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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS

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Academic year: 2019

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Neoliberalismo e globalização na América Latina

Almiro Petry1(2008)2 1 Introdução

O neoliberalismo dissemina-se, como doutrina econômica – com fundamentos filosóficos, políticos e ideológicos liberais - a partir do final da década de 70 e, em duas décadas, torna-se um guia teórico e prático de partidos políticos e governos em quase todo o Ocidente. Seus princípios doutrinários passam a ser aceitos, apesar dos veementes protestos de expressivos segmentos da sociedade politicamente organizada, assumindo a condição de hegemonia como “pensamento único”. Consolida seu ideário no Consenso de Washington (1989)3.

A vertente histórica deste pensamento surge com o liberalismo dos séculos XVIII e XIX, que ganhou espaço e influência na sociedade européia com o desenvolvimento do capitalismo e com a consolidação da ordem burguesa. A doutrina liberal afirma que o propósito do Estado - como associação de indivíduos independentes – é facilitar os projetos de seus membros e de seus empreendimentos. Os Estados, portanto, não devem impor seus próprios projetos. Esta doutrina fundamenta a doutrina econômica do capitalismo. No século XIX esta doutrina incorporou idéias como o livre mercado, a democracia e a autodeterminação nacional dos Estados. O contrato social do liberalismo explora toda a esfera de escolhas privadas (consciência, opinião, família, iniciativas, educação etc.) que o Estado não deve invadir com vistas a garantir a ordem e a proteger a propriedade privada. Para Locke, propriedade inclui “vida, liberdade e posses” e seu gerenciamento “é um dever a nós imposto por Deus”. Os governantes têm suas prerrogativas regidas pela lei e a “autoridade resulta da aquiescência do governado, e o povo tem o direito, como último recurso, de

1 Mestre em Sociologia Rural (UFRGS) e Doutor em Ciências Sociais (Unisinos); Professor do Curso de

Ciências Sociais da Unisinos e do Departamento de Sociologia da UFRGS (almiro.petry@gmail.com).

2 Atualização da versão publicada em 2007.

3O Consenso de Washington (1989), denominação cunhada pelo economista inglês John Williamson, refere-se a

um conjunto de dez medidas (reformas) que poderiam implementar o crescimento econômico dos países da América Latina. Essas reformas seriam: disciplina fiscal; uma mudança nas prioridades para as despesas públicas; reforma tributária; liberalização do sistema financeiro; uma taxa de câmbio competitiva; liberalização comercial; liberalização da entrada do investimento direto; privatização das empresas estatais; desregulamentação das relações de trabalho e da economia e direito da propriedade assegurado. Além destas dez medidas, os governos ainda optaram pela “reforma previdenciária” em que os trabalhadores perderam muitos dos direitos historicamente (e heroicamente) conquistados.

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derrubar o governante que viole essas condições”4. Esta é a essência doutrinal: reconhecer o desejo individual como fato básico de uma associação civil moderna.

O liberalismo opõe-se a qualquer intervenção do Estado e formula a tese de que o indivíduo se caracteriza como a célula elementar de constituição da sociedade. Nesta condição, o indivíduo tem direito à total liberdade econômica e política, não podendo o Estado inibir ou coibir qualquer iniciativa sua. O mercado, regido pela “mão invisível”, harmonizaria as ações e os comportamentos individuais, alicerçados nos interesses particulares. Assim, as sociedades modernas ocidentais, que constituíram economias de livre mercado, se desenvolveram com base no que A. Smith chamou de “troca, permuta e intercâmbio” de todos os membros.

No plano internacional, esse pensamento deu origem à doutrina econômica das “vantagens comparativas”, fundamentada na total liberdade comercial entre as nações, sustentado no princípio do individualismo liberal e da teoria das relações econômicas racionais. No entanto, esta concepção produziu imensas disparidades e desigualdades que se traduziram em novas formas de dominação e exploração, configurando um imperialismo. As dimensões das desigualdades são crescentes. Segundo Sunkel5, “em 1770 os países mais desenvolvidos apresentavam um Produto Interno Bruto por habitante apenas 1,2 vezes maior do que o dos países ou colônias subdesenvolvidos. Duzentos anos depois, em 1970, esta diferença já era dez vezes maior.” No final da década de 1980 atingia a ordem de 15 vezes. E, em 2004, elevou-se a cifra de 20 vezes. Neste contexto formula-se o conceito de interdependência, ou seja, nenhuma nação é tão autosuficiente que possa prescindir das outras. É necessário encontrar as complementaridades de recursos, com base nas “vantagens comparativas” e aí intercambiar. Para Z. Bauman, o fenômeno da desigualdade entre as nações é recente, pois, “por volta de 1870, a renda per capita na Europa industrializada era 11 vezes maior do que nos países mais pobres do mundo. No curso do século seguinte, esse fator quintuplicou, chegando a 50 em 1995”. Para o Banco Mundial, essa diferença duplicou nos últimos 40 anos.

O neoliberalismo emerge como uma reação teórica e política ao socialismo e ao Estado intervencionista keynesiano, presente nos EUA (com o New Deal) e na Europa (sociais-democracias), conhecido como o Estado de bem-estar social. Movido pelos princípios clássicos dos direitos individuais, da utilidade, da escolha racional e da racionalidade instrumental, o neoliberalismo revive a questão do contrato social frente aos benefícios sociais concedidos pelo Estado. Como pode o indivíduo gerar bens públicos se isto

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não é do seu interesse particular? A controvérsia atinge “uma estrutura de regras constitucionais” consolidadas na medida em que o Estado liberal defende a

independência e a imparcialidade” frente às preferências individuais de seus membros que, nas sociais-democracias, recebem a proteção do Estado, mormente os pobres. Para Daniel Bell, “as sociedades capitalistas modernas exigem tanto uma ética protestante austera e parcimoniosa na área da produção quanto uma atitude hedonista para com o consumo – uma propensão tende a destruir a outra.6

Os principais ideólogos do neoliberalismo são: L. von Mises (1881-1973), F. von Hayek (1899-1992), M. Friedman (1912-2007), K. Popper (1902-1994) e L. Robbins (1898-1984), partidários que se associam para combater o socialismo, o solidarismo e o Estado do bem-estar social. Afirmam a liberdade econômica e política como absolutas, que se regeriam pelo funcionamento dos mecanismos de mercado. A cartilha deste ideário está consignada no Consenso de Washington (1989). O “laboratório” deste ideário é o regime totalitário de Pinochet, no Chile (golpe de Estado em 11-09-1973). De lá, espraia-se pelo mundo. A década de 1980 foi marcada pelo “surto da ideologia neoliberal”, frente à crise do capitalismo, iniciado na Inglaterra com M. Thatcher (1979-1990), passando por R. Reagan dos EUA (1982-1990) e, depois, H. Kohl na Alemanha (1982-1998), após a reunificação, etc.

2 O pensamento liberal de Hayek

No livro Os fundamentos da liberdade7 Hayek analisa questões básicas da Filosofia Política. Ele parte da constatação de que cada época ou período da história humana, ou cada cultura, ou até cada geração em cada civilização têm sua linguagem própria, e para que os conceitos, mesmo de verdades perenes (ou velhas verdades) estejam vivos na mente humana, precisam ser reafirmados na linguagem das novas gerações. Entende que as idéias fundamentais de uma civilização têm sempre o mesmo valor, mas as palavras e os argumentos, para serem proferidos com a mesma convicção, necessitam ser elaborados para a nova formação social.

Acredita que a civilização ocidental, construída sob o ideal da liberdade, teve seus fundamentos abalados no último século (expressou isso em 1959), e os homens, em vez de melhorarem o conhecimento e a aplicação daqueles princípios, buscaram ordens sociais alternativas. Julga, portanto, ser tarefa premente a reconstrução da sociedade e não a redenção dos indivíduos.

6Apud: BOTTOMORE, op. cit. Recomenda-se a leitura do texto clássico de Max Weber: A Ética protestante e o

Espírito do capitalismo.

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Na contenda ideológica (liberdade x servidão), o Ocidente só poderá triunfar consolidando a convicção no seu credo, isto é, clareando as mentes daquilo que se quer preservar e daquilo que se quer evitar, construindo posições inequívocas.

O Ocidente mostra-se inseguro e perde a fé nas tradições que constituíram sua civilização. A raiz está na crescente descrença na liberdade. Exatamente a liberdade que possibilitou a construção do sistema econômico, social e político, resultando num bem-estar social e de crescimento sem precedentes. Acredita que todas as conquistas do Ocidente podem ou deveriam ser transplantadas para outras culturas e civilizações e reavivar a tradição para a construção de uma sociedade livre, com base na dignidade humana, nas liberdades individuais e com um mercado livre.

Para Hayek, liberdade individual (ou pessoal) é o estado (ou condição) no qual o ser humano não está sujeito a nenhuma coerção decorrente da vontade arbitrária de outrem (ou de outros), sendo, portanto, a tarefa de uma política de liberdade minimizar ou até, se possível, eliminar a coerção e seus efeitos danosos. Fundamenta seu conceito no processo civilizatório ocidental que inicia sob a distinção dos humanos em livres e escravos. Assim, o ser livre significa a independência frente à vontade arbitrária de um terceiro (p.27). Por isso, a liberdade trata, exclusivamente, da relação do homem para com seu semelhante, aplicável somente à sociedade humana. Nesta perspectiva, pressupõe-se que o indivíduo tenha preservado certo âmbito de atividades privadas, ou seja, exclusivo, em que os outros não possam interferir, que ele descreve como um estado de liberdade.

Denomina-se liberdade política a participação na escolha do governo, no processo legislativo e no controle da administração. Faz parte, portanto, do conjunto das liberdades coletivas (isto significa que um povo livre não é necessariamente um povo de homens livres, p.29). O povo livre está na condição de ausência coactiva externa. Em geral, os simpatizantes (adeptos e defensores) da liberdade individual aspiram (lutam e defendem) à independência da nação (os movimentos de independência de povos e nações incluem-se nesta perspectiva).

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A liberdade interior diferencia-se, porém, do livre-arbítrio, que se refere “às ações e à vontade humana, e pretende significar que o homem é dotado de poder de, em determinadas circunstâncias, agir sem motivos ou finalidades diferentes da própria ação8”.

Quanto ao livre-arbítrio, Hayek busca uma fundamentação histórica e afirma que a crença no freedom of the will foi invalidada pela ciência moderna, que gerou a crescente convicção determinista. Assim, a controvérsia configura-se em duas correntes: os deterministas e os voluntaristas. Os deterministas em geral argumentam que, como as ações humanas são completamente determinadas por causas naturais, não há fundamento pelo qual os indivíduos possam ser responsabilizados, nem elogiados ou criticados por suas ações. Os voluntaristas afirmam que, como existe no homem um agente que se encontra fora da cadeia de causa e efeito, é esse agente quem deve ser responsabilizado, constituindo o objeto legítimo de elogio ou crítica. Para Hayek, os voluntaristas estão bem mais próximos da verdade, enquanto os deterministas se acham equivocados (p.97). Desta forma, livre define a ação de acordo com a vontade própria, e não com a vontade alheia.

Uma confusão que muitas vezes se estabelece é identificar liberdade enquanto poder, descrevendo-a como a faculdade física de fazer o que alguém quiser (p.32). Essa confusão decorre da utilização das palavras limitação (restrição) e coerção no conceito de liberdade. Assim, por exemplo, John Dewey defende que a liberdade é poder, poder efetivo para uma atuação específica, e a exigência de liberdade é exigência de poder, ou ainda, se o uso da força está ou não justificado em essência, é uma questão de eficiência dos meios para a consecução dos fins, e só se valorizará como um meio para a liberdade o que é poder (p.34).

Dessa forma, a interpretação da liberdade enquanto poder foi facilitada – pela tradição filosófica – ao utilizar a palavra limitação em vez de coerção. A limitação, em sentido restritivo, pressupõe a ação de um agente humano, isto é, a ação de impedir que as pessoas façam determinadas coisas. A coerção dá ênfase à idéia de compelir as pessoas a fazer determinadas coisas. Hayek julga que, para ser exato, dever-se-ia definir liberdade como a ausência de limitação e coerção9. Mas a preferência é pela definição de ausência de obstáculos à realização de nossos desejos, ou ainda, como ausência de impedimento externo. Isto equivale a interpretá-la como poder efetivo de fazer qualquer coisa que se queira(p.33).

Consolidando o conceito de liberdade como a ausência de qualquer coerção que deriva da vontade de outrem (p.36), a liberdade torna-se positiva através do uso que dela se fizer, contrapondo-se, dessa forma, à escravidão. A relação liberdade, coerção e lei depende do conceito de coerção, mas também o conceito de arbitrariedade é indispensável para a

8 Novo Dicionário Aurélio, verbete: livre-arbítrio.

9 Conforme o Pequeno Dicionário Oxford: a 1ª. acepção de coerção: compelir ou restringir, pela força, ou por

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definição de norma ou lei. A sociedade livre confere ao Estado o monopólio da coerção10, impedindo que seja exercida por pessoas particulares. Isto só será possível se o Estado proteger as esferas privadas contra a interferência de outros, apoiado nas regras que estabelecem esses limites (p.38).

Segundo Hayek, para compreender a sociedade, a máxima socrática de que o reconhecimento da ignorância é o começo da sabedoria, tem um profundo significado, porque as formas mais avançadas da vida humana que se denomina de civilização, repousam no fato de que o indivíduo se beneficia de mais conhecimentos do que os que ele possui. Isto significa que a civilização começa quando, na persecução de seus ideais, o indivíduo utiliza um volume de conhecimentos muito maior do que o adquirido por ele próprio, podendo ultrapassar os limites de sua ignorância e usufruir conhecimentos que não possui. Por outro lado, o conhecimento existe unicamente como individual, pois falar em conhecimento da sociedade é tão-somente uma metáfora. A mente humana, contudo, é um produto da civilização na qual o indivíduo nasceu, cresceu e desenvolveu seus hábitos, sua linguagem, suas crenças e seus saberes. A mente, porém, é um sistema em constante mudança. Para evoluir, deve-se permitir uma revisão contínua das concepções e ideais presentes. Assim, o conhecimento que o indivíduo manipula é uma pequena parcela daquilo que contribui para o êxito de suas ações. A evolução da mente humana faz parte da evolução da civilização. Desta forma, a liberdade individual é essencial para a pessoa humana ultrapassar seu conhecimento limitado, confiando no seu esforço independente e na competitividade, para fazer frente às suas necessidades.

A teoria da liberdade desenvolveu-se, a partir do século XVIII, na Inglaterra (que conhecia a liberdade) e na França (que não conhecia a liberdade), configurando duas correntes (tradições): a anglicana, empírica e assistemática; a francesa, especulativa e racionalista. A anglicana baseia-se numa interpretação das tradições e do crescimento espontâneo das instituições, que foram compreendidas imperfeitamente. A francesa, formula uma utopia que, em várias tentativas, se tentou pôr em prática, mas que não se constituiu em êxito.

O moderno liberalismo considera as duas tradições como suas vertentes, diferenciando-as pela cosmovisão peculiar: a anglicana, essencialmente empírica, encontra a essência da liberdade na espontaneidade e na ausência da coerção; a francesa, com postura racionalista, encontra a essência da liberdade somente na perseguição e consecussão de um propósito coletivo absoluto (p.76).

10 Ihering afirma: o Estado é uma comunidade humana que reivindica, com êxito, o monopólio do uso legítimo

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O homem, como produto de sua civilização, na sociedade livre não encontra limites às suas aspirações, mas os ineficazes serão abandonados e os eficientes mantidos. A concorrência, na qual se baseia o processo de seleção, deve ser entendida no seu mais amplo sentido, isto é, concorrência entre os indivíduos e também entre grupos organizados e não-organizados. A organização, por sua vez, baseada em conhecimentos, constitui um dos meios mais poderosos que a razão humana pode empregar. Defender a liberdade, porém, é opor-se a toda organização exclusiva, privilegiada ou monopolista, como também ao emprego da coerção, para impedir que outros tentem apresentar melhores soluções.

Grande parte do progresso social é devido ao fato de que o homem não controlou a vida pela razão. O processo evolutivo da razão baseia-se na liberdade e na imprevisibilidade da ação humana. O racionalista, por sua vez, deseja sujeitar tudo à razão humana, visando ao controle e à possibilidade de previsão. Não estamos longe do momento em que as forças deliberadamente organizadas da sociedade poderão destruir as forças espontâneas que tornaram possível o progresso (p.54-7).

Os pensadores (filósofos) anglicanos lançaram os fundamentos da teoria da liberdade, proporcionando uma análise da evolução da civilização. Segundo eles, a origem das instituições deve ser buscada na sobrevivência das mais funcionais, pois, segundo Ferguson, as nações tropeçam em instituições que são o resultado da ação humana, mas não a execução de desígnio humano. A. Smith, D. Hume e A. Ferguson têm em comum a explicação em termos da evolução espontânea e irreversível de certos princípios óbvios e que lhes permite compreender como as instituições e a moral, a linguagem e o direito, evoluíram por um processo de crescimento cumulativo11 (p.76-7).

No desenvolvimento das idéias sociais, duas tradições assim se configuram: os evolucionistas e os racionalistas. Os primeiros acreditam que a civilização seja resultado cumulativo e conseguido com esforço mediante o processo de tentativa e erro; a civilização é a soma de experiências, transmitida de geração em geração como conhecimento explícito... Os segundos afirmam que o homem foi originalmente dotado dos atributos intelectuais e morais que lhe permitiram moldar a civilização de acordo com um projeto. A tradição racionalista – teoria de construção social deliberada – baseia-se no pressuposto de que o indivíduo é propenso à ação racional e dotado de inteligência e bondade naturais. A tradição evolucionista mostra que certas estruturas institucionais levam o homem a utilizar da melhor forma sua inteligência e que as instituições podem ser estruturadas de modo a minimizar o mal praticado pelos homens (p.80-2).

11 Opõem-se à uma concepção cartesiana de uma razão humana preexistente e independente, ou à idéia de que a

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Pode-se afirmar que a tradição racionalista se opõe a quase tudo que é produto específico da liberdade e, para eles, liberdade é sinônimo de caos. Por outro lado, para a tradição evolucionista o valor da liberdade consiste principalmente na oportunidade que ela proporciona para o desenvolvimento de tudo que não é planejado. Daí nasce o apreço pela tradição e pelo costume, por instituições que são o resultado de uma evolução e por normas cujas origens e justificativas se desconhecem. Uma sociedade livre e bem-sucedida, por mais paradoxal que pareça, será, em grande parte, uma sociedade ligada às tradições (p.83-4).

Entre as normas de conduta, a moral é a mais importante. Os defensores da liberdade – os não adeptos da escola racionalista – jamais deixaram de enfatizar que a liberdade nunca produziu bons resultados quando não existiam convicções morais firmemente arraigadas. A obediência às normas morais não deve resultar da coerção. A coerção em si é maléfica. Assim, o indivíduo tem a liberdade de observá-las ou transgredi-las. A flexibilidade de ação possibilita a evolução gradual e o desenvolvimento espontâneo no campo da moral, o que permite que a experiência futura conduza a modificações e melhoramentos. Nessa perspectiva, D. Hume afirmou que as normas de moralidade não são conclusões de nossa razão, mas conduzem a uma submissão como resultado do respeito pela tradição ( p.84-6).

Para Hayek, a liberdade individual é um dos poucos princípios que a humanidade conseguiu aperfeiçoar e, por isso, deve ser considerada como um princípio moral de ação política. A história humana mostra que as normas morais de ação coletiva são aperfeiçoadas com dificuldade e muito lentamente. Mas isso só acontece nas sociedades livres, pois nas sociedades em que todos são obrigados a servir os mesmos ideais e onde não se permite aos dissidentes seguir outros ideais, as normas só se demonstrarão inadequadas com a decadência de toda a nação. Surge, nesse caso, a questão se o consenso da maioria a respeito de uma norma moral é suficiente para justificar que se obrigue uma minoria dissidente a segui-la ou limitar tal poder. Em suma, a defesa da liberdade é a defesa de princípios em contraposição ao imediatismo da ação coletiva, porque a liberdade não constitui apenas um sistema no qual toda a ação governamental é orientada por princípios, mas também um ideal que só será preservado se for aceito como princípio soberano que governa toda legislação específica. É fundamental a adesão a esse ideal último, porque os “casuísmos” (para a concessão de vantagens momentâneas ou materiais) certamente destruiriam a liberdade por violações gradativas, pois, em cada caso particular, seria possível prometer vantagens tangíveis e concretas como resultado de uma redução da liberdade (p.90-1).

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a si mesma e controlar sua própria evolução pode destruí-la. O homem precisa usar sua razão com inteligência, mantendo a matriz da espontaneidade e da não-racionalidade (o que não é irracionalismo). Não significa abdicar da razão, mas um exame racional do âmbito em que a razão pode ser controlada adequadamente. Assim, para o uso inteligente da razão no ordenamento das atividades sociais, é preciso conhecer o papel que ela de fato desempenha e pode desempenhar no funcionamento de uma sociedade baseada na cooperação de muitas mentes individuais. Aí, quando se acredita compreender seu funcionamento, pode-se estar equivocado. Por isso, é fundamental aceitar que a civilização humana tem vida própria e só se pode aperfeiçoá-la quando se aproveitam suas forças endógenas insubstituíveis e que condicionam tudo que se quer alcançar. Os esforços visando ao progresso devem sempre se dar dentro deste todo, em construção gradativa, utilizando os recursos históricos disponíveis (condena tentar recriar o todo). Nisso consiste o papel da razão no ordenamento da atividade social (p.91-3).

Para Hayek, a liberdade antecede a igualdade e a democracia, apesar de confessar que não acredita em que a causa da liberdade venha um dia a prevalecer, a não ser que nossos sentimentos estejam envolvidos. Por outro lado, o grande objetivo da luta pela liberdade sempre foi a igualdade perante a lei. Essa igualdade, no âmbito das normas que o Estado obriga a observar, é uma extensão do princípio de igualdade às normas de conduta moral e social. A igualdade estabelecida pelas normas legais e de conduta gerais é, todavia, a única forma de igualdade que conduz à liberdade e a única que podemos obter sem destruir a liberdade. As diferenças individuais não justificam que os governos tratem os indivíduos de maneira diferente. De um lado, os atuais partidários de uma igualdade material mais ampla costumam negar que suas exigências se baseiam no pressuposto de uma igualdade de fato entre todos os homens. Para Hayek, nada, contudo é mais prejudicial à reivindicação de um tratamento igualitário que partir de um pressuposto tão obviamente falso como o da igualdade de fato de todos os homens. Por outro lado, a desigualdade de fato não justificaria um tratamento desigual e é essencial à reivindicação de igualdade perante a lei que as pessoas sejam tratadas do mesmo modo, embora sejam diferentes umas das outras (p.109-110).

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da coerção, deve dispensar tratamento igual a todos, mas não pode nivelar as pessoas em suas condições individuais. Isso não pode ser aceito numa sociedade livre, pois seria arbitrário e discriminatório. Assim, ele se posiciona contrário a qualquer modelo distributivo preconcebido que almeja a ordem da igualdade. Defende, porém, uma distribuição mais próxima do mérito individual, sustentada pela liberdade (p.110-12).

Hayek identifica um ponto de convergência entre o liberalismo tradicional e o movimento democrático que é a igualdade perante a lei, donde decorre a exigência de que todos tenham a mesma participação na elaboração da lei. São, contudo, duas correntes de pensamento que buscam objetivos diferentes. O liberalismo (acepção da Europa do século XIX) visa a limitar os poderes coercitivos de todos os governos, sejam democráticos ou não. O democratismo só reconhece um limite aos governos: a opinião corrente da maioria. Pode-se esclarecer os dois ideais definindo Pode-seus opostos: o do liberalismo é o totalitarismo e o da democracia é o governo autoritário (nenhum dos dois sistemas exclui necessariamente o oposto do outro).

As diferenças podem ser mais esclarecidas: o liberalismo é uma doutrina sobre o que deveria ser a lei; a democracia é uma doutrina sobre a maneira de determinar o que será lei. O liberalismo tem como objetivo persuadir a maioria a observar certos princípios (considera desejável que seja lei aquilo que é aceito pela maioria) e aceita o governo da maioria como método para a tomada de decisões (mas não como autoridade para determinar que decisão deve ser adotada). O democratismo considera razão suficiente aquilo que a maioria quer para ser lei e não só lei, mas boa lei. O liberalismo é uma doutrina que trata da ação e da finalidade do governo, e a democracia, do método, em especial para atingir objetivos igualitários (p.127-9).

As tradições democrática e liberal concordam que sempre que se torne necessária a ação do Estado e, sobretudo, sempre que seja preciso elaborar medidas coercitivas, a decisão deve ser da maioria. O conceito fundamental para a democracia é o de soberania popular, que constituirá um governo da maioria como ilimitado e ilimitável. Assim, nascendo para coibir todo o poder arbitrário, passa a justificar uma nova forma de poder arbitrário, por isso, quando uma democracia afirma que justo é aquilo que a maioria determina que seja justo, a democracia degenera em demagogia.

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recorrer à violência, democracia; ao outro, tirania (p.133, n.9). O fundamento da democracia está, em primeiro lugar, no fato de que é o único método de mudança pacífica que o homem descobriu até hoje; segundo, representa uma valiosa garantia da liberdade individual; e, terceiro, na possibilidade de as instituições democráticas promoverem maior entendimento dos assuntos públicos pela população (p.131-4). Por outro lado, a tese liberal acredita que a maioria deva limitar seus próprios poderes. Caso isso não ocorra, o poder levará, com o tempo, à destruição não só da prosperidade e da paz, mas da própria democracia. Mais adiante, afirma: se a democracia é um meio de preservar a liberdade, a liberdade individual é também uma condição essencial para o funcionamento da democracia. Embora a democracia constitua, provavelmente, a melhor forma de governo com poderes limitados, torna-se absurda quando passa a ser um governo com poderes ilimitados (p.143). E arremata: o liberal, segundo os moldes antigos, é muito mais amigo da democracia do que o democrata dogmático. O liberal está preocupado com a exeqüibilidade, e o democrata, com a soberania popular (p.143).

3 O pensamento liberal de Friedman

No livro Capitalismo e liberdade12 Friedman analisa, como tema principal, o papel do capitalismo competitivo – a organização da atividade econômica por meio da empresa privada operando num mercado livre – constituindo um sistema de liberdade econômica como condição para a liberdade política; como tema secundário, o papel do governo numa sociedade dedicada à liberdade e contando com o mercado para organizar sua atividade econômica.

Da crença popular de que a economia e a política são campos separados e de que a liberdade individual é um problema político e de que o bem-estar material, um problema econômico, Friedman reage afirmando a tese de que existe uma relação íntima entre economia e política, ocorrendo entre determinadas combinações de organizações econômicas e políticas. Também julga imprópria a crença contemporânea num socialismo democrático, quando se condenam as restrições à liberdade individual impostas pelo socialismo totalitário russo. Contrapõe a essa compreensão a tese de que uma sociedade socialista não pode também ser democrática, no sentido de garantir a liberdade individual.

Para Friedman, a organização econômica desempenha duplo papel na promoção de uma sociedade livre: a liberdade econômica é, de um lado, um fim em si própria (na acepção

12 FRIEDMAN, M. Capitalismo e liberdade. 3ª ed. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1988, Série: Os

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mais ampla da liberdade); por outro lado, é um instrumento indispensável para a obtenção da liberdade política.

A liberdade econômica, como fim em si própria, em geral, é tratada pelos intelectuais de forma preconceituosa. Merece, contudo, especial atenção porque se trata do aspecto material da vida, em que se buscam valores mais altos para sua promoção. Por isso, os cidadãos devem ter liberdade para produzir e consumir sob as chamadas leis do mercado livre, porque a liberdade econômica, nela própria e por si própria, é uma parte extremamente importante da liberdade total.

A liberdade econômica, como meio para a obtenção da liberdade política, é importante porque gera o efeito na concentração ou dispersão do poder. O capitalismo competitivo – organização econômica que promove diretamente a liberdade econômica – proporciona a liberdade política, porque separa o poder econômico do poder político e, desse modo, permite que um controle o outro.

Para Friedman, há uma evidência histórica na relação existente entre liberdade política e mercado livre. As sociedades livres organizaram-se com um mercado livre, para a maior parte de suas atividades econômicas, associado a uma grande liberdade política para combater a tirania, a servidão e a miséria. Sem dúvida, a relação entre liberdade política e econômica é complexa e de modo algum unilateral.

Os filósofos radicais do liberalismo estavam inclinados a considerar a liberdade política como um instrumento para a obtenção da liberdade econômica. Isso trouxe reformas políticas acompanhadas por reformas econômicas no sentido do laissez-faire. Após, a reação dos governos foi uma crescente intervenção do governo nos assuntos econômicos (especificamente na Inglaterra). Com a tendência para o coletivismo, nos países democráticos, o bem-estar, em vez da liberdade, tornou-se política dominante. Essa escolha significou, para Hayek e outros pensadores, o caminho para a servidão (referência ao livro The road to serfdom, de Hayek). Essa geração de pensadores liberais coloca a ênfase na liberdade econômica como instrumento de obtenção da liberdade política.

Na questão da liberdade econômica em si mesma, Friedman afirma que o mercado é o primeiro componente, seguido pela relação entre organização do mercado e liberdade política e a construção da sociedade livre.

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A possibilidade da coordenação pelo mercado – freqüentemente negada – tem por base a proposição elementar de que ambas as partes de uma transação sejam bilateralmente organizadas e voluntárias. O modelo mais típico com base na troca voluntária é a economia livre da empresa privada, denominada, aqui, de capitalismo competitivo, em que a cooperação é obtida sem coerção.

A organização desse mercado – do simples (famílias entre si) ao complexo (empresas entre si) – possibilita a cooperação, desde que: a) as empresas sejam privadas, de modo que as partes contratantes sejam sempre, em última análise, indivíduos; b) os indivíduos sejam, efetivamente, livres para participar ou não de trocas específicas, de modo que todas as transações possam ser realmente voluntárias.

O requisito básico é a manutenção da lei e da ordem para evitar a coerção – um problema que se pode configurar é o do monopólio (inibe a liberdade efetiva). Mas enquanto a liberdade efetiva de troca for mantida, a característica central da organização de mercado da atividade econômica é a de impedir que uma pessoa interfira com a outra no que diz respeito à maior parte de suas atividades. Desta forma, o consumidor é protegido da coerção do vendedor; o vendedor é protegido da coerção do consumidor; o empregado é protegido da coerção do empregador etc., e o mercado faz isto, impessoalmente, e sem nenhuma autoridade centralizada.

Na sociedade de mercado livre não se elimina a necessidade do governo. Ele é essencial para a determinação das regras do jogo e um árbitro para interpretar e pôr em vigor as regras estabelecidas. O mercado, por sua vez, reduz sensivelmente o número de questões que devem ser decididas por meios políticos, de um lado, e permite, por outro lado, uma grande diversidade. Essa, em termos políticos, oportuniza um sistema de representação proporcional. Friedman insiste de que é isso que garante a liberdade econômica que, por sua vez, sustenta a liberdade política, tida como a ausência de coerção sobre um homem por parte de seus semelhantes. Em decorrência, a preservação da liberdade requer a maior eliminação possível de tal concentração de poder e a dispersão e distribuição de todo o poder que não puder ser eliminado – um sistema de controle e equilíbrio.

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Para o empreendedor competitivo, numa sociedade de mercado livre, é suficiente ter fundos. Numa sociedade socialista, não seria suficiente ter os fundos. O empreendedor teria que persuadir vários segmentos do mercado e do governo o que, provavelmente, o levaria à desistência. Não é desnecessário reafirmar que uma sociedade capitalista de mercado livre preserva a liberdade. Reafirmar o que é fundamental: o comunismo destruirá todas as nossas liberdades.

Na sociedade de mercado livre, ninguém que compra pão sabe se o trigo usado foi cultivado por um comunista ou um republicano, por um constitucionalista ou um fascista ou, ainda, por um negro ou um branco, porque o mercado é impessoal e separa as atividades econômicas dos pontos de vista políticos e protege os homens contra a discriminação com relação a suas atividades econômicas por motivos irrelevantes para a sua produtividade (p.17-28).

Para Friedman (e os liberais), o fim último da sociedade livre é a unanimidade, que se obtém pela discussão livre e pela cooperação voluntária, como expressão máxima da liberdade. Em decorrência, qualquer outra forma de obtê-la, é coerção.

Esse é o papel do mercado: permitir unanimidade sem conformidade e ser um sistema de efetiva representação proporcional. Na medida em que a unanimidade é um ideal, na prática prevalece a regra da maioria. No contexto da pluralidade, quando as minorias não se satisfazem com a derrota, por questões de conveniência, nem a decisão por uma maioria simples será suficiente. Por isso, é indispensável que haja a discussão livre e a unanimidade com respeito aos meios.

Quando as regras, as normas e os costumes não conduzem ao consenso, entram os papéis básicos do governo numa sociedade livre: prover os meios para modificar as regras; regular as diferenças sobre seu significado; e garantir o cumprimento das regras por aqueles que, de outra forma, não se submeteriam a elas. A liberdade absoluta é impossível (a não ser para a filosofia anarquista) e as liberdades dos homens podem entrar em conflito, e quando isso acontece, a liberdade de uns deve ser limitada para preservar a de outros (minha liberdade de mover meu punho deve ser limitada pela proximidade de seu queixo ...).

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Além de determinar, de arbitrar e de pôr em prática as regras – papel do governo –, cabe ainda ao Estado, em situações excepcionais, ou seja, quando a troca voluntária se torna cara ou impossível (por razões técnicas, por exemplo), assumir atividades específicas (que poderiam ser feitas pelo mercado). Trata-se do monopólio técnico e de seus efeitos laterais. O monopólio implica a ausência de alternativas (portanto, a liberdade efetiva da troca), e somente razões técnicas justificam um monopólio no mercado competitivo. Apesar da inconveniência (é a escolha entre males), são três os tipos: o privado, o público e o de regulação pública.

Quando constituídos, devem ser revistos, pois, numa sociedade em mudança rápida, as condições que levam ao monopólio técnico alteram-se freqüentemente. Friedman afirma que, tanto nos EUA quanto na Inglaterra, se as estradas de ferro não tivessem sido monopólio estatal ou submetidas à regulação pública, seriam uma indústria altamente competitiva, com poucos ou nenhum elemento de monopólio. Por isso, as razões históricas que levaram à decisão e justificaram um monopólio público de fato, devem ser redimensionadas e atualizadas. Isso também é válido para as outras categorias. Esse mal (do monopólio) deve ser reduzido e, se possível, erradicado da sociedade de mercado competitivo.

Os efeitos laterais são os resultados das ações de indivíduos, ou seus empreendimentos, sobre a natureza ou os outros, como, por exemplo, a poluição de um rio por uma indústria (quem o fizer, está forçando os outros a trocar água boa por água má. Qual é o preço da troca?). Isso acontece com as estradas, as habitações etc. Nesses casos, é possível identificar os usuários e cobrar uma taxa pelo uso, pela operação etc. Mas, no caso de um parque na cidade, como cobrar dos usuários? Já para um parque fora da cidade, é perfeitamente viável a cobrança de taxas... Friedman, porém, é categórico: não posso imaginar nenhum tipo de efeito lateral ou efeitos de monopólio importantes que justifiquem a atividade governamental nessa área. Por outro lado, julga que, após uma rigorosa avaliação – vantagens e desvantagens – dos riscos envolvidos, quanto à intervenção governamental e seus efeitos laterais na ameaça à liberdade, pode-se conceder, ou não, o monopólio de determinada atividade (p.33-7).

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de socialismo ou do Estado de bem-estar social. Acha, contudo, ser inevitável o uso de algumas medidas paternalistas.

Em suma, o papel do governo é manter a lei e a ordem; definir os direitos de propriedade; servir de meio para a modificação dos direitos de propriedade e outras regras do jogo econômico; julgar disputas sobre a interpretação das regras; reforçar contratos; promover a competição; fornecer uma estrutura monetária; envolver-se em atividades para evitar o monopólio técnico e evitar os efeitos laterais; e suplementar a caridade privada e a família na proteção do não-responsável.

O liberal consistente (que defende essas teses) não é um anarquista. Ele apenas teme a concentração do poder. Seu objetivo é preservar a liberdade individual, compatível com a não-interferância na liberdade de outrem (p.37-40).

4 Neoliberalismo: balanço e paradoxos

O termo neoliberalismo se aplica a um conjunto de receitas econômicas e programas políticos, inspirados no ideário de F. Hayek e M. Friedman, que começou a ser proposto na década de 70, em substituição ao legado keynesiano e ao socialismo real. O keynesianismo atingiu seu auge nos anos 40, 50 e 60, com a difusão e consolidação do Estado de bem-estar social na Europa Ocidental e na América do Norte. Durante esse período, em outras regiões, houve o crescimento do Estado sob a fórmula do socialismo real. Na América Latina, a industrialização se desenvolveu e se expandiu com forte intervenção estatal.

Esse modelo se esgotou pelos altos e constantes gastos sociais (em saúde, em educação, em infra-estrutura social etc.) e pela crescente participação e interferência do Estado na economia. As propostas básicas para uma virada histórica se referem às relações entre o mercado e as empresas e entre o Estado e o mercado.

A primeira experiência foi a chilena, que não teve a repercussão esperada (inclusive com severas restrições dos liberais), porque foi executada pelo governo autoritário e ditatorial do General Pinochet (a partir de 1973).

Por isso, a referência histórica mais relevante, para a aplicação do receituário neoliberal, é a crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, “quando todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão” (Anderson, 2000, p.10)13. Essa crise (a financeira, das fontes energéticas etc.) combinou “baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação” (idem, p.10). Aí as idéias de Hayek e os neoliberais ganharam espaço,

13 ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir e GENTILI, Pablo (orgs.).

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e os discursos passaram a apontar, como causas da crise, a concentração de poder no Estado, o excessivo e nefasto poder dos sindicatos. Isso teria destruído os lucros das empresas e disparado os processos inflacionários. Com esse diagnóstico, buscou-se a terapia: um Estado forte, mas com reduzidas intervenções e poucos gastos sociais; a estabilidade monetária a ser alcançada pela disciplina orçamentária (cortes nos gastos públicos para não excederem as receitas); as reformas fiscais; restabelecer as condições para o livre mercado; e a reforma monetária. “O crescimento retornaria quando a estabilidade monetária e os incentivos essenciais houvessem sido restituídos” (idem, p.11).

Com as eleições, em 1979, na Inglaterra, surgiu a oportunidade. “Foi eleito o governo Thatcher, o primeiro regime de um país de capitalismo avançado, publicamente empenhado em pôr em prática o programa neoliberal” (idem, p.11). Sucederam, em 1980, R. Reagan, nos EUA; em 1982, H. Khol, na Alemanha Ocidental (que, depois, reunifica a Alemanha); em 1983, Schluter assume na Dinamarca (Estado modelo do bem-estar escandinavo); em seguida, excluída a Suécia e a Áustria, os demais Estados da Europa Ocidental (países do Norte) adotaram políticas inspiradas no neoliberalismo.

O triunfo neoliberal nas economias de capitalismo avançado foi precedido pela intervenção, em 1978, da URSS no Afeganistão. Isso alterou os rumos da guerra fria, pois os norte-americanos, com seu programa a guerra nas estrelas e a construção do escudo anti-míssel, investiram somas vultosas em novas gerações de foguetes nucleares e aviões de caça, bem como em equipamentos sofisticados de espionagem. O programa neoliberal foi uma fantástica alavancagem à indústria bélica (vide guerra das malvinas – para os do norte, guerra das ilhas Falkland; a guerra do golfo – turbilhão de deserto etc.), porque a prioridade dos EUA era derrubar o regime comunista da URSS, através da estratégia de quebrar sua economia. Além do mais, uma das colunas de sustentação do neoliberalismo é o anti-comunismo (incluído no genérico anti-coletivismo).

Os governos desses países, na década de 80, adotaram com maior ou menor intensidade o receituário neoliberal, que assumiu evidências nas políticas concretas das privatizações, do controle monetário, da desregulamentação (ou legislação anti-sindical, por exemplo) etc.

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projetos fracassaram, iniciando com a França. No final da década de 80, também a Suécia e a Áustria sucumbiram à onda neoliberal.

A década de 80 encerra com a queda do muro de Berlim e a de 90 inicia com a reunificação da Alemanha e o fim do regime comunista da URSS, como conseqüência das quedas dos regimes comunistas da Europa Oriental, de 1989 a 1991, significando o triunfo do Ocidente na guerra fria e da ideologia neoliberal.

Na América Latina, a cartilha neoliberal foi aplicada, de forma pioneira, no Chile, sob a cruel ditadura de Pinochet. O governo Pinochet “começou seus programas de maneira dura: desregulação, desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de renda em favor dos ricos, privatização de bens públicos” (idem, p.19).

À experiência do Chile sucederam-se a Bolívia, com Jeffrey Sachs, em 1985; o México, com Salinas, em 1988; a Argentina, com Menem, em 1989; a Venezuela, com Andrés Perez, em 1989; o Peru, com Fujimori, em 1990; e, o Brasil, com Collor, em 1990.

No contexto da década de 90, os EUA e a Inglaterra se apresentam como modelos da nova era do neoliberalismo. Essa posição foi inculcada em organismos internacionais que começaram a rezar pela cartilha neoliberal, como o FMI e o BM, no campo econômico-financeiro; a OMC, no campo dos intercâmbios comerciais (aliás, a OMC é cria do neoliberalismo; com a extinção do GATT, as regras neoliberais prevaleceram na convenção do Uruguai); por outro lado, há resistências ao vendaval neoliberal na UNESCO, no campo da educação, da ciência e da cultura; na OIT, no campo do trabalho; e, na OMS, no campo da saúde.

Para Sunkel14, “existem quatro principais características da situação atual: um desempenho econômico medíocre do crescimento como um todo; um alto (e incontrolável) grau de volatibilidade financeira; uma fraqueza exacerbada das instituições públicas internacionais; e uma contínua deterioração da renda em nível global” (1999, p.175). Isso contradiz o discurso neoliberal, unitário e dominante, que afirma serem as transformações tecnológicas, econômicas, sociais, políticas e culturais, com o fracasso dos dirigismos e intervenionismos, a nova era da liberdade econômica e política, ou seja, do bem-estar econômico e social.

14

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Para estabelecer um paralelo entre o neoliberalismo e a social-democracia, Pérez Gómez15 apresenta os decálogos de cada um deles, formulados por Ayuso(1996), com a seguinte versão:

“O decálogo neoliberal

1. O Estado tem que limitar sua atuação ao estritamente imprescindível. 2. As contas do setor público devem estar sempre equilibradas.

3. Eliminar subsídios a empresas, cortar os gastos sociais e reduzir ao mínimo os gastos correntes da Administração.

4. Corte drástico dos impostos e encargos sociais de empresas e particulares. 5. Flexibilidade do mercado de trabalho. Eliminação do salário mínimo.

6. Reformas estruturais pela via de uma maior flexibilidade do mercado fundiário e uma abertura geral à concorrência.

7. Políticas microeconômicas de fomento ao investimento privado e políticas ativas de emprego.

8. Políticas monetárias baseadas em tipos de interesses baixos. 9. Política fiscal que incentive o reinvestimento de benefícios. 10. Modificação do sistema de negociação coletiva.

Os mandamentos social-democratas.

1. O Estado tem que enfrentar uma séria reestruturação e reduzir seu déficit público dentro das margens traçadas no Tratado Maastrich – 3% do produto interno bruto – , mas nunca à custa de deixar indefesos os desempregados e pensionistas.

2. Reduzir o custo do fator trabalho, moderando ligeiramente o fisco sobre o trabalho. 3. Programa de privatizações e manutenção de empresas públicas naqueles setores de

interesse nacional.

4. Política de tipos de interesse a serviço de um desenvolvimento sustentável não-inflacionário. Controle dos mercados financeiros para evitar turbulências especulativas sobre as divisas mais fracas.

5. Reforma do mercado de trabalho, com maior flexibilidade na contratação e barateamento ao despedir.

6. Aposta pela formação profissional que facilite a entrada de jovens no mercado de trabalho e incentive sua contratação pelas empresas.

7. Reforma fiscal que barateie a atividade empresarial e facilite o investimento.

15 PÉREZ GÓMEZ, A. I. A cultura escolar na sociedade neoliberal. Porto Alegre: ARTMED Editora Ltda.,

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8. Modernização do sistema de negociação coletiva, introduzindo elementos que premiem a produtividade.

9. Buscar nichos de emprego nas novas atividades derivadas do ócio, da cultura, da educação e das tecnologias avançadas.

10. A nova organização econômica deve levar em conta os ganhos sociais obtidos e repartir o trabalho escasso entre a população ativa crescente.” (Pérez Gómez, 2001, p.128-9).

Para Anderson, um balanço atual do neoliberalismo só pode ser provisório, porque é um movimento ainda inacabado, mas,

economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas (2000, p.23).

Em meio à guerra fria e em busca de uma alternativa ao socialismo, o neoliberalismo se apresentou como a solução definitiva ao comunismo e à crise do capitalismo, na medida em que sua doutrina propunha uma democracia de mercado “em que imperava a lei da oferta e da procura e a soberania do consumidor”. A América Latina, como periferia do sistema-mundo, passou a ser objeto da implantação neoliberal “pela quebra das ordens constitucionais e por uma involução política antidemocrática”, segundo Rosenmann (2006)16. O exemplo histórico mais importante é o Chile com o golpe militar de Pinochet (1973) que, assessorado pela Escola de Chicago, tendo M. Friedman à frente, inicia de forma ditatorial uma liberalização radical da economia e da sociedade, para deter o “avanço incontido do socialismo marxista”. A recente história nos demonstra que o neoliberalismo se impôs pela força (nem sempre militar, mas pela dominação sistêmica), constituindo monopólios ou oligopólios globais em vários campos econômicos.

O projeto neoliberal traz em seu bojo três objetivos: “promover uma mudança na estrutura social, articular um novo consenso ideológico-político e impor outra forma de exercício do poder político” que passaria, necessariamente, pela refundação de uma economia de mercado e da reforma do Estado, para abandonar o “ranço” keynesiano. Ao não aceitar propostas contrárias e diferenciais, o pensamento neoliberal construiu uma doutrina totalitária e excludente, apresentando-se com pensamento hegemônico e único.

16 ROSENMANN, Marcos. Neoliberalismo. In: SADER, Emir (Coord). Enciclopédia Contemporânea da

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O foco na reforma do Estado sintetiza-se na reforma da gestão pública, na reforma do regime político e na reforma da constituição política do Estado. A reforma da gestão pública adota a lógica ditada pelo mercado (privatizar, descentralizar e desregulamentar). A reforma do regime político delineia-se por uma nova divisão do poder e pelas novas funções estatais. A reforma da constituição política do Estado abrange os limites dos direitos e deveres do cidadão nos âmbitos público e privado, ditados pela sociedade fundada na economia de mercado (o cidadão é visto como mero produtor e mero consumidor).

5 Neoliberalismo na América Latina

Na América Latina, “as democracias liberais” instaladas de cima para baixo, como sucedâneas aos regimes militares, e que promovem as “reformas neoliberais”, têm em Fujimori, no Peru, um modelo político autoritário e conservador, na implantação do projeto neoliberal. No Brasil, com F. Collor e F.H. Cardoso, a “modernização” neoliberal aprofundou a concentração econômica e submeteu o povo a uma exclusão do trabalho, da educação, da saúde, etc. Na Argentina, Carlos Menem leva o país à falência; na Bolívia, Paz Zamora e Hugo Banzer não conseguem arrancar o país da miséria; na Colômbia, Andrés Pastrana agrava o contexto do narcotráfico; em Costa Rica, Rafael Calderón descaracteriza a consolidada democracia e precipita o país em tensões internas; na Guatemala, Jorge Serrano não muda o perfil de pobreza do país; no México, Carlos Salinas não assimila os conflitos internos provocados pelos movimentos sociais; no Paraguai, Carlos Wasmosy não tira o país das nefastas conseqüências da prolongada ditadura militar de Stroesner; no Uruguai, Alberto Lacalle, não projeta a economia no contexto do Mercosul; e, na Venezuela, Rafael Caldera prepara as condições para o regime populista de H. Chávez.

No contexto do sistema-mundo não há “ajuda econômica”, mas somente imposições de políticas econômicas consideradas “corretas” e submissas à ideologia dos guardiões do capitalismo, representados pelo FMI, BM e OMC. Estes organismos olham para a América Latina com prepotência e se impõem como colonizadores, submetendo os povos daqui a um pesado jugo de exploração financeira e de preços.

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caracteriza-se pela crescente restrição de investimentos públicos e, como resultado histórico, ela é conhecida como “a década perdida”.

Para o sociólogo argentino Atílio Borón17, o modelo neoliberal esgotou-se. “Esse modelo fracassou rotundamente em todos os países da América Latina”, diz ele. Os dois casos, sempre destacados como exitosos, o Chile e o México, “evidenciam também esse fracasso”. Estes dois países destacam-se pelas exportações, enaltecidas como grandes conquistas (em parte, a política econômica do governo Lula segue, no Brasil, os mesmos passos). No entanto, naqueles países, na Argentina, no Brasil, na Bolívia, na Venezuela e no Uruguai, há “sinais de rebeldia” contra o neoliberalismo e está mudando “lentamente o clima político da região”. No caso do Brasil, Borón entende que a “contaminação ideológica” gera um mal-estar social e político porque se “jogou fora um processo de construção política de 20 anos do PT” e, lamentavelmente, “Lula não deu certo”, em especial, frente à “postura política” de Kirchner em relação ao FMI.

Borón considera que as “esquerdas” latino-americanas perderam seu foco frente ao impacto das políticas neoliberais. Hoje, elas podem ser classificadas em três categorias: a) “Uma muito sectária que não se atualizou e se mantém aferrada a velhos esquemas e dogmas”, condenada à irrelevância por seu “sectarismo e fundamentalismo”; b) “Uma esquerda que tem capitulado: os casos mais notáveis são Chile e Brasil”; c) “Uma nova esquerda, representada por um conjunto de forças políticas novas e muito heterogêneas como o bolivarianismo na Venezuela e o MAS18 na Bolívia”.

Após quase três décadas de

política neoliberal, do espetacular desenvolvimento tecnológico e informático alcançado e da reimplantação dos sistemas democráticos na América Latina, continua a reprodução da pobreza, alimentada pela crescente exclusão e desigualdade social que nascem como produto da dinâmica econômica atual. Altos níveis de desemprego, insegurança, violência, polarização social, fragmentação etc., são os cenários que predominam nas sociedades latino-americanas atuais (DIAZ e CATTANI, p.7)19

Para Cattani e Díaz,

o modelo global não provocou o crescimento sustentado nem alcançou os objetivos de conciliar o desenvolvimento econômico com o desenvolvimento social de nossos países, como se havia argumentado; pelo contrário, seu processo foi excludente, em todos os sentidos, mas particularmente em dois âmbitos importantes para o crescimento e desenvolvimento de todo ser humano: no mercado de trabalho e no acesso a bens essenciais e a serviços básicos; tendências que, em conjunto, estão dando conta de uma maior

17 IHU On-Line, nº 176, 17-04-2006. Disponível: www.unisinos.br/ihu

18 MAS – O Movimento ao Socialismo que tem raízes entre os indígenas e os produtores de coca do país – se

consolidou como uma força política em ascensão.

19 CATTANI, A. e DIAZ, L. (org.) Desigualdades na América Latina: novas perspectivas analíticas. Porto

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polarização social e que, paralelamente, apresentam novos desafios para a superação da pobreza (p.7).

Frente ao modelo neoliberal implantado na América Latina, a alternativa “populista” ou “de esquerda chavista” – novo campo político – parece ser insuficiente para se contrapor ao ideário neoliberal. Com isto não se pretende negar a emergência de um novo modelo no hegemônico cenário neoliberal latino-americano, na medida em que outras lideranças com bases populares e de povos indígenas e autóctones se evidenciam cada vez mais.

A adoção do neoliberalismo jogou a América Latina nas profundezas do crasso subdesenvolvimento, periferizando ainda mais as precárias economias e relações societais no sistema-mundo. Neste processo houve uma deterioração das condições sociais de vida com o agravamento da pobreza, do desemprego, da precarização das relações de trabalho, do aumento das desigualdades internas etc. apesar dos recentes avanços em termos de redução da pobreza e da indigência.

Pelo ideário neoliberal, a liberalização do sistema financeiro, a flexibilização da taxa de câmbio e a estabilização monetária – requisitos fundantes para o sucesso do modelo, entre outros – impeliram algumas economias regionais a um crescimento significativo. Entretanto, com a abertura econômico-financeira as fragilidades estruturais – estruturas, historicamente, atrasadas e subdesenvolvidas – não suportaram os impactos competitivos e ataques concorrenciais, exigências decorrentes das novas regras estabelecidas pela Organização Mundial do Comércio (OMC). A euforia inicial se esvanece frente à escassez interna de recursos financeiros e de investimentos, na medida em que o capital estrangeiro fluía no passado, sob a proteção dos regimes militares e no início da adoção neoliberal pelas privatizações das empresas estatais dos diferentes ramos da economia e do sistema financeiro.

Na economia globalizada o sistema-mundo capitalista vive e sobrevive na e com a especulação financeira. Assim, as economias latino-americanas não resistiram aos diferentes “ataques” especulativos e suas perversas seqüelas, como o ataque ao México em 199420 com seu “efeito tequila”; a crise asiática de 1997; a crise russa de 1998; a desvalorização da moeda brasileira de 1999 etc., associadas à queda dos preços dos commodeties agrícolas e minerais que se estenderam século XXI adentro, resultado do conflito entre EUA e UE frente às

20 A crise mexicana de 1994 coincidiu com o primeiro grande grito internacional contra o neoliberalismo,

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reivindicações dos países emergentes na luta pela extinção dos subsídios agrícolas praticados por aqueles países21. As perdas forma significativas e constantes.

Neste contexto, surge a Argentina que tenta combinar elementos de política econômica “ortodoxa” (monetarista, defendida pelo FMI e o BM) e “heterodoxa” (estruturalista e intervencionista) na busca da estabilidade macroeconômica, mediante saldos positivos no balanço de pagamentos e da reestruturação produtiva interna. O desafio é superar as vulnerabilidades – tanto internas quanto externas – frente à volatilidade especulativa do sistema-mundo22. Inquestionavelmente, ao optarem pelo modelo neoliberal, as nações latino-americanas escolheram o caminho da globalização23 a partir da periferia24. Atualmente, as perversas seqüelas massacram e neocolonializam povos e culturas locais, pressionando para se adequarem ao sistema-mundo (prevalece o mandamento: adapte-se ou desapareça).

O neoliberalismo, na sua consolidação, está vinculado, por um lado, à racionalização capitalista das potencialidades da revolução científico-tecnológica, da microeletrônica, da informática e da telecomunicação (as ditas tecnologias da informação – TI) articuladas globalmente e, por outro lado, continua preso à hegemonia sistêmica norte-americana, sistema em crise e que se encaminha para o caos, como revelam os sintomas do sistema financeiro global. No sistema-mundo, as corporações globais criam uma nova divisão internacional do trabalho para competir no sistema de produção, de modo particular da especialização produtiva. Os componentes são produzidos em um território e a montagem do produto final é em outro país (montadoras, “maquiadoras”), caindo o made in... substituído pelo made globally25.

Nesta relação, a América Latina joga um papel subalterno e sem perspectivas de saídas porque está na zona hegemônica dos EUA, cujo ciclo capitalista está em decadência. Desta forma, a América Latina, ajuda a retardar a derrocada dos EUA e caminha para a sua própria insustentabilidade, na medida em que as burguesias locais alimentam esta dependência e as demais camadas sociais estão voltadas para o usufruto das benesses do sistema. Tudo isto se explicita a partir da aplicação do Consenso de Washington que desmontou as estruturas estatais (refundação do Estado) e alijou a presença do Estado como importante ator político e social, levando as economias locais a déficits comerciais, a superexploração do trabalho, ao

21 Para fins comparativos e compreensivos: no primeiro semestre de 2007 a Nestlé faturou US$ 42 bilhões

(sendo US$ 4 bilhões de lucro líquido, 18,4% superior ao do mesmo período do ano passado), contra os US$ 32 bilhões de toda exportação agrícola do Brasil (ZH, 16-08-07, p.28).

22 Como ocorreu na segunda semana de agosto de 2007, com despencar sucessivos das bolsas de valores num

efeito dominó. Movimento que volta em fins de 2007 e inícios de 2008.

23 O Chile é tido como “a pequena economia mais globalizada”.

24 No entanto, as “forças” do sistema agem de modo centrífugo, repelindo as economias não regulamentadas

segundo as regras do mercado-mundo.

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aumento das taxas de desemprego etc. Isto agrava a periferização da América Latina aproximando-a mais da África do que dos países centrais e crescendo menos do que as economias asiáticas emergentes. Temos aí um cenário negativo moldado pelo modelo neoliberal.

Por isso, o Banco Mundial, em seu relatório de 200626, afirma de que “o desempenho econômico da América Latina nas últimas décadas tem sido decepcionante, e a região ficou para trás em relação às economias asiáticas dinâmicas”, apontando como principais fatores “a própria pobreza” que estaria “dificultando o crescimento da região e, a menos que os entraves que afetam os pobres sejam abordados, será difícil alcançar um forte crescimento”. Além disso, é do entendimento dos especialistas de que os países da América Latina “precisam combater a pobreza de modo mais agressivo, se quiserem promover um maior crescimento e competir com a China e outras economias asiáticas dinâmicas”. Um círculo virtuoso de crescimento é um fator importante para a redução da pobreza. Entretanto, “esta impede que sejam atingidas taxas de crescimento elevadas e sustentadas na América Latina”, diz o Banco Mundial, além de a região se manter “como uma das regiões com mais alto nível de desigualdade do mundo, onde cerca de um quarto da população vive com menos de US$2 ao dia”. Para romper o círculo vicioso da pobreza, seria necessário “uma queda de 10% nos níveis de pobreza, se outros fatores permanecerem iguais”, o que poderia “gerar um aumento de 1% no crescimento econômico. Por sua vez, uma elevação de 10% nos níveis de pobreza reduzirá as taxas de crescimento em 1% e de investimento em até 8% do PIB”.

Para buscar uma estratégia de redução da pobreza que favoreça o crescimento, o BM recomenda “que os países tornem inicialmente mais eqüitativos os seus programas de gastos públicos, dirigindo-os às pessoas que realmente precisam deles, em vez de gastar os recursos subsidiando programas para os mais abastados, como no consumo de energia, aposentadorias, pensões e universidades públicas”, melhorando a eficácia de suas políticas públicas.

6 Conclusão

Lamentavelmente, três décadas após a implantação do modelo neoliberal na América Latina e quase duas décadas após o Consenso de Washington, apoiados pelo Banco Mundial, esta mesma instituição internacional vem reconhecer de que “a transformação do Estado em um agente que promova a igualdade de oportunidades e pratique uma redistribuição eficiente da renda talvez seja o principal desafio enfrentado pela América Latina na implementação de

26 BANCO Mundial. Redução da Pobreza e Crescimento: Círculos Virtuoso e Vicioso. Relatório Anual,

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