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Caso Agenor [texto]

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Academic year: 2022

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eu Agenor, 72 anos, e dona Claudete Santos, 70 anos, chegaram a Santa Fé no início dos anos 70. Muitas foram as causas que os trouxeram: as fortes estiagens e a escassez do trabalho com a criação de gado no pampa, engrossando as estatísticas do êxodo rural; busca por empregos alternativos, como o trabalho em cooperativas, como a dos garimpeiros da Linha da Pedra, no bairro Baixada do Giovanni. Vieram para Santa Fé, enfim, em busca de melhores empregos e de um futuro melhor ou, ao menos, mais digno, para os quatro filhos: Roberto, Catiana, Darlene e Carlos.

Ao chegarem a Santa Fé, instalaram-se rapidamente no bairro Baixada do Giovanni, por ser este o lugar da melhor fonte de renda na cidade naquela época, a busca de ouro no Rio Carreiro, atividade que durou pouco, pois já no final dos anos 70 as pedras escassearam. Rapidamente, o casal voltou a trabalhar no campo, na COOASF e, também, como catadores de lixo reciclável.

À época que chegaram, depararam-se com um bairro muito simples, mas bom de se viver. As crianças brincavam na rua, os trabalhadores voltavam sem medo para casa e, como diz a dona Claudete: “o máximo que tinha era uns desocupados fumando maconha”. Entretanto, houve mudanças significativas ao longo dos últimos anos, principalmente com o advento do crack. O tráfico de drogas passou a ser um “trabalho” rentável e cada vez mais presente entre os jovens da vila. Claro, com ele, chegaram os tiroteios, as disputas por pontos de venda e, principalmente, a constante insegurança dos moradores da região.

A família de Seu Agenor sentiu na carne o drama das drogas, quando, em 2007, os vizinhos vieram avisar que o neto mais velho, Danrley, tinha sido encontrado morto no Beco da Degolada, dentro de um córrego que passa nos fundos da Escola Aberta Monteiro Lobato. A mãe, Darlene, até hoje diz que foi latrocínio, mas a família sabia do envolvimento do menor com a “turma pesada da pedra”.

A filha Darlene, além do filho falecido, possui Madalena, de 13 anos, e a mais nova alegria da casa, Danrley Anderson, de apenas 2 meses, que, segundo a mãe, “é igualzinho ao irmão, parece até que é reencarnado”.

A vida na vila tem sido dura nestes últimos anos, principalmente por causa da violência e do desemprego. Apesar disso, os moradores comemoram a existência de um posto de saúde com equipe de saúde bucal e que atende a comunidade há mais de 10 anos. A associação de moradores vinha lutando havia muitos anos para a construção de um posto da Estratégia Saúde da Família (ESF), pois não suportavam mais as enormes filas e as madrugadas na porta da UBS para conseguirem uma ficha de atendimento.

Depois de muita organização e reivindicação junto ao Orçamento Participativo de sua região, eles conseguiram obter as verbas necessárias para a realização da obra. O posto possui infra-estrutura básica para realizar, além das consultas médicas e de enfermagem, curativos, vacinas, pequenos procedimentos cirúrgicos e grupos de educação em saúde. A equipe é composta por um médico de

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Caso Agenor

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¹ O Caso Agenor, baseado nos casos complexos da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, de autoria de Marcelo Rodrigues Gonçalves , foi adaptado para o curso de Especialização em Saúde da Família da UFCSPA pelos professores Aline Correa da Silva, Fernando Neves Hugo, Gisele Nader, Luciana Pinheiro e Marcelo Gonçalves.

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família e comunidade, uma enfermeira, dois técnicos de enfermagem e quatro agentes comunitários de saúde.

Além desses, possui uma equipe de saúde bucal (Cirurgiã-dentista e Auxiliar de Saúde Bucal). A organização do trabalho acontece da seguinte maneira: a) a primeira parte da manhã é destinada às consultas espontâneas, através do acolhimento; b) a segunda parte é para consultas agendadas; c) as tardes são reservadas para os programas de pré-natal, puericultura, doenças crônicas não- transmissíveis (principalmente Hipertensão Arterial Sistêmica - HAS e Diabetes Melito - DM) e atendimento domiciliar; d) e, por último, o posto reserva um turno da semana para a reunião de equipe, momento em que todos realizam o planejamento das ações e discutem os casos mais complexos.

Com o semblante preocupado, a Agente Comunitária de Saúde Clarice chega ao posto e fala para a Enfermeira Laura, que está na sala onde ficam os prontuários:

ACS Clarice: — Laura, eu 'tô' vindo lá da casa da D. Claudete e do Seu Agenor, aquele casal de idosos que mora nos fundos da casa da filha, a Darlene, e ele parece não estar muito bem. Tem se queixado de falta de ar e diz que não consegue mais dormir direito, dorme sempre meio sentado. Além disso, a casa 'tá' uma imundície. A D. Claudete não consegue mais fazer a limpeza pesada por causa da bronquite e os filhos não 'tão' nem aí pros dois.

Rapidamente, a Enfª. Laura procura o prontuário, aproveitando um momento raro de tranquilidade no atendimento.

Enfª. Laura: — Clarice, acho que podemos fazer um atendimento domiciliar para eles nesta semana.

Pelo que estou vendo aqui, já faz pelo menos uns seis meses que não vamos lá. Podemos avisar a Cirurgiã-dentista(C.D.) Isadora, pois sabemos da resistência que seu Agenor possui em realizar consultas odontológicas.

ACS Clarice: — É verdade! Já havia me esquecido que Seu Agenor não é nada cuidadoso e ainda tem aversão a consultar com dentista.

Ao conversar com a C.D. Isadora, a Enfª. Laura expõe toda a situação e a dentista ressalta a importância do acompanhamento odontológico em idosos, as repercussões sistêmicas, psicológicas e sociais nas quais a saúde bucal repercute nessa faixa etária.

No dia marcado, dirigem-se à casa dos idosos. Durante o atendimento domiciliar, a equipe avalia o ambiente e nota que, realmente, os cuidados de higiene são precários: há forte odor de urina no ambiente, além de mofo e janelas com vidros quebrados, que transformam o quarto em uma geladeira durante os meses de inverno; isso sem falar no pátio, tomado do lixo que eles catam para sobreviver, o que atrai ratos, baratas e outros bichos.

Enfª. Laura: — Olá, D. Claudete, como estão as coisas por aqui?

D. Claudete: — Vai se levando, doutora. Laura. O velho 'tá' entrevado em cima da cama, não consegue sair de lá sozinho e eu, a senhora sabe, 'tô' meio atacada da bronquite e já não posso mais com o peso dele.

Enfª. Laura: — Mas e a sua filha, o genro, os netos? Eles não têm lhe ajudado?

D. Claudete: — Ah, doutora, eles são muito atarefados. Tento não incomodá-los, não.

Enfª. Laura: — Bom, D. Claudete, teremos de agendar um atendimento com o Dr. Carlos, para avaliar melhor esta falta de ar do Seu Agenor, além de revisar as medicações. Enquanto isso, vou ver se consigo fraldas geriátricas com a assistente social.

D. Claudete: — Então 'tá', minha filha, ficarei aguardando a visita do doutor.

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C.D. Isadora: — Mas, antes de irmos, D. Claudete, como vai a senhora?

D. Claudete: — Ah, doutora, eu vou como a vida deixa, muito cansada! A gente sozinha pra cuidar da casa, do 'véio'... não é fácil!

C.D. Isadora: — E o seu marido?

D. Claudete: — Ih, doutora! Além de entrevado na cama, é uma luta pra 'comê', pra 'dá' banho! Tá muito difícil, mas a gente vai levando...

C.D. Isadora: — Posso conversar um pouquinho com ele?

D. Claudete: — Deve 'tá' lá, chateado! Mas pode ir sim, quem sabe a senhora não anima ele?!

Ao entrar no quarto, Isadora percebe a situação insalubre ao observar lençóis sujos, urinol cheio, as roupas do seu Agenor com manchas de comidas.

C.D. Isadora: — Então, seu Agenor? Como está o amigo?

Seu Agenor: — Oh, doutora! Mas que surpresa!

C.D. Isadora: — Vim ver o senhor!

Seu Agenor: — Ahahah! O 'véio' desapareceu 'né', doutora? 'Tô' só na cama agora! Mas que beleza a senhora aqui!

C.D. Isadora: — Eu soube que o senhor 'tá' acamado! Queria saber notícias suas e resolvi vir conversar!

Seu Agenor conta sobre sua falta de ar, seu desânimo com a vida..., lembra de quando trabalhava lidando com o gado no campo e deixa claro que nunca foi muito de dentista, mas que ultimamente vem sentindo um pouco de 'caloria' no céu da boca e um dente das 'queixada' dói quando toma água. Ao examiná-lo, a C.D. Isadora percebe o desenvolvimento de uma candidíase, prótese mal adaptada e presença de halitose. Prontamente, C.D. Isadora prescreve tratamento para candidíase, à base de antifúngico, orienta sobre conduta do paciente quanto ao uso e limpeza da prótese, instrui a respeito da importância da higiene pessoal e, em especial, da higiene oral. Conversou, minuciosamente, a respeito de todas as necessidades de tratamento que observou no seu Agenor e o recomendou que assim que ocorra a visita do Dr. Carlos e melhora do quadro sistêmico de saúde, que o mesmo fosse à unidade de saúde para uma consulta odontológica.

Em seguida, Isadora examinou a D.Claudete e notou uma série de necessidades de tratamento, como restaurações e raspagem supra e subgengival. Além do mais, voltou a conversar sobre a importância da higiene pessoal dela e do seu Agenor, enfatizando o aspecto fundamental que a higiene possui na manutenção da saúde.

Logo a seguir, Isadora e Laura aceitaram um cafezinho insistentemente oferecido por D.

Claudete e saíram.

De volta à Figueira Nova I, elas discutem o caso com o médico:

Enfª. Laura: — Carlos, acho que precisamos reestruturar nosso Programa de Atendimento Domiciliar, pois dei uma revisada nos nossos pacientes restritos ao domicílio e vi que vários estão sem acompanhamento regular, apenas nas urgências.

Dr. Carlos: — É verdade, Laura. E isto é um problema, pois acabamos apenas “apagando

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incêndio”. Tem aquele documento do Ministério da Saúde sobre isso, feito pelo pessoal do Hospital Conceição, lá de Porto Alegre. Poderíamos lê-lo e discuti-lo na próxima reunião da equipe, que achas?

Enfª. Laura: — Boa idéia, verei se o encontro na internet e já deixo impresso.

C.D. Isadora: — Olha, Carlos, eu acho isso essencial também.

Dr. Carlos: — Mas, me contem, como está o seu Agenor?

Enfª. Laura: — Bom, ele começou com dispnéia ao repouso e dificuldade pra dormir. Precisa de três travesseiros para aliviar a falta de ar, está edemaciado na região sacral e membros inferiores e, pelo que notei, a medicação não está sendo tomada de forma correta.

Dr. Carlos: — Deve estar com insuficiência cardíaca descompensada. Deixa dar uma olhada no prontuário dele.

LISTA DE PROBLEMAS:

1. HAS (1980)

2. AVC isquêmico (1998)

3. Restrito ao domicílio devido à hemiplegia à E 4. Ex- tabagista (1998)

5. Ex-etilista (1998) 6. Dislipidemia (2001)

7. Gastroenterite aguda (2008)

Dr. Carlos: — Pelo que vejo, esta lista de problemas deve ter aumentado.

C.D. Isadora: — Além disso, eles apresentam precária higiene corporal, problemas de ordem odontológica e baixa autoestima. Ele necessita de cuidado especial e os filhos negligenciam essa atenção, sobrecarregando a Dona Claudete, principalmente depois da perda daquele neto envolvido com o crack. Acredito que as visitas a essa família devam ser feitas de forma mais regular e devemos desenvolver um trabalho multidisciplinar aqui.

Dr. Carlos: — Concordo plenamente!

No atendimento domiciliar, Dr. Carlos conversa com seu Agenor, escuta suas histórias do tempo em que era “peão de estância, lá pras bandas de Caçapava”, fica sabendo sobre a falta de ar, o inchaço das pernas, o desânimo para sair da cama. Entretanto, descobre que o que incomoda seu Agenor é a diminuição da acuidade auditiva, que não permite que ele escute os jogos do “seu Internacional”.

Após a consulta, Dr. Carlos registra no prontuário...

Data: 14/07/2008 Atendimento Domiciliar

(S) Paciente, 72 anos, restrito ao domicílio, refere quadro de dispnéia em repouso e ortopnéia, iniciados há aproximadamente três semanas, com edema em MMII . Nega pré-cordialgia.

Uso incorreto das medicações (Captopril 25 mg/dia, Verapamil 80mg/ dia), pois cuidadora (esposa Claudete) tem tido dificuldade em lembrar-se dos horários e confunde os medicamentos (analfabeta).

Queixa-se de estar desanimado, principalmente por não estar conseguindo escutar, com piora progressiva nos últimos meses. Casa em péssimo estado de conservação, insalubre e pouco iluminada. Rede de apoio deficitária.

(O) REG, lúcido, orientado e coerente, mucosas hidratadas e levemente descoradas, disartria, dispnéia moderada, taquicardia, edema sacral e de membros inferiores. (2+/3)

PA: 170/96 mmHg FC: 94 bpm FR: 24 mpm TAx: 36,7º C

AP: MV rudes, com crepitantes no terço inferior de ambos os campos pulmonares.

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Na semana seguinte, o Dr. Carlos retornou com o Técnico de Enfermagem Pedro para verificar o efeito das mudanças propostas e realizar a lavagem otológica.

Ele estava melhor da dispnéia, dormindo apenas com dois travesseiros baixos, mas ainda com PA elevada. Dona Claudete ainda tinha dificuldades em organizar as medicações, mas relatou que a filha Darlene conversara com os irmãos e eles passaram a ajudar financeiramente para a compra de remédios, fraldas e outros itens necessários.

A casa parecia um pouco mais iluminada, mas ainda mantinha o cheiro abafado de suor e urina.

Após a reavaliação, Dr. Carlos, com o auxílio de Pedro, pegou o material e realizou, com sucesso, o procedimento.

Seu Agenor: — Ma-as é um mi-i-lagre, dou-u-t-tor! – diz seu Agenor, tentando vencer a disartria que o acompanha.

Dr. Carlos: — Agora, seu Agenor, o senhor está prontinho pra voltar a escutar os jogos do Colorado.

Seu Agenor — De-eus te ou-u-ça, me-eu fi-i-lho!

Antes de sair, o Dr. Carlos conversou mais uma vez com eles sobre a higiene pessoal, que foi ouvida com muita atenção por parte do casal, enfatizou a relação da higiene com uma boa saúde. Ele abordou que o fato de trabalharem na coleta de lixo reciclado não era desculpa para não cuidarem de si e de sua casa. A seguir, entregou um encaminhamento aos dois para atendimento psicológico do casal, na própria unidade, e ressaltou a importância da consulta odontológica solicitada pela C.D. Isadora. O casal se comprometeu a comparecer em ambas as consultas.

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AC: RR, presença de B3, bulhas hipofonéticas, sem sopros audíveis.

ABD: Presença de hepatomegalia (14 cm), sem macicez móvel ou outros sinais de ascite Otoscopia: presença de tampão de cerume bilateral.

(A) ICC descompensada – uso de medicação inotrópica negativa (Verapamil), HAS não- controlada, tampão de cerume, sequela de AVC e negligência da família no cuidado devido ao casal de idosos.

(P) Substituo Verapamil por Furosemida 40 mg, 2x/dia e ajusto dose do Captopril para 25 mg, 3x/dia.

Solicito exames complementares (hemograma, creatinina, colesterol total, glicemia de jejum, sódio, potássio e exame qualitativo de urina) – COLETA DOMICILIAR. Solicitar ECG e radiografia de tórax (ver disponibilidade de transporte com filhos).

Cerumim gotas otológicas, por 5 dias, para efetuar lavagem otológica no próximo Atendimento Domiciliar (AD).

Solicitar atendimento à fisioterapia (NASF).

Agendar encontro com filhos para discutir suporte à dona Claudete e compartilhamento das tarefas relativas aos cuidados com seu Agenor.

Retorno em uma semana ou antes, se necessário.

Referências

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