: o que é Esclarecimento?
Correspondence. Briefwechsel / Correspondências filosóficas
CJ Kritik der Urteilskraft / Crítica da faculdade do juízo
CRPr. Kritik der praktischen Venunft / Crítica da razão prática.
Grundlegung. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten / Fundamentação da metafísica dos costumes
Idee. Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürglicher Absicht / Ideia de uma história universal do ponto de vista Cosmopolita
KrV Kritik der reinen Venunft / Crítica da razão pura
MS Die Metaphysik der Sitten / Metafísica dos costumes
TP Über den Gemeinspruch: das mag in Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis / Sobre o provérbio: isso pode ser correto em teoria, mas não vale para a prática
O DIREITO COMO CONDIÇÃO PARA A PAZ PERPÉTUA EM IMMANUEL KANT
INTRODUÇÃO
O problema da realização da paz é, sem sombra de dúvidas, de extrema atualidade. O
colapso do socialismo real nos países do leste europeu e o triunfo da economia de mercado
não significou, de modo algum, o ingresso numa ordem mundial de paz e cooperação. E a
emergência do novo milênio, marcado por um progresso técnico-científico jamais visto,
apenas redefiniu o problema, que, hoje mais do que nunca, com o processo de globalização,
pode ser pensado como um problema de todos os homens.
Nesse sentido, o século XXI é já prolífico em exemplos: os famosos atentados
terroristas às torres do World Trade Center, já em 2001, e as duas guerras que se seguiram, no
Afeganistão e no Iraque; a perpetuação do conflito Israel-Palestina; a guerra ainda
oficialmente declarada entre as duas Coréias; a invasão de tropas israelenses no Líbano em
2006; as guerras civis em países africanos, como Somália, Costa do Marfim, Uganda, Angola;
as insurgências populares por reformas democráticas em países árabes, a partir de 2008, tais
como Tunísia, Egito, Líbia, Síria, Bahrein e Iêmen; os altos índices de violência nos países
ditos emergentes e subdesenvolvidos.1
Não há dúvida também de que hoje o problema da paz se apresenta em termos bem
diferentes daqueles com os quais Kant se deparou, em fins do século XVIII, quando publicou
o primeiro livro sobre o tema: À Paz Perpétua. O século XX desnaturou a antiga concepção
de guerra moderna, pautada no modelo westfaliano de soberania. Hoje um conflito militar
entre grandes potências é cada vez mais improvável. Por outro lado, a globalização trouxe
consigo o surgimento de grupos para-militares não territorializados e, assim, de um inimigo
global, como denuncia a expressão, cunhada pelo governo estadunidense, global war on
terrorism.2 Precisamos lidar também com o mercado ilegal de armamento bélico, as armas de
1
Segundo o Estudo global sobre homicídio do Escritório das Nações Unidas para Crimes e Drogas, o número estimado de homicídios, em 2010, é de 460.000. Países como Uganda, Zâmbia, Costa do Marfim, Venezuela, Honduras apresentam mais de 35 homicídios por 100.000 habitantes, o que os coloca entre os mais violentos do mundo. Nesse sentido: UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Global Study on Homicide.
Vienna: UNOCD, 2011. Disponível em:
<http://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/statistics/Homicide/Globa_study_on_homicide_2011_web.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2012.
2
destruição em massa, as chamadas armas químicas ou biológicas, crimes e espionagem
digitais, em suma, uma série de problemas que surgiram com o passar dos séculos e que não
se enquadram na dinâmica das guerras de outrora.
No entanto, essas transformações, ao invés de subtraírem a força do pensamento
kantiano, fazem-no, na verdade, bastante atual. A escala global dos problemas gera uma
situação de interdependência entre países e impõe exigências de integração e cooperação. A
esperança de Kant, quanto a seu direito cosmopolita, de que “uma violação de um direito num lugar da Terra fosse sentida em todos”3 parece fazer ainda mais sentido quando observamos o mundo hoje, considerando a consagração dos direitos humanos em documentos oficiais, a
formação de uma imprensa e opinião pública internacionais, a instituição de blocos
político-econômicos e as organizações não-governamentais.
A própria Organização das Nações Unidas, a instituição hoje responsável pela paz e
segurança mundiais, sofreu nítida influência kantiana4, na medida em que incorpora a ideia fundamental de seus direitos das gentes, isto é, a instituição de uma federação de povos, com
vistas à solução pacífica de seus conflitos e à realização de acordos e medidas que asseguram,
pelo menos, as condições negativas da paz. Para Kant, a paz era necessariamente um
problema global que demandava, também, uma solução global, com integração e
entendimento mútuo de todos os Estados em direção ao fim da paz perpétua.
Com isso em mente, este trabalho tem por objetivo recompor a argumentação kantiana
no sentido de que a aproximação constante da paz perpétua depende, fundamentalmente, da
realização do direito público em todos os possíveis níveis de convivência humana. Buscou-se
alcançar esse objetivo, no entanto, sem descurar daquilo que Vittorio Hösle considera uma das
grandezas do pensamento ético de Kant, isto é, seu caráter sistêmico.5 Noutras palavras, busca-se demonstrar, na medida do possível, que o direito é condição da paz perpétua, mas
em suas conexões fundamentais com a filosofia teórica, filosofia moral e filosofia da história.
Nesse sentido, o primeiro capítulo trata da filosofia teórica, sobretudo da terceira
antinomia da razão pura, que tem importância fundamental para se pensar o homem como ser
livre, sem o que não pode existir direito. O segundo capítulo se volta principalmente para a
razão prática, em sua tarefa de crítica das próprias faculdades, e apresenta o direito como
parte da metafísica dos costumes que se segue à crítica. O terceiro e último capítulo trata dos
3ZeF, p. 33. No original: „die Rechtverletzung an einem Platz der Erde an Allen gefühl wird
[...]”
4
ROSENFELD, Anatol. O problema da paz universal: Kant e as Nações Unidas. In: GUINSBURG, J. (org.). A
paz perpétua: um projeto para hoje.São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 89-100
5
princípios metafísicos do direito, em sua conexão com a ideia de paz perpétua e com sua
realização, e conclui com uma breve exposição do pensamento de Kant sobre a história, que é
convergente com aquela ideia.
Para o trabalho, foram lidas as obras de Kant que se relacionam com tema, sem deixar
de lançar olhar atento para o que dizem alguns importantes comentadores de seu pensamento,
tais como Henry Allison, Lewis White Beck, Allen Wood, Otfried Höffe e, no Brasil, Zeljko
Loparic e Joãosinho Beckenkamp. Optamos por não inserir, ao fim das citações, a expressão
“tradução nossa”, mas salientamos, desde logo, que todos os trechos de obras em língua estrangeira citadas neste trabalho foram por nós traduzidos. Optamos também por não
reproduzir os trechos no original em notas de rodapé, com exceção das citações da obra de
Kant. Dado o grande número de citações desse tipo, consideramos que essas medidas são
necessárias, porque, do contrário, a leitura ficaria sobremaneira prejudicada, entrecortada de
intromissões desnecessárias e assoberbada de notas de rodapé.
1 A TERCEIRA ANTINOMIA DA RAZÃO PURA E A LIBERDADE TRANSCENDENTAL
1.1 A postura crítica e a reviravolta copernicana
Esta subseção, evidentemente, não tem qualquer pretensão de completude quanto ao
pensamento crítico de Kant. A exposição justifica-se apenas à medida que serve ao propósito
maior deste trabalho, que, nesta primeira seção, é o de apresentar a terceira antinomia da
razão pura e sua solução, bem como conceito de liberdade transcendental enquanto condição
para que a dimensão prática da razão faça algum sentido.
Uma das formas de se compreender o que significa a postura crítica assumida por
Kant, a partir 1781, ano de publicação da primeira edição da Crítica da Razão Pura
(doravante, primeira Crítica), é sua percepção peculiar sobre os problemas em que, segundo
considerava, estava enredado o pensamento filosófico da época. Tanto é assim que o prefácio
daquela edição, como porta de entrada de todo o projeto crítico, ressalta as contradições em
entretanto, também não é capaz de responder, pois superam todas as faculdades da razão
humana”6
O pensamento filosófico de então, sobretudo a metafísica, outrora denominada “a rainha de todas as ciências”, encontrava-se, para Kant, diante de uma espécie de encruzilhada que, de um lado, oferecia o caminho do dogmatismo, expresso no racionalismo de filósofos
como Gottfried W. Leibniz e Christian Wolff, e, de outro lado, o caminho do ceticismo das
posturas empiristas, de que é maior exemplo o filósofo escocês David Hume.
O referido prefácio deixa entrever a preocupação de Kant com a situação de
desprestígio e indiferença em que se encontrava a metafísica,7 tomada por intermináveis disputas que, “depois de todos os caminhos (como se deixa convencer) são inúteis”8. A comparação com a lógica e a matemática, que há tempos já trilhavam o “caminho [Gang] seguro da ciência9”, suscita então a perspectiva de que também a metafísica, fundamentando -se em princípios cuja realidade objetiva possa -ser demonstrada, habilite--se a encontrar o
caminho seguro.
Numa carta, escrita no mesmo ano de 1781 a Johann Benoulii, matemático e
astrônomo suíço, Kant deixa claro a relação entre a situação da metafísica e uma mudança de
postura que se impunha:
Percebi, naquele período, que essa ciência putativa [a metafísica] precisava de uma pedra de toque confiável, com que se pudesse distinguir a verdade da ilusão, visto que proposições metafísicas diferentes, mas igualmente persuasivas, levam inescapavelmente a conclusões contraditórias, com o resultado de que uma proposição inevitavelmente lança dúvidas sobre a outra.10
Essa mudança de perspectiva, segundo analogia sugerida pelo próprio filósofo, pode
ser comparada àquela realizada por Copérnico para desenvolver a teoria heliocêntrica. Ao
invés de supor que os objetos se apresentam tal como são (em linguagem kantiana, como
“coisas em si”), a reviravolta consiste em chamar atenção para a contribuição da subjetividade no conhecimento através da mediação consciencial. Noutras palavras, trata-se de considerar a
6
KrV, p. 5. No original: „die sie aber auch nicht beantworten kann, denn sie übersteigen alles Vermögen der
menschlichen Vernunft.”
7
Para o pano de fundo histórico-filosófico a partir do qual Kant constrói os argumentos conflitantes das antinomias da razão pura, ver: AL-AZM, Sakid J..The Origins of Kant’s Arguments in the Antinomies. Oxford: Oxford University Press, 1972.
8KrV, p. 6. No original: „nachdem alle Wege (wie man sich überredet) vergeblich sind”. 9
KrV, 15
10 Correspondence., p. 206. Texto da edição em inglês: “I
subjetividade como dimensão transcendental, isto é, dimensão dos elementos puros do
conhecimento humano, como “elementos constitutivos de todo e qualquer objeto, pois toda pergunta pelo objeto pressupõe a pergunta pela possibilidade, no sujeito, do conhecimento do
objeto.”11
Assim, a análise transcendental, enquanto análise de condição de possibilidade de todo
e qualquer objeto, é a grande tarefa da primeira Crítica. Com isso, a razão, através da
distinção e delimitação das diferentes faculdades cognitivas, pergunta a si mesmo o que,
legitimamente, é possível conhecer12. E a resposta a essa pergunta, que, em Kant, passa pelas formas puras da intuição (espaço e tempo) e pelos conceitos puros do entendimento
(categorias), é do que a razão precisava para superar as dicotomias e contradições que
abalavam a credibilidade da metafísica enquanto ciência.
A dedução transcendental das categorias, isto é, a prova da realidade objetiva desses
conceitos puros do entendimento, é levada a cabo por Kant na Analítica Transcendental, e
pode-se considerar, numa possível síntese do projeto da primeira Crítica13, como a contribuição construtiva no sentido de assentar as bases do conhecimento comum e científico
frente ao ceticismo das posturas empiristas.
Por outro lado, e o que nos interessa mais diretamente no momento, há a tarefa
destrutiva, que se volta para a metafísica tradicional. Parte indispensável do projeto da
primeira Crítica passa pela exposição dos problemas em que, necessariamente, incorre a
razão, se não for submetida por si mesma, enquanto “tribunal supremo”, a uma crítica de suas faculdades. A essa parte Kant chamou de Dialética Transcendental.14
Só com a Dialética, então, é possível compreender a afirmação contida no trecho do
prefácio acima transcrito, isto é, de que a razão, segundo sua própria disposição natural,
coloca a si mesma questões que não é capaz de responder. Assim, a postura crítica assume
11
OLIVERIA, Manfredo Araújo de. A filosofia na crise da modernidade.São Paulo: Loyola, 1989. p. 9.
12
Jean Lacroix chega ao extremo de afirmar o seguinte: “[t]oda a filosofia, segundo Kant, tem por fim
responder a uma só questão, que comanda tudo: Que pode legitimamente a nossa razão?”. A pergunta se
subdividiria em outras três, a saber, “o que posso fazer?”, “o que devo fazer?” e “o que me é permitido
esperar?”, reproduzindo, assim, as questões que o próprio Kant aponta aquelas que unificam os interesses da
razão. LACROIX, Jean. Kant e kantismo. Porto: Rés, 19--. p. 13.
13
A redução é proposta por Georges Dicker. Para uma exposição detalhada, ver: DICKER, Georges. Kant’s
Theory of Knowledge: an Analytical Introduction. New York: Oxford, 2004. p. 6-17.
14
Há uma discussão sobre se seria, de fato, necessária a existência de uma Dialética Transcendental, uma vez que a Analítica Transcendental, por si só, seria suficiente para denunciar a extensão ilícita das categorias a objetos suprasensíveis. Nesse sentido, é interessante a contribuição de Henry Allison, para quem a necessidade da Dialética reside na importância de se chamar atenção para a distinção entre princípios transcendentais e
princípios transcendentes. Os segundos, ao contrário dos primeiros, “efetivamente demandam que o
entendimento ignore quaisquer restrições e projete sua esfera de normatividade para além das fronteiras da
não só a tarefa de explicar como a razão pode ser fonte natural de ilusões, mas de apresentar
uma solução para as contradições através do recurso ao idealismo transcendental.
A solução de um desses conflitos, denominado por Kant de terceira antinomia da razão
pura, é de importância central para toda a filosofia prática que se segue à primeira Crítica.
Isso porque envolve duas proposições cujas conclusões acerca da liberdade são, à primeira
vista, opostas, uma delas afirmando que a liberdade é incompatível com a estrutura da
experiência, a outra afirmando sua existência como princípio causal incondicionado. É o que
passamos expor a seguir, precedido de uma breve exposição sobre a razão como fonte de
ilusões.
1.2 Ilusão transcendental e a terceira antinomia
O termo “dialética” em Kant possui, em geral, o significado de uma lógica da aparência e, portanto, diz respeito ao uso ilegítimo de nossas faculdades cognitivas. No
entanto, na Dialética Transcendental, Kant está preocupado, especificamente, com o que
chama, em oposição à aparência empírica, de aparência transcendental, que se explica nos
seguintes termos:
A causa para isso é que existem em nossa razão (subjetivamente, considerada como uma faculdade do conhecimento humano) regras fundamentais e máximas de seu uso, as quais possuem totalmente a aparência de princípios objetivos, do que resulta que a necessidade subjetiva de uma determinada vinculação de nossos conceitos, a favor do entendimento, é tida por necessidade objetiva da determinação das coisas em si mesmas.15 (grifo nosso)
Os elementos teóricos para compreensão da passagem e, com isso, da noção de ilusão,
só são dados nas páginas seguintes. Assim, Kant denomina o tópico seguinte “Da razão pura como sede da aparência transcendental”, que inclui uma exposição da razão nos usos lógico e puro.
Kant concebe a razão como faculdade dos princípios [Prinzipien], em oposição ao
entendimento, que é a faculdade das regras. O termo “princípio”, para Kant, assume, em geral, dois significados:
15
(i) “qualquer proposição universal da qual se possam deduzir consequências16”, isto é, tudo aquilo que pode servir de premissa maior num silogismo, ou, segundo o próprio filósofo,
aquele conhecimento que me permite conhecer “O particular no universal através de conceitos.”17;
(ii) conhecimento sintético exclusivamente a partir de conceitos.18
Em ambos os significados, o princípio assumiria a função da premissa maior de um
silogismo. No entanto, o primeiro significado permite que se derivem consequências
imediatas do princípio, denominadas inferências do entendimento. Assim, por exemplo, se
todo efeito tem uma causa, sabe-se, de imediato, que alguns efeitos têm causas; que algumas
causas produzem efeitos; que algo que não possui efeito não pode ser causa. Esse significado
não serve, porque não apresenta diferença entre razão e entendimento. O entendimento é
capaz de fornecer proposições a priori a partir das quais se podem deduzir consequências,
como, por exemplo, o conceito de causalidade, uma das categorias do entendimento e,
portanto, derivada da estrutura da experiência, e não exclusivamente de conceitos.
Diferentemente ocorre com o segundo significado. Se o conhecimento deve ser
derivado exclusivamente a partir de conceitos, impõe-se a forma de um silogismo completo. É
o caso, por exemplo, do conhecido silogismo: todo homem é mortal; Sócrates é homem; logo,
Sócrates é mortal. Trata-se de conhecimento sintético, porque do conceito “Sócrates” não se
pode derivar, analiticamente, o predicado “mortal”, mas pressupõe o conhecimento das duas outras premissas.
Portanto, a razão, entendida como faculdade dos princípios, no sentido acima exposto,
tem por função organizar o material do entendimento e procede ascendentemente na busca das
condições (concatenação silogística ou prosilogismo), em direção a um único princípio
incondicionado19. Nas palavras Michael Rohlf:
A função básica da razão é perguntar sobre um dado julgamento empírico: “por quê?”. Ademais, uma vez que a razão tenha encontrado a resposta para essa
pergunta, ela submete a reposta, por sua vez, àquela mesma pergunta: “por quê?”. Esse processo continua indefinidamente: “as perguntas nunca cessam” (A viii). A
16
ALLISON, Henry, op. cit., 2004, p. 309.
17
KrV, p. 411. No original: „das Besondre im Allgemeinen durch Begriffe.“
18
Pode-se objetar aqui que essa definição de princípio contradiz a posição de Kant segunda a qual todo conhecimento compõe-se de conceitos e intuições, expressa na famosa frase “pensamentos sem conteúdo são
vazios, intuições sem conceitos são cegas”. O ponto, todavia, é exatamente de que esse conhecimento é meramente putativo, não é conhecimento propriamente dito, mas mera aparência. KrV, p. 130. No original:
„Gedanken ohne Inhalt sind leer, Anshauungen ohne Begriffe sind blind.“
19
razão nunca está satisfeita com o entendimento que tem no momento, mas sempre exige uma explicação mais completa.20 (tradução nossa).
Com isso, chega-se ao princípio [Grundsatz] da razão no seu uso lógico, ao qual
chamaremos, “P1” e que Kant enuncia da seguinte forma: “encontrar o incondicionado para os conhecimentos condicionados do entendimento.” 21 O princípio tem feitio de uma máxima lógica, ou, até mesmo, de um imperativo categórico intelectual22. Chama-se lógico porque contém apenas um comando racional unificador, é puramente formal, não concebe a razão
como fonte particular de conceitos e juízos.
Kant se questiona, então, se a razão se restringiria a essa função, que “é uma mera lei subjetiva de economia doméstica das provisões do entendimento [...]”23, ou se dela se pode deduzir um uso puro, de modo que a razão fosse a fonte exclusiva de determinados conceitos
e juízos, isto é, se ela seria capaz de conter em si princípios e regras sintéticos a priori.
Tal como na Analítica, onde o uso lógico do entendimento serve de fio condutor para a
descoberta das categorias, aqui também o uso lógico da razão está inextrincavelmente
vinculado ao seu uso puro e pode demonstrar o caminho de sua descoberta. O princípio acima
apresentado (P1), isoladamente, não se deixa compreender como princípio, no sentido de um
conhecimento sintético a partir de conceitos. Torna-se um princípio efetivamente, quando
pressupõe este outro (P2): se for dado o determinado, também é dada toda a série de
condições subordinadas, que é, com isso, ela mesma incondicionada (isto é, contida nos
objetos e em sua relação).”24
Não faz sentido retroceder numa série de condições (p. ex. Sócrates é mortal, porque é
homem, porque é animal, porque é ser vivo etc.) rumo ao incondicionado, se não se pressupõe
que dado o condicionado (Sócrates é homem), não é dada também toda a série de condições
subordinadas, que é ela mesma incondicionada. O problema é que o conceito de condição
vincula-se analiticamente ao conceito de condicionado, mas não ao conceito de
incondicionado.
20
ROHLF, Michael. The Ideas of Pure Reason. p. 196. In: The Cambridge companion to Kant’s Critique of
Pure Reason. Edited by Paul Guyer. New York: Cambridge University Press, 2010, pp. 190-209.
21
KrV, p. 416. No original: “zu dem bedingten Erkenntnisse des Verstandes das Unbedigte zu finden, womit die
Einheit desselben vollendet wird.”
22
ALLISON, Henry. op. cit., 2004, p. 312.
23
KrV, p. 415. No original: „ist bloß ein subjektives Gesetz der Haushaltung mit dem Vorrate unseres Verstandes [...].“
24
P2 é o que Kant chama de princípio transcendente, pois demanda que a razão
extrapole os limites da experiência possível. Esse princípio dá origem aos conceitos da razão,
isto é, às ideias, cujo objeto não é dado nunca na experiência (p. ex. Deus, liberdade, mundo
etc.). Explica-se com isso a origem da aparência transcendental e o caráter natural e inevitável
da ilusão: P1 é subjetivo, pois constitui uma máxima lógica de como deve proceder a razão e
implica a verdade de P2, que, “como uma pressuposição metafísica, supõe ser objetivo”25, mas é irrealizável, visto que incondicionado nunca é dado na experiência.
Assim, para utilizar o exemplo de Kant, tal como o astrônomo que, mesmo não sendo
enganado pela aparência, continua a ver a lua maior à boca da noite, nós não podemos evitar a
ilusão natural de pressupor a verdade de P2, dada a disposição natural de nossa razão para
perseguir a série de condições rumo ao incondicionado, embora se saiba que ele jamais pode
ser dado como objeto.26
Neste ponto, já estamos em condições de compreender ao que provavelmente se
referia Kant, quando, no trecho da carta acima reproduzido, falava que “proposições metafísicas diferentes, mas igualmente persuasivas, levaram inescapavelmente a conclusões
contraditórias”. Kant denominou essas proposições contraditórias, na primeira Crítica, de Antinomias, que nada mais significa do que o “conflito das leis da razão pura.”27
Sua origem dá-se da seguinte forma: a percepção de um fenômeno qualquer, que é
sempre condicionado, dado que submetido às condições espaço-temporais, suscita a
pressuposição de que (i) ou a série de condições é interrompida por um elemento
incondicionado; ou (ii) a série de condições se estende infinitamente e é, ela mesma, em sua
infinitude, incondicionada. Como se pode perceber, ambas estão submetidas ao âmbito de P2.
Assim, por exemplo, se me pergunto sucessivamente sobre a minha origem
genealógica (pais, avós, bisavós, tataravós etc.), (i) ou posso supor, por exemplo, que advenho
dos dois primeiros habitantes, cuja origem não pode ser derivada de qualquer outro ser
empírico (digamos, Adão e Eva), (ii) ou, retrocedo numa série incondicionada e empírica, por
exemplo, seguindo a linha evolutiva, que passa pelos antepassados evolutivos do homem
rumo aos primeiros seres vivos e, em seguida, sobre sua origem a partir da matéria inorgânica
e assim infinitamente.
25
ALLISON, Henry. op. cit., 2004, p. 330.
26
A interpretação da ilusão como natural e inevitável aqui apresentada tem como base, sobretudo, as obras de Michelle Grier e Henry Allison, inclusive na denominação dos princípios, P1 e P2, com a finalidade de facilitar a exposição. Nesse sentido, ver: GRIER, Michelle. Kant’s Doctrine of Transcendental Illusion. New York: Cambridge University Press, 2001. p. 117-130. ALLISON, Henry. op. cit., 2004, p. 322-332.
27
No tocante à terceira antinomia, que interessa mais diretamente a este trabalho, ela diz
respeito à totalidade absoluta de condições de um fenômeno, considerado em sua relação
causal com outros e formando um todo dinâmico (natureza). Por isso, Kant vincula a terceira
antinomia ao que chama de ideias cosmológicas. A disputa entre as duas proposições
conflitantes tem por objeto a ideia cosmológica de liberdade transcendental, definida da
seguinte forma: “a faculdade de, a partir de si mesmo, iniciar um estado cuja causalidade não esteja sob leis naturais e, portanto, que não esteja sob outra causa determinada por essas leis
no tempo.” 28
No tratamento das Antinomias, Kant adota o que chama de método cético. Consiste
em apresentar os dois argumentos antitéticos, sem tomar partido de nenhum deles, com a
intenção descobrir os pressupostos compartilhados por ambos, que, possivelmente, seria a
razão da contradição entre eles. A seguir, buscaremos expor, de forma resumida, os dois
argumentos aparentemente conflitantes, intitulados “tese”, que defende a ideia de causalidade por liberdade ao lado de uma causalidade segundo leis naturais, e “antítese”, segundo a qual tudo ocorre de acordo com leis naturais. Ambas as partes se utilizam de argumentos
apagógicos (recudtio ad absurdum), isto é, iniciam pelo reconhecimento da posição do
oponente, para, em seguida, demonstrar sua inconsistência.
Pois bem, o argumento da tese desenvolve-se da seguinte forma:
(i) supõe-se que tudo ocorre segundo leis naturais;
(ii) segue-se daí que tudo que ocorre pressupõe um estado anterior, que deu origem ao
seguinte segundo uma regra;
(iii) “Ora, mas o estado anterior tem de ser ele mesmo algo que acontece (no tempo, visto que antes não era nada)”;29
(iv) nesse caso, não há nunca “um primeiro começo e assim nenhuma completude da série do lado das causas originadas uma das outras”30
(v) no entanto, a lei natural consiste em que “sem um causa suficientemente determinada a
priori nada acontece”31 ;
(vi) Portanto, se tomada “em sua universalidade ilimitada” 32, a proposição de que “toda
causalidade somente é possível segundo leis naturais”33
contradiz a si mesma.
28
KrV, p. 621. No original: “das Vermögen, einen Zustand von selbst anzufangen, deren Kausalität also nicht
nach dem Naturgesetze wiederum unter einer anderen Ursache steht, welche sie der Zeit nach bestimmte.”
29KrV, p. 548. No original: „Nun muß aber der vorige Zustand se
lbst etwas sein, was geschehen ist (in der Zeit geworden, da es voher nicht war).
30
KrV, p. 548. No original: „einen ersten Anfang, und also überhaupt keine Vollständigkeit der Reihe auf der Seite der von einander abstammenden Ursachen“
31
Embora o passo (iv) do argumento possa suscitar alguma dúvida quanto a sua
pertinência, visto que não se apresenta claramente por que se deve exigir uma totalidade do
lado das causas, vale ressaltar que essa exigência é precisamente o que pressupõem as duas
partes da disputa. Como já exposto acima, a disputa parte da ideia da natureza, isto é, da
totalidade absoluta de condições dos fenômenos, considerados em sua relação dinâmica e
formando um todo de explicação. Segundo Henry Allison:
Assim, a questão não é se a natureza deve ser vista como um todo [whole] dinâmico (a exigência de completude), mas, supondo que ela tem de ser, como este todo deve ser concebido. Consequentemente, ao apelar para esta exigência nesse ponto, o argumento da tese não está introduzindo considerações alheias, nem se trata de uma petição de princípio [begging the question at hand].34
Quanto ao argumento da antítese, pode ser exposto nos seguintes passos:
(i) supõe-se que existe liberdade transcendental, entendida como “uma forma particular de causalidade, segundo a qual se seguiriam os eventos do mundo, ou seja, uma faculdade de
absolutamente iniciar um estado e, com isso, todo uma série de consequências deste”35 ;
(ii) assim, não só a série de consequências, mas a própria determinação da espontaneidade que
produz a série, deve também simplesmente começar, “de modo que não haja nada antecedente, por meio de que essa ação que ocorre fosse determinada segundo leis
constantes”36;
(iii) Mas cada começo de ação pressupõe um estado da causa ainda não atuante;
(iv) Ocorre que um primeiro começo dinâmico tem de pressupor um estado “que não tem qualquer relação de causalidade com o estado anterior daquela causa, isto é, que, de modo
algum, segue-se dele.”37
(v) Portanto, a liberdade transcendental contradiz a lei causal e não se deixa conciliar com a
unidade da experiência.38
32
KrV, p. 548. No original: „in seiner unbeschänkten Allgemeinheit“
33KrV, p. 548. No original: „alle Kausalität nur nach Naturgesetzen möglich sei“ 34
ALLISON, Henry. op. cit., 2004, p. 379.
35
KrV, p. 549. No original: eine besondere Art von Kausalität, nach welcher die Begebenheiten der Welt erfolgen könnten, nämlich ein Vermögen, einen Zustand, mithin auch eine Reihe von Folgen desselben,
schlechthin anzufangen“
36
KrV, p. 549. No original: „so daß nichts vorhergeht, wodurch diese geschehende Handlung nach beständigen
Gesetzen bestimmt sei“
37KrV, p. 549. No original: “der mit dem vorhergehenden eben derselben Usache gar keine Zusammenhang der
Kausalität hat, d. i, auf keine Weise daraus erfolgt”
38
Vale ressaltar que a referência à unidade da experiência não significa que o argumento da antítese pressupõe o idealismo transcendental, uma vez que, “a disputa entre realismo transcendental e idealismo transcendental não surge no nível empírico; ela surge apenas quando princípios válidos empiricamente são estendidos além dos
Em resumo, pode-se dizer que ambos os argumentos, tese e antítese, partindo da
mesma pressuposição, isto é, a natureza como totalidade absoluta dos fenômenos, chegam a
conclusões opostas quanto à ideia de liberdade transcendental. A solução do conflito se impõe
não só a nível teórico, mas, conforme já indicado anteriormente, carrega implicações
fundamentais para a própria possibilidade da dimensão prática. Assim, passamos à solução
apresentada para a antinomia e ao consequente surgimento de um espaço lógico para se
pensar a razão em sua dimensão prática.
1.3 A solução da antinomia e o duplo caráter da vontade
Segundo ressalta Otfried Höffe, a preocupação imediata da terceira antinomia é com a
liberdade em sentido cosmológico, pois é “apresentada como uma alternativa à causalidade da natureza, antes no contexto de uma teoria do conhecimento do que especificamente dentro de
um contexto prático”39
. Diz respeito, em sentido imediato, à razão no seu uso teórico.
No entanto, e como o próprio Höffe reconhece, a solução da antinomia tem como pano
de fundo o descortinar do horizonte prático, uma vez que a própria consistência teórica do
conceito de liberdade transcendental está em jogo, sem o que “a liberdade prática desaparece [falls by the way side] e o determinismo estrito inevitavelmente triunfa.”40
Kant precisa, então, encontrar uma solução para antinomia que seja capaz, não de
afirmar a existência da liberdade transcendental (sua realidade objetiva)41 o que, como ele reconhece, extrapola os limites do uso legítimo do entendimento e da razão, mas de afirmar
sua mera possibilidade em face de um determinismo estrito. Assim, era necessário
compatibilizar os argumentos da tese e da antítese.
O confronto entre essas duas posições aparentemente contraditórias deixa então
entrever a pressuposição compartilhada por ambas: o realismo transcendental. Tais posturas
pressupõem que as coisas se apresentam tal qual são, não se apercebendo da ilusão que
natural e inevitavelmente embota o uso da razão. Com isso, explica-se porque o empirista, ao
39
HÖFFE, Otfried. Kant’s Critique of Pure Reason: The Foundation of Modern Philosophy. New York: Springer, 2010. p. 294.
40
HÖFFE, Otfried. op. cit., 2010, p. 295.
41 “Deve
se perquirir sobre a cadeia causal que antecede um dado evento, negue a possibilidade de um
começo absolutamente espontâneo da série causal, pois, recorrendo a P2, assume que o
regresso na série é, necessariamente, infinito.
O idealismo transcendental, por outro lado, pressupõe que tudo que se apresenta a nós
como objeto são fenômenos, os quais assumem sempre a forma espaço-temporal (ou, pelo
menos, temporal, no caso do sentido interno42) que caracteriza nossa intuição sensível. Pensando dessa forma, resta sempre em aberto a possibilidade conceptual de uma causa
meramente inteligível.
Para melhor explicar esse ponto, que é central para compreensão da resolução da
terceira antinomia, importante recorrer a uma distinção que Kant introduz ao tratar do das
diferentes antinomias. Ao todo, são quatro as antinomias tratadas na primeira Crítica, todas
surgidas a partir da ideia de uma totalidade absoluta dos fenômenos, sendo que duas delas
caracterizadas como matemáticas e outras duas, como duas dinâmicas:
Temos duas expressões: mundo e natureza, que, às vezes, são tomadas uma pela outra. A primeira significa o todo matemático de todos os fenômenos e a totalidade de sua síntese, tanto no grande quanto no pequeno, isto é, tanto no seu progresso através de composição, quanto através de divisão. O mesmo mundo é denominado natureza, na medida em que ele é considerado como um todo dinâmico e que não se veja a agregação no espaço ou no tempo para realizá-lo como grandeza, mas a unidade na existência dos fenômenos. 43
Como se pode depreender da passagem, o conceito de uma totalidade absoluta de
condições pode ser entendido de duas formas, como mundo ou como natureza. O primeiro, o
conceito de mundo, envolve a totalidade matemática de todos os fenômenos. Isso significa
que condições e condicionados são elementos homogêneos, e, como o retrocesso na série
causal se inicia sempre com um dado fenômeno, não pode haver a intromissão de um
elemento numênico. Kant é claro nesse sentido:
Considerando que essas ideias, além disso, são em geral transcendentes e, embora elas não ultrapassem o objeto, ou seja, o fenômeno, segundo sua espécie[der Art nach], mas que dizem respeito apenas ao mundo sensível (não ao númeno), pode-se,
42“
O tempo é a condição formal a priori de todos os fenômenos em geral. O espaço, como forma pura de todas as intuições externas, enquanto condição a priori, é limitado apenas aos fenômenos externos. ” KrV, A 34, p. 109. No original: “Die Zeit ist die formale Bedingung a priori aller Erscheinung überhaupt. Der Raum, als die reine Form aller äußeren Anschauung ist als Bedingung a priori bloß auf äußere Erscheinungen eingeschränkt.
43
na minha opinião, chamá-las adequadamente de conceitos de mundo, pois, apesar disso, induzem a síntese a um grau que supera toda a experiência. 44
É assim, por exemplo, com a primeira antinomia, onde se discute se o mundo possui
um começo no tempo ou não, isto é, se o mundo é ilimitado com relação ao tempo. Aqui o
mundo, considerado como totalidade matemática de todos os fenômenos, não os leva em
conta no que diz respeito à sua relação causal, mas na relação de precedência temporal do
próprio mundo como totalidade. Assim, não pode haver a intervenção de um elemento
numênico, como, por exemplo, Deus, pois a totalidade é considerada em sentido quantitativo.
É por isso também que Kant considera que ambas as proposições não só contradizem uma à
outra, mas se autocontradizem, pois consideram a realidade objetiva do conceito de mundo.
Diferentemente ocorre com o conceito de natureza, que envolve a totalidade dinâmica,
isto é, uma totalidade de explicação, e não quantitativa. Kant, na tábua das ideias
cosmológicas45, nomeia a ideia que subjaz à terceira antinomia de “totalidade absoluta do surgimento [Entstehung] de um fenômeno em geral” (grifo nosso). Trata-se, portanto, de considerar a totalidade das relações causais, e não dos fenômenos qualitativamente
considerados, o que não exclui um elemento numênico. É perfeitamente possível, com isso,
que ambas as posições antinômicas sejam verdadeiras. Conforme Allison:
No caso das antinomias dinâmicas, por outro lado, onde o regresso é de motivo para motivo [from grounded to ground], não tem lugar a exigência de homogeneidade. Assim, na Terceira Antinomia, onde o regresso é de efeito para causa, permanece aberta a possibilidade de que exista uma causa ou motivo [ground] de um evento que não seja ele mesmo sensível, isto é, que não seja parte da série de fenômenos.46
Assim, embora a antítese afirme, com razão, que uma causa meramente inteligível
contradiz as condições de possibilidade da experiência, ela não contradiz o conceito de
natureza, entendido como um todo de explicação. Ao contrário de justificar um determinismo
estrito, o máximo que se pode afirmar, e o que Kant também afirma, é um “determinismo metodológico”47, necessariamente aplicável ao nível das investigações empíricas, dada a realidade objetiva do conceito de causalidade.
44
KrV, A 420, p. 523. No original: „In Betracht dessen, daß überdem diese Ideen insgesamt transzendent sind, und, ob sie zwar das Objekt, nämlich Erscheinung, der Art nach nicht überschreiten, sondern lediglich mit der Sinnenwelt (nicht mit Noumenis) zu tun haben, dennoch die Synthesis bis auf einen Grad, der alle mögliche Erfahrung übersteigt, treiben, so kann man sie insgesamt meiner Meinung nach ganz schicklich Weltbegriffe nennen.“
45
KrV, p. 520.
46
ALLISON, Henry. Kant’s Theory of Freedom. New York: Cambridge University Press, 1990. p. 23.
47
Resolvida, então, a antinomia, no que diz respeito à mera possibilidade de uma causa
inteligível ou de uma espécie de ato criador, resta a questão, mais diretamente ligada à esfera
prática, acerca da possibilidade de uma causalidade por liberdade no tempo. Traça-se uma
distinção entre uma causalidade por liberdade absoluta, que não se situa no tempo, e uma
causalidade por liberdade relativa, que se caracteriza por iniciar, no tempo, uma série de
eventos.
O segundo tipo de causalidade se refere a uma possível liberdade da vontade,
liberdade esta que “diz respeito apenas à necessidade de se assumir uma faculdade de iniciar por si mesmo uma série sucessiva de coisas ou estados.”48 Em contraposição a um começo único e absoluto, trata-se aqui da possibilidade de vários começos absolutos a partir de uma
vontade livre.
Essa possibilidade, todavia, não é evidente, nem se deriva imediatamente da ideia de
liberdade transcendental, pois a contradição com a unidade da experiência se apresenta agora
de forma mais flagrante, dada sua necessária inclusão no tempo. Noutras palavras, porque se
reconhece a possibilidade de um primeiro começo de uma série de fenômenos, não se segue
daí que seja possível vários começos absolutamente espontâneos no tempo.
Pode-se, na verdade, falar de uma nova antinomia, ou do desdobramento da terceira
antinomia49, quando entra em jogo a ideia de liberdade da vontade. De um lado, tem-se uma argumentação que enfatiza a necessidade de explicação das ações, sustentando que um
começo absolutamente espontâneo no tempo seria de todo ininteligível para nós. Por outro
lado, uma ação que é integralmente explicável em termos de uma causalidade heterogênea
(por exemplo, leis psicológicas) carece do elemento imputabilidade e se torna um mero efeito
ou resultado de um causa segundo leis heterogêneas.
A conhecida e polêmica solução que Kant oferece para o problema é atribuir à
causalidade da vontade uma dualidade epistêmica: possui um caráter empírico e um caráter
inteligível. Embora já tivesse sido esboçada em textos anteriores, a ideia do duplo caráter
recebe a moldura do idealismo transcendental na primeira Crítica e segue assim como
elemento fundamental para o tratamento do problema da liberdade, como sucede na
Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática.
48
KrV, p. 550. No original: “gehet lediglich darauf, ob ein Vermögen angenommen werden müsse, eine Reihe von sukzessiven Dingen oder Zuständen von selbst anzufangen.”
49
O caráter empírico é, às vezes, interpretado como mero efeito fenomênico da ação do
sujeito numênico, isto é, como efeito empírico de uma causa inteligível. Nesse sentido, por
exemplo, é a posição de Kemp Smith:
Como fenômenos são apenas representações, eles devem ter um fundamento [ground] que, por sua vez, não é um fenômeno e, embora os efeitos de uma tal causa inteligível sejam dados a nível empírico [appear], e, de fato, sejam determinados por meio de outros fenômenos, sua causalidade não é em si similarmente condicionada. A causa inteligível e sua causalidade estão fora da série empírica; apenas os efeitos se situam dentro do âmbito da experiência. [...] Dessa forma, Kant deriva, a partir do idealismo transcendental, uma explicação da possibilidade de uma ação ser, ao mesmo tempo, livre e casualmente determinada.50
Esse tipo de interpretação, no entanto, sugere antes uma distinção ontológica do que
epistemológica, o que inevitavelmente gera dificuldades na conciliação de ambos os
caracteres. Pois como supor que uma dada ação, digamos, uma falsa promessa, é
integralmente condicionada em termos empíricos, ou, como sugere Smith, “determinada por meio de outros fenômenos” (por exemplo, a cobiça ou o desejo de prejudicar alguém), e, ao mesmo tempo, possui uma causa meramente inteligível, que se refere a uma faculdade
incondicionada da vontade?
Assim, embora haja suporte textual para extrair tais conclusões51, preferimos a solução proposta Henry Allison, igualmente possível do ponto de vista textual, dada ambiguidade de
Kant no tratamento de ambos os caracteres. O ponto fundamental da interpretação de Allison
é que a dualidade empírico-inteligível situa-se, não na discussão do agir moral, mas no quadro
mais amplo do agir racional, do qual o agir moral é uma parte apenas.
Para começar, é importante conceber o caráter de toda causa eficiente como “uma lei
de sua causalidade, sem a qual ela não seria de todo uma causa”52
. Situando a discussão no
âmbito do agir racional, como sugere Allison, a noção de caráter volta-se é aplicado à vontade
humana e pode ser descrito, de outra forma, como a lei da causalidade que governa a razão
prática – não necessariamente pura – dos homens. Desse modo, a razão prática pode ser
50
SMITH, Kemp. A Commentary to Kant’s Critique of Pure Reason. 2nd Edition. New York: Palgrave Macmillan, 2003. p. 512.
51
Por exemplo, o seguinte trecho: Eu chamo inteligível aquilo que, num objeto dos sentidos, não é fenômeno. Se, por isso, aquele que no mundo sensível precisa ser visto como fenômeno, também contém em si uma faculdade que não é objeto da intuição sensível, mas por meio do qual ele pode ser causa dos fenômenos
[....].”KrV, p. 625. No original: „Ich nenne dasjenige an einem Gegenstand der Sinne, was selbst nicht Erscheinung ist, intelligibel. Wenn demnach dasjenige, was in der Sinnenwelt als Erscheinung angesehen werden muß, an sich selbst auch ein Vermögen hat, welches kein Gegenstand der sinnlichen Anschauung ist,
wodurch es aber doch die Ursache von Erscheinungen sein kann [...].“
52
observada sob dois pontos de vista: como tendo uma lei de causalidade empírica e como
dotada de uma lei de causalidade meramente inteligível, isto é, não-sensível.
Allison concebe o caráter empírico do agente racional como consistindo em
“princípios subjetivos ou ‘máximas’ com base nos quais o agente age ou, mais propriamente, na disposição para agir com base nesses princípios.”53. Assim, em vez de uma lei da causalidade do fenômeno enquanto tal (no caso, a conduta), o caráter empírico expressa uma
disposição de agir de determinado modo, em dadas situações, para atingir determinados fins,
o que se pode prever com certa regularidade, se pudermos explorar todas os fenômenos de sua
vontade até os seus motivos [...]” 54
Noutras palavras, o caráter empírico, isto é, a lei da
causalidade empírica da vontade, indica um determinismo segundo leis heterogêneas.
Quanto ao caráter inteligível, a explicação está estreitamente ligada à espontaneidade
que é inerente à razão e faz-se em comparação com a espontaneidade do entendimento. Para
que seja possível o conhecimento, não é suficiente apenas o dado dos sentidos, como
supunham alguns empiristas55, mas exige-se também um momento de espontaneidade do entendimento. É conhecida a afirmação, já mencionada neste trabalho, que Kant concebe o
conhecimento como a conjugação de intuições e conceitos. Esse momento de espontaneidade
do entendimento tem sua expressão máxima na apercepção pura, que, na chamada Dedução
B56, é definida da seguinte forma: “o ‘eu penso’ deve poder acompanhar todas as minhas representações […].”57
Corresponde a essa espontaneidade do entendimento uma espontaneidade da razão,
tanto nos processos inferenciais, quanto, principalmente, no uso puro da razão, isto é, na
formação das ideias:
53
ALLISON, Henry. Op. cit. 2010, p. 33.
54KrV, p. 634. No original: “wenn wir alle Erscheinungen seiner Willkür bis auf den Grund erforschen könnten
[...].”
55 Thomas Hobbes, por exemplo, logo no capítulo inaugural do Leviatã, sutenta: “Por lo que respecta a los
pensamientos del hombre quiero considerarlos en primer término singularmente, y luego en su conjunto, es decir, en su dependência mutua.
Singularmente cada uno de ellos es una representación o apariencia de cierta cualidad o de outro accidente de um
cuerpo exterior a nosotros, de lo que comúnmente llamamos objeto […]. El origen de todo ello es lo que
llamamos sensación (en efecto: no existe ninguna concepción en el intelecto humano que antes no haya sido recebida, totalmente o en parte, por los órganos de los sentidos). Todo lo demás deriva de este elemento
primordial.” HOBBES, Thomas. Leviatán: o la matéria, forma y poder de uma república, eclesiástica y civil. 2. ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007. p. 6.
56
Trata-se do que os comentadores normalmente consideram como sendo uma outra dedução transcendental das categorias, contida na segunda edição da primeira Crítica (Edição B), diferente daquela(s) apresentada(s) na primeira edição (Edição A).
57
[…] a razão tem a capacidade de formar ideias e de regular a investigação de acordo com essas ideias. Essa formação e regulação envolve uma espontaneidade, porque, em vez de simplesmente refletir uma ordem da natureza anteriormente dada, a razão
projeta uma ordem própria ‘de acordo com ideias’, isto é, ela gera uma série de
normas e objetivos de explanação com os quais deve realizar a investigação científica.58
Traduzindo isso para a dimensão prática, significa dizer que o caráter inteligível é
marcado por uma espontaneidade da razão, que significa nada mais do que a capacidade de
agir com base numa concepção de dever. Assim, a razão projeta uma ordem própria,
espontânea, que dita regras e princípios com base nos quais o agente deve guiar sua conduta.
Vale dizer que estão cobertos por essa concepção de caráter inteligível tanto os imperativos
hipotéticos (técnicos e pragmáticos) quanto os categóricos (morais), pois ambos expressam
uma concepção de dever, ora para perseguir determinados fins, ora quando obriga
incondicionalmente59.
A duplicidade de caracteres se deixa conciliar quando a pensamos em termos
epistemológicos, dentro do quadro proposto pelo idealismo transcendental. Em oposição ao
que pensa Smith, não é a melhor interpretação aquela que concebe uma ação como
ontologicamente determinada por leis naturais. Ao contrário, a ação é tida por integralmente
determinada segundo uma exigência da nossa própria constituição cognitiva, no seu uso
teórico.
Sob essa perspectiva, a investigação dos eventos empíricos pressupõe um causa que,
por sua vez, é também consequência de outra causa. Isso é do que precisamos para que uma
determinada ação seja explicável e, portanto, compreensível sob um ponto de vista empírico,
já que são pensadas como efeitos de uma causa anterior, segundo leis. Por outro lado, o
caráter inteligível traduz outro ponto de vista epistêmico, sob o qual nós podemos observar as
ações segundo a ideia de liberdade e, portanto, como imputáveis.
Por fim, ressalta-se que não se trata ainda de sustentar a existência de um tal caráter
inteligível, mas de afirmar apenas que ele não seria incompatível com o caráter empírico de
nossa vontade. Abre-se um “espaço lógico” para se pensar a liberdade em sua dimensão prática, o que é levado a cabo nas obras posteriores. É nesse contexto que se pode
compreender a famosa afirmação de Kant: “eu precisei, então, deixar de lado o conhecimento, para abrir espaço para a fé [...].”60
58
ALLISON, Henry. op. cit., 1990, p. 38.
59
A diferença então vai consistir em se se age em conformidade com o dever ou se se age por dever, isto é, por respeito à lei.
60
2 A DOUTRINA DO FATO DA RAZÃO E O DIREITO COMO PARTE DA METAFÍSICA DOS COSTUMES
2.1 O fato da razão
A primeira obra publicada por Kant voltada para a filosofia moral é a Fundamentação
da metafísica dos costumes (doravante, Fundamentação), que declara, logo em seu prefácio,
ter por objetivo “a busca e o estabelecimento do princípio supremo da moralidade.”61 Noutras palavras, trata-se de uma tentativa de preencher o “espaço lógico” aberto pela solução da terceira antinomia, através da explicitação de um princípio latente nos juízos morais do senso
comum e, finalmente, de apresentar uma prova de sua realidade objetiva do ponto de vista
prático.
A última dessas tarefas, isto é, o estabelecimento do princípio, é objeto dos esforços de
Kant, segundo atesta Dieter Henrich, desde o ano de 177062. É esse também o ano de publicação da Dissertação Inaugural, ao qual se seguiria longo hiato, cujo silêncio só fora
quebrado com a publicação da primeira Crítica. A esse período corresponde, portanto, além
do desenvolvimento das bases do pensamento crítico, também um grande esforço no sentido
de desenvolver uma dedução da moralidade a partir da razão teórica.
Em análise de documentos históricos, como notas e reflexões deixadas por Kant,
Henrich reconstrói as diferentes tentativas de deduzir a moralidade e agrupa-as em duas
categorias. Na primeira delas, Kant intenta uma dedução direta a partir da razão teórica, de
modo que a sua aplicação “ao material da ação deve necessariamente trazer à tona a afirmação de que precisam tanto para a compreensão moral [moral insight], quanto para as forças
motivacionais da vontade.”63
É o caso, por exemplo, de tentar deduzir o imperativo
categórico a partir de uma exigência de unidade da vontade, tal como o entendimento no uso
das categorias, ou de elaborar uma teoria moral, em que agir moralmente significa agir de
modo a ser digno de felicidade. Ambas as tentativas, ao final, não se deixam conciliar com a
própria ideia de imperativo categórico, pois revelam um juízo hipotético implícito.
61
Grundlegung, p.7. No original: „Aufsuchung und Festsetzung des obersten Prinzips der Moralität“
62HENRICH, Dieter. The Concept of Moral Insight and Kant’s Doctrine of the Fact of Reason.
In: The Unity of
Reason: Essays on Kant’s Philosophy. Cambridge: Harvard University Press, 1994. p. 72.
63
Num segundo momento, o recurso à razão teórica também se mostra presente, mas
agora de forma indireta. Nesse caso, Kant parte de um pressuposto para explicar a moralidade,
mas cuja “necessidade e justificação só se fazem evidentes através da razão teórica.”64 Um exemplo dessa tentativa é o seguinte: assim como o eu transcendental, ou seja, o “eu penso”, é
a condição de possibilidade das representações, o “eu ajo” precisa ser pressuposto para que as
exigências morais façam sentido.
A estratégia da terceira seção da Fundamentação consiste em deduzir a lei moral a
partir da liberdade, que precisa ser pressuposta por todo ser “que não pode agir de outro modo
senão sob a ideia de liberdade”.65 Além de recorrer à obscura noção de mundo inteligível, para Henrich a dedução está ainda impregnada da visão que caracterizava as tentativas
anteriores, pois Kant ainda não compreendera com clareza que “uma justificação dedutiva da ética tinha necessariamente de se mostrar insatisfatória ou contraditória.”66
Nesse contexto, a Crítica da Razão Prática (doravante, segunda Crítica) revela-se
como uma reviravolta, cuja necessidade se mostrou a Kant, depois da extenuante série de
fracassos na tentativa de uma dedução da lei moral a partir da razão teórica. É o atestado
dessa impossibilidade e da necessidade de uma consciência imediata da lei moral, isto é, do
controverso fato da razão, que, a despeito do aparente dogmatismo que se lhe costuma
imputar, se bem entendido, não pode ser desprezado como irracional ou interpretado como
inconsistente com o espírito que anima o Esclarecimento.
Um conceito introduzido por Henrich é bastante útil tanto para explicitar a
impossibilidade da dedução moral em bases teóricas, como para conferir maior credibilidade à
doutrina do fato da razão. Esse conceito é o de compreensão moral [moral insight]. É derivado
da estrutura especial do conhecimento da noção de bem, tal como apresentado em teorias
éticas particulares, sobretudo Platão, Aristóteles e Kant, embora transcenda todas elas.
Henrich aponta quatro traços característicos fundamentais da compreensão moral.
Segundo o autor, “essas características emergiram da história da filosofia como uma posse
segura” e “embora não suficientemente consideradas, podemos contar com um acordo quando
recorremos a elas.”67
Tentaremos aqui resumir duas dessas características que julgamos mais
elucidativas para compreensão do fato da razão. São elas:
64
HENRICH, Dieter. op. cit., 1994, p. 74.
65Grundlegung, p. 61. No original: „
das anders als unter der Idee der Freiheit handeln kann.“
66
HENRICH, Dieter. op. cit., 1994,. p. 81.
67
(i) a ideia de que a compreensão moral não pode ser reduzida a mera questão arbitrária
de fato. O fenômeno da compreensão moral é composto de dois momentos: a aprovação e a
exigência [demand] do bem. Sem a aprovação não há compreensão moral, embora o bem não
seja bem por causa da aprovação. A aprovação é precedida pela exigência do bem, cuja
legitimidade é imediatamente compreensível. Assim, por exemplo, quando se afirma “não se deve matar”, não se trata de mera questão de fato, da descrição de um estado de coisas, que pode levar o sujeito a julgar correto ou incorreto conforme a explicação que se lhe dê, mas
essa compreensão moral necessariamente implica sua aceitação e sua demanda é julgada
imediatamente legítima. Nas palavras de Henrich: “o que é aceito como bom é ‘evidentemente’ bom para a compreensão moral. Não precisa de justificação. Alguém que queira responder à questão quanto ao motivo do bem antes de aprová-lo já o perdeu de
vista.”68
Isso, no entanto, não impede que se possa derivar daí uma justificação racional, até
mesmo em princípios a priori, da estrutura da compreensão moral.
(ii) A consciência moral sempre teve seu caráter de insight negado e, portanto,
impassível de ser considerado como conhecimento. Como não pode ser prova ou deduzido,
afastando-se do conhecimento teórico, a consciência moral, na história do pensamento
ocidental, esteve vinculada a uma mera atitude passiva do sujeito, o que não ocorre com
nossos juízos sobre o que é verdadeiro. Isso, no entanto, não corresponde à estrutura do
insight moral, pois há uma compreensão da demanda como legítima. Não é o caso de um
sujeito sendo meramente afetado, pois o momento da aprovação não depende da intensidade
da emoção. Pode-se ter inúmeros motivos para fazer uma falsa promessa e, até mesmo,
efetivamente fazê-la, sem duvidar de seu caráter imoral.
Kant, claro, não tematizou de forma explícita esse fenômeno a que se refere Henrich,
mas se pode argumentar, sobretudo a partir dos exemplos que Kant oferece na segunda
Crítica, que a doutrina do fato da razão incorpora esses traços característicos da compreensão
moral. Feita essa breve digressão, nos concentraremos no que se entende por fato da razão.
Lewis White Beck faz um apanhado textual das definições que Kant oferece para o
fato da razão, na segunda Crítica, e conclui que o referido fato pode significar tanto a
consciência da lei moral como vinculante, como a própria lei moral69. A equivalência dos dois significados não é imediatamente evidente, pois o primeiro significado, a consciência da lei, é
um momento subjetivo e não necessariamente implica a realidade do segundo, isto é, a
68
HENRICH, Dieter. op. cit., 1994, p. 62.
69