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O romance contemporâneo e o cânone na escola: visões e revisões

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Academic year: 2020

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Nelson Martinelli Filho1 (IFES)

RESUMO: Este artigo tem como intuito trazer para discussão a leitura e o estudo, no âmbito específico do Ensino Médio, de romances publicados a partir das últimas décadas a fim de destacar aspectos da lite-ratura atual que ponham em xeque as fronteiras e os limites tradicionalmente atribuídos a esse gênero na escola, pautados em suas relações com o cânone. Nesse sentido, propomos situar o debate conside-rando a realidade de docentes e alunos da Educação Básica a fim de contribuir para a revisão de conceitos enrijecidos acerca do romance contemporâneo por meio de, em especial, uma revisão do espectro con-ceitual do que se apresenta nos livros didáticos, ampliando os horizontes de trabalho com esse gênero em sala de aula. Para tanto, tomaremos como base o pensamento de Giorgio Agamben (2009) e de Karl Erik Schøllhammer (2009) sobre o contemporâneo. Também contribuirão para este estudo os trabalhos de Cereja (2004), Dalvi (2013), Lajolo (2016) e Oliveira (2013) acerca das relações entre literatura e escola.

PalavRaS-chavE: romance contemporâneo; ensino de literatura; cânone.

O ensino de literatura, sabemos, tem sua responsabilidade atribuída quase que exclusivamente ao ambiente escolar. Como consequência disso, o professor, a quem metonimicamente se relega a voz e o papel da escola, passa a ter como encargo, aos olhos do senso comum, ensinar a ler e ensinar a escrever. Na tentativa de mensurar os resultados em torno da leitura no Brasil e avaliar esse processo, constantemen-te se recorre à pesquisa Retratos da leitura no Brasil, realizada nos anos 2000, 2007, 2011 e 2015 (esta, com dados coletados pelo Ibope, sendo a última disponibilizada, com publicação no ano de 2016), para se chegar ao veredito peremptório: ainda se lê muito pouco no país. Entre os dados com os quais se faz alarde, as manchetes desta-cam: 44% dos brasileiros não leem. Embora a análise da pesquisa não esteja em foco aqui, partimos de dois pressupostos: a definição de leitor e não leitor, nessa baliza, é controversa, assim como também é controverso o fato de a pesquisa ser fomentada por grupos representantes de editoras privadas (Instituto Pró-Livro, com apoio da 1 nelsonmfilho@gmail.com - http://lattes.cnpq.br/9186790476855298

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Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares, da Câmara Brasileira do Livro e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros). Quanto ao primeiro ponto, a arbitrarie-dade da definição de leitor como “aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos 1 livro nos últimos 3 meses” (Failla 2016: 184) não pode pautar conclusões incontes-táveis sobre a leitura no Brasil – da mesma maneira, não é suficiente para a reflexão apenas destacar a estatística fria, por exemplo, de que foram vendidos 3,7 milhões de livros na Bienal do Rio 2017. O objetivo de realizar retratos da sociedade – como já observamos nos impulsos positivistas e realistas do século XIX – é a priori falho.

No rastro dessa problemática, em sua pesquisa de doutorado, a professora Ga-briela Rodella de Oliveira constatou que os alunos ponderam que a delimitação entre ser leitor, não ser leitor ou ser mais ou menos leitor é muito mais ampla, envolvendo critérios como:

O gosto pela leitura (“gosto de ler”, “adoro ler”, [...]); algo que poderia ser interpretado como uma certa compulsão pela leitura (“leio o que aparecer na minha frente” [...]); [...] A qualidade da leitura que é realizada (“leio bem”, “leio além da minha obrigação” [...]); A variedade de leituras que é efetuada (“leio coisas variadas” [...]); [...] A capacidade de compreensão do que se lê (“sou leitor porque sei ler”, “sei interpretar um texto” [...]); E a possibilidade de se ser um leitor sem livros (“sou leitor porque leitor não é só quem lê livros”) (Oliveira 2013: 162-163)

Analisar o campo da leitura, portanto, vai muito além de números e indicadores elaborados de acordo com variados interesses – ainda que impressione o volume e o detalhamento de dados que são produzidos na pesquisa encomendada pelo Instituto Pró-livro. Dizer que os alunos não leem é no mínimo insuficiente. Se removermos as expectativas escolares de leitura, vamos perceber que “os adolescentes leem. Eles podem não ler o que a escola lhes pede para ler, podem não ler com a frequência que se esperaria que lessem, mas em geral eles leem, citam seus livros preferidos e discorrem sobre o lhes agrada nas leituras que fazem dos livros que selecionam para ler” (Oliveira 2013: 262). Desse modo, o intuito aqui não é concluir que o aluno deve ler mais. Além disso, ainda de acordo com os dados da pesquisa de Oliveira, os alunos já leem literatura contemporânea, mesmo que o resultado que o diferencie da litera-tura chancelada pela academia.

Isso não significa, obviamente, tomar a situação como resolvida. Pelo contrário. Tomando como base esse perfil de leitura que já existe, em maior ou menor grau, em certa parcela dos estudantes – e frequentemente de maneira independente da esco-la –, devemos ter em mente que, “no Ensino Médio, o adolescente ou jovem deveria acessar obras nacionais e supranacionais de reconhecido valor ético-estético, subver-tendo-o, alargando, assim, seu repertório e refinando seu grau de compreensão e seu nível de exigência como leitor” (Dalvi 2013: 129). O que está em pauta no momento, então, não é o binômio leitor x não leitor, mas a relevância da ampliação da leitura de romances produzidos contemporaneamente, a partir da mediação de leitura basea-da em perspectivas que se abrem a partir de estudos e pesquisas desenvolvidos.

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Na outra mão, não basta legar a responsabilidade do cenário (qualquer que ele seja) exclusividade ao professor. Na própria publicação de Retratos da leitura no Brasil 4, a professora e pesquisadora Marisa Lajolo aponta um dado que chama a atenção: para a pergunta “Quem mais influenciou o hábito de leitura?”, 15% dos leitores e 6% dos não leitores responderam “Mãe ou responsável do sexo feminino”; em segundo lugar, 10% dos leitores e 4% dos não leitores indicaram “algum professor ou profes-sora” (2016: 207). Entretanto, 55% dos leitores e 84% dos não leitores deram como resposta “Ninguém”. ao considerarmos o importante papel do mediador de leitura, que tem sido objeto de pesquisa nos últimos anos, devemos concordar com Lajolo (2016: 125) que esse dado não nos convence pois, sabemos, que alguém influencia a escolha desses 55% de leitores – e aí entram todos aqueles agentes que perpassam, de maneira clara ou não, a influência sobre um leitor: representantes do mercado (a grande mídia, a publicidade das livrarias e editoras, a mídia independente on-line, as grandes redes sociais etc.), vozes de autoridade (escola, livro didático, professores, bibliotecários, familiares, amigos, outros escritores, youtubers, celebridades etc.), entre outros.

Se continuamos a desdobrar a frialdade dos números apontados pela pesquisa, veremos que a) 55% daqueles quem sabem ler e escrever não “lê livros de literatura por vontade própria, como contos, romances ou poesias” (Failla 2016: 197); b) que, entre leitores, 42% afirma, entre os gêneros, ler a Bíblia, 22% afirma ler Religiosos, 22% Contos, 22% Romance, 12% Poesia (Failla 2016: 214); e c) que:

a Bíblia é o livro mais citado em quase todos os perfis socioeconômicos da pesquisa. No entanto, ela é mais citada entre os não estudantes, os de menor escolaridade e entre os mais velhos. Por outro lado, na faixa entre 5 e 10 anos, infantis e contos são mais citados que a Bíblia. Contos e didáticos são os gêneros que se destacam entre os estudantes. Já entre aqueles com nível superior, livros técnicos, romances e didáticos aparecem com percentuais próximos ao da Bíblia (Failla 2016: 214).

Olhando rapidamente para esses números e considerando o que até aqui tem sido debatido, não é fácil chegar a conclusões seguras sobre o estado da leitura no Brasil, em especial com relação à leitura de literatura. Menos ainda se buscamos estratificar por gênero, embora seja sensível a percepção de que narrativas (entre contos e ro-mances) superam o consumo de poesia. Dentro do grupo de narrativas, romances e contos parecem ocupar distintos espaços na escola: o primeiro tende a ser emblemá-tico na periodização literária a partir do Romantismo (se observamos a importância que se dá ao romance de Alencar, à inauguração do Realismo com o romance de Machado de Assis, às particularidades do romance de Aluísio Azevedo, aos roman-ces pré-modernistas, aos romanroman-ces da segunda e terceira fases do modernismo, por exemplo), compondo uma espécie de cânone escolar literário do romance; os con-tos, por outro lado, são preferidos pelo favorecimento à leitura em sala de aula devi-do a sua extensão. Entre ambos, vamos pormenorizar o olhar ao romance brasileiro, em especial aquele produzido contemporaneamente, cujo espaço no ensino básico

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tende a ser ceifado em prol da valorização de outras obras já sistematizadas e conso-lidadas na organização curricular.

Falar de romance brasileiro contemporâneo requer, necessariamente, uma aná-lise tridimensional: precisamos não apenas pensar sobre o que é o romance, mas também sobre o desenvolvimento do romance brasileiro e, em última instância, para dialogar com Giorgio Agamben, sobre o que é o contemporâneo. Em primeiro lugar, para chegarmos ao que há de atual, ou melhor, para entendermos o que é esse atual, precisamos fazer coro à pergunta: “O que significa ser contemporâneo?”. Partindo das “considerações intempestivas” de Nietzsche – sobre a qual, lembra agamben, Barthes pontua que “O contemporâneo é o intempestivo”, o pensador italiano res-salta que não há uma perfeita adequação entre o contemporâneo e o seu próprio tempo. É justamente por esse fato – por essa desconexão, essa inatualidade –, que o contemporâneo pode perceber e apreender sua época:

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. (Agamben 2009: 59)

Nesses termos, não basta entendê-lo como aquele que vive no presente. Isso quer dizer que não tomaremos a literatura contemporânea como uma representação do que é atual, mas como aquela que “mantém fixo o olhar no seu próprio tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (Agamben 2009: 62), desviando-se dos fachos de luz de sua época para enxergar as sombras – esses fachos de trevas, como luzes que não nos alcançam. Sendo assim, o escritor contemporâneo se localiza no escuro do presente, com relação ao qual ele é anacrônico – e nesse presente, que não é meramente cronológico, cria-se uma relação simultânea com passado e futuro (nos termos de agamben, um “muito cedo” que é, ao mesmo tempo, um “muito tarde”), ou seja, uma relação com outros tempos. Nota-se, então, que seu compromisso “é, no tempo cronológico, algo que urge dentro deste e que o transforma” (Agamben 2009: 65). Para Karl Erik Schøllhammer, em Ficção brasileira contemporânea, “o escri-tor contemporâneo parece estar motivado por uma grande urgência em se relacio-nar com a realidade histórica, estando consciente, entretanto, da impossibilidade de captá-la na sua especificidade atual, em seu presente” (Schøllhammer 2009: 10).

Com essa discussão em vista, a questão do contemporâneo deverá ser conside-rada a partir de um recorte bem delimitado: romances publicados a partir da década de 2000, em especial sob a noção de contemporâneo de Agamben, isto é, textos que dialoguem com seu próprio tempo a partir de um viés não convencional, diferencia-do, fornecendo novos meios de enxergar a realidade. Diferentemente do que ocorria em períodos anteriores, quando, pelo número consideravelmente menor de autores e obras, tornava-se possível traçar linhas temáticas e formais mais ou menos comuns,

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com a evolução das tecnologias de publicações no século XIX, tais esboços panorâmi-cos tornaram-se cada vez mais imprecisos.

O ensino de literatura com frequência tem se pautado em características homoge-neizantes, como tradicionalmente refletem os livros didáticos. como destaca William Roberto Cereja, conhecido autor de materiais para a educação básica,

a organização dos conteúdos, apoiada na historiografia literária, privilegia o enfoque cronológico de movimentos, gerações e autores, com suas respectivas obras de destaque. Estudar literatura, sob essa perspectiva, quase sempre é o mesmo que conhecer, geralmente de forma passiva, aquilo que os “bons” escritores (com todas as falhas e injustiças que historicamente sempre ocorreram nessa avaliação) escreveram ao longo da história de nossa cultura. Trata-se, pois, de uma concepção conteudista e enciclopédica de ensino de literatura (Cereja 2004: 18).

Na contemporaneidade, porém, qualquer vestígio de totalização se mostra como impossibilidade. Com um volume inapreensível de obras publicadas nas últimas déca-das, o docente do ensino básico – em especial aquele que trabalha com o Ensino Mé-dio – muitas vezes encontra caminhos nem sempre bem delineados nos materiais de apoio. Para citar um exemplo, um dos principais manuais de historiografia da literatu-ra bliteratu-rasileiliteratu-ra utilizados pelos gliteratu-raduandos e gliteratu-raduados em Letliteratu-ras, História concisa da li-teratura brasileira, de alfredo Bosi, inicia seu capítulo final, “Tendências contemporâ-neas” (Bosi 2006: 383-497), a partir da década de 1930, após o primeiro momento do Modernismo, passando pela “era do romance brasileiro” (Bosi 2006: 388), entre 1930 e 1940, chegando ao subcapítulo “a ficção entre os anos 70 e 90: alguns pontos de referência” (Bosi 2006: 434-438), porém, sem maior fôlego e profundidade – como se pode supor em uma cobertura de 30 anos de ficção em um número tão reduzido de páginas. Nesse sentido, a obra, embora largamente consultada – com seus devidos méritos reconhecidos –, demonstra uma clara datação com relação ao período con-temporâneo analisado – sublinhe-se, de 1930 a 1990.

O livro didático, da mesma maneira, não dá conta de lançar um olhar mais apura-do sobre a literatura recente – por melhores que sejam as intenções e os esforços –, em grande parte pela característica panorâmica do material. Assim, ao docente interessado em se aprofundar o tema restam, em geral, as pesquisas acadêmicas – dissertações, teses e artigos superespecializados –, que muitas vezes se distanciam da realidade do ensino básico pelo ritmo e pela dinâmica particulares no âmbito das instituições de ensino superior. É com frequência, também, que os materiais de apoio do professor se limitam a um número bastante reduzido de autores – tanto no perí-odo contemporâneo quanto nos anteriores –, na tentativa de apontar características bem definidas e totalizantes, repetidas à exaustão, cujos paradigmas são raramente revisados em consonância com estudos e pesquisas mais recentes. Essa abordagem visa a oferecer segurança ao docente, uniformizando ao máximo as produções literá-rias de modo que sejam reproduzidas com maior facilidade na sala de aula.

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Assim, no estudo de literatura brasileira, o aluno acompanha, partindo da coloni-zação do território brasileiro, diversos períodos que são reduzidos a características sistematizadas de maneira linear e regular, com autores e obras que são elencados de acordo com balizas pré-determinadas. Tal ímpeto se alonga até o século XX, esfor-çando-se para alcançar movimentos como Concretismo, Tropicália e Poesia Marginal, últimos grupos que são inseridos e categorizados em estéticas com certas forças co-esivas, com aporte, enfim, que se nomeia ora “Pós-modernismo”, ora “Tendências contemporâneas”. Neste último grupo, busca-se resumir toda a vasta produção lite-rária posterior aos anos de 1980, não logrando êxito na tentativa de visão totalizan-te. Notamos, então, que esse momento da literatura não consegue se adequar às abordagens oferecidas pelo livro didático. Como saída, consideramos ser pertinente e necessária a produção de materiais específicos para as “Tendências contemporâ-neas”, apresentando formas de abordar aspectos de parte dessa produção literária, com foco em especial nos romances pós-2000.

Pensar a literatura contemporânea, portanto, não permite construir um panora-ma de toda a abundante e crescente produção do período. Em geral, para o período pós-1990, termos como multiplicidade, heterogeneidade, dispersão temática e estilís-tica tornaram-se tão comuns quanto vagos. Essas caracterísestilís-ticas, porém, podem ser remetidas também aos anos de 1980, cujos traços são notados ainda na década an-terior, quando o engajamento político que se observa como resposta ao regime dita-torial convive, por exemplo, com a prosa existencial/intimista (no diapasão de Clarice Lispector) e a prosa brutal de Rubem Fonseca (que se iniciara na década de 1960), fixando de vez na agenda literária nacional o espaço urbano como principal cenário. Nos anos de 1980, já em fase de redemocratização, quando se tornou lugar-comum falar de um pós-modernismo (calcado, grosso modo, no declínio das utopias moder-nistas e na expressão de uma identidade fraturada do sujeito), inicia-se o processo de dispersão estilística, como consequência, entre outros fatores, de uma maior abertu-ra do mercado editorial.

Esse contexto abriu espaço para experimentações de toda ordem, em especial nas relações com variadas formas de discurso, como as visuais (vídeos, fotografias, cine-ma etc.). Também ganhou força nesse período a narrativa sob a perspectiva de su-jeitos esvaziados de suas identidades sólidas e concretas, vertente que permanecerá nos anos seguintes. Adentrando de vez no meio digital com a informática, a década de 1990 acentua a dispersão de modelos rígidos com uma profusão de novo autores. Os recursos imediatistas disponibilizados com as novas tecnologias também fizeram se destacar, nessa época, o miniconto, os flashes e as narrativas curtas – numa reto-mada da profusão de contos brasileiros iniciada nos anos de 1970 –, com particular atenção a abordagens voltadas para a própria sociedade. Nessa época, nomes já con-sagrados das décadas anteriores convivem com um aumento vertiginoso de novos autores devido a condições mais favoráveis para publicação de obras.

Chegando ao século XXI, nota-se que o mar de novos escritores é cada vez mais imenso – e mais heterogêneo –, consequência de fatores como o barateamento dos custos de produção editorial, o avanço das tecnologias de impressão, em

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consonân-cia com a participação real da internet como meio de produção e difusão de obras. Como já percebemos, as análises universais não cabem no contemporâneo (que, para retomar o pensamento de Agamben, desvia-se da luz que preenche o presente para nele enxergar as sombras), em especial por ser uma conduta corrente nesse período a contestação de estruturas, posturas e certezas estanques do passado. Nesse viés, o romance funciona como um campo aberto a transformações, questionamentos, (re) invenções e experimentações - ora revisitando, ora saqueando questões fundamen-tais da literatura dos séculos XIX e XX - que, muitas vezes, descontroem conhecimen-tos até então assimilados pelo aluno ao longo do curso no ensino básico que, muitas vezes, descontroem conhecimentos até então assimilados pelo aluno ao longo do curso no ensino básico.

Também é necessário considerar que o ensino de literatura tem sido associado ao cumprimento do inciso III do art. 35 da Lei de Diretrizes e Bases do Ensino Nacional, n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que atribui como uma das finalidades do Ensino Médio “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (Brasil 1996). No ensino básico, porém, a literatura tem sido apresentada prioritariamente de maneira historiográfica, tendo seus momentos iniciais elencados no primeiro ano do Ensino Médio, com conclusão no terceiro ano, quando devem ser apresentadas algumas tendências contemporâneas. O que se percebe, entretanto, é que a produ-ção literária atual é condensada e reduzida nas etapas finais do Ensino Médio, muitas vezes interrompida ou não abordada adequadamente devido à sua heterogeneida-de, o que impede uma síntese reducionista como, em geral, ocorre com os demais períodos literários.

Na discussão atual sobre a Base Nacional Comum Curricular (2018) – a despeito da decisão política de implementá-la sem amplo debate –, nota-se um movimento de inversão no ensino da historiografia literária: a literatura contemporânea seria le-cionada ao longo do primeiro ano do Ensino Médio; no segundo ano, os séculos XX e XIX, respectivamente; no terceiro ano, autores e obras dos séculos XVIII, XVII e XVI, nessa sequência. O que se infere, em princípio, nessa inversão são pelo menos dois fatores: a) que se pretende dar maior fôlego à produção contemporânea, uma vez que ocupará sozinha todo um ano letivo; e b) que se supõe necessária maior maturi-dade do aluno para o estudo de momentos históricos mais distantes de sua realida-de. Da forma como se distribuem os conteúdos atualmente, do primeiro ao terceiro anos do Ensino Médio, considerando a periodização da literatura brasileira, o aluno, com frequência, se depara com divisões esquemáticas e até mesmo rígidas para os romances, como as seguintes: o romance romântico, comumente dividido em roman-ces urbanos, romanroman-ces regionalistas e romanroman-ces históricos e indianistas, a partir de nomes como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Bernardo Guimarães (com maior destaque ao primeiro); o romance realista, marcado no Brasil pela obra de Machado de Assis (apesar do problema do realismo de Machado de Assis, para dialogar com o trabalho de Gustavo Bernardo Krause sobre o tema), que terá em pa-ralelo o romance naturalista, representado pelo nome de Aluísio Azevedo; o romance regionalista, em seu modelo já do século XX, dividido, por vezes, entre os momentos

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de um chamado Pré-Modernismo (no qual são inseridos Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima Barreto e Monteiro Lobato, por exemplo) e o Modernismo – para além-22, numa segunda fase, incluindo Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Ama-do, José Lins do Rêgo, só para citar alguns nomes –, chegando a Guimarães Rosa; se fala, ainda, por vezes, de um romance psicológico, pautado nas narrativas de Clarice Lispector.

Mesmo que não seja comum a abordagem, por exemplo, de romances paradig-máticos, no sentido de rever estruturas tradicionais, como Ulisses, de James Joyce, ao longo do ensino básico, o aluno tem a oportunidade de se deparar com diversos autores que rasuram as bordas mais rígidas do gênero (em especial, de instâncias consolidadas, para o docente e para o discente, como tempo, enredo, foco narrativo, espaço e personagens), ou que revisam e/ou transformam aspectos do passado. Para mencionar alguns nomes canônicos que povoam as aulas de literatura do Ensino Bási-co, é possível que um aluno que conclua o Ensino Médio possa ter conhecido em sala de aula a maior parte destes autores e destas obras, datadas no século XX, que por si sós contribuem para o questionamento do modelo tradicional do gênero: Memórias sentimentais de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade, Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, Grande sertão: veredas (1956), de João Guimarães Rosa, A paixão segundo G.H. (1964), de Clarice Lispector – para ficarmos em poucos nomes. Porém, a imagem tradicional do romance – com base, acima de tudo, no romance romântico, tende a perdurar (e esse talvez seja o motivo para frequentemente ser associado, no senso comum, o gênero romance ao sentido de história de amor ou história romântica). Em outras palavras, embora boa parcela da literatura do século XX tenha se dedicado a esvaziar os modelos estanques nos mais diversos gêneros, o cânone escolar de romance permanece tributário às formas mais tradicionais. Isso já nos alerta sobre a necessidade de uma revisão, na área do ensino de literatura, acerca das relações entre as formas tradicionais e a pro-dução literária do último século. Essa reflexão se torna mais urgente na medida em que, no campo da literatura produzida contemporaneamente, os romances rompem de maneira constante as barreiras impostas ao gênero, cruzando hipotéticos limites que há algumas décadas pareciam inabaláveis. Na literatura, como se observa, não cabem mais repetições, mas, sim, os tensionamentos que removem o leitor da zona de conforto.

algumas divisões redutoras que vêm sendo há muito tempo reafirmadas no ensi-no de literatura – como a relação que opõe à ficção o sentido de realidade, além das separações programáticas entre textos literários e textos não literários – perdem a força nos textos literários mais recentes. Quanto a essa tendência de restringir a fic-ção aos textos literários, Evando Nascimento destaca que:

a ficcionalidade define menos um gênero que o estatuto híbrido de qualquer discurso. Por um lado, todo documento, mesmo o mais verídico, detém traços de ficcionalização; por outro, todo romance, todo poema detém valor documental. Ficção ou verdade, imaginação ou documento deixam de ser, por si mesmos, critérios de definição do gênero, pois a distinção é de grau e não de natureza.

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Já os gêneros se definem menos por uma essência que os teria gerado do que pela história de seus usos e significações, de suas performances históricas, se quiserem. (Nascimento 2010: 197)

Com as novas tendências literárias contemporâneas, com frequência esse arca-bouço de fórmulas cristalizadas para estudos dos gêneros é posto em xeque. Se nos-sa abordagem ratifica o discurso de multiplicidade formal e temática do século XXI, também não faltam ao leitor interessado opções de textos críticos sobre esse grande volume obras. São numerosas as publicações, os artigos, as teses e as dissertações sobre o tema, bem como os eventos que disponibilizam espaço para tais discussões, sem falar nos variados periódicos que atendem à área. Tal universo de conteúdos, porém, distancia-se cada vez mais do ensino básico, seja pelo discurso excessivamen-te excessivamen-teórico, seja pela dificuldade de tratar, com alunos mais jovens, das rupturas com os modelos tradicionais que a eles foram ensinados ao longo de sua formação. Não podemos, entretanto, legar certa parte da literatura contemporânea à leitura quase que exclusiva do ensino superior. É preciso que o aluno dos ensinos Fundamental e Médio tenham acesso a romances de viés não canônico, sobretudo a partir da me-diação, tendo por premissa que “o estudante precisa ser incentivado a ter contato com formas, textos, estéticas mais sofisticadas (que está longe de querer dizer ‘mais elitizadas’), que exigirão seu esforço in(ter)ventivo como leitor, sem, contudo, deixar de lado essa compreensão situada da literatura” (Dalvi 2013: 47).

A comunhão entre argúcia analítica e comunicação didática para públicos não es-pecializados não se compõe como uma impossibilidade. Para citar um exemplo bas-tante familiar, Antonio Candido realizou esse trabalho na obra Na sala de aula: Cader-no de análise literária (1993), que foi muito bem recebida por suas leituras cuidadosas de poemas de seis autores de períodos distintos (Santa Rita Durão, Tomás Antônio Gonzaga, Álvares de Azevedo, Alberto de Oliveira, Manuel Bandeira e Murilo Men-des), tornando-se exemplos de aulas sobre análise literária para alunos de Letras, com boas possibilidade de reprodução no ensino básico (não por acaso tal obra foi publicada pela editora Ática, uma das líderes de mercado na produção de materiais didáticos): “Este caderno contém seis análises de poemas, que procuram sugerir ao professor e ao estudante maneiras possíveis de trabalhar o texto, partindo da noção de que cada um requer tratamento adequado à sua natureza, embora com base em pressuposto teóricos comuns” (Candido 1993: 5). Se a maior parte da produção da crítica literária é consumida pelo público de nível superior, Antonio Candido demons-tra que é possível realizar uma análise ao mesmo tempo aguda e didática, levando ou-tros grupos de leitores a novas possibilidades de leitura. A partir dessa lição, cremos ser possível tratar de romances contemporâneos de forma crítica e teórica, mas sem deixar de produzir resultados que excedam os muros do ensino superior.

apesar dos esforços de pesquisadores e estudantes na direção da reflexão e da revisão sobre as práticas de ensino, as mudanças nas perspectivas didáticas ainda não são significativas, sendo notados resultados positivos apenas em níveis microló-gicos atrelados a intervenções pontuais em ambientes escolares. Da mesma maneira, persiste o sucateamento sistêmico da escola, conduzindo à precariedade a estrutura

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física, a formação continuada e a valorização profissional, que resultam fatalmente em grandes dificuldades para que qualquer movimento no sentido de garantir uma educação humanizada e crítica ao aluno seja envolto por um cenário desfavorável.

Que saídas para esse problema, então, podem ser propostas? Também não pare-ce haver respostas simples e reduzidas para isso. Não podemos, portanto, atribuir o peso da questão ao professor, como se bastasse ele se tornar um ávido leitor de obras contemporâneas para que pudesse ensinar aos seus alunos. Para operar mu-danças no horizonte escolar – e, consequentemente, na abordagem da literatura – no âmbito da política e da gestão pública, algumas ações mínimas são constantemente pautadas por aqueles que defendem melhores condições para a educação: a) a for-mação, no âmbito da licenciatura, que contemple não apenas o viés teórico sobre o texto literário, mas também as formas de pensar e abordar essa teoria na escola; b) a formação continuada de professores, especialmente considerando a atualização no que diz respeito às produções acadêmicas e literárias mais recentes, com incentivo à pesquisa e à pós-graduação, à participação em eventos, aos diálogos com pares etc.; c) a melhora radical na estrutura física, com bibliotecas equipadas, acessíveis e atu-alizadas, com materiais adequados de apoio ao professor, com recursos eletrônicos dispostos, com redução do número total de alunos por sala etc.; d) a valorização dos profissionais da educação (não apenas o professor), com revisão salarial, com jorna-da de trabalho que considere proporcionalmente o planejamento e o atendimento ao aluno, com respeito à autonomia docente etc.

Por outro lado, é evidente que a proximidade temporal, as transformações do gê-nero e a abordagem vigente no ensino de literatura dificultam ou impossibilitam a in-clusão da produção mais recente no rol dos cânones, ao menos no espaço da escola. Tampouco as considerações deste trabalho intentam superar, substituir ou suprimir a leitura e o estudo de obras canônicas e clássicas na formação da educação básica, sobretudo pela relevância que estas possuem e devem possuir no programa de en-sino de literatura. Retomando Agamben, o olhar contemporâneo, ao desviar da luz para enxergar o que há de trevas no presente, em sua relação singular com o próprio tempo, resulta num movimento vital do sujeito ao passado:

Isso significa que o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. (Agamben 2009: 72)

Assim, a escola não pode privar, em sua organização curricular e em sua estrutura, o acesso às produções literárias representantes do contemporâneo ao aluno, tolhen-do-o, consequentemente, do contato com textos que revisam sua própria realidade, no que concerne a aspectos como delimitação cronológica, distribuição territorial, perspectiva de subjetividade, organização social, constituição política, revisitação da

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história etc. Em suma, um direito (no diálogo com Antonio Candido), com todos os seus múltiplos riscos, que a escola, em seu modelo vigente, tende a negar.

Obras citadas

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro honesko. chapecó: argos, 2009.

ALFREDO, Bosi. História concisa da literatura brasileira. 44. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei número 9.394, 20 de de-zembro de 1996.

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contemporary novels and the canon at school: visions and revisions

ABSTRACT: This article intends to discuss the reading and the study of novels published in the last decades, in the specific scope of high School, in order to highlight some aspects of the contemporary literature that questions the borders and the limits traditionally attributed to this genre in school,

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based on their relations with the canon. In this sense, we propose to situate the debate considering the reality of teachers and students in the basic education grid in order to contribute to the revision of rigid concepts about the contemporary novel through, in particular, a revision of the conceptu-al spectrum of what is presented in textbooks, broadening the horizons of work with this genre in classes. Thus, we will take as a basis the thinking of Giorgio Agamben (2009) and Karl Erik Schøllham-mer (2009) about the contemporary. Also contributing to this study are the works by Cereja (2004), Dalvi (2013), Lajolo (2016) and Oliveira (2013) about the relationships between literature and school. KEYWORDS: contemporary novels; teaching of literature; canon.

Referências

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