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O direito como parte da metafísica dos costumes

Kant define a filosofia como disciplina dos “princípios do conhecimento racional das

coisas mediante conceitos [...].”93-94

Como tal, ela faz uso de dois conceitos distintos, os quais dividem-na em duas partes “completamente diferentes segundo princípios [...].”95 Esses dois conceitos são os conceitos de natureza e liberdade, e dividem a nossa faculdade de conhecimento em dois domínios respectivos. Com isso, divide-se a própria filosofia em filosofia da natureza e filosofia moral96.

Em ambas, essa faculdade do conhecimento é legisladora a priori. No domínio da natureza, essa legislação é exercida pelo entendimento, e a razão pode tirar conclusões, através do processo inferencial, além de buscar a organização do conteúdo do entendimento numa unidade.

Já a legislação que se volta para o domínio moral, e, portanto, refere-se ao conceito de

liberdade, “acontece pela razão e é simplesmente prática.”97

Isso significa que, se nossas ações se deixam explicar, em última análise, por meras regras de destreza ou por conselhos de prudência, num único nome, prescrições técnico-práticas, que pressupõem sempre fins subjetivos dados e, portanto, são imperativos hipotéticos, não há que se falar em domínio moral e em liberdade. Pois, embora práticas, as prescrições técnico-práticas não pressupõem uma razão legisladora, e, com isso, são meras consequências para o conhecimento teórico:

Pelo contrário, as prescrições moral-práticas, que se fundam por completo no conceito de liberdade, excluindo totalmente os princípios de determinação da vontade a partir da natureza, constituem uma espécie absolutamente particular de

93

CFJ, p.15. 94

Kant afasta-se aqui do conceito de filosofia dado na Fundamentação, pois lá a disciplina subdividia-se em física, ética e lógica. Esta última, considerada na Fundamentação como uma filosofia da forma do conhecimento da razão, não se adéqua ao seu conceito tardio de filosofia, visto que esta envolve conhecimento racional das coisas mediante conceitos.

95

CFJ, p. 15. 96

Segundo José Lamego, essa caráter dual atravessa todo pensamento de Kant, compondo a própria arquitetônica da razão pura: “O dualismo entre o mundo ‘numénico’ da liberdade e o mundo ‘fenoménico’ da natureza sensível constitui o elemento nuclear não só da doutrina da razão prática como da sua própria ‘arquitetónica’ da doutrina da razão: a síntese ente o mundo ‘numénico’ da liberdade e o mundo fenoménico’ da natureza efetua-se, nos termos da teleologia histórica conceptualizada da Crítca da Faculdade do Juízo (1790), como realização da Constituição ‘republicana’ e, subsequentemente, ‘cosmopolita’. O ‘fim’ (racional) da História não é pensável em termos especulativos, mas é configurável como hipótese racional, como mero postulado ou ideia ‘reguladora’ da razão. A determinação justificativa da acção em termos de um normativismo racional puro implica o prolongamento da filosofia moral e jurídica de Kant – que ele refere como ‘metafísica dos costumes’ – numa filosofia da História, interpretada como processo de realização no mundo ‘fenoménico’ da legislação incondicionada (‘numénica’) da liberdade. LAMEGO, José. O essencial sobre a filosofia do direito

do Idealismo Alemão. Coimbra: Coimbra Editora, 2011. p. 31.

97

prescrições, as quais, por semelhança com as regras a que a natureza obedece, se chamam pura e simplesmente leis. No entanto, não assentam como estas em condições sensíveis, mas sim num princípio supra-sensível e exigem a par da parte teórica da Filosofia, exclusivamente para si, uma outra parte com o nome de filosofia prática.98

Portanto, a filosofia prática tem como pressuposto o conceito de liberdade, tanto negativa como positivamente. Assegurar que esse conceito não é incompatível com a nossa faculdade de conhecer teórica e, assim, meramente ilusório, é objeto de uma parte dos esforços da primeira Crítica, sobretudo na terceira antinomia. Afirmar a realidade objetiva desse conceito sob um ponto de vista prático, expressa na lei que a razão dá a si mesma, é a culminância da Fundamentação e da segunda Crítica. Com isso, depois de submetida à

crítica, ao “tribunal da razão”, abre-se um “caminho seguro da ciência” para uma metafísica

dos costumes. Eis, portanto, a razão por que nos debruçamos sobre aquelas obras.

O que significa então uma metafísica dos costumes? No prefácio da Fundamentação, Kant define metafísica como toda filosofia que se volta para princípios sintéticos a priori e que, ao contrário da lógica, debruça-se sobre objetos, não se restringindo à mera forma do pensar99. Por isso, uma metafísica dos costumes compõe a ética, na medida em que tem por objeto a vontade humana, e opõe-se a uma antropologia prática, que corresponde à parte empírica da ética.

No entanto, como denuncia Allen Wood, Kant se viu obrigado a superar essa separação estrita entre puro e empírico, que, a rigor, sequer fora obedecida na própria

Fundamentação, visto que os exemplos apresentados na segunda parte, em que são

enunciadas as formulações do imperativo categórico, “envolvem a aplicação da lei moral pura à natureza empírica de seres humanos.”100

Na verdade, a própria noção de imperativo já pressupõe a consideração de elementos empíricos, pois o imperativo é a forma que a lei moral pura assume numa vontade que não é necessariamente boa e, portanto, heteronomamente determinável. Conforme mencionado anteriormente, os imperativos não valem para uma vontade divina, e o conceito de dever ali não tem lugar, pois o querer necessariamente concorda com a lei.

98

CFJ, p. 17. 99

Grundlegung, p. 3.

100“Obviamente, as ilustrações que ele dá nos dois livros [Fundamentação e segunda Crítica], e, em particular, os quatro famosos exemplos discutidos na Fundamentação, envolvem a aplicação da lei moral à natureza humana empírica, visto que envolve conceber nossas máximas como pertencendo àquela natureza, e eles fazem uso de informações empíricas sobre o propósito do amor-próprio e sobre a inutilidade dos talentos humanos, assim como sobre o fato de que seres humanos precisam da ajuda solidária dos outros, para que tenham expectativas racionais de atingir os fins contingentes que eles de fato estabelecem”. WOOD, Allen. The Final Form of Kant’s Practical Philosophy. p. 2. In: Kant’s Metaphysics of Morals: Interpretative Essays. Edited by Mark Timmons. 2nd. ed. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-22.

Kant então reformula a relação entre as partes pura e empírica da ética, afirmando que uma metafísica dos costumes, embora distinta de uma antropologia moral, precisa levar em conta princípios de aplicação à natureza humana, que é produto da observação empírica. Em analogia com o que ocorre no domínio da natureza, Kant esclarece o ponto num importante trecho:

Assim como, numa metafísica da natureza, também precisam ser dados princípios [Prinzipien] da aplicação daqueles princípios [Grundsätze] universais supremos de uma natureza em geral a objetos da experiência, isso também não podia faltar numa metafísica dos costumes, e nós teremos de tomar por objeto a natureza particular dos homens, a qual é conhecida somente por meio da experiência, a fim de mostrar suas consequências que se seguem dos princípios morais universais, sem, todavia, por meio disso, retirar a pureza destes, tampouco fazer duvidosa sua origem. 101

Noutros termos, a metafísica dos costumes é composta de dois tipos de princípios, os, digamos assim, princípios fundamentais [Grundsätze] e os princípios de aplicação

[Prinzipien] dos princípios fundamentais às contingências humanas. Os primeiros ou são derivados do imperativo categórico, ou são outras proposições sintéticas a priori, que demandam dedução. Os segundos são princípios de realização contínua e gradual dos primeiros no domínio das ações livremente exequíveis, considerando os elementos empíricos tomados da experiência humana.

Essa distinção é importante, porque é nesse quadro que se desenvolverá a distinção entre direito privado e direito público na doutrina do direito.

Voltando-se agora para o direito, os conceitos a priori que integram os princípios metafísicos da doutrina do direito são de um caráter particular. Relacionam-se à coexistência de arbítrios igualmente livres. E, nesse ponto, é importante ressaltar uma distinção introduzida por Kant que só surge com clareza na Metafísica dos Costumes. Trata-se da distinção entre vontade [Wille] e arbítrio [Willkür].

Kant define arbítrio como a faculdade agir conforme o nosso bel-prazer, desde que vinculada à consciência da possibilidade de executarmos uma ação para a produção de um objeto. Diferencia-se da vontade, que é a própria razão prática.102 O arbítrio corresponde à função executiva da faculdade de desejar, e a vontade, à função legislativa. Ambas compõem

101

MS, p. 321-322. No original: „So wie es aber in einer Metaphysik der Natur auch Prinzipien der Anwendung jener allgemein obersten Grundsätze von einer Natur überhaupt auf Gegenstände der Erfahrung geben muß, so wird es auch eine Metaphysik der Sitten daran nicht können mangeln lassen, und wir werden oft die besondere Natur des Menschen, die nur durch Erfahrung erkannt wird, zum Gegenstande nehmen müssen, um an ihr Folgerungen aus den allgemeinen moralischen Prinzipien zu zeigen, ohne daß jedoch dadurch der Reinigkeit der letzteren etwas benomen, noch ihr Ursprung zweifelhaft gemacht wird.“

102

uma faculdade de volição unificada.103 Assim, no processo de deliberação racional, a máxima integra o arbítrio e é o princípio subjetivo pelo o qual o sujeito efetivamente age. A vontade contém a lei prática racional que determina o arbítrio, isto é, o princípio objetivo que se relaciona com o motivo determinante da ação (móbil).

O arbítrio livre (arbitrium liberum) é aquele que é determinável pela razão e opõe-se ao arbítrio animal (arbitrium brutum), que é determinado por inclinações. O arbítrio humano, embora afetado pelas inclinações, é determinável pela razão. Com isso, a liberdade do arbítrio assume um conceito duplo: enquanto liberdade negativa, é a independência da determinação do arbítrio por meio de inclinações; enquanto liberdade positiva,é a determinação do arbítrio mediante a razão pura.

O arbítrio só é livre, se as máximas que determinam a ação puderem se ajustar a uma legislação universal. As leis de liberdade (leis morais) dividem-se em leis jurídicas e leis éticas104. No primeiro caso, trata-se de liberdade externa, isto é, das leis que determinam nossas ações e máximas, na medida em que se deixam subsumir sob uma lei universal, desconsideradas a matéria do arbítrio (os fins subjetivos almejados). No segundo caso, exige- se que a lei seja também o motivo determinante da ação. Assim, a concordância da ação com a liberdade externa é denominada legalidade. A moralidade, por sua vez, pressupõe não só a mera concordância, mas que o sujeito aja por respeito à lei, ou seja, a legislação abrange também o móbil da ação.

É dessa forma que se diferenciam leis jurídicas e leis éticas. As primeiras dizem respeito à mera forma do arbítrio, pois se restringem a estabelecer as condições de universalização das ações, sem condicionar o motivo determinante da ação e os fins individuais de cada um dos agentes. As leis éticas, por sua vez, pressupõem não só que sejam universalizáveis as condutas, mas que o agente queira a universalização da máxima, ou seja, que ele aja sob a ideia de dever.

Portanto, assim entendida a distinção entre direito e ética, a tarefa da metafísica na doutrina do direito, que é objeto deste trabalho, será tanto expor os princípios fundamentais

103

ALLISON, Henry. op. cit., 1994, p. 129. 104

Joãosinho Beckenkamp alerta para o perigo de se confundir leis morais com leis éticas, o que pode lançar dúvidas na própria inclusão do Direito numa metafísica dos costumes e, portanto, como derivado da ideia de liberdade. Assim, legislação moral é equacionada como legislação prática da razão. Segundo o autor, essa terminologia é herdada da escola wollfiana, “pois ‘moral’ era tomada pelos wollfianos em um sentido bastante amplo, como ressalta das definições dadas por Baumgarten em sua Metaphysica, precisamente o texto que constitui o pano de fundo do desenvolvimento da teminologia kantiana.” BECKENKAMP, Joãosinho. O direito

como exterioridade da legislação prática da razão em Kant. Ethic@, Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 151-171,

do direito, aqueles dotados de total pureza, assim como os princípios da aplicação destes, considerando a natureza humana empiricamente observável e suas contingências.

3 DIREITO, HISTÓRIA E PAZ PERPÉTUA

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