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Magia, poesia e feitiço: entre Mário de Andrade e Dante Milano

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Academic year: 2020

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Resumo

Estudo histórico-cultural sobre singularidades literárias expressas por dois poetas brasileiros a propósito da patrimonialização da coleção-museu de magia negra em 1938. O pano de fundo da reflexão atinge o vasto campo do imaginário artístico do período modernista nas primeiras décadas do século XX.

Palavras-chave: poesia, Modernismo, magia, literatura.

a Professor Associado em Ciências Sociais e Coordenador do curso de Especialização em Humanidades

(UFRJ-Macaé), alexfcorrea@ufrj.br.

Andrade e Dante Milano

Recebido em 26 de outubro de 2015 Aceito em 22 de março de 2016

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El mal y el bien (...) son los dos elementos irreconciliables y perfectamente inseparables de la naturaleza humana (...).

CONTE, 19711

O objetivo deste estudo é trazer à reflexão os contornos de uma investigação histórico-cultural, pontuando singularidades literárias expressas por dois poetas brasileiros acerca das representações do particular e do universal. O nosso ponto de partida dar-se-á a propósito do caso específico da patrimonialização da coleção-museu de magia negra em 1938. O pano de fundo da reflexão atinge o vasto campo do imaginário artístico do período modernista nas primeiras

décadas do século XX 2 .

Este trabalho seguirá a trilha já traçada por Antonio Candido na obra Literatura e Sociedade ([1965] 2000) na qual o autor se refere à "lei de evolução da vida espiritual brasileira". (p. 101) Nesse livro Candido sugere que a dialética do localismo e do cosmopolitismo regem essa evolução espiritual, no embate entre o nacionalismo literário e a imitação dos padrões europeus. Esse embate tanto se dá no plano dos "programas" quanto no plano "psicológico", concluindo que esse processo evolutivo em causa depende do "equilíbrio entre essas duas tendências". Em nossa pesquisa observamos a precisão dessas colocações no caso da comparação aqui sugerida.

A Coleção de Magia Negra, inscrita como primeiro patrimônio etnográfico brasileiro, consta da lista de

tombamentos do IPHAN3 desde 1938. Descobrimos que

Dante Milano foi o primeiro diretor do Museu da Polícia Civil, no qual repousa salvaguardada a referida coleção. O poeta carioca dirigiu a instituição por quase duas décadas. Esse dado biográfico revelou veredas interpretativas surpreendentes.

No livro Museu Mefistofélico (Corrêa, 2009) o foco original da pesquisa versava sobre a Coleção de Magia Negra. A obra e a vida do poeta ficaram em um plano subjacente no trabalho. Ao retomar a escavação arqueológica do processo de tombamento dessa Coleção, centramos o foco sobre as diferenças entre as posições de Mário de Andrade, como membro do Serviço do Patrimônio Nacional (SPHAN), e Dante Milano, como diretor do Museu da Polícia, em relação

1 Rafael Conte na Apre-sentação do livro La

lite-ratura y el mal de

Geor-ges Bataille (2000, p. 8). 2 A “feitiçaria, magia e bruxaria”, até meados do século XX, encon-tram-se no Código Penal Brasileiro (Artigos 156, 157 e 158), que vigorou até a década de 1940; nele há prescrições com penalidades a estas con-dutas, caracterizando--as como fonte promo-tora de danos físicos, psíquicos e sociais. Salienta-se ainda que tais danos incluem não só a dimensão do ódio, mas também a dimen-são da sedução. (Artigo 157, do Código Penal Brasileiro).

3 Instituto do Patrimô-nio Histórico e Artístico Nacional (originalmente designado como Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN).

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à magia e seus derivados socioculturais classificados como patrimônio cultural. Esse movimento interpretativo pode contribuir para esclarecer obscuridades ainda presentes nessa história preservacionista singular.

Para compor um fio narrativo sublinhamos alguns aspectos sociais e culturais do processo de criação da Coleção-Museu de Magia Negra, do seu tombamento e da criação do Museu da Polícia Civil do antigo Distrito Federal do Rio de

Janeiro4. A Coleção de Magia resulta de diligências policiais

acionadas por processos de acusação e denúncias ocorridas nas primeiras décadas do século XX. Ressalta-se que esse período se caracteriza pelo predomínio hegemônico de concepções positivistas, sanitárias e higienizadoras. Nessa coleção museológica reuniram-se utensílios, objetos e peças apreendidos nas Delegacias do antigo Distrito Federal, de acordo com o Código Penal vigente até 1946. Cabia à Primeira Delegacia Auxiliar: "I – Processar a cartomancia, mistificações, magias, exercício ilegal da medicina e todos os crimes contra a Saúde Pública." O tombamento desse conjunto museológico heteróclito acompanha os processos que foram promovidos principalmente por Mário de Andrade no antigo SPHAN. Tais ações de salvaguarda desencadearam a preservação de diversos conjuntos de peças e objetos que hoje se encontram em diferentes instituições museológicas do país. Destacam-se as coleções do Museu do Estado de Pernambuco, Casa Câmara Cascudo em Natal/RN, Coleção Arthur Ramos em Fortaleza, Coleção Perseverança em Alagoas etc.

Neste texto nossa atenção se fixará no contexto mais específico do modernismo literário brasileiro, entendido como um movimento efervescente de ideias estéticas e políticas atingindo seu auge na década de 1930. Nosso intuito aqui é comparar as posições de Dante Milano e Mário de Andrade, em particular sobre as representações acerca do folclore, cultura popular e manifestações religiosas. Esse trabalho de comparação se fará à luz da teoria sugerida por Antonio Candido, apresentada logo no início desse texto. Para esse autor o "local" (ou o particular) constitui a "substância da expressão", enquanto o "geral" (ou universal) constitui a "forma da expressão"; no caso identificada com a "tradição europeia" (p. 101). É essa dialética do universal e do particular que veremos se processar na comparação entre os dois poetas estudados.

4 Museu da Polícia Ci-vil do Rio de Janeiro hospeda até hoje a Co-leção-Museu de Magia Negra, tombada pelo SPHAN em 1938. Dos anos de 1910 até os anos de 1930, ocorreram di-versos processos e ações policiais contra terrei-ros de candomblé. E foi nesse Museu da Polícia, do Distrito Federal, que foram guardados vários objetos e peças classi-ficadas como magia, feitiçaria e bruxaria. Tanto no Rio de Janeiro, como em Recife e em outras partes do país, na mesma época, ocorre-ram essas ações. Mário de Andrade chegou a recolher objetos e peças provenientes de Recife para sua Coleção parti-cular, hoje preservada no Instituto de Estudos Brasileiros/USP. Como se sabe, até o ano de 1948 o Código Penal Brasileiro enquadrava o charlatanismo e a práti-ca de magia como crime.

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Nesse trabalho, vamos introduzir aspectos biográficos e

literários, no exercício da comparação implementada5.

Como é sabido, após o afastamento de Mario de Andrade do Departamento de Cultura do Município de São Paulo (1935-7), o escritor paulista passou um breve período de sua vida morando no Rio de Janeiro; temporada designada de "exílio carioca" (1938-41). A sua chegada à capital federal coincide com o ano de inscrição da Coleção-Museu de Magia Negra no livro do Tombo do antigo SPHAN. E como se supõe, com toda certeza, Dante Milano - na época chefe de gabinete do Secretário de Segurança Pública e futuro diretor do Museu da Polícia - e Mário de Andrade travaram relações muito mais que esporádicas na vida boêmia da Lapa; em companhia de amigos e parceiros em comum. Na vasta correspondência epistolar do escritor paulista existem registros de impressões pessoais que

tinha do poeta carioca6. Ressalta-se ainda o fato de o ofício que

solicita o inventário da Coleção-Museu de Magia Negra ter sido recebido por Dante Milano; enquanto secretário do Gabinete

de Segurança Pública do Distrito Federal7.

Portanto, é no encontro entre estes três vértices que compõem o triângulo dessas relações, de pessoas e de coisas, que nos situamos aqui, qual seja, entre Mário de Andrade, a Coleção de Magia Negra e Dante Milano. As particularidades e características dessas relações pessoais, objetivas e subjetivas, entre estes dois poetas e a Coleção em tela, constituem o objeto privilegiado desse estudo.

Cabe sublinhar logo de início que, diferentemente de Mário de Andrade, o poeta Dante Milano até hoje é uma personagem praticamente desconhecida do grande público. Destino totalmente diverso dos seus colegas modernistas, a grande maioria reconhecidos como artistas, intelectuais e acadêmicos ilustres ou célebres no espaço social literário brasileiro.

Como está apontado no texto, percebe-se com facilidade que Dante Milano destoa de modo particularmente especial dos confrades, não só no estilo de vida - avesso como foi à fama e à glória -, mas na forma como aderiu ao modernismo, e, principalmente, na sua concepção sobre a linguagem. De modo diferenciado dos outros tantos artistas da época, Dante Milano não toma a arte primitiva, a etnografia ou o folclore,

como objeto de pesquisa para realização de sua poética8. Em

nenhum momento de sua obra, encontramos o colorido dessas

5 Antonio Candido é especialmente impor-tante para esse estudo, pois seguimos de perto as posições de Mari-za Peirano atestando o pluralismo do autor ao transitar de modo fecundo entre a Socio-logia, a Crítica Literária e a Antropologia (PEI-RANO, 1992).

6 Na correspondência de Mário de Andrade e Manuel Bandeira, en-contram-se passagens em que se faz referência direta a Dante Milano: “Espírito singular, re-traído e desconfiado” (escrito por Manuel Ban-deira). Mário de Andra-de chega a expressar a opinião de que Dante Milano era um “parasita de Jaime Ovalle”. Esses comentários foram fei-tos nos anos de 1925 e 1926. (ANDRADE; BAN-DEIRA, 2000, p. 259). 7 No Rio de Janeiro, quem estava no Museu da Polícia, nessa oca-sião, era Dante Milano. Existe um ofício de Ro-drigo de Mello Franco de Andrade endereçado ao poeta solicitando o inventário das peças de "magia, feitiçaria e bruxaria" capturados pela polícia no início do século XX. Dante Mila-no respondeu ao ofício intitulando a coleção de "magia afro-brasileira". 8 É importante ressal-tar neste contexto os elementos didáticos que aparecem do curso ministrado por Dina Lévi-Strauss, na jovem Sociedade de Etnografia e Folclore (SEF), fun-dada em 1934 ligada ao Departamento de Cultura do Município de São Paulo, dirigido por Mário de Andra-de. Sobressai a ideia de uma Revista do Arquivo Municipal com a rubrica

Arquivo Etnográfico, na

qual haveria “uma se-ção destinada ao maior conhecimento do povo brasileiro” com “um formulário geral das pesquisas etnográficas a serem feitas no Brasil”.

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cenas ganhar o relevo que conhecemos nas obras de Mário de Andrade. Como veremos aqui, os costumes, os traços cotidianos, as ruas, os homens e mulheres do dia-a-dia jamais se revelaram em Dante Milano com os destaques com que surgiram na obra do escritor paulista.

Desse modo, consideramos que ao contrário da visão de Mário de Andrade - assim como de Arthur Ramos e Gilberto

Freyre, entre outros -, Dante Milano percebia "o mal e o bem

(...) como dois elementos irreconciliáveis e perfeitamente inseparáveis da natureza humana"9, isto é, como expressões

simbólicas do mundo que integra a superfície e o subterrâneo e que povoava sua imaginação poética, alimentada pelas leituras dos clássicos como Dante Alighieri e dos modernos como Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud...

Mário de Andrade, e os outros autores citados, procuravam integrar a religiosidade popular e o folclore na cultura brasileira mestiça. Deve-se recordar, por exemplo, da descrição que há em Macunaíma, do terreiro da Tia Ciata, muito frequentado na antiga Praça Onze, no Centro do Rio de Janeiro. Obra em que

se pode retirar os princípios de uma teoria étnica nacional10.

Considerando as particularidades dos grupos e indivíduos participantes desse drama social aqui enfocado, nos esforçamos no sentido de tentar compreender quais estruturas de sentido sustentavam as diferentes visões e concepções sobre significado cultural dos fenômenos sociais ligados à magia, o folclore e demais manifestações populares, e de que modo adquiriram valores diversificados, para os diferentes artistas e intelectuais referidos.

Percebemos então dois polos distintos de representação das manifestações mágico-religiosas, entre estes artistas e

intelectuais "modernistas"11. De um lado tem-se a ideia de

que essas manifestações seriam produto de ‘mentes pré-lógicas’, ‘primitivas’, ‘analfabetas’ que no processo avançado de educação e instrução seriam inexoravelmente abandonadas e esquecidas. De um modo geral essa concepção perpassa as obras de positivistas de Oliveira Vianna e de sanitaristas como Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Ulisses Pernambucano etc.

Num misto de evolucionismo clássico, materialismo histórico marxiano e psicologismo freudiano, então em voga, intelectuais e artistas modernistas brasileiros, passaram a considerar essas manifestações como vestígios de um tempo

Como se sabe, no Bo-letim da SEF seguiu-se com as instruções folcló-ricas para pesquisa de campo preparadas por Dinah Dreyfus e Claude Lévi-Strauss.

9 Epígrafe do presente texto retirada da citação de Rafael Conte (BA-TAILLE, 2000, p. 8). 10 Como aprofunda An-tonio Candido: "Mário de Andrade, em

Macu-naíma (a obra central e

mais característica do movimento), compen-diou alegremente len-das de índios, ditados populares, obscenida-des, esteriótipos desen-volvidos na sátira po-pular, atitudes em face do europeu, mostrando como a cada valor aceito na tradição acadêmica e oficial correspondia, na tradição popular, um valor recalcado que pre-cisava adquirir estado de literatura" (MELLO E SOUZA, 2000, p. 110-1). 11 Usamos o termo "mo-dernista" para carac-terizar um período da história literária bra-sileira. Pois veremos que Dante Milano não pode ser enquadrado nessa etiqueta quando analisamos sua obra literária. Milano já está pronto quando se inicia esse movimento artísti-co, e de modo algum se deixa influenciar pelos modismos que lhe são próprios. Entrevista de Dante Milano a De-nira Rozário, em 1987: “Eu pessoalmente não queria ser poeta. Não me introduzi no meio abertamente. Porque eu não era modernista e não sou modernista. Mas como eu fazia parte de um movimento que ficou com esse nome, acho justo que me cha-mem de modernista porque eu pertenci a esse movimento” (NE-VES, 1996, p. 97).

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arcaico e que tenderiam a desaparecer no horizonte da evolução da civilização brasileira. Essa concepção sustentava o empreendimento de salvaguarda, registro e museografia desses acervos prestes a desaparecer devido ao incremento do processo acelerado de urbanização e industrialização do país. No estudo mais específico das representações que o grupo modernista elaborou sobre o tema mais particular da magia, sobressai a figura intelectual de Arthur Ramos; fora

do círculo literário12. Temos aqui um pensador que elaborou

teses sobre as manifestações mágico-religiosas presentes na sociedade brasileira no mesmo patamar que Gilberto Freyre, operando transformações profundas no campo epistemológico das ciências sociais da época; no que tange especialmente aos estudos sobre raça, etnia e cultura. Veja-se, por exemplo, o que escreveu Arthur Ramos no livro O Negro Brasileiro, publicado em 1934, que sintetiza um pensamento modernista típico da primeira metade do século XX:

[...] para a obra da educação e da cultura, é preciso conhecer essas modalidades do pensamento ‘primitivo’, para corrigi-lo, elevando-o a etapas mais adiantadas, o que só será conseguido por uma revolução educacional que aja em profundidade, uma revolução ‘vertical’ e ‘intersticial’ que desça aos degraus remotos do inconsciente coletivo e solte as amarras pré-lógicas a que se acha acorrentado. (RAMOS, 2001, p. 32).

O problema nacional passa a não ser mais fundado na questão racial ou étnica, e sim na ‘revolução educacional’ necessária e inexorável. Lutando contra as teses racistas, esses escritores, artistas e intelectuais propunham uma ação civilizatória com base nas transformações subjetivas, sociais e

culturais da existência coletiva13. Esse é um dos polos em que

situamos a título de exposição didática o problema conceitual da pesquisa, qual seja, a dialética das representações sobre essas manifestações mágico-religiosas. Mário de Andrade se enquadra bem nessa posição com destaque, como se pode

ver nessa citação de 1924, de uma carta14 a Carlos Drummond

de Andrade, na qual define seu "programa", situando-se na dialética do "particular" e "universal":

12 Sobressai a trajetória de Arthur Ramos (1903-1949) que na sua luta contra o racismo con-duziu trabalho pioneiro ao assumir o cargo de primeiro Diretor do De-partamento de Ciências Sociais da UNESCO; tornando-se figura pro-eminente no proces-so de reconstrução do mundo do pós-guerra, defendendo a demo-cracia. Acreditava que através da utilização dos recursos educacionais se pudesse superar a violência dos precon-ceitos raciais (Arquivo Arthur Ramos, 2004). 13 “Desde os últimos anos do império e desde a instauração do regime republicano, em 1889, as discussões sobre esse tema centravam-se na ideia de ‘raça’. Ao longo da segunda e tercei-ra décadas do século XX, o problema veio a ser discutido, não mais em termos raciais, mas culturais, como uma busca da ‘brasilidade’, de uma ‘essência’, de uma ‘alma’, ou simples-mente ‘identidade’ da nação brasileira. Nos anos vinte e trinta, di-ferentes respostas foram apresentadas. Aqueles intelectuais identifica-dos com o modernismo e associados ao regime político do Estado Novo concebiam a si mesmos como uma elite cultural e política cuja missão era ‘modernizar’ ou ‘ci-vilizar’ o Brasil, elevan-do o país ao plano das nações europeias mais avançadas” (GONÇAL-VES, 1996, p. 41). 14 Carta especialmente interessante, pois ali-nhava toda uma con-cepção articulada com Manuel Bandeira para o "programa" modernista: "O que nós todos quere-mos (o que pelo menos imagino que todos quei-ram) é obrigar este velho e imoralíssimo Brasil

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Nós só seremos civilizados em relação às civilizações o dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então passaremos do mimetismo pra fase da criação. e então seremos universais, porque nacionais. (1982, p. 16)

No outro polo encontramos o pensamento de Dante Milano. Todos os dados recolhidos na investigação que realizamos e publicamos no ensaio Museu Mefistofélico (CORRÊA, 2009) indicam que Dante Milano possuía uma ideia ou representação muito distinta daquela apresentada mais acima. Como escreveu Sérgio Buarque de Holanda, em Dante Milano testemunhamos uma obra poética na qual a "poesia tem uma realidade independente da matéria que serviu para sua criação, é por assim dizer exterior a essa matéria, participando muito mais do espírito de seu criador" (Holanda, 1978, p. 122-3).

Nesse momento introduzimos diversos depoimentos em que Dante Milano se situa distante das posições e concepções de Mário de Andrade sobre diversos temas relacionados ao movimento modernista, à brasilidade, ao português falado no país, às manifestações culturais populares, aos demais parceiros e companheiros etc. Nesses trechos destacados de depoimentos e entrevistas, compreendemos bem a distinção entre os dois poetas.

Em entrevista a Denira Rozário em 1987, Dante Milano (DM) afirma categoricamente sua aversão à ideia de algo como 'brasileirismo':

DM - Para mim não existe brasileirismo em arte nenhuma.

Não há pintura brasileira, poesia brasileira. Poesia ou é poesia ou não é poesia. Eu não me considero um poeta brasileiro. Me considero um poeta, em qualquer língua. E se vou à imprensa de língua portuguesa, sou um poeta português (Neves, 1996, p. 115).

No que tange ao movimento modernista15 propriamente

dito, em entrevista a Ivan Junqueira no mesmo ano16, esclarece:

Ivan Junqueira (IJ) – [...] seu comprometimento com o

modernismo, o seu, o do Bandeira, não é um comprometimento ortodoxo. O modernismo, a Semana de Arte Moderna de 22, é uma coisa muito paulista, não é?

Dante Milano (DM) - Inteiramente paulista.

dos nossos dias a incor-porar-se ao movimento universal das idéias. Ou, como diz Manuel Bandeira, 'enquadrar, situar a vida nacional no ambiente universal, procurando o equilíbrio entre os dois elementos'" (ANDRADE, 1982, p. 14).

15 Não deixa de ser irô-nico o fato de que, no “Obituário” de Dante Milano, publicado em 16 de abril de 1991, apa-reçam estampadas as contradições do uso da etiqueta "modernista": "UM POETA PÓSTU-MO: último modernis-ta deixa obra que vai ser conhecida agora. Desapareceu o último modernista. Mais co-nhecido e admirado do que lido, morreu ontem o poeta Dante Milano, aos 91 anos. Apesar de ter feito parte da

Se-mana de 22, ao lado do

grande amigo Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, Villa-Lobos, Portinari, Di Cavalcanti e tantos outros, que não se cansaram de elogiar sua obra e seu talento, ele não gostava de ser rotulado de modernista e dizia, inclusive, ter horror à palavra mo-derno: - Como eu não queria ser poeta, não me introduzi no movimen-to abertamente, só por intermédio de Manuel Bandeira. Porque eu não era modernista, não sou modernista...".

16 Entrevista concedida para o vídeo Tudo é Exílio de André Andrias.

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IJ - Como é que vocês foram mobilizados? Porque eu sei que

o movimento no Rio não teve a mesma repercussão que em São Paulo17.

DM - O que aconteceu foi o seguinte: o Mário de Andrade

veio ao Rio de Janeiro e ligou-se ao Manuel Bandeira. O Manuel ficou como sede do movimento modernista no Rio. Houve desde o início uma luta interna lá em São Paulo, entre Mário de Andrade e Oswald de Andrade, porque ambos queriam ser os chefes. Mas o Mário era muito mais trabalhador, muito mais ativo e dominou a situação, ficando chefe desse movimento modernista. Porque no Rio outro movimento modernista, do Graça Aranha, que foi escandalosissimo, ao menos para nós. Quando Graça Aranha abandonou a Academia Brasileira de Letras com um discurso-bomba, em 23... 24, por aí. O movimento modernista do Graça Aranha, que foi anterior do de São Paulo, ninguém fala mais. Na época foi muito mais importante porque tinha poetas como Ronald Carvalho, Guilherme Almeida, que depois foi viver em São Paulo, tinham um modernismo não

abrasileirado. (Grifo nosso)

Sobre o mesmo tema o escritor Fernando Py18 situa

Dante Milano na cena poética brasileira:

AFC - Qual o lugar de Dante Milano na História da Poesia

brasileira?

FP - Ele fica como um dos bons representantes do século XX.

Agora, ele será sempre, me parece, enquadrado dentro da sua geração, a geração modernista. Por que ele é moderno, não será moderno no sentido de Mário de Andrade, mas é moderno no sentido de evolução e de propor certas soluções de ritmo, no verso, e de vocabulário; um vocabulário mais extenso, a maneira de tratar a ideação, a sintaxe. Então, isso representou um lado moderno nele. Então, ele é moderno – mesmo não tendo estreado junto com os modernos.

Ao ser indagado sobre as possibilidades de uma "língua

brasileira"19, ideia defendida por Mário de Andrade, Dante

Milano não deixa dúvidas sobre sua discordância quando responde a Ivan Junqueira:

IJ - Não havia aqui no Rio, uma preocupação de reinventar

uma língua, não é?

DM - Não, reinventar a língua foi só o Mário. Os outros

não. Para Mário era uma questão racial. Ele era de origem africana20. Mas no Manuel Bandeira você encontra isso

rarissimamente. 17 Sobre as

particulari-dades do movimento no Rio de Janeiro: Essa gente

do Rio... no qual a autora

afirma: “Por tudo que viemos sugerindo [...], talvez seja possível en-caminhar a ideia de que o Rio de Janeiro foi mais moderno que modernis-ta, sem deixar, contudo, de abrigar debates e toda uma diversificada produção artística que alterou e revigorou sua própria tradição intelec-tual.” (GOMES, 1993, p. 75).

18 Entrevista realizada em Petrópolis, dia 27 de setembro de 2009. 19 Dante Milano no po-ema “Vozes Abafadas” escreveu: "A dor dos homens não se pode exprimir em nenhuma língua" (2004, p. 57); coerente enfim ao verso que conclui o poema “Princípio da Noite”: "Tudo é exílio" (2004, p. 46).

20 Sobre esse aspecto Antonio Candido escre-veu: "A referida dialética [do local e cosmopoli-ta] e, portanto, grande parte da nossa dinâmi-ca espiritual, se nutre deste dilaceramento, que observamos desde Gregório de Matos no século XVII, ou Clau-dio Manuel da Costa no século XVIII, até o sociologicamente ex-pressivo grito imperioso

de brancura em mim de

Mário de Andrade - que exprime, sob a forma de um desabafo individu-al, uma ânsia coletiva de afirmar componen-tes europeus da nossa formação" (MELLO E SOUZA, 2000, p. 102).

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IJ - Você não encontra em mais ninguém. Há uma tentativa

em São Paulo da parte do Mário com Macunaíma., depois da parte do Cassiano Ricardo com Martim-Cererê e do Monteiro Lobato que, aliás foi ante-modernista, com Jeca Tatu. [...] Nessa época esse movimento tinha [...] os olhos voltados para a brasilidade. Até que ponto isso atingiu você, ou chegou a modificar essa visão com relação ao fenômeno poético?

DM - Não, não modificou. Somente influenciou um pouco.

Porque naquela época, eu escrevia sobre carnaval, em prosa e verso. O quê um carioca poderia fazer para ser brasileiro? Se preocupar com as manifestações brasileiras. [...] O Mário de Andrade era um talento poético muito grande, mas a criação de uma linguagem brasileira eu acho um erro. [...] Na realidade o que eles ("modernistas") queriam era o verso livre (Neves, 1996, p. 123-4).

Fernando Py confirma a posição de Dante Milano em relação a possibilidade de uma "língua brasileira", numa entrevista que realizamos em 2009:

AFC - D.M. não compartilhava da ideia nacionalista de Mário

de Andrade em querer criar um língua ‘brasileira’?

FP - Exatamente, ele não gostava. Ele não era dessa vertente.

O Drummond ele gostava... O Drummond também era muito parecido com Mário de Andrade, mas só que deixou uma obra poética muitíssimo superior. A grandeza de Mário de Andrade não está na poesia, está no ensaio, no folclore, na música, nos estudos sobre música; ele era muito mais... Tudo isso está no Macunaíma (1928). Quer dizer, então, a poesia dele tem momentos, momentos excelentes, como o principal que é a Meditação do Tietê (1945), o grande poema dele; no final do Poesias Completas (1955). Agora, ele teve a vantagem, ou a ideia, ou a circunstância principal, de abrir o caminho para, definitivamente, ser a poesia, enfim, totalmente livre dos ranços parnasianos, inaugurada com Paulicéia Desvairada (1922). Aí, sim, mas é um momento, depois ele ficou mais ou menos naquilo, sem criar nada demais, por isso que ele é um poeta menor.

Temos um perfil de Dante Milano traçado com mais nitidez. Formado na literatura clássica que vem desde Horácio, Virgílio, Dante Alighieri, Leopardi, depois os modernos Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé,

entre outros, o poeta elabora uma visão ‘mefistofélica’21,

expressando de forma contundente, nos seus textos poéticos e literários - como nas entrevistas concedidas em vida -, suas

21 Mefistófeles: “O es-pírito que nega tudo” (BERMAN, 1986, p.83)

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divergências em relação à obra de Mário de Andrade e ao movimento modernista.

Sua obra literária e poética reflete uma particularidade significativa, com relação a essa temática, o que deve ter guiado o seu trabalhado como diretor do Museu da Polícia Civil, lugar onde se encontra até hoje a Coleção-Museu de Magia Negra. Seu comportamento singular, sempre marcado por distinções deliberadas, avesso a associações simples com o modernismo em voga, espelham esta marcante diferenciação

de traços e ideologia22. Essa constatação pode ser sedimentada

no registro de uma resposta a uma pergunta direta na mesma

entrevista concedida a Denira Rozário (DR), em 1987, em

que Dante Milano (DM) explicita seu pensamento sobre a existência do bem e do mal:

DR: – Então Milano, fale dessa sua fascinação pelo macabro e

pelas trevas e ao mesmo tempo dessa sua obsessão pela luz.

DM: – Isso eu aprendi com a natureza. Quando vejo uma

tempestade, quando eu vejo um furacão, eu vejo um mundo diferente. Eu sinto perfeitamente quando vejo a luz, que ela vem da treva. O sol nasce da noite. Primeiro é a noite, depois vem o sol. Quer dizer, há uma grande ligação entra a luz e as trevas. Inseparável. Uma depende da outra. Desde criança eu sei. Quando havia tempestade eu ficava olhando o céu. Aquela modificação acima do meu entendimento. Hoje eu estou completamente certo que se não existisse uma a outra não existiria (Neves, 1996, p. 102)23.

Destarte, fica delineada a discrepância das posições distintas que os dois artistas tinham sobre as mesmas manifestações: de um lado uma visão mais de folclorista, que prevê um trabalho de preservação patrimonial, de bens culturais que vão inexoravelmente desaparecer em função da evolução social e educacional da civilização brasileira; revelando uma espécie de nostalgia pela perda do passado mágico e encantado. Quando se lê o livro Macunaíma (1928) percebe-se que se trata de uma narrativa impregnada de feitiços e magias, ditados, chistes e sátiras populares, assim como lendas e mitos indígenas e africanos, entre outras tantas "componentes recalcadas da nacionalidade", segundo Antonio Candido (2000, p. 111). Nessa direção, podemos destacar especialmente o capítulo VII intitulado Macumba, em que se narra a visita do herói ao terreiro de Tia Ciata no Rio de

22 Ainda sobre o mo-dernismo, em entrevis-ta de Dante Milano a Denira Rozário: “Não havia nada de tão im-portante no movimento modernista como depois se propalou. Era uma influência, que eu já na época achava péssima, de Marinetti. Marinetti era um péssimo poeta. Entretanto a vantagem do movimento foi que acabou com o academi-cismo que dominava o Brasil, o Rio de Janeiro inteiro. Então, por esse motivo que eu aderi a ele” (NEVES, 1996, p. 97). 23 Poder-se-ía ficar ten-tado a perguntar ain-da, afinal Dante Milano acreditava em fantasma? Veja-se o que disse sobre o acidente que o imobi-lizou por longo tempo e que o impossibilitou de realizar as tão ama-das caminhaama-das pela praia do Leme, no Rio de Janeiro: “Desde que eu morava no Leme, eu ia todo dia no Caminho dos Pescadores. Daquela pedra você vê um mun-do mun-do ponto de vista mun-do oceano. É um assombro. Quando eu ia subindo pela última vez a escada que levava ao caminho, na hora de subir o de-grau eu senti fraqueza na perna, ai eu voltei e pus a outra pra ver se eu subia. Então senti uma coisa verdadeiramente estranha; um empurrão, como se fosse um fantas-ma que me tivesse em-purrado, e caí” (NEVES, 1996, p. 104).

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Janeiro. É o momento e que a personagem principal do enredo busca através de Exu fazer sofrer o gigante Piaimã comedor de gente, Venceslau Pietro Pietra, que ainda estava de posse da pedra verde muiraquitã.

Já no outro polo, a posição de Dante Milano – mas não de

um ‘grupo’, e sim de um indivíduo, artista isolado e marginal24

ao modernismo consagrado, avesso à fama e à glória, como ele mesmo se definia – um artista propriamente moderno, na acepção da palavra, para além dos encantamentos místicos ou religiosos. Em suma, considerando que "só há magia quando

esta é reconhecida socialmente"25 (Peirano, 1992, p. 44), Dante

Milano foi um poeta brasileiro que não tinha "medo de

feitiço"26, habitando a fronteira, o limiar, a margem de uma

estrutura de sentido dominante e hegemônica.

Mas, em meio a toda essa movimentação da pesquisa, sobressai uma indagação: o que fazia um poeta como Dante Milano na direção do Museu da Polícia Civil? Em entrevista

concedida a Denira Rozário, na presença de Ivan Junqueira,

em 1987, ele afirma categoricamente que esse assunto era

‘confessional’. A natureza ‘confessional’, mais subjetiva,

das estruturas de sentido, que sustentaram os atos e as representações do agente humano em questão, não foram expressas de modo direto, como nos outros temas abordados por ele. Então, como ultrapassar essa panóplia, esse oculto sob o véu do silêncio?

Mesmo na pesquisa mais próxima e minuciosa de seus arquivos particulares, dos depoimentos das pessoas ainda vivas que conviveram com o poeta e na sua obra poética e literária, pouco podemos acessar sobre suas ações na direção do órgão. Sabemos apenas, através de sua esposa Alda Milano, que ele foi o organizador do museu na ocasião de sua fundação: num trabalho que sentiu prazer em fazer. E nada mais nos é oferecido como testemunho de seu tempo museológico.

Na entrevista com Ivan Junqueira obtivemos o seguinte depoimento:

AFC - A Academia de Polícia do Rio de Janeiro (DFSP) cria

o Museu do Crime, da Polícia Civil do Distrito Federal, para as aulas de Polícia Científica, e ele se torna diretor desse Museu, em 1945. É isso que nos chama a atenção, como é que poesia brasileira se mistura e se encontra com a Segurança 24 No seu intrigante

ar-tigo, traduzido para o francês como Digressions

sur l’Étranger, de 1908, G.

Simmel, escreveu: "O estrangeiro instala-se na comunidade, mas fica à margem. Não apre-ende seus mecanismos íntimos e permanece de certo modo exterior ao grupo social, o que lhe confere, involunta-riamente, uma maior objetividade, ‘que não implica o distanciamen-to ou o desinteresse, mas resulta antes da combinação específica da proximidade e da distância, da atenção e da indiferença’" (apud COULON, 1995, p. 56). 25 Mariza Peirano re-cupera a tese de Marcel Mauss sobre a magia, quando aponta para o fato de Antonio Candi-do ter seguiCandi-do essa lição ao comparar "a poesia, a música, os ditos po-pulares, em diferentes sociedades" (1992, p. 45). 26 Alusão ao título do livro da antropóloga Ivonne Maggie, Medo do

(12)

Pública, a Polícia, a Museologia... Numa entrevista que ele oferece à Denira Rosário...

IJ - Fui eu que a apresentei a Dante Milano...

AFC - Nessa entrevista, o poeta afirma que esse assunto era

‘confessional’. Eu lhe pergunto, não seria antes ‘confidencial’?

IJ - Confessional; confidencial, não. Porque o D.M. tinha uma

inclinação pessoal muito grande pelos aspectos sinistros da vida. Coisa lá do temperamento dele. E a sensação que eu tenho é que ele se deu muito bem nesse Museu da Polícia. Cuidando daquelas monstruosidades...27. (Grifo nosso)

Ao insistirmos com Ivan Junqueira sobre o período em que Dante Milano dirigiu o Museu da Polícia, registramos o seguinte:

AFC - A natureza da atração do poeta pelo sinistro, tão

enfatizada pelos críticos e analistas de sua poética; sua simpatia por Augusto dos Anjos, Baudelaire... seu fascínio pelo macabro e pelas trevas (que nos lembra Edgar Poe) – sua obsessão pela luz... Tudo isso expresso num vasto vocabulário, em vasto léxico e ricos adjetivos... Tudo isso não caberia bem no cenário do Museu da Polícia, dirigido por ele, no qual contém coleções muito semelhantes ao que é referido na sua obra? O Sr. conhece o Museu?

IJ - Caberia, sim. Mas não conheço o Museu... Esse Museu

ainda existe?

AFC - Sim, existe. O prédio e a coleção museológica são

tombados pelo patrimônio cultural estadual e tem uma coleção de magia que é tombada pelo IPHAN, desde 1938... [...] Uma coisa que a gente não pode responder, só o Dante poderia responder, é o seguinte: esse fascínio pelo macabro, que realmente existe na poesia dele, veio antes ou depois da experiência dele como diretor do Museu da Polícia; ninguém pode responder a isso. Quem é que vai responder a isso?

Ao direcionarmos a entrevista para as possibilidades de relação entre a poética de Dante Milano e o acervo museológico da magia negra, Ivan Junqueira arrisca algumas considerações:

AFC - Não teria essa coleção uma relação mais profunda

com o imaginário do mal e do diabólico, na arte de D.M. e na arte moderna brasileira? Não só essa coleção, mas toda uma museologia construída a partir dessas peças e objetos?

IJ - Pode ter, pode ter. Mas sobre isso a gente nunca conversou.

Quando eu conheci o Dante, em 1979, a experiência que ele 27 Entrevista com Ivan

Junqueira na Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, no dia 02 de setembro de 2009.

(13)

teve no Museu da Polícia, já estava muito distante. Eram décadas e décadas, todas de esquecimento. Mas ele gostava muito de dizer que dirigiu o Museu da Polícia. Uma coisa que lhe deu enorme prazer, estar ali a frente desse Museu da Polícia.

AFC - Mas, o Sr. diria que ele sentiu ‘prazer’ em ter dirigido

e vivido aqueles anos no Museu?

IJ - Era a função que ele desempenhava, ele gostava da

função... meio estranha para um poeta. Mas se você for ler os trinta e três cantos do Inferno, aquilo ali é um outro museu... Aquilo ali é uma coisa patológica...

Dante Milano, como tradutor e estudioso das obras de Dante Alighieri e Charles Baudelaire, apresenta uma singularidade marcante na base de sua estruturação literária e poética. Ao escavarmos mais profundamente as camadas de sentido que estruturaram as imagens dialéticas sobre a magia em nossa sociedade, no início do século XX, e no começo do movimento modernista brasileiro, encontramos um poeta que brilha com sua própria luz.

Ao dirigir o Museu da Polícia por mais de vinte anos Dante Milano firmou sobre as coleções museológicas ali presentes - formadas por conjuntos heteróclitos de objetos apreendidos e por materiais didáticos para as aulas da Academia de Polícia: armas, uniformes, cenas de crimes, história da polícia, jogos de azar, charlatanismo etc., e a Coleção-Museu de Magia Negra - um olhar que não podia ser enquadrado de modo reducionista. No museu se encontravam diversos discursos imbricados; como descrevemos no texto de Museu Mefistofélico (2009). Todavia, é possível admitir que como poeta e com a formação clássica que tinha em literatura, Dante Milano concebia todo aquele acervo como a expressão do lado obscuro e sinistro da vida. Como escreveu Ivan Junqueira, Dante Milano era um poeta metafísico, perscrutando estruturas perenes do espírito humano:

IJ - Na verdade, eu acho que o amor pelo macabro, o amor

pelo lado sinistro das coisas, vem do Dante Alighieri. Quem ler o Inferno do Dante Alighieri, verá que está cheio disso. E ele era um leitor quase cotidiano da Comédia. Eu tenho quase certeza que esse lado macabro do Dante Milano se desenvolveu à sombra da leitura da Divina Comédia. (Entrevista ao autor).

(14)

De certa forma, nesse ponto nos aproximamos das reflexões de Georges Bataille (1949, 1989) nas quais o autor pretendeu desvendar a significação da "parte maldita" da existência humana. Na coleção de autores investigados por Bataille, certamente Dante Milano figuraria como exemplar. Os dois compreenderam que:

A humanidade persegue dois fins, de que um, negativo,

é conservar a vida (de evitar a morte), o outro, positivo,

de lhe aumentar a intensidade. Estes dois fins não são contraditórios. Mas a intensidade jamais aumentou sem perigo; a intensidade desejada pela maioria (ou o corpo social) está subordinada à preocupação de manter a vida e suas obras, que possui um primado indiscutido. Mas, quando ela é buscada pelas minorias, ou pelos indivíduos, ela pode sê-lo sem esperança, além do desejo de durar. A intensidade varia conforme a liberdade maior ou menor. Esta oposição da intensidade à duração vale no conjunto, e reserva muitos acordos (o ascetismo religioso; do lado da magia, a busca dos fins individuais28). A consideração do Bem e do Mal deve ser

revista a partir desses dados (BATAILLE, 1989, p. 64).

No ano que marca os 70 anos da morte de Mário de Andrade - em que há a retomada das "[...] questões ligadas à filosofia, às artes do fazer e às práticas de resistência das religiões afro, [tecendo-se] o elogio das diferenças étnico-raciais, culturais e religiosas que, afinal, compõem o Brasil imaginado por Mario de Andrade e seus seguidores no

Departamento de Cultura [...]"29 - também parece justo

fazer a devida apreensão da heterogeneidade que marcou o movimento dito modernista no Brasil. Convém superar de vez a ideia de qualquer homogeneidade ou ortodoxia de escola. Percebemos a importância em compreender as distinções de um Oswald de Andrade, de um Graça Aranha, entre outros tantos, e agora também de um Dante Milano, especialmente na movimentação da dialética do particular e do universal. Essa herança fica como justo legado, ao fazermos os ajustes necessários, transmitido para as futuras gerações num desenho mais fidedigno do processo modernista.

Considerando as múltiplas faces de um drama tecido com vários fios narrativos, toma-se a liberdade de recuperar com ironia, para o desfecho desse texto, uma passagem do

Macunaíma quando este solicita a intervenção de Exu para

fazer sofrer o gigante Piaimã comedor de gente, Venceslau

28 Bataille acrescenta ainda: "Estes fins, é ver-dade, visam costumei-ramente o excesso, não o Bem puro e simples, a conservação. Eles per-manecem, por isso, fa-voráveis à intensidade." (1989, p. 64)

29 Trecho do texto en-viado como carta con-vite para o evento A

MISSÃO DE PESQUI-SAS FOLCLÓR IC AS 1938-2015, promovido

pelo Centro Cultural São Paulo em outubro de 2015; no qual apre-sentamos versão origi-nal desse estudo.

(15)

Pietro Pietra, que lhe diz: "- ... nome principiado por Ma tem

má-sina..."30. Má-sina que Carlos Drummond de Andrade, no

livro A rosa do povo de 1945, vai despetalar no poema “Mário de Andrade desce aos infernos”:

... e uma rosa se abre, um segredo comunica-se, o poeta anunciou,

o poeta, nas trevas, anunciou. [...]

os primitivos, os cantadores, a gente de pé-no-chão, a voz que vem do Nordeste, os fetiches, as religiões, os bichos... Aqui tudo se acumulou,

[...]. (ANDRADE, 2005, p. 187)

No Museu de Tudo31...

REFERÊNCIAS

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ANDRADE, Mário de. Poesias completas. São Paulo: Duas Cidades, 1950.

______. Macunaíma. São Paulo: Círculo do Livro, S/D.

______. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos

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______. La literatura y el mal. Toronto: Ediciones Elaleph, 2000. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. São Paulo: Max Limonad, 1981.

______. Meu coração desnudado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1981.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura

da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. 30 Má-sina que também

é descrita no livro Mário

de Andrade: a morte do po-eta, de Eduardo Jardim

(2005).

31 João Cabral de Melo Neto, Museu de Tudo (1976).

(16)

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: T. A. Queiroz/Publifolha, 2000. COLEÇÃO MÁRIO DE ANDRADE: Religião e Magia, Música e Dança, Cotidiano / Organizadora Maria Rossetti Batista. São Paulo: USP, 2004.

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(17)

RIO, João do. As religiões do Rio. Rio de Janeiro: Garnier, 1906. ___. As religiões do Rio. Rio de Janeiro: Simões, 1951.

Abstract

Magic, poetry and spell: Between Mario de Andrade and Dante Milano

Cultural-historical study of literary singularities expressed by two Brazilian poets on the subject of cultural preservation of black magic collection in 1938. A reflection on the artistic imagination of the modernist period in the early decades of the twentieth century.

Referências

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