• Nenhum resultado encontrado

A “dedução transcendental inversa” da ideia de liberdade

Uma distinção fundamental que perpassa todo o pensamento kantiano é aquela entre

juízos analíticos e juízos sintéticos, exposta por Kant logo na introdução à primeira edição da

Crítica da Razão Pura.80

Os juízos analíticos são aqueles cujo predicado está contido já no sujeito e deixam-se verificar pelo princípio da contradição (o exemplo dado por Kant é “todos os corpos são extensos”). Eles não implicam a extensão de nosso conhecimento, mas apenas explicitação de algo já pressuposto no sujeito.

Já nos juízos sintéticos, o predicado se situa fora do âmbito do conceito contido no

sujeito (por exemplo, “todos os corpos são pesados”). Os juízos sintéticos exigem sempre um “x” intermediário “em que o entendimento se baseia, para reconhecer um predicado como

pertencente a um conceito que não está nele contido.”81 Nos juízos empíricos, esse “x” intermediário é a experiência de um objeto. Questão fundamental da primeira Crítica – e que,

pode-se dizer, perpassa todo o pensamento de Kant –, vem a ser, então, como são possíveis os juízos sintéticos a priori, isto é, aqueles que não contam com a experiência como elemento intermediário.

A questão tem fundamental importância, porque uma tal proposição pode conter meros conceitos vazios, que não se relacionam a um objeto, e, nesse caso, estaríamos apenas jogando com representações, que não possuem significado e referência. Por consequência, para que se possa assegurar que não estamos lidando com meras aparências, é fundamental demonstrar a realidade objetiva desses conceitos. Vale dizer, demonstrar a realidade objetiva significa o mesmo que demonstrar que esse conceito se relaciona a um objeto. 82

79

A expressão vai acompanhada de aspas, porque, embora Kant negue ser uma efetiva dedução transcendental, tal como aquela que teve por objeto os conceitos puros do entendimento, o procedimento é bastante semelhante, de modo que a analogia se mostra elucidativa.

80

KrV, p. 56-63. 81

KrV, p. 58. No original: “worauf sich der Verstand stützt, um ein Prädikat, das in jenem Begriffe nicht liegt, doch als dazu gehörig zu erkennen.“

82

Assim, a realidade objetiva pode ser teórica ou prática. A primeira pressupõe “que o objeto possa, de alguma forma, ser dado.”83 A segunda, por sua vez, pressupõe que o objeto seja exequível, isto é, pressupõe a exequibilidade das ações.84

Na primeira Crítica, Kant chama a prova da realidade objetiva das categorias de dedução transcendental. Essa tarefa é apresentada em analogia à atividade do jurista, que demonstrando os fatos (quid facti), precisam demonstrar também o direito (quid juris), ao que eles chamam dedução.

No âmbito do pensamento prático, conforme explicita Kant, há um juízo sintético a priori fundamental, que subjaz à metafísica dos costumes:

Entretanto, é este [o princípio da moralidade] sempre uma proposição sintética: uma vontade absolutamente boa é aquela cujas máximas podem conter em si lei universais, pois, por meio da decomposição do conceito de uma vontade absolutamente boa, não se pode encontrar essa propriedade da máxima. 85 (griffo nosso)

Kant afirma, portanto, que o conceito de “uma vontade absolutamente boa” não

necessariamente contém o de “uma lei uma universal”. O caráter sintético do juízo pode, à

primeira vista, não parecer evidente. Mas, conforme Jens Timmerman86, essa aparência pode ser desfeita quando se atenta para os três seguintes pontos:

(i) o hiato que há, logo na primeira parte da Fundamentação, entre a discussão sobre uma boa vontade e a análise do conceito de dever, “que é definido em termos da ação por respeito à lei, e não em termos de fazer o bem.”87 De fato, o valor absoluto conferido à boa vontade leva Kant à argumentação de que não haveria motivo para a natureza nos ter conferido razão, se a determinação última de nossa ação tivesse por fundamento a felicidade. Com isso, igualam-se boa vontade e razão pura prática, mas não se segue daí, imediatamente, que essa boa vontade tenha, como suas máximas, uma lei universal, tal como analisado na ideia de dever;

83KrV, p. 254. No original: „auf irgend eine Art gegeben werden können.“ 84

LOPARIC, Zeljko. O problema fundamental da semântica jurídica de Kant. p. 2. Disponível em:

<www.interleft.com.br/loparic/zeljko/docs/problema_kant.doc>. Acesso em: 20 nov. 2012. p. 5. O autor atribui a Kant a elaboração de uma semântica dos juízos a priori, utilizando-se de terminologia que se tornaria comum com o chamado linguistic turn. Nesse sentido, ver: OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-

pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2006.

85

Grundlegung, p. 61. No original: „Indessen ist das letztere doch immer ein synthetischer Satz: ein schlechterdings guter Wille ist derjenige, dessen Maxime jederzeit sich selbst, als ein allgemeines Gesetz betrachtet, in sich enthalten kann, denn durch Zergliederung des Begriffs von eninem schlechthin guten Willen, kann jene Eigenschaft der Maxime nicht gefunden werden.“

86

TIMMERMANN, Jens. Kant’s Groundwork of Metaphysics of Morals: a Commentary. Edimburgh: Cambridge University Press, 2007. p. 124-125.

87

(ii) uma boa vontade enquanto tal, uma vontade divina, por exemplo, não se submete a imperativos. A noção de dever pressupõe a de uma boa vontade, mas não o contrário. Somente numa vontade finita é possível se falar em dever. Pois sustenta Kant: “os imperativos não valem para a vontade divina e para uma vontade santa em geral; o dever está aqui no lugar incorreto, pois o querer por si mesmo necessariamente concorda com a lei.”88

(iii) segundo Kant, do conceito negativo de liberdade decorre o seu conceito positivo, concebido como autonomia. Autonomia, nesse sentido, é apresentada apenas como autolegislação da razão, o que não implica, per si, que uma vontade boa é uma vontade autônoma.

Conforme afirmado na subseção anterior, durante muito tempo, Kant buscou, por meio de algo semelhante à dedução transcendental das categorias, demonstrar a realidade objetiva dos conceitos envolvidos no juízo em questão a partir da razão teórica, sem, todavia, obter sucesso. A estratégia da Fundamentação é também semelhante à da primeira Crítica, porque Kant recorre à noção de mundo inteligível, contida na ideia de liberdade, que precisava ser pressuposta como elemento intermediário do juízo sintético, assim como a intuição pura desempenhava esse papel nos juízos sintéticos a priori do entendimento puro.

A virada fundamental realizada na segunda Crítica consiste em pressupor a consciência da lei moral como um fato da razão, para daí deduzir a realidade objetiva do “X” intermediário. E o “X” em questão é precisamente a ideia de liberdade. Nas palavras de Beck:

“visto que o juízo sintético a priori, que se esperava ver Kant deduzir, não precisa nem pode ter nenhuma dedução, ele é usado para a dedução da própria ideia de liberdade.”89

Isso explica também porque esta subseção carrega, no título, a expressão “dedução transcendental

inversa”.

Ora, a lei moral é a própria lei da autonomia. É a lei da causalidade por liberdade dos seres racionais e dela decorre também seu conceito negativo, isto é, da completa ausência de determinações empíricas. Ao contrário do que se poderia pensar, não há aqui, novamente, o risco do círculo que temia Kant na Fundamentação, por meio do qual liberdade é utilizada para fundar a moral, e a moral para fundar a liberdade. Como ressalta Beck, a liberdade

constitui uma “garantia independente” [independent warrant], na medida em que satisfaz uma

exigência da razão teórica90. 88

Grundlegung, p. 29. No original: „gelten für den göttlichen und überhaupt für einen heiligen Willen keine Imperativen; das Sollen ist hier am unrechten Orte, weil das Wollen schon von selbst mit dem Gesetz notwendig einstimmig ist.“

89

BECK, Lewis White. op. cit., 1984, p. 173. 90

Esse ponto demanda maior explicação. No tópico anterior, discutiu-se a razão enquanto faculdade que almeja o incondicionado. Nesse sentido, a solução da terceira antinomia não se posiciona pela falsidade de nenhuma das posições conflitantes, mas assume que ambas podem estar certas, pois não há contradição. Tanto a tese (existência de uma causalidade por liberdade), quanto a antítese (tudo se rege segundo leis naturais) são exigências da razão na sua busca de condições rumo ao incondicionado. Se antítese se mostrasse falsa, a investigação científica careceria de um princípio regulativo para orientar a pesquisa empírica, isto é, o conceito de natureza como totalidade dinâmica, visto que haveria uma espontaneidade absoluta, que não é passível de explicação.

Por outro lado, a ideia de liberdade é, ao mesmo tempo, uma exigência da razão

teórica que precisa ser satisfeita. Daí se afirmar que se trata de uma “garantia independente”,

que assume realidade objetiva do ponto de vista prático. A lei da causalidade que faltava àquela causa absolutamente espontânea é a própria lei moral, satisfazendo então a reivindicação da razão especulativa por uma totalidade de condições:

Com esta faculdade [razão pura prática], fica também agora solidamente estabelecida a liberdade transcendental e tomada, sem dúvida, no sentido absoluto de que a razão especulativa precisava no uso do conceito de causalidade, para se subtrair à antinomia em que inevitavelmente cai quando, na série da conexão causal, ela quer pensar o incondicionado; [...]

O conceito de liberdade, na medida em que a sua realidade é demonstrada por uma lei apodíctica da razão prática, constitui a pedra angular de todo o edifício de um sistema da razão pura, mesmo da razão especulativa [...].91

Com isso, compreende-se a afirmação de Kant de que a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade, que, por sua vez, é a ratio essendi da lei moral. Isto é, a lei moral, enquanto lei de uma causalidade autônoma, fornece à razão o elemento de que ela precisava para satisfazer sua exigência de completude, qual seja, a liberdade positivamente considerada (autonomia). Noutro passo, a lei moral é impossível sem a ideia de liberdade como ausência de determinações empíricas, visto que implica uma máxima universalizável e um interesse puro.

Combinam-se, assim, os usos das razões especulativa e prática numa unidade, na medida em que esta confere àquela o elemento de que precisava para satisfazer seu interesse

de totalidade incondicionada, “sem que deste modo a razão seja alargada no conhecimento teórico.”92 Ao mesmo tempo, a liberdade garante uma credencial, uma “garantia independente”, para a lei moral, que nos é dada como um fato da razão.

91

CRPr., p. 11-12. 92

Documentos relacionados