ANA CARLA BICALHO COZENDEY
PORTINARI,
POETA DE IMENSIDÕES
Dissertação de Mestrado em História da ArteOrientador: Guilherme Sias Barbosa Co-orientadora: Angela Ancora da Luz
Universidade Federal do Rio de Janeiro • Centro de Letras e Artes • Escola de Belas Artes
r
\H COZENDEY,Ana Carla Bicalho
Portinari, poeta de imensidões. Rio de
Janeiro
,UFRJ
, EBA, 1998. x,120f.
\
Dissertação:Mestrado em História da Arte (História eCrítica da Arte)
1. Pintura 2.Cândido Portinari 3.Imaginação poética 4.Gaston Bachelard r*\
I. Universidade Federal do Riode
Janeiro
II.Título r* \ r~\ r*\ \ANA
CARLA
BICALHO
COZENDEY
H IPORTINARI
,
POETA
DE
IMENSIDÕES
Dissertaçãosubmetida aoCorpo Docenteda Escolade Belas Artes
da Universidade Federaldo Rio de
Janeiro
como partedos requisitos necessáriosà obtençãodo grau mestre
Professor Doutor GuilhermeSias Barbosa Universidade Federal do Riode
Janeiro
Professora Doutora Ana MariaAlencar Universidade Federal do Riode
Janeiro
lïjiyjU
/
IWPJI
íLAJO
Professora DoutoraMirian deCarvalho UniversidadeFederal do Riode
Janeiro
o
Rio de
Janeiro
EmH
/ Ií/1998IV
'""N,
Aos
meuspais
'‘N
AGRADECIMENTOS
v' \
ÀAngelaAncorada Luz, que meorientouem cadaetapa deste trabalho.
Ao Projeto Portinari,que meforneceu subsídios aolongode todoocursodomestrado. Aos meusamigos, juntoaosquais ossonhos ficam mais bonitos
.
Ao grupoCladestino deArteEducação,que tem por vocaçãoa poesiaeaimaginaçãoarteira. r\
\
/“S
RESUMO
V IPORTINARI, POETA DE IMENSIDõES
Destaca
-
se na obra do pintor Cândido Portinari a poesia como uma marcaque reúnea sua grandevariação de técnicas e tendências estilísticas, tomando-se o termo poesia deformaabrangente,como umfenômenoquepodesedarnasdiversasartes.Comosupor
-te metodológico da fenomenologiade Gaston Bachelard, que valoriza a funçãodaima
-ginação material, imaginação ligada aos quatro elementos fundamentais: água, terra,
fogoear, adissertação vaiaoencontroda imaginaçãopoéticadopintor,criadora deima
-gens poéticas fortemente ligadas à matéria terrestre. Acompanhando
-
se essas imagens,chega-seàvivênciade umaespacialidadeque combinaexpansãoeconcentração equese
define comocentral na poética de Portinari
.
Na relaçãoentre osespaçosexteriores eosinterioresintensificados,descobre-sea imensidão.
ABSTRACT
V i lPORTINARI, THE POET OF VASTNESS
In the work of the painter Cândido Portinari, poetry, ifone takes the term in the wide
senseofaphenomenonwhich maybeappliedtodifferentart-forms,isevidentasamark that uniteshisgreat range of techniqueand stylistictendencies.With themethodologi
-cal support of Gaston Bachelard’s phenomenology, emphasizing material imagination linkedto thefour basic elements ofwater,earth,fire andair, the dissertationapproachesthe poeticimagination of the painterwhich creates poetic images stronglylinked to the
earth. Following these images, one experiencesa senseof spaceexpandingand concen
-trating,whichmaybe definedascentral toPortinari’spoetry. In therelationshipbetween the intensified externaland internalspaces, vastness isencountered.
' 'S
LISTA
DE
ILUSTRAçõ
ES vin-
'•'N
Ilustração 1
-
Circo•1933•óleo/tela•60x73 cm•Coleção particular -MG ••Fonte:cromodoProjetoPortinari.
Ilustração2
-
0lavradordecafé•1934 •óleo/tela•100x81 cm•Col.MuseudeArtedeSão PauloAssisChateaubriand-
SP••Fonte:cromodoProjeto Portinari.
Ilustração3
-
Café•1935•óleo/tela •130x195cm•Col.Museu Nacional de Belas-Artes-RJ
••Fonte:cromodo Projeto Portinari.Ilustração4
-
Retirantes•1936•óleo/tela•73x60cm•Institutode Estudos Brasileiros daUSP,Col.MáriodeAndrade
-
SP••Fonte:MUSEU DEARTE DE SÃO PAULO. Portinari:retrospectiva.SãoPaulo:1997,p.55
.
Ilustração5
-
Gado •1938•afresco•280x246cm •Col. PalácioGustavoCapanema -RJ
••Fonte: FABRIS,Annateresa. CândidoPortinari.São Paulo: Editorada Universidade de São
Paulo,1996,p.78
.
Ilustração6
-
Espantalhoe boiempaisagem•1940•óleo/tela•80x100 cm•Col.particular-
SP••Fonte:MARTINS, Luís. Portinari.SãoPaulo: Gráficos Brunner,1972,p.
55.Ilustração7
-
Conchasehipocampos •1941—
45•painel de azulejos•990x1510cm •Col.
PalácioGustavoCapanema -RJ
••Fonte: FABRIS, Annateresa.CândidoPortinari.São Paulo:Editora daUniversidade deSãoPaulo, 1996,p. 158.
Ilustração8
-
0 sacrifíciode Abraão•1943•têmpera/tela•200x150 cm•Col. Museu deArtede São Paulo AssisChateaubriand
-
SP••Fonte:cromodo ProjetoPortinari.Ilustração 9
-
Família de retirantes•1944•óleo/tela•190x180cm •Col.MuseudeArte deSãoPauloAssisChateaubriand - SP••Fonte:FABRIS,Annateresa. Cândido Portinari.SãoPaulo: Editora daUniversidade de SãoPaulo,1996, p.111
.
Ilustração 10
-
Primeira Missa no Brasil•1948•têmpera/tela•
266x598cm •Col.BancoBoavista
-
RJ
••Fonte:cromodo Projeto Portinari.Ilustração 11
-
Colheita do Café•I960•óleo/madeira•229x260.5 cm•Col.BancodeSUM
á
RIO IX1
-
INTRODUçãO2
-
PORTINARI EM BREVE VISÃO GERAL" Seleçãodasobras2.1
-
ClRCO2.2
-
OLAVRADOR DE CAFÉ2.3-CAFé
2.4
-
RETIRANTES2.5-GADO
2.6
-
ESPANTALHOE BOIEMPAISAGEM1 8 13 14 15 '
-
NV 15 16 17 18 2.7-
CONCHASEHIPOCAMPOS 19 2 . 8-
0SACRIFÍCIO DEABRAÃO20
2.9
-
FAMíLIADE RETIRANTES 2.10- PRIMEIRAMISSANOBRASIL 2 . 1 1-COLHEITADO CAFé3
-
APOéTICA DEBACHELARD "Metodologia 4-
DIãLOGOENTREPORTINARI EBACHELARD•
Diretrizesparaaplicaçãoda metodologia. .
. .
5
-
MERGULHANDOEM IMAGENS" Leiturasdasobras5.1-CIRCO 5.2
-
OLAVRADORDECAFé 5.3-CAFé 5.4-
RETIRANTES 21 22 25 30 39 39 44 49 53 5-
5-GADO 575.6
-
ESPANTALHOE BOI EMPAISAGEM 5.7-CONCHASEHIPOCAMPOS 5 . 8-
0SACRIFíCIO DEABRAãO5.9-FAMíLIADERETIRANTES
5.10-PRIMEIRA MISSANOBRASIL 5.11-COLHEITADO CAFé
6- 0 POETA DE IMENSIDõES" Espacialidadepoética emPortinari
7- CONCLUSãO
8-REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS 9 -ILUSTRAçõES 60 65 70 74 77 82 90 104 107 1 1 0
X
Fantasmanãoexiste
.
Sóexiste umacoisasobrenatural: Apoesia,ou oamor,éo mesmo
.
Eomundosóvive
Quandoligaachave:
Estachaveé oamor
.
.
.
r \
1
!
INTRODU
çã
O
Há, emnossaconfrontação com omundo,umaânsiade controleque,dominadosos
ele-mentos instáveis, nos permita gozar da tranqiiilidade de uma acomodação ilusoriamen
-te
protegida
das surpresas. Com a crença de atingirmos a verdade absoluta dos fatos,construímoscertezas inabaláveise gostamos igualmente de acreditar que nossa palavra pode ser totalmente objetiva, dotada de uma significação inquestionável, que passe adianteaverdadealcançada
.
Assim, acomunicaçãotranscorrerianamaisperfeitaharmo-nia, sem dúvidas ou contradições, negando
-
se umacomplexidade própria às relações.Asrelações, porém,asseguram exatamenteaimpossibilidade de coincidência plena
entreinformação einterpretação, jáquea participaçãodo sujeito imprimeambigíiida -des a essa troca, que não se trata de uma troca de dados entre máquinas (que ainda
nestecaso podeocasionar erros e incompatibilidades de leituras)
.
Tambémoreal e suacodificação não devem ser consideradoscomo uma mesma coisa, pois, na verdade, é vã a tentativa de apreendermos em rótulos definitivos, em signos limitados, oeterna
-mente mutável.
Dessa maneira, todos os nossos modos de percepção e expressão comportam bre
-chas,espaçosparaaapariçãodoinesperado,indeterminaçõescondizentescom aimpos -sibilidade de uma apreensão e representação objetivas da realidade
.
Mas, de qualquer forma,deum modogeral nos utilizamos das linguagenscoma pretensãodeobjetivida -de, precisandosignificadose mantendo ossignificanteso mais possível limitados tritivos. Um procedimento inevitável,mas que mereceum estadode atençãoquanto asua relatividade.
Destaca
-
se,então, um campo ondesãovalorizadas sugestõesoutras queas advindas do pensamentolineareondeseassumeo papeldecriaçãodo homem,com a conseqiien-teevidenciaçãoda imprecisão daslinguagens, nãovistas mais como um absoluto, já que
-relativas aossujeitosem ação e transformação no mundo: aarte.Em especial,a artedo !2
nosso século abriu espaço à liberdade de experimentação, se tornando, assim, uma área privilegiada paraosurgimento do novo, paraa dinamização e flexibilização dos concei
-tosestabelecidos,sendoque,com certeza,ela não sedesenvolve nestecaminho indepen -dentemente dopensamento e daculturacomo um todo.
A históriada arte, disciplinaque pretendesedefrontar com o fatoartístico, atrela
-se, portanto,aoestudo de processoe momento históricos, mas não podedesconsiderar
asingularidadedeseuobjeto,queremete também à potencialidade humana detransitar
em umaoutraesfera diferente da histórica.Fazemos nossas as palavras deMirceaEliade, queaoavaliaraatuaçãodo historiador dasreligiõesnosdá um bom argumentoemdefe
-sa da amplitude de atuação do historiador das artes, considerando
-
se que, em nosso pontode vista, também este últimolidacom fatosque, embora históricos, revelam um comportamentoque
vai muito além doscomportamentos históricosdoser humano. Se é ver
-dade queohomem sempreseencontrainseridonuma ‘situação’,nem por isso essa situação é sempre histórica, ou seja, unicamente condicionada
pelo momento histórico contemporâneo. O homem integral conhece
outrassituaçõesalém desuacondiçãohistórica.Conhece, porexemplo,o
estado desonho,oudedevaneio,ouoda melancoliaoudodesprendimen
-to,ou da contemplaçãoestética,oudaevasãoetc.
—
etodosessesestadosnãosão‘históricos,embora sejam, paraaexistência humana, tãoautênti -coseimportantesquanto asua situaçãohistórica.1
o
Dentrodessaótica,tomaremosparanossotrabalho umaabordagemquebuscaráevi
-denciara açãode uma dessas potencialidades humanas que não selimitam aocondicio
-namentohistórico:aimaginaçãopoética
.
Nãoqueareflexãosobreesteaspectotenha sidoum interesse apriorístico, mas um tema que emergiu do contato com nosso objeto de pesquisa,aobrado pintor Cândido Portinari.
Pintorjátãodebatido, Portinari nosreservou um campodedescobertas, pois,assim
como convém às manifestações artísticas, sua obra permanece aberta às mais diversas incursões. Ao pesquisá-la amplamente, uma força interna, a nosso ver n
-mente ressaltada pelosestudosexistentessobreo pintor, pareciaseentrelaçar pelos bra- !3
ços dos diferentes quadros, reunindoo que muitas vezes aparentava dispersão, aproxi -mando diferentes técnicas e tendências
.
Acreditamos que seria próprio chamar estaforça de
poesia.
Comofim de demonstrar queessaforça éde fatorelevante,pois quese tratade uma
constante naobra de Portinari,organizamosnocapítulo2 umaseleçãode trabalhosque dá umaideia detrajetóriaartística,indicandoas maisimportantes manifestaçõesdo
pin-tor através de exemplos característicos dos principais grupos de soluções pictóricas por O conjunto assim constituído nos serviria de
(
f S
ele experimentadas ao longo dos anos
.
suporte paraa reflexãoquequeríamosempreendersobreaobra do pintor de formaglo
-bal,não noslimitandoarecortesdeterminados.
Parabem justificar nossasescolhas,deti-'•v
apresentarcada obra selecionada, apontandosuasignificação na trajetória de Portinari e mostrando que constituiam um grupo realmente abrangente, portanto
adequadoaservir como nossomaterial de trabalho
.
Vislumbrado oconjunto, podíamos partir paraoenfoqueespecífico que pretendímosestabelecer,abordando a poesia comoo traçode uniãoentreasdiferentes obras apresentadas
.
Mas como tratar de poesia em pintura, comodemonstraralgo tãovago e inapreen
-sível, comodela nosaproximar, sabendo quea simples aplicação de conceitos racionais
seria insuficiente? É no seiodestas questões quesurge nossa opção metodológica, trazi
-da pelo teórico que descobrimos como viabilizador de nossas intenções de reflexão: ofilósofo Gaston Bachelard.
Éimportante deixar claroqueao tratarmosde poesiaestamos nosvalendodo termo
deforma abrangente, considerando-acomo a essência de um fenômenohumano
,
o fenô-meno poético, que é oriundo da imaginação poética e que pode ser encontrado nas
diversasartese não só na literatura, área a queo termoé maiscomumente relacionado.
Desta forma, o trabalho de Bachelard, que procura acompanhar a ação da imaginação poética, mesmo se baseando principalmente em exemplos literários, fornece-nos um
aporte para irmos ao encontro da imaginação poética do pintor Portinari
.
O próprio Bachelard, apesar de construir sua filosofiada imaginação em cimada literatura, nãoseapoiaríamos para nosso intento.Com estepropósito,definimos,em linhas gerais, open
-samentodeBachelard sobrea imaginação poéticae sua propostadeabordagemdesta por
meiodeuma fenomenologiada imaginação.Bachelardvêomundo da imaginação como
um mundode devaneio, ondesedestaca uma imaginaçãomaterial(ligadaaosquatroele
-mentosfundamentais:água, terra, fogoear) que agenabase da imaginaçãopoética.Esta última,que tem uma intenção específica dese expressar, organiza-se em imagens poéti
-cas, meionoquala imaginaçãodocriador podese revelar paranós.
Eé neste ponto queseencaixaafenomenologia da imaginaçãode Bachelard, propondo umarelaçãoimedia
-tacomasimagenspoéticasquepossibiliteoencontrocom aimaginaçãoem ação,encon
-troquesósedá plenamente pela disponibilizaçãoda imaginaçãodo fruidor.
Sintetizando em seus ângulos principais esse pensamento que seria nosso guia na condução do trabalho, podíamos partir para um direcionamento mais aproximado ao
nosso objetodeestudoe, portanto, realizamos nocapítulo4 um primeirocontatoentre
PortinarieBachelard
.
Poreste contatoapontamosapresençadaimaginaçãomaterialem Portinari e a sua predileção pela matéria terrestre.
Descobrindo com Bachelard dois movimentos da imaginaçãoterrestre, o deextroversão/expansãoe odeintroversão/con -centração,constatamosqueapoesiadePortinari transitavaespecialmenteentre estesdois pólos imaginários, configurando-se por uma espacialidade que buscaríamos evidenciarnasobras.Propondo
-
nosacircular porentreasimagens poéticasligadasàimaginaçãodamatéria terrestre, pretenderíamos principalmenteconduzir oleitora descobrir, habitan
-docoma imaginação,osespaçosexpansivoseosconcentrados.Para tanto,delimitamos
neste capítulo os aspectos configuradores primordiais que, anexando formas e cores a
sonhos,nosconduziriamàexpansão eàconcentração. Porestecaminho poderíamostra
-zer à luz o ponto que destacamos como central para nossa dissertação: a espacialidade poética em Portinari.
Assim, com o foco para a leitura das obras demarcado, estabelecidas as diretrizes paraaaplicaçãoda metodologia,estávamos prontosparaomergulhoqueefetuamos no
capítulo5. Do mesmomodocomo Bachelard não buscoua imaginação poética navida pessoal dos poetas,mas nos poemas, também nósalmejamos atingira poesia do pintor
5
A
em suas pinturas, pois se a imaginação poética produz imagens poéticas, estas são os documentossobre os quais devemos nos debruçar
.
Faz-se necessário,então, quesubli -nhemos umadelimitaçãode nosso trabalho,oqual, não pretendeu desenvolver investi-gações sobre a composição das obras como um todo, mas agir na conscientização das imagens poéticas.
Defrontando
-
noscom as pinturas umaa uma,empenhamo-nosem nosabrir a suasmanifestações poéticas,guiados pelasdiretrizesdefinidas nocapítuloanterior,diretrizes queprimam pelaflexibilidade,emvirtudeda própriametodologiaqueasengendrou.De acordo com as propostas metodológicas adotadas não seria legítimo nos lançarmos às
obras por meio de uma leitura esquemática
.
Por isso, procuramos estabelecer com elas uma relação, relaçãoque nospediu umaatitude amorosae não violenta.
Se tentássemosarrancar,aqualquercusto,coisasdascoisas, teríamos a nossasensibilidadeembrutecida, deixando
-
a enrijecida e incapaz da percepçãosutil e da fruição criativa.
Prisioneiros de pré-
conceitos,encarcerados numacelaa nosimpediros vôosdaimaginação,falharíamosnuma obsédanteeagressivatarefa de decifração,sendo, por fim, devorados
.
Énestesen-tido que nãocabe o termo interpretação, massim, adesãoe amplificação
,
ao nos referir-mosanossosprocedimentosfrenteàsimagens poéticasvislumbradasnasobras
.
Nãoqui-semos traduzir a poesia, quisemos aumentar as imagens experimentadas, ressaltá-las,
sobrecarregando-ascom mais imagensque comelase coadunam.
Convém,ainda, indicarmosoeventual reforçoque pedimosa palavrasde Portinari, sejaem narrativasondeseresgatamsonhos ou mesmoem poemas,aosquaissededicou nos últimosanosdesua vida, tendo sido lançadosem um livroqueos reuniu postuma
-mente. Nãoé nossa intençãosubstituir uma coisa pela outra, pintura e literatura, mas aproximar imagens poéticasque vêm da imaginaçãode um mesmo ser eque, portanto, podem demonstrar certa tendência deseu imaginário
.
Aomergulhar naspinturas, pudemos iraos poucosdemonstrando que,defato, uma espacialidade poética era por elas veiculada. Então, chegado o capítulo 6, restava apro-fundar este tema.Apontadasas relações da imaginaçãoda matéria terrestrecom aespa
-cialidade poética em Portinari, vislumbramos, nesta última, uma dinâmica imaginária6
em que intimidadee imensidão são oelo invisível que une os espaçosexpansivos eos espaçosconcentrados, visíveis nasobras. Edaí pudemos concluirque o pintor de“tem -peramento terrestre” sesobressai, finalmente, como um pintor-poeta de imensidões.
A partir dessa primeira apresentação da dissertação,com uma visão
global
decomoela se desenvolverá, sigamos agora para o confronto mais detalhado com cada uma de suas partes, tendo em mente queesta é apenas uma entre tantas possibilidadesde apre
-ciaçãoda obrade Portinari. A nossa terá o propósitodeparticipar desuasimagens para
além de uma
significa
ção imediata, indo ao encontrodo mundo de devaneio que elasevocam. A poesianosconduzirá parao algoamaisdo queé representadonastelas
.
Antes de fecharmos esta introdução devemos esclarecer a dinâmica de consulta às
ilustraçõesdotrabalho.Localizadasaofinal do volume,elas foram posicionadasem pági -nasduplasque, abertas, possibilitamqueailustraçãoconsultadafiquesempre aoladodo
texto, independentemente da página em queeste seencontre. Por meio desse dispositi
-vo valorizamoso contatocom as obras, facilitandoseu acesso aqualquer momento em que o texto a elas se remeta.
Isto porque julgamos ser essencial que o leitor tenha uma relação visual com elas, ainda que limitada, já que se fará através de reproduções. Chamamos aatenção paraofato de que algumas observações feitas ao longodo traba-lho talvez não possamser precisamente notadas nas reproduções, pois nasceram direta
-mentedo encontrocom a obra mesma
.
Mas, cremosque demaneira geral as reprodu-ções serãorealmente um suporteeficaz
.
7
NOTA:
ELIADE,Mircea. Imagensesímbolos:ensaiosobreosimbolismomágico-religioso
.
São Paulo:Martins Fontes,1996,2
!
PORTINARI
EM BREVE VISã
O GERAL"
Sele
çã
o
das obras
Procuramos, neste capítulo, delimitar um breve roteiro que, oferecendo um panorama genérico da obra de Cândido Portinari, certamente não esgota, mas apontaalgumas de
suas mais importantes manifestações
.
Selecionamos exemplos característicos de certosgrupos de soluções por eleexperimentadas, pontosde confluência,síntese de caminhos trilhadosoumomentos privilegiadosde germinação,de onde partem outrosdesenvolvi
-mentos.Apesar de almejarmos nos aproximar do trabalho de Portinari demaneira glo -balé importantesalientarmos,entretanto,quenossaseleçãonão considerou a produção
de desenhos, retratos,florese ilustrações de livros, por nãoconstituirem o núcleo prin
-cipal da obraem questão, apresentandoaspectos e motivações particulares.Paraorganizar nossaseleção tomamos por base um grande númerode estudosexis
-tentessobre oartista, pelosquais pudemoselaborar alguma noçãode trajetóriado pin
-tor. Dentre as fontesconsultadas em nossa pesquisadevemos destacar cinco que muito
nosvaleram porfocalizar a obra da Portinari com bastanteabrangência e profundidade crítica,ainda quecom abordagens diferentes
.
Sãoelas: Portinari,pintorsociale Cândido Portinari,
de Annateresa Fabris; Dos muraisde Portinariaosespa
çosde Brasília,
deMario Pedrosa; Aquerela
doBrasil,
de Carlos Zilioe CândidoPortinari,
de MáriodeAndrade.
1 Após uma rápida apresentaçãodo pintorem suarelação com a profissão,apontare-mos,então,em linhas bem gerais, o seu desenvolvimento profissional a partir das obras selecionadas, asquais farão ocorpo de nosso trabalho.
Inicia-se nosanos30a produçãosignificativade Cândido Portinari, nascidonuma fazenda de café da cidade do interior paulista, Brodósqui, em 29 de dezembro de 1903. Filhode imigrantes italianos, vive em meioaos trabalhadores rurais, mas jádes -ponta desde cedo seu interesse artístico, procurando atividades
desenvolver
.
que o pudesse
Norastrodesua vocação,segue paraoRiode
Janeiro
aosquinzeanosdeidadee, após !9 uma tentativa frustrada, ingressa em 1921 na Escola Nacional de Belas-
Artes. Em 1928 ganhaoprémiode viagemàEuropaeaté1930viveráemParis, tendovisitadoa Inglaterra,Itália eEspanha. É entãoquequestionaráa limitaçãodesua formaçãoacadêmica, nãosó
pela descobertadas vanguardas francesas,masaté mesmoda tradiçãorenascentista
.
Envolvido na pesquisa e observação, vivendo um momento de transição, o artista não podia, como erao hábito dos premiados, produzir intensamente, dando continui-dade exclusivamente a sua formação acadêmica
.
Apenas três naturezas-mortas voltarão na sua bagagem material.
Quantoàespiritual, além daquiloque traria nos olhos, viria com umarenovada predisposição,avivadasua ligação radical com a terra brasileira. Porcomparação econtraste, fica evidenciadaaespecificidade da cultura brasileira, a impor
-tânciadevalorizá
-
la eaconstatação da impregnaçãodestaem sua sensibilidade.
Em 1931, de voltaao Riode
Janeiro
,Portinari jáencontra uma base modernaesta-belecida.Vivendoaexplosãomodernista,quandoaquestãodostemaséaltamentevalo
-rizada, vinculada especialmente ao nacionalismo, participa principalmente dosegundo
momento,ondeumatemáticasocialseimpõecom maisvigor. Deseus temas,excetuan
-do-se o religioso, a grande maioria se refere à realidade brasileira, constituindo
-
se um repertórioiconográficoondese manifestam tiposesituaçõesespecíficaseabsolutamen-te particulares, distanciando
-
se de qualquer modelo estrangeiro. A busca das origens edesrecalque das culturas formadoras do nacional é um dos impulsosdessa arte preocu
-padacom aautenticidade
.
Assim, aorigem dopintorseconfundecom aorigem dopaíse a paisagem interiorana (representada particularmente por sua cidade natal) e o tipo popular, caracterizadosem seu despojamento, compõem um dos principais coloridos a
preencherem suas telas
.
Portinari produziu com grandeintensidade, numa pesquisa de formas, cores e técnicas que melhor se adequassem à sua pretendida expressão.
Como afirmou CarlosZílio,Asorigensformaisdeseuestilo envolvem diversas influências.Há,por exem
disso,ainfluênciadealgunsartistasda Escola de Paris,doMuralismomexi
-cano,do Quattrocento italianoedosensinamentosdaEscolade Belas-Artes.2
10
Assim, várias expressões passam por suas mãos e aos poucos se vão definindo as
característicasdesua pintura, tanto no estiloquanto na temática, que, noentanto, car -regará sempre a marca de uma procura ativa. Em busca da pintura, o processo de assi
-milaçãodeinfluênciassedá sempre pela experimentação.É precisoentender comamão
.
Paraotrabalhadorconsciente,oatoéomeio privilegiadoondeareflexãoacontece unidaàação, num movimento detrocascontínuasquegera novassoluções.Numauniãoindis -solúveldeartista eartesão,esse trabalhadorcônsciodoofício,lidacom aartecomoeter
-na descoberta.Descoberta dos meios que possam desvelar oartista. Entregue àsensibi -lidadequecaptasegredos pairando noar que todosrespiram,oartista inspirae expiraa poesia, sopro que dará vida a seus elementos picturais, enquanto que, como artesão, transpira a pesquisa técnica, o domínio dos processos que participarão da génese dos novosmundos prestes aexplodirem na tela.Estaé a proposta de Portinari:
Eucompreendo(...)anecessidade dequeoartistarealizeum laborcons -tante, ininterrupto. O trabalho regular é indispensável e serve para lhe depurarasensibilidade, vitalizarossurtosdeenergiacriadora,acentuara
originalidadeeaeficiênciadosseusmeiosdeexpressão. Pelo trabalho,ele faz um apelo a si mesmo e vai penetrando, devassando, exprimindo
melhor o mundo interior. Um pintor imóvel pode estar em transe, em
angústia; é possível que todoele sangre noesforçodo sonho. Mas oque
contestoéque, sem apráticaconstante, tenhaagilidadedescritiva,avisão sintética, comque possa plasmar em traços lúcidose definitivos, as suas
inquietudesmaisprofundas.3
Trabalho e devaneiose destacam, então, como atitudes básica do pintor que, pela
constanteexperimentação, busca trazer à tona ossonhos profundos do mundo interior
.
A esterespeito,Annateresa Fabris resume algumas proposições de Mário de Andrade:Oartistaeoartesãoimbricam-se nele,levando
-
oaexperimentartodosossemseesquecer, noentanto, deemprestar a suasexperiências umsentido
poético próprio, de conferira todaselas aquela qualidade que Máriode
Andrade denomina instintiva humanidade,4
1 1
Pesquisando e incorporando diversas contribuições estilísticas, Portinari constitui
umaobraamplae múltipla, rica na técnica e naexpressão, que não pode,ésemprebom lembrar, ser dissociada deseu momentoeespaçohistóricos. Aarte brasileira do período modernista,noqual seinsereo pintor,esteve intimamente ligadaa questões nacionalis
-tas, como jáapontamosacima. Nesseestágio de desenvolvimento de nossaarte,a neces -sidade derepresentação na pintura aindasefaziapresentecomoum códigode valora ser
explorado, tomado pelos artistas como base para atuar
.
A representação vem ligada aotema, o que define um aspecto literário de brasilidadeem nossa arte moderna, contra
-riamente às tendências européias de vanguarda (onde os artistas brasileiros buscavam subsídios para umarenovaçãoestética), cujocaráter internacionalseafirmava naexpres
-sãoartística
.
Portinari assume para suaarte a representatividadee a figuração, salvo raras incur
-sões no abstracionismo total
.
Vinculando seu percurso, do início ao fim, aos temasnacionais,sente-seàvontadepor tratar deassuntosquelhe diziam respeito,fazendo uso
de um marcado realismo, ainda que não no sentidoestrito do termo. O desenho segu
-ro, detalhistaousintético, sempre forte, captade modogeral,em suas formas construí
-das, a essência das formasvistas. Não falaríamos, entretando, de imitação, posto que o pintor não faz uso de associação restritamente naturalista da imagem, as figuras apare -cendo, portanto, de forma acomportarem maisdoque uma narrativa fechada
.
Se pro-curouretratar umarealidade quegostariade veicular, sempreabriuespaço emsuasobras para a manifestação dos sonhos que se movem por trás das formas, ou melhor, que sonham nasformas
.
Podemosconstatar, naverdade,queo pintor utilizouos temas para dizer algo de seu mundo íntimo.
Ele quis, sim, narrar, mas deu um tom pessoalnarrativae, mais doque isso,soubequeo mais profundoviria pelas tintasda poesia. As
formas precisavam tremer.
a sua
r\
A~\
Realismoe devaneio reunidos,constitui
-
se aarte dePortinari.
Num diálogoentrea i 12artequese
pretendia
brasileira,a queeraensinada naEscolaea quesefazia naEuropa,sedesenvolve uma nova, sempre temperada
pelo
instintodo pintor.
Eseu instintocolo-ca força nas telas
.
Descreve, narra, faz poesia, com força.
E joga.
Entre a realidade das formas que perambulam pela vida e os sonhos profundos, se tensionam as cordas do jogo.
As peças do jogo são as da pintura e é com elasque o pintor estará sempre numembate, em constante pesquisa,buscando finalmente a expressão
.
E é com a variedadedestaexpressãoque buscaremos agoraestabelecer umcontato
.
Passeandopor algumas desuasobras,aí, sim,sermos
apresentados
aopintor.Aindaquede umamaneira precáriaeartificial, através de reproduções, vê
-
lo com nossos próprios olhos, em uma sintéticaaproximaçãocomsuaobraanós legada.Obraàqualopintordedicousuavidaatéofim, em 1962.
Mesmo não sendoa proposta de nossadissertação umaanáliseseqiiencial ou avalia
-çãode trajetória,dedicaremo
-
nos,aseguir,àapresentação esituaçãodas obras seleciona -das,asquais,dispostasem ordem cronológica, podem dar umaleveidéia do percursodo pintor. Não pretendemos descrever detalhadamente as obras e destrinchar a fundo ascomposições, vistoque nosso contatomais aprofundadocom elas se dará mais a frente,
no capítulo5,sob o pontode vistaespecificado para nosso trabalho
.
Portanto, gostaría-mosapenasde,neste momento,chamaraatençãoparaaspeculiaridadesquedemonstram
que nossosexemplossão representantesdeexperiências distintas. Lembremos que nossa seleçãoalmejou basicamenteaabrangência.Exatamentepor issoelafoierigidaem primei
-rocapítulo,antesmesmodametodologia,visto que nãoseconstituiu apartir dametodo
-logia, aocontrário,foi umcorpoorganizado por outrosprincípios,corpoqueteráofim detestar nossa hipótesedeformabastanteglobal,aplicando,aí sim, ametodologia
.
Os princípios definidores da seleção vêm de análises das linguagens de Portinari, postoqueesteéocampoonde eledemonstraadiversificaçãodemomentosdesuaarte
.
Como principais pontos norteadores para nossas análises, tomamos os aspectos da
forma,cor eespaço, considerando quesão pontos fundamentaisaqueopintordirecio
-na suas pesquisas relativas à linguagem
.
Ao lado destes dados, acrescentamos algumasobservações relativasà técnica,quando nos pareceu queestas também sinalizavam opções marcantes de experiências do pintor. E, ainda,sabendo
-
seque a arte de Portinari não seconstrói sozinha, apontamos a conversa que ela realiza com diferentes movimentos esti
-lísticos para sua constituição, abstendo-
nos, contudo, de uma avaliação deseu papel nocurso dasartes plásticas brasileiras, jáque istonãoseinclui em nossosobjetivos
.
Procuramos, sobretudo, acentuar diferenciações significativas entre os exemplos, as
quais, porsua vez,caracterizam-secomosemelhançascomoutrosgrupos detelas da pro
-dução do pintor. Para retirar essas onze obras de seus respectivos grupos, levamos em
consideração o fato delas realmente terem boa representatividade quanto às soluções experimentadas na fase a que pertencem, odestaque queelas têm recebidos pelos pes
-quisadores (principalmente oscitados no in ício docapítulo) e, inclusive, o fato de pin-çarem temas efiguraçõesrecorrentes na obra dePortinaricomo um todo.
13
fi s
2.1
-
CIRCO (ilustração 1)Uma primeira fase da trajetória do pintor têm sido denominada de fase marrom,
vistoquenelasedestacaa predominânciadestacor,quevem paraastelasatravésde uma
pincelada macia. Nesta fasese incluem as quatro primeiras obras aqui apresentadas, as
quais,além de pontosaproximativos,apresentam também distinçõesimportantes
.
Centrado inicialmenteno resgatedememóriasinfantis, Portinari procuraencontrar
a sua cidade natal. A tela Circo
,
por exemplo, insere-
se nas pinturasde Brodósqui,
onde predomina o trabalho espacial da paisagem, que em sua infinitudeabriga
, como um cenário onírico, a infância de seu tempo. Ainda que diretamente referenciada ao seu povoado, aespacialidade da tela podeser relacionadacomada pinturaMetafísicade De Chirico, que cria amplas profundidades vazias e silenciosas.
Certamente a pintura de Portinari em muitose distancia da Metafísica, mas em suas intenções elasse tocam em alguns pontos, especialmente na “escolha do originário,
em detrimento do original”5A pintura não precisa abandonar códigos do passado, poisoquese está buscando nãoé a novidade pela novidade, mas antes, valores eternos, que só ossonhos podem traduzir.
-2.3
-
CAFé (ilustração 3)A tela Café marca a trajetóriade Portinari como consagração, pois foi premiada na ExposiçãoInternacional de Pintura doInstitutoCarnegiedePittsburgh (EUA),e como
momento de passagem, já que apontava como próximo passo a concretização de uma vocaçãomuralista quevinhase revelando.
Nesta telao pintorelabora com maior complexidade o trabalho com a plasticidade
que tendeao monumental,deixando manifesto um desejodeseexpandir para alémdas limitações do quadro decavalete
.
Um transbordamento perpassa a tela pela construção epela
tensãodo movimentocontidonasformas que incham.Os personagensseaparen -tam aolavrador da tela anterior,com seus grandesvolumes torneados em contrastantesclaro
-
escuro, porémagora com acabamentos maissintéticos, assim comobastantesinté-ticossãotambém osoutroselementos dacena.Ainda quemanipulea simplificaçãofor -mal,criando estruturaeritmo, Portinari não cairá nunca no puro formalismo, poisque procura sempre sentir os temas por dentro, cunhando
-
os com uma sentimentalidadeparticular.
Para a elaboração da maior complexidade da trama de Café
,
o pintor entrelaça o grande número de personagensem variadas atitudese os articulacom a paisagem,espa -lhando-
os em todasuaextensão.
Os personagens aqui interagemcom a paisagem eesta, porsua vez,torna-
se maisconcreta,dotada de umasolidez correspondenteàmonumen-talidadegeral
.
15
o
''N
2.4
-
R ETIRANTES (ilustração 4)Temosnesta tela uma combinaçãodesolideze indeterminaçãodasformas naconfi
-guraçãodos personagens. Ogrupoquese recorta nitidamentenoespaço, através de um desenho de contornos precisos que limitam massas corpóreas robustas, apresenta, por
outrolado, internamente,formasdissolvidas,como algumasmãos,edetalhamentossim
-plificados, comoalgunsrostos,relembrando, neste novo momentoem quea monumen
-talidadeé predominante, o vagoque pincelara as crianças de Circo
.
Mesmo os volumesalternamentresedefinirem plenamente“por passagens expressivas da luz à sombra” 6,
seconstituirem por pastas de tinta em quea pincelada fica marcada.Aliás, a matéria da i 16
tinta é, de um modogeral, mais valorizada em sua materialidade do que nosexemplos
anteriores.A tinta não seestica apenas para definir formas,ou ainda representar outras matérias, e também nãocria textura por simplesdeterminação formal, como as peque
-nasví
rgulas
querecobrem o Lavrador,
masantes,busca a textura na evidenciaçãodesuaprópria matéria pastosa, acrescida de efeitos de aspereza.
O grupo de personagensassim constituídosecontrapõe aofundoquesegueao infi -nito,ebasicamente porestacontraposição sedeterminaacena.A paisagem ésimplifica
-da nasfaixasdecorque criamcéu eterra,caracterizando-se umfundo indistintoquesur -girá emdiversos momentos da obra do pintor,quando ele sonhacom grandesáreasdes-povoadas
.
Em meio ao deserto, os personagens se agrupam por um equilíbrio clássico, num
arranjo piramidal, solução bastante típica do Renascimento. Eentão verificamoscomo
o pintor modernista, que faz a tinta sair de sua discrição, pode ser também clássico, inclusive criando,dentro da imprecisão,detalhamentoscomo obrilho noscabelos,efei
-tode aspectorenascentista
.
Mesmo sendoogrupo central o protagonista da composição, não poderíamosdei
-xar de chamar a atenção,ainda, para os outroselementos queaparecem em cena, visto quenãosãomerosacidentes doacaso, maselementosque fazem partedo imagináriodo pintor, tendo uma freqtiência assídua em sua obra: as aves voando, as pedrinhas, a moringaeobaú
.
2.5
-
GADO (ilustração 5)Apartir de1936, o poderosomodelado dePortinari,iráenfim disporde umasuper -fície paraseexpandir com generosidade, iniciando-se na pintura muralem umasérie de afrescos para o Ministério da Educação, com tema referente aos ciclos económicos do Brasil, dentreosquais selecionamos opainel Gado
.
Em incontáveisestudos, paralelamenteà pesquisatécnicadonovomaterial,o pintor detalha figuras para compor a sua própriavisãodotema. Quando partepara o trabalho /""N
definitivo na parede, o tema perde um pouco desua importância, em favor da formali
-zaçãoecolorido doselementos, quese combinam para criar umaestrutura.O naturalis -mopresente nosestudosganha simplificações geometrizantes,emesmoocolorido,dife -renciando-se de nossos exemplos anteriores, se desprende de um naturalismo restrito.Aumentando-se, no conjunto dos painéis, a gama de cores que predominavam na fase
marrom,mantém-se, entretanto, olargo uso dos tons terrosos.
Em Gadopodemos perceber um aprofundamentonas experiências com a matéria da
tinta,queseafigura como umamatériavibrante
.
Ao trabalharoafresco Portinariaprovei -taa aspereza da parede, deixando-
a transparecer, fazendo uma combinaçãoda pincelada suave com aaspereza.Notamos tambémcomoascorespreenchemasuperfície quasecomo manchas, oquedemonstra umareduçãodotorneamentodos volumes peloclaro-
escuroe, portanto, um certosentido de planificação, queérelacionadoàconstruçãoespacial.Aexecução dos painéisabrange um período em queoestilo do pintor vai se modi
-ficando, incorporando influências cubistas, manifestadas especialmente pelo recortedoespaço por planos,ainda que o seu espaço não pretenda ser o espaço cubista, o que se
evidencia especialmentepela manutençãodo afastamento dasfigurase do tectonismo
.
A prática muralista dePortinari temsido também relacionadaao movimento mura
-lista mexicano, seja pela grandiloqiiência, seja pelo resgate da tradição renascentista
.
Mas, apesar de pontos comuns, não se deve vincular o encaminhamento da obra de Portinari estritamente aomovimento mexicano, como nos alerta Mario Pedrosa: “Pela própriaevolução interiordesuaartese podever quefoi por assim dizer organicamente,à medida que os problemas de técnica e de estética iam amadurecendo nele, que
Portinarichegou ao problemadomural.
17
”7
2.6
-
ESPANTALHO E B O I E M P A I S A G E M (ilustração 6)De volta aocavalete,apósiniciadaagrandeaventuradomural, Portinari parece
que-rer respirar ares mais livres
.
Diante de um trabalho em queo assunto externo lhe eraimposto, parece ter a necessidade de, mergulhandoem temasmais pessoaise aomesmo
Nesse momento, o pintor se vale de um gesto maissolto que gera pinceladas rápi- ! 18
das
.
Por esta maneira eledá um novo tipo de acabamentoàssuperfícies,as quaiscriam formasinacabadas,edefineumavivalinhanegraquesedestaca doscontornose semovi-menta em curvas enérgicas, com resultadosde cunhocaligráfico.
Vemos nesta tela o personagem muito evocado no período, o espantalho, que na
infância impressionara o pintor equese inclui nas suas imagens deapreço, freqiientan -dosua obra em diferentes momentos. Fazendo fundo a ele, temos o espaçosimplesde
Retirantes
,
queaquisetorna preponderante,sobressaindo porsi mesmo,como aconteciacom oespaço em Circo
,
sendo queaênfase agorarecai na indiferenciação e na lumino -sidademágica doencontrodecéu eterra,queseesticam em tintas maislisas.
Uma espa-cialidadequeremeteatelas surrealistas,com maior proximidadeaTanguy,apontandoo clima fantásticoque perpassaaobra.Diferentemente do Surrealismo,entretanto, não se constituiem Espantalhoumaprofundamentonoirracional,já queoselementosapresen -tados, ainda quesimbólicos, nãoestãodecididamente deslocados de sualiga
ção com oreal
.
Mesmoocolorido utilizado,excetonosefeitos de transparência,énatural, reforçan-doovínculoestreitocom o referente,oque, nestecaso, não seconfiguracomo um anta
-gonismo aoSurrealismo, poiseste estevesempre presoao referente.
2.7
-
CONCHAS E H I P OCAMPOS {ilustração7)Uma nova oportunidadede realização mural surgeaPortinari por um convite para
produzir, em azulejos, dois painéis de vastíssimas proporções, localizados no térreo do
Ministério da Educação. O maior deles, Conchas e hipocampos
,
recobre uma parte dasuperfície lateral de um dos blocos do conjuntoarquitetônicodoMinistério,sendoesta
superfícievoltada paraa rua.
Novamente defronteaos muros, Portinari édesta vezsolicitado pelo desafiode tra
-balharcom umatécnicadiversadasquemanipulouatéentão. A peça,executada
lejos,ausentaa mãodo pintor do acabamentofinal, que, nestecaso,planejamasnãofaz. A experiênciamarcaria também, porsugestãodospropositores do projeto, uma incursão do pintor no monocromatismo, queseresolve pelavariaçãoem cimados tons deazul.
-/'"A
Acentuando-se adiferençacom osoutrostrabalhos dePortinari,dois pontos sedes
-tacamcomoprimordiais,sendoum delesaconstruçãodeumalinguagememinentemen
-teabstrata, jáqueasfigurassãousadas demaneiradecorativa
.
Elimina-
sequalquer tipo denarrativae,paracomporadecoração,organiza-
sefiguras
seriadas,simplificadasaseustraços mais geraisesituadasem meioaformas abstratas
.
Distanciando-
seenormementedosgrandesvolumes torneados, aobra,contudo,aindaconserva algumasugestão volu
-métrica pelossombreadosdas conchas. Masoplanoé realmenteo recurso prioritário eatéalinha ganha umavidaespecial,como vemos navastaforma ondulante ondeela vive
sem representar,existindo porsisó,apenaslinha,semnenhum preenchimentoda super
-fície queela delimita.
Ooutropontodiferenciador de Conchase
hipocampos
éo rompimentocomailusãode profundidade pela perspectiva, repercutindo em novassínteses compositivas
.
Váriosplanos em diferentes tons de azul se espalham pela composição, criando um jogo de transparências que dá àobra umsentidodeaprofundamento.Planosque também con
-firmam amobilidadegeraldopainel,oqual,estandoaoar livre,parecealmejarse inte
-grar aele.19
2.8
-
O S A C R I FÍ C I O D E ABRAãO (ilustração 8)Em 1942, voltandoao Brasil de umaestadia nos Estados Unidos, Portinari desen
-volve trabalhos com forte inspiração no Picasso de Guernica.
Adramaticidadeenergéti-ca que povoa então suas pinturas não pode, porém, ser considerada como decorrência exclusiva do impacto picassiano,mas, conjuntamente,de um impactoaindamaior:oda
guerra
.
Portinariéconvidadonessa épocaarealizaroitopainéisparaaRádioTupide SãoPaulo,sobre temasbíblicos.Vemos aqui, como um exemplodasérie, opainel Osacrifi
-cio de Abraão
,
umaobra praticamentemonocromática,compostaporgradaçõesdopretoem cinzas e por um leveocresujo.
A inquietação já vinha tomandoconta doartista esuas formas contidas comoque
Adeformaçãocontrolada dos anos30 transforma
-
se em desarticulaçãonaStrie Bíblica, na qual Portinari tentadefinir um novocaminhoexpressio -nista, eivado de elementoscubistas.Seorigor clássicodadécada anterior
édeixadode lado,énecessário,noentanto, não pensaroconjuntoapenas
nostermosdapresençadePicasso.Osachadospicassianos,patentessobre
-tudo no usodagrisalha,de umadeformação pronunciada, nacriaçãode
umespaçoabstrato, integram
-
se com a procura deuma monumentalida -depeculiar (...).820
Monumentalidadeque toma novos aspectos, pois queodomínioatéentãoatingido
é
questionado
e omovimentosefaz maisdramático;aforçaliberadacavaastelasou ser-penteiaem pincéiscarregadosde tinta escura. A linha,que vimos irganhando destaque
desde Espantalho,agora definequase por sisóos possantes personagens degrandes for
-mascaligráficase,aomesmo tempoquegritanomovimento instável destes personagens, ela brinca na transparência e noludismoda planificação.
A planificaçãodo espaço é construída pela abstração, queo agitaem recortes dinâ
-micos, mas não atinge a mesma coerênciade Conchas ehipocampos, visto que o pintor conservaalgum tectonismo
pela
basedos personagenseostroncosdeitadose,além disso,matémcertarepresentaçãodeaprofundamentoatravésdoselementos queseafastamgra
-dativamente.
Gostaríamos de apontar, ainda, infiltrada entre as inclinações expressionistas e
cubistas dopainel, apresençadeChagall.Quandoadesarticulaçãotomacontada obra ela possibilita a aparição doanimal flutuante, certamente com significaçãosimbólica relativaao tema, o que não impede, contudo, que ela nos remeta às figuras voadoras o
O
^
•o
de Chagall
.
2.9
-
FAM íL I A D E R E T I R A N T E S {ilustração9)Com a forte movimentação da Série Bíblica já contida, mantém
-
se em Família de retirantesa profunda tensão trágica, afirmando-se oexpressionismoqueantesdeformaraluzes cuidadosamente arranjadas dão o clima doevento, fugindo a uma possível repre
-
!22sentação naturalista de um cenário tropical.
Portinarisolucionaa composiçãocom umanovaediferente experiênciade conjuga
-çãoentre planificaçãodoespaço etectonismo.Com a presençaexplícitadoespaço cúbi-co,os recortesgeométricos assumem mais um caráterdecorativoe lúdico,valendo-sede
transparênciaseinterpenetrações.O fundo,entretanto, planifica
-
serealmente,quebran-do o ponto de vista da janela que se abre ao infinito, criando
-
se uma ideia de palco. Natureza transformada em palco, afirma-
se um colorido vibrante e um tanto artificial, onde amatériaespessae os traçosvigorososcontinuam dramaticamente presentes.
O painelsinalizaoencaminhamento queopintor daráa suaobra,cadavezmaisliga -da à abstração geométrica. Mas, como coloca Mario Pedrosa, mantém
-
se evidentes nopainel as inclinações pessoais do pintor: “ (• • •) o amor das belas cores, das largas áreas
coloridas,das harmonias felizes, à Bonnard, dosgrandes espaços,das poderosas figuras
modeladas, damatériarica.”10
2.11
-
COLHEITA D O C A Fé (ilustração 11)Ocultivodocafé,com seustrabalhadores,maisuma vezaparecesobopinceldaque -le que sonhava ter nascido em um pé de café. Porém agora seus personagens estão, de
certaforma,subjugados a umaorientaçãode forteapelo formalista,ondecoresem for
-masgeométricassão personagenstãofortesquantoos trabalhadores,apesar dequeestes
conservem ainda um caráter manifesto
.
Os corpos,entretanto, jáhaviam mesmoperdidoem definitivoa suaexuberância,os volumes reduzidos tantona formaquantonadefiniçãovolumétrica pelo claro-escuro.As
cores, por sua vez,amenizam oclima tenso deoutras épocas, alegram oambiente, mas
participam,com suadelicadeza,dafragilidade adquirida.Parecequeopintor busca
forto em soluções menos pesadasesedeixa tocar pelo apelo dascores vivas transforma
-dasem formas geométricas, coresque já vinham renovandoo brilho desuapaletadesde a viajem a Israel,em 1956.A própria linhaqueantesse fizera tão vigorosa, agora surge bem maisdiscreta.
''•"N
O
con
Tudoconcorre para oaspecto mais formalista que a obra de Portinari vai tomando !23 em sua fase final, vinculando
-
se cada vez mais a uma dinâmica abstracionista, em quedesponta uma tendência maior àsimplificação do fundoe a uma menor profundidade
das composições. Em Colheita do café o espaço é todo geometrizado, constatando
-
se,ainda assim, a presença do chão. Vale também ressaltar que, mesmo buscando a expe
-riência abstracionista,o pintor não seentregou a ela radicalmente, pois queconsidera afiguraçãocomo um códigode grandevalor para ele.
Nestasucintaexposição procuramos justificar aescolhadasobras com que trabalha
-remos, vistoque esta nãosefez aleatoriamente, massim com o propósitode podermosvivenciar momentosbem variados da pinturade Portinari. Comesteintuito foram esta
-belecidas algumas relaçõese paralelosentrediferentes momentose apontados prováveis
influências eestímulosrecebidos pelo pintor. Adespeito dasvárias influênciasquesofreu
atravésdesuas pesquisas, gostaríamosde ressaltar, porém, aquelasque tocam maisdire
-tamente no foco de nosso trabalho, a poesia, e que aparecem em nomes como De
Chirico, Chagall e
Tanguy
. Não tendo sido um “adepto” da pintura Metafísica ou do Surrealismo, Portinari não sedeteve em abraçar as “ causas” destes movimentos, nãofoiafundo em suas conseqiiências,mas identificou-se com o queelas tinham de proposta veiculadora de sonhoe poesia
.
Endossando nossa colocação, Antônio Bento nos infor -ma que “ era comum Portinari dizer que tinha predileção pelos artista plásticos que seexpressavam atravésde umalinguagem ligadaao lirismoouà fantasia popular
.
Daí,dessas inclinaçõesmanifestasdo pintor,retiramos umreforço paranossasobser
-vaçõesdequeexisteumaconduta poética aacompanharsuas maisdiferentesexpressões
.
Em arteessencialmente figurativa,de base realista, uma energia vigorosa e imprégnante
ultrapassa a narrativa. Desponta, a nosso ver, a força da poesia, oferecendo-nos um
mundoonde ossonhos matizam os dadosdo real apresentados.
Para abordarmos sob essa ótica o trabalho de Portinari, iremos, então, buscar em Bachelard aorientação parauma novaaproximaçãocom este nossocampo de
investiga-/"'S
/
-
'S•'“S
ção
.
Estase farásobreofiocondutor da imaginação, na imediatez doencontrocom asimagens poéticas, procurando revelaroqueofilósofo definecomo “ o primeiro compro -missode umaobra”12,compromisso que
sevincula muitodiretamenteàs zonasobscuras
domundo interior doartista,ocampodos devaneios.
24
NOTAS:
1 FABRIS,Annateresa.Portinari
, pintor sociaLSãoPaulo:Perspectiva/Editora da Universidade de SãoPaulo,1990
.
.Cândido Portinari.São paulo:Editora da Universidade de SãoPaulo,1996.
PEDROSA,Mario.Dos murais de Portinariaosespaçosde Brasília
.
SãoPaulo:Perspectiva,1981. ZILIO,Carlos.Aquerelado Brasil.RiodeJaneiro:FUNARTE,1982.ANDRADE,Máriode.CândidoPortinari.Revista do Património HistóricoeArtísticoNacional Rio de
Janeiro, v.20,p.64-93,1984.
2ZILIO,op.cit.,
p.91
.
3PORTINARI,Cândido,in “ Como
trabalhamesonhamos nossospintores”.OGlobo.RiodeJaneiro,13nov.1934.
4FABRIS,
op.cit,1996,p
.
154. 5DE FUSCO,Renato.Históriadaartecontemporânea.Lisboa:Editorial Presença,1988,p.179.
6FABRIS,op.cit.,1990,p
.
lll.
7PEDROSA,
op.cit,p.12. 8FABRIS,op.cit.,1996,
p.105)
9BENTO,Antonio.Portinari.Rio
deJaneiro:Leo Christiano Editorial,1980,p.340.
10PEDROSA,
op.cit.,p. 33. 11BENTO,
op.dt.,p.60.
12
/"““N
3
!
A
POé
TICA DEBACHELARD
"
Metodologia
Sea pintura já oferece intimeras resistências a um estudo meramente objetivo, a poesia
em pintura exigirá uma aproximação muito particular, que pretenderá abrir caminhos para a adesão de todos aqueles que puderem ser tocados por ela
.
Ainda assim, muitas poderiam ser asdiretrizes de abordagem, valorizando-se umou outroaspectodiferente,pautando
-
sepordiferentes registros.Cadaabordagemsegue inclinações pessoaise talvezamaior chancedesucesso nosresultadosadvenhadaharmoniaentreoobjeto escolhido,
o enfoque particular e ametodologia
.
Dessa maneira, alcançando uma coerência inter-na,a pesquisa pode, como um instrumento afinado, melhor transmitir oque o pesqui
-sador tem aanunciar sobreoobjeto pesquisado.Foi nessesentidoqueacreditamosser estimulante colocar Portinari e Bachelard em
contato, por nos parecerqueeles“diziam” coisas que poderiam se somar
,
num resultadomultiplicador
.
As telasdePortinari nosdescortinaram um mundoque, intrigante,solici-tava um maior impulso paravivê
-
lomaisafundo. A energia jádesprendida nos primei-rosmergulhosde reconhecimento nos moveuem direçãoàs páginas de Bachelard, neste
momentoainda apenascom asuspeitade queelas poderiam nosajudar, e, boa foi asur -presa, aopercebermosqueelasnosdevolviam comveemência às telas,então com odese
-jado
impulso reforçado.
Desta forma, aceitamossugestõesde Bachelard,contaminamo-nosdesuaenormepesquisa nocampoda poesia e nosvalemos desuafenomenologia da imaginação para buscar iluminar a magia quese mistura nas tintas
.
Gaston Bachelard,filósofo francês, viveu nos anosde1884a
1962
.Aquelesque têm sededicadoaoestudo desuaobra,costumam apontar neladuas linhas de reflexãoopos-tas. Aolado de um
Bachelard diurno, fascinado pela interminável aventura declarificação e correção de conceitos, formulador de um novo racionalismo
—
aberto.
setorial, dinâmico, militante-, existe,com igual forçaeriqueza,comple
-mentarmente,um Bachelardnoturno,inovadorda concepçãode
imagina-ção,explorador dodevaneio,exímiomergulhadornasprofundezas abissais
daarte,amanteda poesia(...)'
26
ÉesteBachelardnoturnoquem iráressaltar afunçãodo devaneiocomobase da ima-ginaçãoartística
.
Devaneio, momentode solidão,aprofundamento num mundoíntimoonde tudo está constantemente por ser descoberto e redescoberto, criado e recriado,
ondecadasonhador podedar livrecursoàsinclinaçõespessoais,com oconfortodehabi
-tar um espaçofeito sob medida.
ParaBachelard2,odevaneiosedistinguedo sonho
noturnoespecialmente pela presen-ça possível daconsciência no primeiro.Odevaneio prepara umestadode desprendimen
-toqueabreosujeito parao novo, paraosmundos possíveis idealizados pela imaginação, diferentes da limitação do pré-estabelecido
.
Ativada a imaginação, ela passa a namorardados do real, não pretendendodisfarçar orealcom máscarasdivertidas, masantes,reve -lá-lo
.
Esta revelaçãocertamente nãosedará pela reprodução mentaldo percebido,jáquea imaginação não sedetém na aparência dascoisas e não tem a intençãode sintetizar a
realidadeemconceitos;as imagens,os produtos daimaginação,sãodiferentes das ideias
.
Avida das imagensé,deoutromodo,alimentada pela matériaquealimentaasformas
.
Amatéria das coisas provoca a imaginação, pois é aí que esta se depara com a vida do
mundo,aquiloqueestá emconstantemovimento,oquenãoestá pronto,oferecendo,por isto, resistência esolicitando a intervenção
.
O sonhador não pode, portanto, ficarinertefrenteàmatéria, tendo umaatitude de recepção passiva peloolharque captaasuperfície dasformas, paraproduzir posteriormenteuma cópiadovisto. Ele agirá nosentidodeuma
adesão, umacolhimentoativo, impulsionadopelavontade deintegração comomundoe
dese tornarcolaborador na criação, criando realidadesqueaumentam o real, imaginan
-doa matéria, enxergando além do já dito, o jásabido, o aparente,aparentementeclaro,
unívoco e definido, ganhando novos olhos, de olhar penetrante e sonhador
.
Umolhar que,ao penetrar nascoisas, aprofunda
-
se também em si próprio, pois, “aosonharcom a virtudesecreta dassubstâncias,sonhamoscom nosso sersecreto”3
.
S\~Pode
-
se compreender, então, a supremacia que Bachelard concede à imaginação material nosprocessos decriaçãoartística, em detrimento daconsagradaimaginaçãofor-mal. Enquanto esta
privilegia
o papel do olhar em relaçãoaos outros sentidos ese fixa na aparência acabada das coisas, a outra se vale de todos os sentidos para imaginar amaterialidade.Superando um vínculo restritivo com a percepção, a imaginação material garantemais autonomiaaoseu poder decriação, não selimitandoacopiar ousignificar,
mas,aocontrário, desempenhando um verdadeira funçãode irrealidade
.
Desta forma, pela açãodaimaginaçãomaterialseinstala um“mundo intermediário, onde se confundem devaneio e realidade”4, formando
-
se uma realidade plástica, uma
massa apta agerminar pérolas.Odevaneio,então,buscaseu destinoedesejaseexprimir, de formaque alcance outrossonhadores, deformaquetambém dêaenxergar mais pro
-fundamente.
A poesia aparece aí com a função de ordenação dos valores oníricos, etemos, assim, odevaneio poéticoou imaginação poética,imaginando imagens poéticas,
imagenscriadas já comimpulsosde expressão, mesmoquetalvez nemalcancem seufim
último, pois aindadependerãodosucessonotrabalho precioso queosonhador empreen
-derá com a linguagem eleita paradar corpo a umaobra de arte.Vemos,então,queodevaneio,tratado inicialmenteapenascomouma distensãodoser, aoreceberaadjetivaçãode poédcotornou
-
seumdevaneioprodutor de obras.Umdevaneio que,tendo sido, por meioda imaginaçãomaterial, mobilizadopela matéria e tendo medi-tado sobreanaturezadascoisas,encontrou
-
secom asforçascósmicaselementares. “Assim,oselementos, o
fogo
,aágua, oar e a terra,que durantetanto temposerviramaosfilósofospara pensar magnificamenteo universo,permanecem princípios dacriaçãoartística”5.
Esses elementos sãode absoluta importância na filosofia da imaginação de Gaston Bachelard. Podemos considerá-loscomorealidadesoníricaselementares,matériasfunda -mentais que polarizamsonhos básicosdoser humano,osquais,sublimados pelaativida
-deartística, atingem oestatuto de obra de arte.Então, sonhos devôo, de peso, de flui -dez, deintimidade, de expansão,decalma,de agressão,de queda, decrescimento, entretantosoutros materializados nos elementos, saem doseu estado de puro devaneio para, pelo devaneio poético, como linguagem nova virem à luz
.
Nacriaçãodestesnovos mundosquesãoasobras de arteas mãos hábeis e disponí
-
! 28veisde umartistaserãoasveiculadorasdo devaneio poético
.
Oartista,“aceitandoasoli -citaçãoda imaginaçãodoselementos”6, dásuacontribuição pessoal, pois “cada psiquis
-motransmitesuas própriascaracterísticasaumaimagemfundamental”7
.
Elemanipulaacomplexidade dos dados da imaginação,culturaise técnicos paraa constituiçãode uma
obra, a formação de um todoque ponha a
linguagem
e o espectador em movimento, abalandoosseus automatismos, numdesdobramentodo impulso criador primeiro.Aobraé,finalmente,onossocontatocomasimagens doartistaeelaexisteindepen
-dente dequalquer tipode contextualização,isto é, ela não é construída independente
-mente docontexto,massuaexistência éindiscutível,depois de realizada elaestáaípara quem quiserabsorvê
-
la. Epor maisquesetentesituar ouelucidar uma obra, nenhumacausapode jamais preverasimagens poéticas emsuanovidade,quechegamaté nós e sur
-tem efeitos sem qualquer explicação prévia do criador, demonstrando seu poder de comunicação, desde quese tenhaacesso àlinguagem utilizada
.
Bachelard, noseuinteresse pelas imagens poéticas, ressaltandoo papelda imagina
-çãomaterial,sugere umaabordagem quevá em direção ao núcleo palpitantedas ima
-gens,em direção àforçadecriaçãoqueelascomportam.
“Aimagem poética, aconteci-mentodologos,épara nós pessoalmenteinovadora
.
J
á nãoa tomamoscomo um ‘obje-to’
.
Sentimos queaatitude‘objetiva docríticoabafaa ‘repercussão’,rejeita, por princí -pio, essa profundidadeondedeve ter seu ponto de partidaofenômeno poético primi -tivo”8.
Assim,atravésde umareflexão ingénua, desprovidosaomáximode preconceitos
e censuras, poderíamos alcançar o n úcleo,as imagens em si, as imagens fundamentais
que, renovadas pela atuação do artista, ganham novo poder de nos conquistar. Este
enfoque visa a uma tentativa de participação no fenômeno da criação no instante em queeleacontece,pelarecriaçãodo momentode explosãoda imagem poética
.
Pelaade-são apaixonada ao criado, o receptor da obra se torna também um criador, ou, pelo menos, beneficia-sedaenergiaestimulantequesedesprendeda forçadeinovação,dina
-mizadora da obra poética, sem se chegar, entretanto, ao problema da composição da