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Ser homem: um estudo sobre as masculinidades no interior do Nordeste brasileiro

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Academic year: 2021

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Ser homem: um estudo sobre as masculinidades no interior do Nordeste

brasileiro

Luciana Fernandes de Medeiros1 e Andrew Luis de Albuquerque Cabral2

1 Professora da Faculdade de Ciências da Saúde do Trairi/Facisa/UFRN/Brasil. lumedeirospsi@hotmail.com 2 Estudante do curso de Psicologia da Facisa/UFRN/Brasil. andrewluiscabral@hotmail.com

Resumo. O Nordeste brasileiro é conhecido pela forte presença do modelo patriarcal e também pelo machismo. Em algumas localidades, a violência contra a mulher é significativa em função desses fenômenos. Nesse sentido, objetivou-se compreender as masculinidades sob a perspectiva do homem acerca de temas como machismo, igualdade entre os gêneros, e o ser homem. Foram realizadas 08 entrevistas semi-estruturadas com homens, entre 17 e 65 anos, em uma cidade no interior do Rio Grande do Norte/Brasil. A análise das entrevistas foi realizada a partir da perspectiva da Etnografia Institucional e da análise do discurso. Observou-se que a maioria dos participantes critica o machismo. Contudo, quando se definem como homens, se percebe um discurso dominante de masculinidade: força física, responsabilidade e heteronormatividade. Com relação a esse último ponto, aparece também, nas entrevistas, a predominância de papéis sociais tradicionalmente associados ao homem: casar com uma mulher e constituir família. Palavras-chave: Masculinidades; homens; gênero; etnografia institucional; análise do discurso. Being man: a study about the masculinities in Brazilian Northeast countryside.

Abstract. The Brazilian Northeast is known for the strong presence of the patriarchal model and also for machismo. In some places, violence against women is significant due to these phenomena. The objective of this work is to understand the masculinities under the perspective of the man on subjects like machismo, equality between the genres and being man. Eight semi-structured interviews were conducted with men, aged between 17 and 65, in a city in Rio Grande do Norte / Brazil. The analysis of the interviews was carried out from the perspective of Institutional Ethnography and discourse analysis. The majority of the participants criticizes the machismo. However, when they define themselves as men, a dominant discourse of masculinity comes out: physical strength, responsibility and heteronormativity. With regard to this last point, also appears the predominance of social roles traditionally associated to the man: to marry with a woman and to constitute family.

Keywords: masculinities; men; gender; Institutional Ethnography; discourse analysis.

1 Introdução

Muito já tem se falado sobre as questões de gênero e dos problemas decorrentes da sociedade patriarcal e machista que, apesar dos avanços e da emancipação feminina, ainda se faz presente em diferentes setores da sociedade brasileira, sobretudo no Nordeste brasileiro (Medrado, Nascimento & Lyra, 2019; Azevedo, 2010; Moreira, Galvão, Melo & Azevedo, 2008; Medeiros, 2003).Verunschk (2015), ao analisar o estudo de Trotta (2014) sobre a construção da identidade nordestina em paralelo à música tradicional da região, coloca que o papel da mulher aos poucos desaparece e a conduta masculina é pautada pela conquista sexual, por uma performance de “macheza” e por papéis estabelecidos e socialmente aceitos do que é ser homem e ser mulher.

As dificuldades diante dos discursos normatizadores sobre o que é ser homem e o que é ser mulher também contribuem para o controle do corpo e da sexualidade (Haddad, 2014; Costa, 1999; Beauvoir, 1960). Nessa perspectiva, Adichie (2015) comenta que os homens também sofrem, em alguma medida, com o machismo e com as iniquidades de gênero.

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Separavich e Canesqui (2013) apontam a baixa adesão dos homens aos serviços de saúde em função dos estereótipos de gênero. Esses estereótipos formam parte do que os autores supracitados denominam de masculinidade hegemônica, isto é, a negação das características atribuídas ao feminino, a necessidade de se colocar em uma posição de maior poder em relação ao sexo feminino e a valorização das características sócio-culturalmente atribuídas ao masculino (força, virilidade, racionalidade e sexualidade exacerbada). Nessa perspectiva, o homem “normal” é aquele que possui todos esses atributos e, principalmente, se consegue negar/esconder suas fragilidades (Medrado, Nascimento & Lyra, 2019). Assim, muitos homens deixam de realizar os exames de prevenção ao câncer de próstata, por exemplo, para não se sentir ferido em sua masculinidade (Separavich & Canesqui, 2013). Leite et al. (2016) também apontam para alguns problemas de saúde mais comuns entre os homens como o alcoolismo, o tabagismo e a violência que são interrelacionados com as questões de gênero. O uso irregular de preservativos, a violência sexual e o controle sobre o corpo da mulher também são características presentes no imaginário sobre a macheza e a virilidade (Nascimento, Uziel & Hernández, 2018).

Os estereótipos de gênero também contribuem para a ideia de que o homem deve estar sempre preparado para o sexo e, em muitas situações sociais, é desafiado a demonstrar sua potência e virilidade. O discurso da masculinidade hegemônica traz em seu bojo a disfunção erétil como sinal de fraqueza e perda de poder (Faro et al, 2013). Esses autores colocam que o discurso da masculinidade hegemônica, que valoriza a potência e a sexualidade exacerbada, em conjunto com a ideia de que a disfunção erétil é meramente fisiológica, contribuem para a biomedicalização da sexualidade masculina e a negação dos aspectos emocionais envolvidos em tal situação.

Dessa maneira, Medrado, Nascimento e Lyra (2019); Leite et al. (2016) e Carlotto et al. (2011) consideram a importância dos estudos sobre saúde do homem também perpassarem pelas questões de gênero, uma vez que as masculinidades são construídas social e culturalmente. Além disso, “ao se abordar numa perspectiva de gênero o campo da masculinidade, impele-nos a falar dela no plural, haja vista tratar-se de múltiplas possibilidades de assumir papéis em torno do que se possa chamar de universo masculino” (Leite et al., 2016, p.344).

Nessa perspectiva, o objetivo geral do artigo é compreender as masculinidades sob a perspectiva do homem e, mais especificamente, analisar quais os significados e sentidos atribuídos ao “ser homem” e ao machismo e identificar possíveis fontes de sofrimento psicológico nesse grupo.

2 Procedimentos metodológicos

A pesquisa tem um delineamento qualitativo uma vez que se busca compreender os significados das masculinidades e do machismo. Os participantes foram pessoas do sexo masculino, moradoras de um município no interior do estado do Rio Grande do Norte (na região Nordeste do Brasil), na faixa etária dos 17 aos 65 anos. Para manter o sigilo, os participantes serão identificados com nomes fictícios.

Segundo o IBGE (2010), a cidade em questão contava com uma população de 35.797 habitantes, tendo um indice de desenvolvimento humano municipal (IDHM) de 0,635. Em 2016, o salário médio mensal dos trabalhadores formais era de 1,7 salários minimos (IBGE, 2016). Em comparação com os 167 municípios do Rio Grande do Norte, esse município está em 149º. lugar em relação à taxa de escolarização entre moradores de 6 a 14 anos de idade. Isso aponta para um município em que predominam moradores com uma renda relativamente baixa e com pouca escolaridade em comparação com outros municípios e outras regiões.

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A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Facisa/UFRN sob o protocolo 1.839.728. Assim, os pesquisadores apresentaram a proposta da pesquisa para pessoas de seu conhecimento que indicaram alguns homens que poderiam conceder a entrevista. Através desse contato, 08 (oito) se dispuseram a conceder a entrevista. Os participantes têm uma média de 28,25 anos, sendo o mais jovem com 17 anos e o mais velho, 52 anos. Metade deles tem ensino médio e a outra, ensino superior. O participante com maior renda recebe R$ 3.000,00 mensais, dois deles não têm renda e os demais, ganham entre um e dois salários mínimos.

A eles foi apresentado e explicado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a entrevista aconteceu depois da assinatura desse documento. A entrevista foi agendada com o participante e realizada em seu domicílio. As entrevistas foram gravadas e transcritas mediante consentimento livre e esclarecido e autorização da gravação da fala.

A entrevista em profundidade é um dos métodos mais adequados para a pesquisa de campo proposta e seguiu um roteiro semi-estruturado para evitar maiores dispersões e contribuir para uma conversa mais próxima com os participantes. A entrevista começou com perguntas sobre os dados sócio-demográficos e estado geral de saúde. Em seguida, questões sobre o que é ser homem na atualidade, o que o participante compreende como machismo e como percebe as diferenças entre homens e mulheres. As entrevistas foram realizadas por um dos autores e a análise das mesmas pelos dois autores do presente trabalho.

Sendo uma pesquisa qualitativa, o número de participantes se mostrou adequado pois as entrevistas realizadas atingiram o grau de saturação (Fontanelas, Ricas & Turato, 2008). Para análise das entrevistas, foi utilizada a perspectiva teórico-metodológica da etnografia institucional (EI) proposta por Smith (2005) e a análise do discurso proposta por Locke (2004), Willig (2001) e descrita em Azevedo (2014).

A EI busca compreender a rede de relações sociais cotidianas, considerando os discursos e as práticas dos atores sociais (Smith, 2005). Para isso, três conceitos são centrais ao trabalho de pesquisa com a EI: os textos, as instituições e as relações normatizadoras.

Os textos são essenciais para a organização social, pois contribuem para a coordenação das práticas cotidianas. Os textos são os documentos oficiais, as rotinas pré-estabelecidas, os protocolos e os padrões de comportamento socialmente aceitos em determinado contexto. A EI busca explicitar e compreender esses textos a fim de identificar em que as pessoas se fundamentam em suas ações cotidianas. Já a instituição é todo o conjunto de textos compartilhados entre as pessoas de um determinado contexto (Smith, 2005). A EI parte do princípio de que as instituições são uma das principais forças que organizam e determinam as práticas da vida cotidiana (Azevedo, 2010).

Nesse sentido, os textos e as instituições estão permeados pelas relações normatizadoras que se fundamentam na concepção de relações de poder, conceito desenvolvido por Michel Foucault. Considera-se que as relações normatizadoras mediam as ações humanas, uma vez que estas tendem a seguir os discursos dominantes.

Para identificar os textos e compreender as práticas cotidianas em relação às masculinidades, o processo de análise considerou a técnica de análise do discurso proposta por Willig (2001). A EI permite a utilização de técnicas de análise que se coadunem com seus pressupostos epistemológicos (Azevedo, 2010).

Assim, como primeira etapa do processo de análise, todo o material foi lido exaustivamente de forma a trabalhar como em um mapa, prestando atenção aos “insights” que emergiram nesses momentos de leitura e reflexão (Campbel & Gregor, 2002). A segunda etapa consistiu em identificar

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as construções discursivas, ou seja, os temas apresentados no material que se relacionam com os objetivos da pesquisa (Willig, 2001). Assim, os temas mais comuns entre os participantes foram elencados no mapa, bem como os mais originais, isto é, aqueles que apareceram em apenas um dos participantes.

A terceira etapa consistiu em identificar a orientação para a ação, ou seja, o que o discurso está fazendo (Willig, 2001). Isso significa dizer que as pessoas não só “dizem” com o discurso, mas também indicam sua intencionalidade mesmo que não reflitam sobre isso.

A quarta e última etapa consistiu em analisar o posicionamento, considerado como um processo fluido, que determina as ações sociais. Considera-se que as pessoas assumem determinado posicionamento, geralmente permeado pelas relações de poder, diante de quaisquer situações do cotidiano (Locke, 2004; Willig, 2001). Dessa maneira, é possível também identificar as relações normatizadoras presentes nos discursos dos participantes da pesquisa. A partir dessas etapas, foi realizado um diálogo entre os temas elencados a partir do processo de análise e a literatura sobre a temática.

3 As masculinidades e as questões de gênero

No decorrer do processo de análise, foi possível identificar três temáticas relevantes que se evidenciaram nos discursos: o ser homem, a concepção de machismo, a igualdade entre homens e mulheres. A seguir, as três temáticas serão desenvolvidas em diálogo com a literatura.

3.1. Ser homem na atualidade é...

Os participantes começaram a entrevista falando de sua rotina e situação de saúde o que permitiu o estabelecimento do vínculo de confiança com o pesquisador. Diante da pergunta “o que é ser homem para você” foi observada a mobilização de alguns sentimentos de curiosidade e estranhamento, mas os participantes procuraram responder. Muitas vezes, se utilizando de exemplos ou usando a terceira pessoa:

Para mim ser homem, (...), mas, no sentido, digamos que a sociedade prega, o homem deve ser aquele que nasceu homem e tem que casar com uma mulher, ter filhos, trabalhar, manter a sua casa, é que, também se encaixa até de acordo com meus princípios religiosos (...) não concordo totalmente com o que a sociedade prega, a gente vive num mundo hoje, dominado por um certo... até a mídia, mas desde já não tenho nada contra, só minha opinião e meus princípios, mas não tenho nada contra a outras atividades relacionadas ao gênero e é isso. (...) é aquele que tem o respeito, é aquele que cumpre o seu dever, ou seja, na família, no trabalho, onde quer que seja, isso é o que eu defino homem no geral com uma personalidade digna de viver. (Pedro, 23 anos)

Ser homem é ser hétero, ser homem entre aspas né, porque quando a gente for definir um homem na sociedade de hoje que é um pouco machista, não só de hoje, (...), você atribui ao termo homem aquele cara que constitui uma família com uma mulher, que segue os princípios bíblicos que é homem e mulher e não homoafetivos. (...)Passado de pai pra filho sempre, sempre, porque nenhum pai ao meu ver, até onde eu convivi, quer que o filho se transforme, quer que o filho nasça ou faça algum tipo de transmutação para ser homossexual, pra ser homoafetivo ou pra ser GLBT (...), sempre o pai vai ensinar a ser igual a ele, igual a ele em termo de caráter, em termo de fisionomia, em termo de pensamentos, sempre você vai induzir o seu filho a ser hétero, a namorar com meninas, a brincar com coisa de homem, a brincar de bola, brincar com os amigos, não tá andando com mulheres, brincando de boneca, vestindo certas roupas, isso é passado de geração em geração, desde a sociedade machista de antigamente e até hoje. (Paulo, 23 anos).

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(...) com relação aquilo que a gente aprende e vive no comum que o homem e a mulher deve constituir família e tal, que o homem foi feito para a mulher, então, eu vejo esse papel assim, que o papel do homem é de gerar filhos e tal e constituir essa família, vejo esse papel assim e questão de boa conduta na sociedade, seguir pelos bons costumes, tipo de você não se desviar para a criminalidade. (Tomas, 25 anos).

O ser homem é mais a questão de caráter, não a questão de sexo, mas a questão de caráter perante a sociedade, é o que eu acredito. (...) A maneira de se portar, independente se ele for gay ou não, a maneira de se portar perante a sociedade com respeito é o que eu considero um homem. Tem muitos homens mesmo, sem ser homossexuais e que não são homens, não tem o respeito perante a sociedade e tem muitos homossexuais que tem aquele jeito que era pra ser um de homem (Felipe, 21 anos).

(...)eu acho que o homem tem que ter uma roupa certa adequada pra ele mesmo, uma... não pintar as unhas. (...) Eu vejo assim, o homem é quem tem que botar as coisas pra dentro de casa, embora que a esposa trabalhe, mas ele tem que trabalhar pra botar as coisas dentro de casa, pra manter seus filhos, embora que sua esposa trabalhe, lhe ajuda ou não, mas eu acho que isso é a vez do homem, o homem é quem tem que fazer.(Carlos, 41 anos).

A primeira impressão que se tem ao ler esses trechos é que os participantes começaram com uma linha de argumentação, mas logo se interromperam para adotar um discurso defensivo ou transferir para a sociedade o que eles aprenderam sobre ser homem. Isso aparece principalmente em Pedro e Paulo quando começam dizendo que ser homem é aquele que constitui família com uma mulher, mas logo parecem perceber que aquilo é insuficiente ou não inclui todos os outros modos de ser homem e procuram explicar como sendo algo “da sociedade”.

Também aparece uma certa confusão entre sexo, gênero e orientação sexual. Isso fica evidente no discurso de Felipe quando coloca que “tem muitos homens mesmo, sem ser homossexuais e que não

são homens, não tem o respeito perante a sociedade e tem muitos homossexuais que tem aquele jeito que era pra ser um de homem”. Ou seja, ser homem tem a ver com respeito, mas se for gay, há

dúvidas sobre se um gay também é homem como os outros. O conceito de homem, então, para esses participantes, ainda está muito associada a uma masculinidade heteronormativa, apesar de tensões no discurso quando colocam que “a sociedade prega isso”. Nos dizeres de Medrado, Nascimento e Lyra (2019), ainda é forte os “postulados heteropatriarcais, que reafirmam a posição e a função masculina de dominação” (p. 606).

Em consonância com Oliveira (2016), as questões envolvendo gênero, apesar de existiram e serem legitimadas a todo instante nas práticas sociais, nem sempre são tidas como assunto de interesse e/ou problematização no cotidiano. Nos dizeres de alguns participantes, assim aprenderam com os pais, portanto, deve ser verdade e deve ser seguido, apesar de vislumbrarem uma realidade que está aí apontando para uma “não tão verdade assim”.

Apenas um dos participantes apresentou uma ideia diferente acerca do que é ser homem:

Isso também passa por um contexto histórico,(...) a gente tem essa sociedade que diz que o homem é o provedor da casa, que não demonstra sentimentos, que não pode abraçar amigos, que não pode chorar, mas eu acho que é todo o inverso, eu acho que a gente tem que começar a pensar que as características não são exclusivamente masculinas ou femininas, elas mudam com a sociedade, elas mudam conforme a cultura e aí os signos hoje, eu me vejo com muito signos masculinos que são mais físicos (...). (João, 24 anos).

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Apesar de ter aprendido o discurso hegemônico sobre ser homem, João apresenta um discurso em que se percebe reflexões sobre a temática, provavelmente por acompanhar mais de perto as discussões de gênero. João é o participante que apresentou o discurso mais diferenciado entre os demais participantes desse estudo.

3.2. O que se entende por machismo

As relações de conflito entre os sexos são naturalizadas e, historicamente, sempre foi reservado à mulher um lugar de menor destaque, com seus direitos e deveres sempre voltados para o cuidado do lar e dos filhos. As desigualdades políticas, jurídicas e sociais inviabilizavam e inviabilizam o acesso das mulheres às mesmas posições sociais que os homens sempre ocuparam, culminando em relações de poder (Medrado, Nascimento e Lyra, 2019; Silva, 2010). Segundo Couto e Schraiber (2013), o machismo está fundado na legitimação ao exercício do poder socialmente atribuído ao homem, que assenta numa rígida divisão de homens e mulheres nos espaços público e privado. Não obstante, os atores supraciados citam, ainda, algumas características do machismo, como: demonstração excessiva de masculinidade, o exercício da sexualidade e controle da sexualidade feminina, representação de virilidade e agressividade.

Ao serem perguntados sobre o que os participantes entendem por machismo, os entrevistados corroboram os estudos sobre a temática:

“é dizer que a mulher tem que servir só ao homem” (José, 17 anos). “de se achar que só o homem pode fazer tais coisas” (Tomas, 25 anos).

“o machismo mais forte é você dizer assim: não, eu que mando, isso quem manda sou eu, aqui quem manda sou eu” (Lucas, 52 anos)

Com o aprofundamento do diálogo, eles foram indagados sobre características que eles atribuíam ao machismo:

“a pessoa machista possui um gênio forte, talvez que não possa ser mudado porque ela tem aquela concepção, tem aquele direcionamento desde infância, é muito difícil você mudar a cabeça de um machista ou ele deixar de ser machista, outra coisa que ele tem, ele sabe se empenhar, ele sabe usar o seu tom de voz, ele sabe se expressar no termo de se impor” (Paulo, 23 anos).

“machismo é o homem ser superior à mulher, acho, não, é isso, é o homem ser superior à mulher, principalmente nos atos, então.(...) É de achar que tudo é machismo, nem tudo é machismo não, às vezes é só acontecimento normal da sociedade, não precisa ser só machismo não, machismo é mais a questão de violência tanto verbal e física perante uma mulher, mas nem tudo é, como eu disse, só questão de mimimi” (Felipe, 21 anos).

“Rapaz, eu acho que tem que ter machismo, o homem tem que ser machista mesmo. (...) Porque não foi eu que inventei, foi Deus, quem começou foi, muitas coisas, você pode olhar que isso é bíblico né, o homem sai pra trabalhar e a mulher cuida dos filhos, não foi eu que inventei isso, eu não vou dizer que eu vou levar isso ao pé da letra né, porque hoje a gente vive num mundo diferente, mas o princípio é esse, né”. (Carlos, 41 anos).

Pode-se perceber, nos discursos acima, que os participantes descrevem ações consideradas como machistas: gênio forte, saber se impor, superioridade sobre a mulher. Especificamente, na segunda fala, percebe-se certa relativização do fenômeno, pois, durante a entrevista, Felipe coloca o machismo como sendo um “acontecimento normal da sociedade”. Também coloca como “mimimi” alguns casos em que, para ele, não são fruto do machismo. Já Carlos coloca o machismo como algo

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vindo de Deus, ou seja, por esse motivo não se deve questionar. O machismo é tão naturalizado que há dúvidas sobre se certas situações são decorrentes do machismo ou se são apenas melindres de mulheres ou de parte da população. Nascimento, Uziel & Hernández (2018) apontam que essas noções de gênero cristalizadas dificultam a compreensão sobre corpo e sexualidade e contribuem para a perpetuação de práticas que podem culminar em violência, sobretudo contra a mulher.

3.3. O que acham da igualdade entre homens e mulheres

Quando perguntados sobre o que achavam da igualdade entre homens e mulheres, a maioria dos participantes a colocam como importante. Contudo, ao aprofundarem a questão ou darem exemplos, não abordam diretamente a igualdade como sendo de direitos, mas da igualdade numa dimensão biológica e/ou referente a características atribuídas socio-culturalmente ao homem e à mulher:

“O homem tem que ter, na verdade ele é naturalmente bruto, bruto que eu digo, um cara mais à frente, sempre quando é questão de família e a mulher sempre é mais delicada”(Felipe, 21 anos).

Felipe também comenta sobre a igualdade nos esportes citando exemplos do seu convívio social sobre mulheres que praticam artes marciais (antes atribuído somente a homens) na busca pela autodefesa, pois segundo ele: “a mulher é meio que retraída não sabe se defender”. Nesse caso, concebe a mulher como um ser frágil e que precisa aprender a se defender dos “mais fortes”, os homens. Esse participante não acredita na igualdade entre os sexos e fala:

“é impossível ter igualdade, não existe essa igualdade perfeita que vai ter igualdade não, isso aí é um experimento muito ruim, tentar trazer igualdade que só acarreta mais problemas para uma sociedade. (...)porque não tem como ter igualdade assim, igualdade que eu digo é salarial que não existe porque depende da produtividade, uma igualdade dita pelo governo que vai dar errado, isso aí eu tenho certeza, vai ter um milhão de experimentos e vai dar errado”(Felipe, 21 anos).

No diálogo com o entrevistador, Carlos (41 anos) corrobora a ideia de que mulheres e homens jamais poderão ser iguais em função das diferenças naturalizadas entre os gêneros:

Carlos: Não, de jeito maneira, ser policial hoje o bicho pega, aquilo não é coisa pra mulher não. Entrevistador: Por que?

Carlos: Porque ela não tem uma ação que um homem tem. Entrevistador: E qual seria uma ação que um homem tem? Carlos: Coragem.

Entrevistador: Ser corajoso é uma característica de ser homem? Carlos: De ser homem também.

Entrevistador: Como assim essa coragem?

Carlos: Uma mulher se aperreia muito fácil, o homem não.

Entrevistador: Mas todas as mulheres são assim? E todos os homens são corajosos?

Carlos: Tem exceção em todo canto, né, agora uma mulher feminina, feminina, ela não tem essa coragem. Uma mulher que é mulher ela não tem essa coragem que o homem tem.

Nesse diálogo, evidencia-se um texto sobre o que é atribuído ao feminino em contraposição ao texto do ser masculino. Assim, para ser um homem é preciso não ser uma mulher, isto é, não ter características atribuídas ao feminino. As práticas cotidianas de homens como Carlos estão repletas de textos como esses de maneira que, irrefletidamente, eles reproduzem ações e discursos condizentes com esses textos.

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Em contrapartida, João afirma que a igualdade é necessária:

“Porque a partir do momento que um acha que tem o poder sobre o outro, essas relações vão se perpetuar, aí a igualdade não é, porque se eu cozinhar eu vou ser igual ou se eu for lavar a minha roupa, as coisas vão ser iguais, não. É também você dizer o que é que você quer e o que você não quer fazer e não ser reprimido por isso. Você não ter que fazer aquela coisa porque você deve e, sim, porque você quer, você pode.”(João, 24 anos).

Nessa fala, se evidencia sutilmente uma questão importante no debate sobre a igualdade tão caro aos movimentos feministas: poder fazer algo independente de ser considerado como “coisa de homem ou de mulher”, mas porque faz sentido, porque se tem desejo.

Em suma, observa-se que os participantes consideram as mulheres como iguais, mas não tão iguais assim, posto que são consideradas mais frágeis, física e emocionalmente, pela maioria deles. Mais uma vez se se percebe a força do discurso hegemônico sobre a masculinidade.

4 Conclusões

As entrevistas analisadas nesse trabalho apontam para a presença de textos advindos do modelo hegemônico, frutos do discurso patriarcal e machista. Todavia, pode-se vislumbrar a presença de outros textos, como a crítica à violência contra a mulher e a constatação de que muitas mulheres fazem as mesmas atividades antes atribuídas somente ao homem. Os participantes passam uma ideia de que homem e mulher deveriam ser iguais, “embora não sejam”, uma vez que o discurso da divisão entre os sexos numa perspectiva biologicista ainda é predominante.

Isso mostra o quanto os textos estão permeados pelas relações de dominação (ruling relations) quando se percebe a hegemonia de um discurso sobre o outro. Porém, também é possível identificar que quando se reflete sobre esses discursos, há uma tendência em perceber suas fragilidades. Isso significa que é importante refletir criticamente sobre as práticas cotidianas e entender de onde vem certos discursos e certas ações. Refletindo e conhecendo a gênese desses textos, há maiores possibilidades de mudanças (Smith, 2005; Spink & Menegon, 1999).

O não reconhecimento de atos machistas ou a tentativa de relativizar iniquidades entre os gêneros tem ligação direta com abrir mão de direitos. Se o machismo é considerado pelo poderio do sexo masculino sobre o sexo feminino e que utiliza de diversas ferramentas para manter essa hierarquia, reconhecer essas desigualdades os poriam minimamente em uma situação delicada de não mais naturalizar ou pôr a culpa na sociedade sobre as iniquidades, mas de assumir a responsabilidade e admitir intencionalidade ao reproduzir cotidianamente essas desigualdades.

As discussões sobre as questões de gênero, portanto, são importantes e necessárias para a compreensão das masculinidades e das feminilidades (Medrado, Nascimento & Lyra, 2019). Considera-se que problematizar e refletir sobre essas questões pode contribuir para a compreensão de fenômenos que acontecem sobretudo no campo da saúde, como a menor adesão de homens aos serviços de saúde, o maior indice de violência e uso/abuso de álcool e drogas. Os estudos de gênero também podem contribuir para maior compreensão das relações entre homens e mulheres, explicitação das diversas causas da violência doméstica e mesmo sua erradicação.

Quando se fala em educação sexual percebe-se uma resistência de parte da população brasileira sobre a temática. Paradoxalmente, o Brasil tem altos indices de feminicídio e ataques aos homossexuais e transexuais. Diante disso, nunca se fez tão urgente abrir espaço nas escolas, nos serviços de saúde e em outras instâncias para se conversar sobre gênero, sexualidade, corpo,

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machismo e outras temáticas relacionadas (Medrado, Nascimento & Lyra, 2019). Além disso, é possível compreender, por exemplo, as diferentes possibilidades de vivenciar a sexualidade, as diferentes orientações sexuais e, principalmente, o respeito a si mesmo e ao outro.

Essa é uma das riquezas da investigação qualitativa sobre esses fenômenos, pois faz-se necessário dar voz às pessoas que vivenciam seu cotidiano, que estão atuando e que reproduzem comportamentos, crenças e valores. No momento em que são realizadas as perguntas da entrevista e se estabelece uma conversa com o pesquisador, é possível fomentar um espaço de reflexão, o que pode contribuir para alguma mudança. Contudo, uma entrevista só talvez não seja suficiente para possibilitar mudanças significativas de crenças e valores. Afinal, o machismo ainda é muito forte nas sociedades latino-americanas, infelizmente. Nesse sentido, faz-se necessário fortalecer espaços de discussão sobre essas temáticas e essa pesquisa vem mostrar justamente tal urgência.

Agradecimentos. A todos os participantes da pesquisa.

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Referências

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