• Nenhum resultado encontrado

Imagens contemporâneas e outros sentidos: novos horizontes na interação com a imagem digital

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Imagens contemporâneas e outros sentidos: novos horizontes na interação com a imagem digital"

Copied!
99
0
0

Texto

(1)

IMAGENS CONTEMPORÂNEAS E OUTROS SENTIDOS:

NOVOSHORIZONTESNAINTERAÇÃOCOMAIMAGEMDIGITAL

JOANA FRANCISCA PIRES RODRIGUES

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco,

sob a orientação da Profª . Drª . Maria do Carmo de Siqueira Nino.

RECIFE 2012

(2)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

J

OANA

F

RANCISCA

P

IRES

R

ODRIGUES

IMAGENS CONTEMPORÂNEAS E OUTROS SENTIDOS:

novos horizontes na interação com a imagem digital

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação da Profª. Drª. Maria do Carmo de Siqueira Nino.

Recife 2012

(3)

Catalogação na fonte Andréa Marinho, CRB4-1667

R696i Rodrigues, Joana Francisca Pires

Imagens contemporâneas e outros sentidos: novos horizontes na interação com a imagem digital / Joana Francisca Pires Rodrigues. – Recife: O Autor, 2012.

102p.: il.; 30 cm.

Orientador: Maria do Carmo de Siqueira Nino.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, CAC.Comunicação, 2012.

Inclui bibliografia.

1. Comunicação. 2. Fotografia. 3. Fotografia – técnicas digitais. I. Nino, Maria do Carmo de Siqueira (Orientador). II. Titulo.

302.23 CDD (22.ed.) UFPE (CAC2012-87)

(4)

FOLHA DE APROVAÇÃO

Autora do Trabalho: JOANA FRANCISCA PIRES RODRIGUES

Título: Imagens Contemporâneas e Outros Sentidos: novos horizontes na interação com a imagem digital

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação da Professora Dra. Maria do Carmo de Siqueira Nino.

Banca Examinadora:

____________________________________ Maria do Carmo de Siqueira Nino ____________________________________ Gentil Alfredo Magalhães Duque Porto Filho ____________________________________ José Afonso da Silva Junior

____/____/____ Data da aprovação

(5)

A Bel, que me ensinou o que eu sei e o que eu não sei mais

(6)

Agradecimentos

Sentar e agradecer, repetindo os clichês mais embaraçosos, é um dos momentos mais especiais de um trabalho conquistado. Não por se cumprir qualquer compromisso programático, mas pelo sentimento de redenção mesmo. De dizer finalmente as questões que se tornaram compreensíveis durante o processo, após todo o esforço que não foi à toa.

Antes de mais nada, é fundamental agradecer ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM da UFPE) por ter me dado a oportunidade e completo apoio para a realização dessa pesquisa. Agradeço igualmente à Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE), pelo incentivo financeiro que tornou a pesquisa viável.

Uma vez escrevi que existem três coisas que me interessam. A língua, a fotografia e o amor. Não necessariamente nessa mesma ordem e menos ainda com papeis pré-definidos.

Dessa tríade, duas me despertaram a atenção quase que simultaneamente, e vivem em conjunto como que unidas por casamento desde então. Foi ainda com olhar de adolescente que eu redescobri a língua e o amor. A linguagem como o lugar da constituição da subjetividade, como diria Bakhtin - o espaço do eu. O amor como o lugar de teste dessa subjetividade - o confronto com o outro.

"Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro" e não é possível falar só. Quando falamos, mesmo sozinhos, montamos um discurso que possa ser claro a um interlocutor imaginário, alguém que é outro, mesmo estando dentro da gente. É nessa presença externa - que pode ser nosso eu-obscuro ou uma pessoa-encantada qualquer - que encontro o "excedente da visão", um olhar que me completa e que me define.

Nesses agradecimentos, apresento aqueles que são o meu principal “excedente de visão”, os olhares que me formam e que, juntos, foram os principais responsáveis por isso tudo o que está escrito aqui, bem como por tudo o que eu um dia ainda vá escrever. A mainha, por ser minha dupla e minha companheira, por todo o seu esforço em me fazer quem sou e por toda a sua dedicação em me fazer feliz. A Pedro e a painho, pelo amor que sinto por eles e por me ensinarem a ser família.

A Maria, por ter me ensinado que os guias podem nos tirar das situações mais adversas e nos fortalecer com doçura. A Afonso, por ter apontado um desvio fundamental para que eu encontrasse o meu trajeto verdadeiro. A Nina, por suas recomendações preciosas durante o processo de qualificação.

A Ceça, pela presença forte e amável na minha vida e pela inspiração que ela representa. A Sergio, por apoiar todos os meus projetos, mas principalmente por tornar minha família mais feliz. A Buga e a Tanya, pelo apoio fundamental nos momentos iniciais, quando esse trabalho não tinha sequer um formato.

A Helder por ter insistido em me ver como sou mesmo nos dias em que não fui eu mesma, mesmo nos dias em que eu não tive vontade nem de abrir meus olhos.

(7)

A Carolina, por entender principalmente o que eu não preciso falar. A Alba, Daniel e a Lucas por deixarem meu coração mais tranquilo. A Cecília, por me completar em sangue e em pensamento.

A Rodrigo e a Alane, por terem compartilhado os mesmos desesperos, entre risadas e carinhos, mesmo à distância. A Manuela, por tudo o que ela é e por tudo o que tento ser por ela. A Eugênia e Milena, pela parceria em todos os momentos.

A Val, Priscilla, Maíra, Ana e Bella, por deixarem os meus dias mais poéticos, entre afazeres e amizades.

A Gatis, Raquel e Lu, companheiros de mestrado, com os quais dividi algumas da angústias e muitas das questões desse processo.

A Joana, Rodrigo, Mari e Camila, pela amizade e pelo carinho, que me fortaleceu em tantos outros momentos.

Aos amigos que, mesmo não participando diretamente, são valiosíssimos por sua presença constante: Tati, Suelen, Teresa, Mayumi, Marcia, Hilda, Patrícia e Larissa. A Clovinho.

A Iracema, sempre.

A Chet por me mostrar a trilha, a Duane por me mostrar a prova. Essa dissertação é minha prova também, minha obra.

"Não tomo consciência de mim mesmo senão através dos outros". E, creio, essa relação pode chegar ao seu auge na presença, mesmo que cafona, do amor – o amor que me acompanha em todas as minhas decisões e que me faz feliz, por todas as pessoas que me amam e que eu escolhi de uma forma ou de outra amar.

"Para a palavra e, por conseguinte, para o homem nada é mais terrível do que a falta de resposta". Para o amor, nada é mais frustrante que a indiferença. Contamos com respostas por sabermos que, mais do que uma definição, uma resposta é uma prova de existência nossa no olhar e no mundo externo. Essas pessoas são as que me dão respostas, as provas de que eu existo. E nada é mais intenso do que se sentir existindo.

Com amor, Joana (aspas de Bakhtin)

(8)

A transposição da nossa cultura para o ambiente digital incentiva o surgimento de novas dinâmicas de trato com os conteúdos culturais, as imagens entre eles. Entre as consequências deste acontecimento está uma profunda modificação do nosso relacionamento com o visual. O presente trabalho analisa as perspectivas que acompanham essas transformações, buscando entender como as novas circunstâncias de experiência com a imagem, reproduzida e difundida em meio digital, se organizam no tempo e no espaço das pessoas, quais as potencialidades de interação com a imagem que elas trazem e quais as consequências disso nos nossos hábitos perceptivos. Com o objetivo de refletir sobre a fotografia, não por seu viés produtivo, mas pelas novas circunstâncias da interação com essas imagens e as alterações que essas mudanças provocam no nosso relacionamento com as obras, faz-se a relação entre a análise proposta por Fred Ritchin sobre as potencialidades hipertextuais da fotografia numérica e a abordagem de Edmond Couchot a respeito das recentes transformações que estas imagens têm produzido nos nossos hábitos culturais e, portanto, perceptivos. Para ilustrar os percursos da pesquisa, analisaremos o trabalho do artista norte-americano Jonathan Harris, um dos principais nomes nas Artes Visuais contemporâneas e desenvolvedor de projetos que reimaginam, reconfiguram e potencializam nossa interação com a tecnologia.

(9)

ABSTRACT

The implementation of our culture for the digital environment encourages the emergence of new dynamics of dealing with cultural content, including images. Among the consequences of this event there is a profound change in our relationship with the visual. This work aims to examine the prospects that accompany these changes, seeking to understand how the new circumstances of experience with the image, reproduced and difused in digital form, are organized in time and space of people, what is the potential for interaction with the image they bring and what are the consequences in our perceptual habits. In order to analyze the images in the new circumstances of our interaction with them, and consequently the changes caused in our relationship with the works, rather than their production, we try to relate the analysis proposed by Fred Ritchin on the potential hypertext of digital photography with the numerical approach proposed by Edmond Couchot do about recent changes that have produced these images in our cultural and therefore perceptive habits. In order to illustrate the paths of research, we will analyze the work of the american artist Jonathan Harris, one of the leading names in contemporary visual arts and proposer of projects that re-imaginate, reconfigure and enhance our interaction with technology.

Keywords: hiperphotography, hipercontents, interaction, numerical

(10)

1. Apresentação...11

a. Imagens: guias no mundo...11

2. Eixo 1: Uma introdução necessária...16

a. Imagens cotidianas: os usos e funções da fotografia...16

b. Apreciação: o retrato e seu status social...18

c. Difusão: a febre dos postais......23

d. Conservação e armazenamento: os álbuns fotográficos...24

e. Desdobramentos...25

3. Eixo 2: Desenvolvimentos sobre formatos digitais...27

a. O Contexto da Novidade: novas mídias, novas tecnologias...29

b. Horizonte inicial: o digital e suas virtualidades...34

4. Eixo 3: Hiperconteúdos e a hiperfotografia...38

a. A escrita eletrônica...39

b. Do leitor ao navegador...41

c. Sobre a morte do autor e outros assassinatos...43

c.1. Direitos autorais na cultura da tecnologia...48

d. A quebra da página e a questão das instabilidades do formato digital – ou as imaturidades do hipertexto...51

e. Da natureza das imagens digitais...55

f. As novas potencialidades da fotografia: a hiperfotografia...61

5. Eixo 4 – Novas dinâmicas perceptivas...75

(11)

6. Conclusão: Mudanças de perspectivas ou considerações finais inacabadas...85

a. Historia e subjetividade...92

7. Referências

(12)

Apresentação

One never sees things, one always sees them through a screen.

Alberto Giacometti

a. Imagens: guias no mundo

Nossa relação com as imagens é, geralmente, intuitiva e natural. Criamos imagens até quando usamos a imaginação. Criamos imagens para nos comunicarmos, para dar conta da nossa vontade de conhecer mais, de compreender mais, são elas que facilitam o nosso contato com o que está à nossa volta.

As imagens são superfícies que pretendem representar algo, afirmou Vilém Flusser no livro Filosofia da Caixa Preta (2002). Apesar do risco de má interpretação, a palavra representação encontra-se sempre referenciada quando tratamos o conceito de imagem. Perceber a imagem como uma representação é admitir que ela sempre remete a alguma coisa. Esse algo pode existir ou não - e o próprio conceito de existir, nesse caso, é bastante flexível, afinal uma imagem criada pela mente existe naquela mente.

De todas as possibilidades de abordagem do conceito, detenho-me neste estudo àquela que vê a imagem como uma superfície de contato com o mundo, um plano de representação que, em suas duas dimensões, agrega dezenas de significados. Essa conceituação nos levaria às telas de pintura, às fotografias ampliadas e impressas, às imagens eletrônicas exibidas em computador, tanto no formato de imagem em movimento, como de imagem fixa.

Há quase 50 anos, o escultor Alberto Giacometti foi capaz de perceber algo que sintetizaria nossa relação com a imagem naquela época e que acredito se aplicar mais ainda à sociedade contemporânea em crescente interação com ambientes e formatos digitais, vivendo a adaptação de nossa cultura para formas de produção, distribuição e comunicação mediadas pelo computador (MANOVICH, 2002, p.43). “Nós nunca vemos as coisas, nós vemos as coisas através de uma tela”, disse Giacometti, referindo-se ao papel que a fotografia, ainda analógica, tinha assumido na vida de pessoas que, mais do que preocupadas com viver experiências, estavam ocupadas com o registro

(13)

dessas experiências. Em O museu imaginário (2011), André Malraux abordou, entre outras questões, o papel da fotografia na divulgação do conhecimento sobre a arte. Segundo Flusser, as imagens são instrumentos criados para orientar o homem no mundo (2002, p. 9), ou seja, servem para dar sentido e localização à nossa existência. Existem desde que o homem existe, desde que o homem, consumido e impregnado por tudo o que viu, se preocupou em também inserir no mundo um pouco de ‘como’ ele via.

Se, durante muito tempo, a produção de imagens foi restrita apenas aos que dominavam saberes específicos, foi com a invenção da fotografia que a produção de imagens se tornou mecânica e entrou, com a ajuda de uma máquina, pela primeira vez, na vida cotidiana. Desde então, nossa produção imagética mantém uma relação muito íntima com a tecnologia.

Qual a realidade da imagem hoje? Pergunto por uma sincera dificuldade de me conformar com as definições e limites da própria palavra imagem. Meio de expressão cultural e artística durante toda a história humana, foi com a invenção da fotografia que a criação de imagens viveu o forte impacto da mecanização, tornando-se uma prática simples e acessível a uma parcela bem maior da população. A produção técnica da imagem ganhou repercussão gigantesca e se sobressaiu em quantidade quando comparada a técnicas de criação de imagem até então tradicionais, como a gravura e a pintura.

O impacto da fotografia foi tamanho que fez com ela fosse capaz de, em certa medida, “tomar o lugar” de quase toda a produção de imagens anterior a ela, no momento em que a presença da obra cedeu espaço à sua imagem registrada em película, e as pessoas passaram a ter muito mais contato com a foto do quadro da Mona Lisa do que com a própria Mona Lisa. Por isso, creio ser praticamente impossível falar de imagem na sociedade pós-industrial sem falar, inevitavelmente, de fotografia.

A situação se desloca ainda mais quando o formato digital passa a massivamente tentar agregar nossa produção cultural. É, na verdade, um processo semelhante ao vivenciado pela pintura quando essa passou a ser fotografada para fins de divulgação. Num processo praticamente equivalente, a imagem passa agora a ser digitalizada, virar código numérico, display eletrônico. Mais que isso, não depende mais sequer do aparelho fotográfico, podendo ser completa simulação, manipulação de pixels.

(14)

A fotografia será a base deste texto sempre que menciono a palavra imagem, não por simples predileção pelo formato, mas porque acredito que ela foi a imagem que melhor se adaptou às transformações e novas estratégias impostas pela sociedade contemporânea, cada vez mais repleta de hibridismos entre mundos on e off line – ou entre o mundo não-mediado e o mundo mediado pelo computador.

Como nos ensinou Flusser (2009), a fotografia foi a primeira imagem técnica, ou seja, o primeiro tipo de imagem a ser produzido por aparelhos.

Historicamente, as imagens tradicionais são pré-históricas; as imagens técnicas são pós-históricas. Ontologicamente, as imagens tradicionais imaginam o mundo; as imagens técnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo (FLUSSER, 2009, p.13).

Flusser compara, quanto à importância histórica, a invenção da imagem técnica com a invenção da escrita. “Textos foram inventados num momento de crise de imagens (tradicionais), a fim de ultrapassar a idolatria. Imagens técnicas foram inventadas num momento de crise dos textos, a fim de ultrapassar o perigo da textolatria”, afirma (FLUSSER, 2009, p.17). Apesar de todos os desenvolvimentos tecnológicos posteriores, a fotografia manteve-se como base da maioria dos formatos de imagens existentes atualmente (entre cinema, vídeo, etc.) e adaptou-se a todas as transformações de linguagem impostas a formas de expressão humana mesmo após a transcodificação digital da nossa cultura.

É na perspectiva de propor uma continuidade contextual que localizo as imagens digitais como prosseguimentos históricos das imagens técnicas, introduzindo um novo universo de produção, publicação e apreciação de conteúdos: o computador e sua rede de troca de informação, o ciberespaço. O ciberespaço, segundo o conceito utilizado por Piérre Levy, é o “novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores” (1990, p.17), abrigando a infra-estrutura material da comunicação digital, em seu universo de informações e sujeitos que o alimentam. Segundo Martin Dodge e Rob Kitchin, o termo ciberespaço significa etimologicamente "espaço navegável", derivado da palavra grega Kyber (Navegar). Entretanto, segundo Pires (2009, p. 57): “foi William Gibson, em sua novela ‘Neuromancer’ escrita em 1984,

(15)

quem inaugurou o uso do termo ciberespaço, que é relativo ao navegável, espaço digital das redes computacionais acessíveis a partir de um computador”.

Cada vez mais controlada pelas tecnologias do cálculo automático, nossa relação com as imagens tem se configurado a partir de novos modos de utilização que induzem transformações nos nossos hábitos culturais. Produzir, reproduzir, conservar e difundir imagens são práticas vivenciadas de formas diferentes na sociedade contemporânea. O objetivo deste estudo é analisar as perspectivas que acompanham essas transformações, buscando entender como as novas circunstâncias de experiência com a imagem, reproduzida e difundida em meio digital, se organizam no tempo e no espaço das pessoas, quais as potencialidades de interação com a imagem que elas trazem e quais as consequências disso nos nossos hábitos perceptivos.

O percurso metodológico proposto aqui percorrerá quatro eixos. O primeiro eixo, introdutório, tem o objetivo de buscar uma referencialidade histórica para que possamos embasar a ideia de que o formato digital transformou realmente nosso relacionamento com a fotografia. Esse eixo introdutório vai analisar os hábitos sociais relativos à fotografia nos séculos XIX e XX.

No segundo eixo, propomos uma análise da linguagem numérica e as transformações que ela operou nas imagens e, por extensão, a todos os conteúdos culturais das sociedades ocidentais. No terceiro eixo, propomos explicitar as potencialidades da fotografia em seu formato numérico e conectado em rede, a partir da relação do conceito de hiperfotografia (RITCHIN, 2009) com a análise de alguns exemplos encontrados durante a pesquisa, entre eles, a obra do artista Jonathan Harris. Somente então, no quarto e último eixo do estudo, abordaremos as transformações que essas mudanças têm produzido nos nossos hábitos perceptivos.

Esse percurso se mostrou o que mais se encaixava ao objetivo da pesquisa de analisar a fotografia não por seu viés produtivo, mas pelas circunstâncias de novas experiências na visualização dessas imagens e as alterações que essas mudanças provocam no nosso relacionamento com as obras fotográficas.

(16)

Eixo 1: Uma introdução necessária

(17)

As transformações estruturais na passagem da imagem química para a imagem numérica produziram formas diferentes de interação com a imagem, cuja produção e circulação passaram também a ser mediadas pelo computador. Transitamos da materialidade da fotografia analógica para a flexibilidade da fotografia digital, que requer não apenas diferentes usos cotidianos, como também diferentes noções sensoriais de trato com a imagem.

Traçar um marco referencial sobre os diferentes relacionamentos estabelecidos com a imagem fotográfica ao longo de sua história é o ponto de partida para que possamos compreender o impacto da revolução digital na produção contemporânea de imagens. Para ter uma dimensão mais pontual desse impacto, analisarei a relação do sujeito com a fotografia no cotidiano social ainda no século XIX, como por exemplo, a tradição de manter galerias de retratos permanentes de familiares e amigos, desenvolvida a partir da carte de visite, e que tem sido paulatinamente substituída por álbuns de família em redes sociais.

Por acreditar que a divisão tradicional da fotografia como arte ou documento, antagonismo bastante proposto no século XIX, é questionável diante dos hibridismos da produção fotográfica contemporânea, para fazer essa retomada histórica, privilegiarei nossa relação com a fotografia como imagem, partindo de aspectos dos usos sociais, da difusão e conservação das imagens já produzidas, sem me direcionar à observação da fotografia como atividade, prática de produção de conteúdos.

Me apoio, para dar conta desse objetivo, na defesa proposta por François Soulages no livro Estética da Fotografia de uma pesquisa que não se detenha entre as “fotografias sem arte” ou as “fotografias que pertencem a uma obra fotográfica” (2010, p.14). “Não se pode pensar a fotografia a partir de uma única obra ou de um certo tipo de obras”, afirma o autor. De onde penso tirar uma boa justificativa para não mergulhar em um campo fotográfico específico dentro deste trabalho, visto que o objetivo é analisar as condições de modalidades de reprodução e difusão das imagens em ambiente digital e as interações que elas possibilitam.

Essa fotografia faz parte do cotidiano social, selecionada por suas dimensões afetivas (seja na documentação de memórias do sujeito, nos álbuns e galerias de família, ou no

(18)

colecionismo de obras de arte e vistas geográficas em postais fotográficos – ambas práticas submetidas a critérios, em sua maioria relativos ao gosto).

Para analisar essas transformações históricas no trato da imagem fotográfica, propomos a observação de três aspectos importantes na relação cotidiana e complexa que a sociedade estabeleceu com a fotografia: a apreciação, a difusão e a conservação das fotos.

Essa abordagem faz-se importante ao procurar entender como lidávamos com a imagem no passado, como a manuseávamos, como a conservávamos, como interagíamos com ela, para que, a partir dessa abordagem, possamos perceber as mudanças no nosso relacionamento com as imagens digitais, as formas emergentes de difusão, cópia, armazenamento, conservação, etc.

Durante o século de XIX, podemos identificar três etapas nucleares na relação complexa entre a fotografia e a sociedade, como apontadas por Annateresa Fabris (2008, p.17). De 1839 à década de 1850, a fotografia despertou o interesse de pequeno número de amadores, provenientes das classes abastadas, pagantes dos preços cobrados por artistas fotógrafos como Nadar, Le Gray, Carjat. Com a carte de visite de Disdéri passou-se a um segundo período, em que a fotografia alcança uma dimensão industrial, com barateamento do produto e vulgarização dos ícones fotográficos. O terceiro período corresponde à década de 1880, momento da massificação e da consolidação da fotografia como um fenômeno comercial. Nessa etapa, a busca pelo status de arte também se tornou intensa. É nesses três momentos que proponho localizar a nossa análise sobre apreciação, difusão e conservação.

b. Apreciação: o retrato e seu status social

Durante os seus primeiros dez anos de existência, período de afirmação inicial, a fotografia atraiu um público restrito, diretamente interessado nos emblemas da nitidez e da credibilidade que só um processo químico e mecânico proveria com tanta rapidez.

(19)

Nesse momento, as experiências fotográficas estavam pautadas em três aspectos que negociavam entre si: uma herança artística, presente na relação da prática com a câmara escura, já utilizada na pintura; uma lógica industrial, muito relacionada ao consumo icônico que ganhava força com a litografia; e um teor científico, presente no processo químico e nas teorias óticas empregadas pela fotografia (VIRILIO, 1994, p. 104-105).

A conjunção desses três fatores justifica a afirmação de que a fotografia se apresentou como a melhor imagem da sociedade industrial, ícone do crescimento das metrópoles, do desenvolvimento de uma economia monetária, industrializada, influenciada pelas mudanças no conceito de espaço e de tempo, pelas revoluções das comunicações e pela consolidação do modelo democrata burguês (ROUILLÉ, 2009, p. 16).

Mas no cotidiano da maior parte da população, a fotografia ainda não tinha alcançado uma presença tão marcante. Apesar de ter custos inferiores à produção de retratos à mão, o daguerreótipo ainda era um método de preços altos, que não conseguiu se popularizar imediatamente. Os primeiros fotógrafos eram pintores, e a grande maioria de seus clientes pertencia à burguesia. Dentro dessas casas, a fotografia começou a consolidar o seu papel de afirmadora de um estatuto social. Mas apesar de ter surgido sob o título de “arte democrática”, a fotografia só entrou efetivamente no cotidiano das pessoas com as práticas da carte de visite. Na segunda metade do século XIX, quando a competitividade entre os estúdios e o avanço da técnica incentivaram a redução dos preços cobrados pelos retratos, que, durante essa primeira fase, eram bem acima das condições salariais da população mais pobre1.

No Brasil, o pionerismo da Família Imperial no interesse pela fotografia e o montante de gastos dispensados pela realeza com essa prática davam indícios de quão dispendioso era manter essa atividade. “Segundo os livros da Casa Imperial, no período de 1848 a 1867, gastou-se em fotografias e álbuns de fotos uma soma correspondente a 14% da verba oficial alocada todo ano na rubrica orçamentária Professores, etc. para a Família Imperial” (MAUAD, 1997, p. 198).

Em artigo publicado no livro História da vida privada no Brasil, Ana Maria Mauad analisa, dentre outros documentos históricos, álbuns de fotografias das elites cafeeiras

1 O valor de seis retratos pequenos poderia custar até dez vezes o salário médio de um empregado de uma

(20)

do Vale do Paraíba, durante o Segundo Reinado. A respeito de dois álbuns de duas das famílias mais importantes nesse contexto (os Werneck e os Avellar), a autora afirma:

Nestas séries estão retratados os membros da família e toda a rede social que a troca de fotografias teceu, apontando para o fato de que o objetivo da fotografia era também a circulação entre os pares de uma imagem considerada ideal, consubstanciando-se nesse circuito o comportamento necessário à sedimentação da classe senhorial enquanto fração social dominante. (MAUAD, 1997, p. 216-217)

Tais fotografias eram passadas de pais para filhos como um legado, com comprovação histórica e relevância na memória afetiva da família, repleto de poses e técnicas de auto-representação.

Apenas no início dos anos 1860, a fotografia começou sua ascensão como uma economia de mercado, conquistando o seu espaço como prática financeiramente mais democratizada. Essa fase marcou a adaptação do retrato às leis mercadológicas, incentivada pela difusão da carte de visite. Em formatos menores, com clichês compostos por entre quatro a dez retratos ao invés de um único retrato maior, esse modelo, patenteado por Disdéri em 1854, barateou os custos e transformou a fotografia numa moeda de alta circulação, incentivando o acesso de grande parte da população ao retrato.

A carte de visite promove uma repetição quase vulgar de ícones fotográficos, difundindo o uso exaustivo de poses estereotipadas, cenários e objetos simbólicos que, em muitos casos, simularam um status social distante da realidade. A classe menos favorecida passou não apenas a ter acesso ao retrato, mas a utilizá-lo como uma ferramenta de simulacro.

Esses pequenos retratos materializaram a fotografia como papel, palpável, colecionável, de fácil circulação e permuta. Tornaram-se objetos socialmente emblemáticos, com valor expositivo no cotidiano social.

Todos se encantaram em multiplicar os exemplares de sua graciosa pessoa, e, no mundo elegante, enviava-se o retrato para facilitar suas visitas por procuração. Logo veio a ideia de reunir esses retratos e de

(21)

fazer uma galeria com eles, e de manter em exposição permanente de seus amigos e de suas relações (D’AUDIGIER, apud Rouillé, 2005, p.54).

Em casa, as galerias genealógicas passaram a suprir a ausência de certos membros da família, inclusive os mortos. Expostas em paredes, ou em móveis especiais, algumas galerias reafirmaram uma prática de adoração às raízes e ganharam importância como efígies familiares (FABRIS, 2008, p.42). Apesar de ausente, o membro da família se fazia presente como matéria, registrada naquele papel carregado de tempo e de afetividade.

Paralelamente, a elite começa a buscar técnicas de diferenciação já que a fotografia não era mais de seu domínio exclusivo. Começa um movimento elitista de valorização do trabalho dos artistas fotógrafos, cujas obras eram tratadas como verdadeiras pinturas – não é à toa que nesse período, começa a se fortalecer o trabalho dos pictorialistas, que se utilizavam não apenas do mesmo repertório, mas também de algumas técnicas da pintura para produzir fotografias retocadas, pouco nítidas, com recorrência de paisagens, naturezas mortas e retratos. Ao contrário do trabalho de estúdios mais baratos - extremamente serializado - essas fotografias se apresentavam como prova da criação do artista e reforçavam o status social de quem as podia pagar.

Em sua análise das práticas de auto-imagem da elite brasileira nas décadas de 1860 a 1890, Ana Maria Mauad afirma que, em alguns casos:

Antes de ser fotografada, a elite cafeeira do Vale [do Paraíba] foi pintada por Barrandier, artista francês que viajou pela região por volta de 1840. Seus retratos figuravam nas paredes das fazendas, sendo mais tarde fotografados pelos próprios fotógrafos itinerantes, como uma forma de adequar a pintura à nova função da imagem, que não era só de ostentação no âmbito doméstico, mas de circulação numa esfera mais ampliada (MAUAD, 1997, p. 225).

A carte de visite incentivou uma circulação mais intensa entre os retratos que, trocados entre pessoas, passavam a ter uma relevância social ainda maior. Era comum que pessoas enviassem a parentes e amigos o seu retrato como forma de garantir o seu espaço no seio familiar e nos demais círculo afetivos. Esse movimento de troca

(22)

reafirmou uma relação íntima entre a fotografia e o dinheiro, o que seria segundo Gilles Deleuze a característica essencial à arte industrial (1985, p. 104).

Mauad observa também que, nessas fotografias de pequeno porte, era comum ver, além do retrato, pequenas anotações dos donos das imagens, seja para identificar os personagens, retificar identificações, ou registrar pequenas dedicatórias. A fotografia era um objeto palpável, e como tal, deveria ser manuseada. Estudioso da fotografia como um objeto vernacular, Geoffrey Batchen lembra que:

Algumas vezes, essa escrita simplesmente fornece à fotografia uma citação que a identifique (“Eu”) ou uma data. Em outras ocasiões, esse ato permite quem escreve de adicionar humor ou sentimento a uma imagem ordinária, ao colocar palavras na boca do sujeito da foto ou através da pura pungência das palavras (“Enfim”, por exemplo) (2004).2

Em suas pesquisas, Batchen se dedica bastante ao que chama de sculptural photographs, ou em tradução livre como fotografias esculturais. Essas fotografias são objetos do cotidiano do século XIX que além da imagem, eram vinculadas a outros materiais que adicionavam texturas ao manuseio das fotografias, tais como pedaços de tecidos, mechas de cabelos, restos de algum objeto pessoal capazes de remeter o observador a lembrar mais ativamente as pessoas retratadas. “E ao incluir essas texturas extras, elas transformavam ver em uma forma de toque. Mesmo quando isso está atrás de um vidro, você imagina a sensação do cabelo ou acariciando aquela seda bordada” (Idem, 2004)3.

Num trecho fundamental do livro Forget Me Not, Batchen afirma:

[...] a capacidade do objeto de provocar rememoração, por si só dá a essas fotografias substância e textura, tornando-as tocáveis e quentes, e permitindo passado e presente a coabitar na vida doméstica do dia-a-dia. [...]Vale a pena refletir sobre o papel do toque na experiência do objeto fotográfico.4 (2004, p.31)

2 “Sometimes this writing simply provides a photograph with an identifying caption (“Me”) or a date. On

other occasions it allows the writer to add humor or sentiment to an otherwise ordinary image, by putting words in the subject’s mouth or through the sheer poignancy of the words themselves (“At Rest,” for

example)”. Em entrevista a Cabinet Magazine, disponível em:

http://www.cabinetmagazine.org/issues/14/dillon.php

3 “And by including these extra textures, it turned looking into a form of touch. Even when it’s behind

(23)

O que se pode apreender dessa abordagem que Geoffrey Batchen faz dos objetos fotográficos é a importância do gesto na interação com as fotografias no cotidiano da sociedade do século XIX. Essa presença gestual não estava contida apenas no ato fotográfico (como a pincelada está contida no ato da pintura), mas também nos atos sociais da fotografia que sua apreciação pressupunha. O ato de tocar uma imagem como um objeto provocou uma interação especial em que “ambos dedos e olhos desempenham um papel na percepção” (BATCHEN, p.31).

c. Difusão: a febre dos postais

Muitas fotografias, a partir de 1870, começam a ser editadas em cartões postais. A origem dessa prática ainda é controversa. Afirma-se que em 1875, um livreiro de Oldenburg, na Alemanha, teria sido o primeiro a editar duas séries de 25 cartões postais ilustrados. Mas, para alguns pesquisadores, o postal surgiu como uma sugestão que o professor austríaco Emmanuel Hermann fez ao Correio de seu país para a “a criação de um meio de comunicação mais fácil, barato e rápido, enviado a descoberto, ideal para mensagens curtas, mas que custasse a metade do valor de uma carta convencional” (DALTOZO, 2006, p.13). A sugestão foi aceita e no dia 01 de outubro de 1869 surgiu o Correspondenz-Karte, espécie de cartão-postal. Mas, só a partir do momento em que começaram a reproduzir fotografias, os cartões postais se tornaram verdadeiramente populares. Na França, isso ocorreu em 1889 com a criação de um postal da Torre Eiffel para a Exposição Universal (BARBUY, 1999) e no Brasil, em 1901 (FABRIS, 2008, p. 33).

Para Daltozo, a carte de visite foi precursora do cartão postal, com suas fotos “distribuídas nos eventos sociais ou enviadas dentro de envelopes [...] como prova de amor e amizade” (DALTOZO, 2006, p. 14).

4 “[…]the object's capacity to provoke remembrance, for it gives these photographs substance and texture, making them touchable and warm, and allowing past and present to cohabit in everyday domestic life. [...] It is worth reflecting on the role of touch in the experience of photographic object (...)” (2004, p.31)

(24)

O surgimento do postal tem um espaço de bastante relevância na história social da fotografia porque cumpriu com o papel de divulgar o mundo para os seus apreciadores. Diante daquelas imagens, arquétipos da cultura popular ganhavam corporeidade e se tornaram parte de um grande inventário.

A consequência foi que essas imagens levadas ao consumo da massa produziam no público uma sensação de posse simbólica do mundo (FABRIS, 2008, p.33) que agora ele conhecia visualmente. Acredito que essa posse simbólica era reforçada também pelo sentimento de posse referente à matéria, ao cartão fotográfico. Não apenas as imagens dos membros da família, mas também retratos de celebridades e paisagens passaram a ser colecionáveis e a estimular uma sensação de pertencimento ao indivíduo.

Aos poucos, o postal também foi sendo apresentando como um formato de reprodução da obra de arte, mais acessível e mais difundido socialmente. No seu auge de popularidade, de 1900 a 1925, passou a ser exposto dentro das casas das pessoas emoldurado como um quadro, não só na Europa e nos Estados Unidos, como também no Brasil.

Edmond Haracourt, curador do museu de Clunny, afirmou que o cartão postal levou às últimas consequências a “missão civilizadora” conferida à fotografia para a “educação do homem ao belo” (apud FABRIS, 2008, p. 35). A respeito desse aspecto, podemos afirmar que o cartão postal, por sua intensa difusão, seria o formato que mais teria se adequado à idéia de fotografia como “arte democrática” que acompanhou a prática desde seu surgimento.

A viagem imaginária e a posse simbólica são as conquistas mais evidentes de uma nova concepção do espaço e do tempo, que abole fronteiras geográficas, acentua similitudes e dessimilitudes entre os homens, pulveriza a linearidade temporal burguesa numa constelação de tempos particulares e sobrepostos (idem).

d. Conservação e armazenamento: os álbuns fotográficos

Uma das práticas mais estimuladas pela fotografia em seus primeiros cem anos foi o colecionismo. Com a multiplicação da carte de visite e dos castões postais, os álbuns

(25)

fotográficos foram se tornando um sistema imprescindível para organização e principalmente, para a conservação daqueles “museus imaginários ideais” (apud Fabris, 2008), criados com critérios variados de acordo geralmente com o interesse e o gosto de seus donos.

Além de conter imagens de membros da família, alguns álbuns, já no século XX, se tornaram moda ao retratar vistas geográficas, o que despertou ainda mais o interesse dos colecionadores e se adequou bastante à “mentalidade classificadora da época” (FABRIS, 2008, p.42).

No que concerne à importância das vistas, Solange Ferraz de Lima destaca que “se o retrato representou para a classe burguesa a possibilidade de expressar sua individualidade, como afirmou Gisele Freund, as vistas expressam a conquista do espaço urbano” (LIMA, 2008, p.33).

Ainda segundo Solange Lima, a primeira notícia de comercialização de vistas no Brasil saiu no Correio Paulistano em 1859 e são fotografias da Academia de Direito para “aquelles srs estudantes que desejarem levar para seus lares uma lembrança do lugar de sua vida acadêmica” (apud LIMA, 2008, p. 67). A partir de então, começa a se formar um mercado de vendas de fotografias para álbuns e de álbuns completos para coleções. A popularização das vistas, seja em cartões postais ou em álbuns, marcou o terceiro momento na relação da sociedade com a fotografia. Esse período ficou conhecido não mais pela vulgarização icônica com a imagem reproduzida em larga escala, mas pela massificação da prática fotográfica com a introdução, no mercado, das máquinas de Eastman Kodak. O surgimento de câmeras de médio porte, mais leves, estimulou na população o desejo de retratar o mundo conforme sua própria perspectiva. A partir de então, a fotografia se popularizou não apenas como objeto, mas como atividade.

e. Desdobramentos

Na época de seu surgimento, o grande impacto que o dispositivo fotográfico provocou ao introduzir um novo produto visual foi, justamente, a possibilidade de transformar o

(26)

visível em algo palpável. Nunca antes foi tão clara a perspectiva da luz como matéria, numa associação entre dois sentidos humanos: a visão e o tato. É no grão que essa materialidade se dava, na esfera descontínua dos grãos. A película condensava a natureza física e química do processo fotográfico. Através da máquina fotográfica, toda e qualquer outra realidade se tornou familiar. E essa realidade cabia no espaço das mãos dos indivíduos, permitindo que a experiência fotográfica fosse vivenciada com a intimidade do toque.

Quase 150 anos depois, a fotografia digital surgiu para introduzir uma nova tecnologia e uma nova superfície de “impressão” da imagem. Como é de se esperar, essas novidades comprometem o relacionamento do homem com o visual e traçam novos comportamentos.

Com a digitalização e o surgimento de imagens eletrônicas, cada vez mais populares, foi instrumentalizada uma mudança na própria dinâmica de interação com essas imagens. Repensar o passado é o ponto de partida para uma relação mais competente com a tecnologia contemporânea e seus potenciais de comunicação.

(27)

Eixo 2: Desenvolvimentos sobre formatos digitais

Cada avanço tecnológico, a transmissão elétrica da imagem fixa, o cinema, o rádio, o vídeo, a televisão, mas também outras técnicas sem relação direta com a imagem, não deixam de ter efeitos tecnestésicos5

consideráveis modificando a percepção do mundo, das coisas e da sociedade (COUCHOT, 2003, p.18).

As transformações culturais que produziram a contemporaneidade têm como um dos maiores motivadores o desenvolvimento das técnicas de comunicação. Com a assimilação da tecnologia digital, a cultura contemporânea de imagens vive uma nova sensibilidade visual. A Internet se tornou uma importante ferramenta de armazenamento, reprodução e difusão da produção de conteúdo imagética. A presença digital da imagem vem redefinindo o seu regime de apreciação, para além das formas de contato físico, off line. O termo “revolução digital” já expressa as mudanças massivas que a digitalização tem provocado nos meios de comunicação.

No computador, a imagem se corporifica como código numérico, digitalizando-se. Surge um novo regime de produção, cada vez mais composto por linguagens híbridas e suportes eletrônicos (softwares) que comportam conteúdos de formatos tão diversificados que classificá-los taxonomicamente se torna um esforço vão.

Walter Benjamin, em seu célebre artigo sobre a obra de arte e sua reprodução mecânica (1993), traçou os percursos das técnicas modernas que operaram mudanças na sensibilidade humana ao transformarem o objeto artístico, autêntico e original, em obra

(28)

valorizada por sua possibilidade de encontro com o espectador. A sensibilidade se alinhou à reprodutibilidade.

Com a imagem digital, novos problemas emergiram nas configurações da subjetividade contemporânea. Nesse período, que alguns teóricos chamam de “Era do Simulacro”6, o homem se vê diante da dificuldade, e até desinteresse em distinguir ilusão e realidade, cópia e original, falso e verdadeiro. Vivemos uma mudança de época, um período de transformação que conta com a convivência de diversos formatos e que solicita um jeito diferente de apreciar uma imagem.

Segundo a análise de Maria Lúcia Bastos Kern e Annateresa Fabris, no livro Imagem e Conhecimento:

É incontestável a transformação da imagem diante do crescente fenômeno da simulação que, com base em outros critérios, fornece novas definições para o antigo aparato lógico e simbólico e para a própria concepção de corporeidade, cada vez mais mediada, cada vez mais distante das visões humanísticas e existenciais anteriores (2006, p. 178).

As imagens se transformaram, reformularam os paradigmas fotomecânicos. Tornaram-se fluídas, recicláveis, facilmente clonáveis, vinculadas a novos formatos de superfície, mais dinâmicos e flexíveis, ocupando espacialidades que não se referem mais a um lugar geográfico. Até a noção de tempo se alterou já que a Internet nos possibilita uma liberdade de acesso a qualquer instante.

A rede de computadores tem sido cada vez mais utilizada como espaço de armazenamento, exposição e difusão de conteúdo. No Brasil, que em outubro de 2011 tornou-se o terceiro país do mundo em número de internautas, 78 milhões de pessoas têm acesso à Internet7. Ao representar 40% do total dos quase 191 milhões de brasileiros8, esse número nos dá uma boa dimensão do universo de possibilidades de alcance dos conteúdos digitais dispostos em rede, principalmente quando esse alcance é

6 Sobre o conceito de Simulacro, ver Baudrillard, Jean. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D

´Água, 1991.

7 Dados divulgados pelo IBOPE Nielsen Online e disponibilizados em: http://www.ibope.com.br ou

através do email: media@ibope.com

(29)

comparado às formas tradicionais de acesso e divulgação de conteúdo – publicações em livros, jornais, revistas, etc.

Partimos da premissa de que a digitalização da imagem produz uma transformação intensa nas nossas atitudes em basicamente todos os setores de produção e fruição cultural. O espaço e o tempo são comprimidos ao ponto de quase suprimir a distância existente entre observador e imagem. Isso impõe novos desafios à subjetividade. Torna-se, portanto, fundamental discutir as especificidades desse “novo universal” - em termos usados por Pierre Levy (1999, p. 15) para descrever o impacto das novas formas culturais do ciberespaço - e pensar a relação do sujeito com a produção contemporânea de imagens nesses suportes digitais, compreendendo o processo e intervindo nele.

a. O Contexto da Novidade: novas mídias, novas tecnologias

“Estamos testemunhando a emergência de novas formas de consumo cultural e de novas práticas sociais”, afirma André Lemos (2005, p. 8) sobre a configuração cultural que vemos ser delineada pelas novas tecnologias da informação e comunicação. A recorrência do adjetivo “novo” nos permite fazer uma associação provável entre o conceito de cibercultura e uma lógica da inovação, do ineditismo, que o valoriza.

Lev Manovich faz um apanhado relevante sobre a utilização do termo “novas mídias” no livro “The Language of New Media” (2001):

[…] a definição popular de novas mídias identifica-as ao uso de um computador para distribuição e exibição, em vez de para produção. […] Fotografias que são colocadas em um CD-ROM e requerem um computador para serem visualizadas são consideradas novas mídias; as mesmas fotografias impressas em um livro não são. […] Não há nenhuma razão para privilegiarmos o computador no papel de máquina de exibição e distribuição de mídia em contraponto ao computador usado como ferramenta para a produção de mídia ou como um dispositivo de armazenamento midiático. Todos têm o mesmo potencial para mudar as linguagens culturais existentes. E todos têm o mesmo potencial para deixar a cultura como está. (traduzido de 2001, p.43)9 9 “[…] the popular definition of new media identifies it with the use of a computer for distribution and

exhibition, rather than with production. […] Photographs which are put on a CD-ROM and require a computer to view them are considered new media; the same photographs printed as a book are not.

(30)

No capítulo “How media become new?” (2001), Manovich faz um levantamento sobre o paralelismo histórico existente entre as trajetórias da mídia e do computador e como elas entraram em confluência para o desenvolvimento das novas mídias.

Manovich afirma que ambas as histórias, das tecnologias da computação e da mídia, começaram na década de 1830, respectivamente com a máquina analítica (Analytical Engine) de Babbage e o daguerreótipo de Daguerre. Seis anos antes da formalização do invento de Daguerre no Palácio Nacional da França em 1839, Babbage criou o dispositivo capaz de operar dados, cujos resultados seriam escritos na memória da própria máquina.

Como aponta Manovich, não foi por uma simples coincidência que essas tecnologias foram desenvolvidas quase ao mesmo tempo. As próprias necessidades da sociedade de massa na modernidade criaram as condições favoráveis para o surgimento de métodos de divulgação de ideologias (mídias), e catalogação de informação (o computador) como esses.

Em 1890, a história da mídia vai ganhar um novo capítulo com o desenvolvimento das imagens em movimento por Edison e os Irmãos Lumiére. Manovich destaca a importância do cinema para acalmar a ansiedade do público, cada vez em mais contato com uma quantidade de informação que não parava de crescer. “Se os cérebros dos indivíduos estavam sobrecarregados pelo montante de informação que eles tinham que processar, o mesmo era verdade sobre as corporações e os governos”.10 (idem, p.46) Alguns outros equipamentos foram essenciais para a história da computação, como o leitor de cartões perfurados de Herman Hollerith, cuja empresa deu origem à International Business Machines Corporation - IBM. Em 1936, Alan Turing deu um importante passo para a união da história da mídia e do computador, ao descrever em um artigo uma máquina que processava números e os gravava numa fita. Manovich compara essa máquina com um projetor de filmes:

[…]There is no reason to privilege computer in the role of media exhibition and distribution machine over a computer used as a tool for media production or as a media storage device. All have the same potential to change existing cultural languages. And all have the same potential to leave culture as it is.”(2001, p.43)

10 “If individuals' brains were overwhelmed by the amounts of information they had to process, the same

(31)

Se acreditarmos na palavra cinematógrafo, que significa "movimento de escrita", a essência do cinema será registrar e armazenar informação visível em uma forma material. Uma câmera de película grava dados em um filme; um projetor de filme lê-los. Este aparelho cinematográfico é semelhante a um computador em um aspecto fundamental: um programa de computador e dados também têm de ser armazenados em alguma mídia. É por isso que a Máquina de Turing [a máquina desenvolvida mais tarde e nomeada em homenagem a Alan Turing] parece um projetor de filmes. É uma espécie de câmera de filmar e projetor de filme ao mesmo tempo: lendo instruções e dados armazenados em uma fita infinita e escrevendo-os em outros locais nesta fita. (idem, p.47) 11

Mas foi o surgimento do primeiro computador eletrônico, criado pelo alemão Konrad Zuze, que provocou pela primeira vez e de forma inusitada a união entre a mídia e a tecnologia computacional. O computador de Zuze foi o primeiro dispositivo eletromecânico que processava os cálculos e os exibia numa fita perfurada. A fita utilizada por Zuze foi um rolo de 35mm que havia sido previamente descartado e que trazia gravado uma cena qualquer com duas pessoas.

Qualquer significado e emoção contidos nesta cena do filme tinham sido dizimados por sua nova função como um suporte de dados. A pretensão dos meios de comunicação modernos para criar simulações de realidade sensível é igualmente cancelada; a mídia é reduzida à sua condição original, como suporte de informação, nada além, nada mais. (idem, p. 48)12

Para Manovich, o filme de Zuze antecipou a convergência, um conceito que só viria a ser conhecido cinquenta anos depois. Como resultante gráfico, fotografias, sons, textos e toda forma de conteúdo tornaram-se “computáveis”. In short, media becomes new

11 “If we believe the word cinematograph, which means "writing movement", the essence of cinema is

recording and storing visible data in a material form. A film camera records data on film; a film projector reads it off. This cinematic apparatus is similar to a computer in one key respect: a computer's program and data also have to be stored in some medium. This is why the Universal Turing Machine [a máquina desenvolvida mais tarde e nomeada em homenagem a Alan Turing] looks like a film projector. It is a kind of film camera and film projector at once: reading instructions and data stored on endless tape and writing them in other locations on this tape”. (2001, p.47)

12 “Whatever meaning and emotion was contained in this movie scene has been wiped out by its new

function as a data carrier. The pretense of modern media to create simulation of sensible reality is similarly canceled; media is reduced to its original condition as information carrier, nothing else, nothing more”. (MANOVICH, 2001, p. 48)

(32)

media (idem, p.48) ou “mídia se tornou novas mídias” e o computador passa a ser, portanto, um processador midiático.

Em seu livro (2001), Manovich aponta as principais diferenças entre as novas mídias e as mídias analógicas. Uma das questões mais importantes no estabelecimento dessas distinções é o compartilhamento do mesmo código. Mesmo quando se tratam de mídias analógicas representadas digitalmente, as novas mídias, apesar de resultarem em conteúdos diferentes, possuem o mesmo código digital, o que permite que sejam processadas na mesma plataforma, o computador. Essa comunhão de um mesmo código é um dos pontos que motiva a cultura numérica a uma desespecificação e a um complexo hibridismo – no computador, imagem, som e escrita dividem o mesmo espaço e se interrelacionam de uma forma nova, que não se pauta na completa distinção entre os formatos.

Além disso, se por um lado, é característica da mídia analógica a perda inevitável de informação em relação ao original, seja por excesso de cópias sucessivas ou simplesmente pelo processo de digitalização da mídia; por outro lado, a cópia da mídia digital não significa perda de qualidade do arquivo. Portanto, podemos perceber que o arquivo digital não pode mais ser julgado segundo critérios de originalidade e não é aí que está residido o seu valor.

Para completar essa abordagem comparativa, Manovich destaca também a interatividade das novas mídias, que permitem ao usuário desempenhar o papel de uma espécie de co-autor do trabalho ao qual ele tem acesso; ao contrário da mídia analógica, que apresentaria uma obra fechada, dotada de uma mensagem original previamente determinada pelo autor.

Feitas essas definições, torna-se importante trazer à tona uma observação feita pela artista e pesquisadora Giselle Beiguelman, em mesa redonda no 2º Fórum Latino-Americano de Fotografia - Forum Foto (2010)13. Durante o evento, a pesquisadora afirmou que “a ideia de novidade, especialmente hoje no âmbito da cultura digital, é muito traiçoeira por conta do processo de descartabilidade das coisas” (2010)14. Por isso, ela prefere utilizar o termo “mídias emergentes”, como forma de barrar o uso

13Realizado em São Paulo, em 2010.

(33)

abusivo do termo ‘novo’ e sua identificação com a idéia de novidade, cada vez mais suplantável diante do ritmo dos avanços tecnológicos.

Esse tipo de desconfiança diante do conceito do novo é típico de um momento de transição técnica. O formato digital da imagem, de natureza completamente diferente da imagem química, provocou instabilidades nas bordas do campo da fotografia que incentivaram posturas alarmistas, inclusive pregando o fim da prática fotográfica.

André Rouillé chegou a apontar “a impossibilidade de uma legitimidade” fotográfica no contexto “desmaterializado e fragmentado” do ambiente digital (apud FATORELLI (Org.), 2008, p. 22 e 23) porque, segundo o autor, a fotografia digital opera um regime de verdade completamente diferente da fotografia analógica, ou seja, ambas possuem diferentes relacionamentos com a realidade.

A fotografia de película, a normal, sem ser digital, a fotografia comum, seu regime de verdade se baseia no fato de que essa é uma imagem de impressão, relativamente estática, no sentido em que era difícil transformá-la, falsificá-la, [para isso] era preciso retocá-la.[...] Com a fotografia digital, tudo muda. Primeiro vendem a máquina fotográfica com o software de tratamento de imagem. O retoque, o falso, portanto, se podemos dizê-lo assim, não é periférico, não é exterior à imagem, pertence à imagem. De certa maneira, a imagem digital já nasce falsa. (apud FATORELLI (Org.), 2008, p. 25)

Esse posicionamento do autor já seria um pouco menos radical que suas primeiras propostas de pesquisas sobre o formato digital, nas quais ele chegou a afirmar que a fotografia digital não era fotografia (apud FATORELLI (Org.), 2008, p. 28). Esse tipo de questionamento toma força nos momentos de insegurança entre processos de transição, quando precisamos viver a reconfiguração das nossas referências.

Ainda no Forum Foto, Giselle Beiguelman faz uma observação sobre as diferenças e especificidades entre a imagem digital e a imagem química, que talvez nos ajude a compreender abordagens como a de André Rouillé, mesmo que as conclusões a que chegamos não sejam as mesmas que as desse autor.

No caso das imagens digitais, afirma Beiguelman, o que nós temos é uma operação de transcodificação, onde a luz é reinterpretada como

(34)

dado. Basicamente, a luz da imagem digital é reinterpretada por um sensor que traduz a luz em elétrons, em sinal, interpretado pelo computador como um dado que vai ser reconstruído a partir de uma matriz - que é a imagem no final das contas (BEIGUELMAN, 2010).

Para a autora, a questão da escrita da luz pertenceria sim, à imagem química, mas isso não retiraria da fotografia digital o direito de ser identificada como fotografia, como Rouillé chegou a pensar, mas uma fotografia que responderia diretamente a outras operações e interpretações, condizentes com suas novas práticas - observações estas com as quais concordo.

b. Horizonte inicial: o digital e suas virtualidades

O fim do século XX e o início do século XXI já nos permitem perceber intensas transformações na nossa lógica de relacionamento com a imagem. Importantes mudanças na sensibilidade humana foram intensificadas pelo desenvolvimento das imagens eletrônicas em novos meios de comunicação visual – primeiro a televisão em meados da década de 1930 e, principalmente, no final do século XX, com o computador. O desenvolvimento da imagem digital tem uma conseqüência cada dia mais provocadora: o surgimento de novos modos de ver.

Em A Máquina da Visão (1994), Paul Virilio comenta os novos processos de percepção das imagens diante da intensificação do processo de virtualização - que ultrapassa a questão da informática e domina os mais diversos aspectos da nossa vida. Para o autor, nesse novo contexto, a imagem perde a sua unicidade e reafirma uma reconstrução sintética do olhar. As imagens se reconstroem numa outra codificação, os códigos numéricos - o código binário do computador – e distanciam-se das características da imagem analógica, o que influencia uma fusão/confusão entre o real e o virtual.

“No uso corrente, a palavra virtual é empregada com frequência para significar a pura e simples ausência da existência, a 'realidade' supondo uma efetuação material, uma presença tangível" (LÉVY, 1996, p.15). Como Lévy destacou, faz parte do senso

(35)

comum a associação da virtualidade a uma espécie de demérito da ilusão, contrapondo o real ao virtual e associando-o ao falso.

O autor explica que a associação entre o virtual e o falso apreende apenas uma das existências do virtual:

A virtualidade não tem absolutamente nada a ver com aquilo que a televisão mostra sobre ela. Não se trata de modo algum de um mundo falso ou imaginário. Ao contrário, a virtualização é a dinâmica mesma do mundo comum, é aquilo através do qual compartilhamos uma realidade. Longe de circunscrever o reino da mentira, o virtual é precisamente o modo de existência de que surgem tanto a verdade como a mentira. Não há verdadeiro e falso entre as formigas, os peixes ou os lobos: apenas pistas e engodos. (LÉVY, 1996, p. 101)

Uma importante observação sobre esse pensamento proposto por Pierre Lévy pode ser estendida à questão da informatização e do conteúdo digital. Para respeitarmos a verdade é preciso lembrar que a questão da virtualização e da perda da presença fazem parte do dia-a-dia da humanidade muito antes da reorganização da nossa cultura para os códigos do computador. A religião e a imaginação são bons exemplos do relacionamento antigo que mantemos com a virtualidade. O virtual não é específico do ambiente digital.

A fotografia digital, por exemplo, ao se popularizar, foi muito associada a uma pretensa imaterialidade. Creio que esse relacionamento entre o digital e o ambiente em rede, virtual, é um dos responsáveis por essa vinculação superficial do conteúdo digital a uma desmaterialização. Sobre isso, Lévy é taxativo: “a virtualização não é de modo algum um desaparecimento no ilusório, nem uma desmaterialização. Convém antes assimilá-la a uma 'dessubstanciação’, que pode ser declinada em mutações associadas: a desterritorialização, o efeito Moebius” (1996, p.135).

O virtual nos propõe uma reorganização das nossas coordenadas de espaço e de tempo. É esse desprendimento do aqui e agora que faz com que o senso comum admita a virtualização como um processo de desrealização. Como Lévy exemplificou, o fato de não conseguirmos situar nossas conversas telefônicas não é suficiente para acreditarmos que elas são inacessíveis, ou que são imaginárias.

(36)

A desterritorialização é, portanto, uma das características do virtual. Sobre ela, Lévy completa:

Quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se virtualizam,[...] não se tornam completamente independentes do espaço-tempo de referência, uma vez que devem sempre se inserir em suportes físicos e se atualizar aqui ou alhures, agora ou mais tarde (1996, p. 21).

De onde podemos concluir que o lugar do virtual é a sincronização e o seu tempo, a interconexão.

Outro importante caráter associado à virtualização é o que Lévy chama de efeito Moebius: “passagem do interior ao exterior e do exterior ao interior”, que poderia ser observada pela colagem e quase indistinção entre, por exemplo, o público e o privado, entre o subjetivo e o objetivo, entre o autor e o leitor, no ambiente virtual.

O hipertexto é um bom exemplo para oferecer a compreensão desses dois princípios do virtual: além de inserir-se numa nova dinâmica entre autor e leitor,

desterritorializado, presente por inteiro em cada uma de suas versões, de suas cópias e de suas projeções, desprovido de inércia, habitante ubíquo do ciberespaço, o hipertexto contribui para produzir acontecimentos de atualização textual, de navegação e de leitura (LÉVY,1996, p. 20). Como já observamos, no ambiente digital, novas situações de interação com conteúdo questionam e expandem as fronteiras da espacialidade e temporalidade tradicionais. Novas dinâmicas perceptivas são estimuladas quando as máquinas passam a mediar a sensibilidade humana.

Migramos de uma lógica de consumo massiva da sociedade industrial, fundada na economia da informação, para uma lógica de consumo interativa, autônoma e personalizada que começou a ser produzida pela sociedade pós-industrial (BELL, 1973) e, mais ainda, pela sociedade de rede (CASTELLS, 2000).

Conjugando todos os estágios de comunicação, incluindo aquisição, manipulação, armazenamento e distribuição de informação (MANOVICH, 2002, p.43) e promovendo

(37)

uma nova forma de contato entre o espectador e a cultura, o computador passa a estimular hábitos perceptivos distintos. Por meio de novas interfaces, a máquina se conecta ao sujeito, apresentando-se não apenas como um prolongamento do corpo humano, mas dotando-o de sensibilidades corporais inovadoras. Graças à interação autor-obra-espectador na web 2.015, diferentes formas de ver, significar e memorizar passam a ser assimiladas pelo público.

A rede oferece ao público um conteúdo que deve ser reconstituído de acordo com a bagagem cultural do sujeito, suas vontades, seus desejos, suas experiências e saberes prévios. Não-linear e interativa, a mídia digital, apesar de oferecer conteúdo indiferenciadamente a todos os sujeitos conectados, possibilita uma infinita diversidade de trajetos de informação e, conseqüentemente, respostas variadas.

Em sua estrutura, as novas mídias são igualitárias. Por meio de um simples processo de conexão, todos podem participar dela (...) As novas mídias têm a tendência a eliminar todos os privilégios de formação, e com isso também o monopólio cultural da inteligência burguesa. (Enzensberger apud LEMOS, 2005, p.1)

Eixo 3: Hiperconteúdos e a hiperfotografia

A fotografia é uma imagem adaptável. A breve análise proposta aqui sobre sua historicidade é capaz de denotar uma multiplicidade de transformações que foram incentivando a relocação da prática fotográfica no desenvolvimento da sociedade, desde a época moderna. Entre carte de visite, cartões postais, álbuns fotográficos, câmeras analógicas de diversos formatos e cartões de memória, as formas de trato e interação com a fotografia sofreram modificações importantes nesses quase dois séculos de história.

A imagem digital requer não apenas diferentes usos cotidianos, como também diferentes noções sensoriais de trato com a imagem. Um novo contexto de leitura dessas

15 O termo, criado por Tim O’Reilly, refere-se a uma segunda geração de serviços oferecidos na Internet,

que consideram o efeito em rede como um dos aspectos mais importantes para o mercado, e visualiza a web como uma plataforma em constante mudança e que depende da participação ativa dos usuários.

Referências

Documentos relacionados

Em Lisboa, e de acordo com os capítulos especiais da cidade levados às Cortes de 1418, tanto os tabeliães do Paço (i.e. os tabeliães do público) como os das Audiências

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

CARACTERÍSTICAS DE SEGURANÇA - Cinto de segurança para recém nascido, alarme de alta temperatura limitado em 40ºC, Alarme de tensão de baterias, Temperatura da superfície

psicológicos, sociais e ambientais. Assim podemos observar que é de extrema importância a QV e a PS andarem juntas, pois não adianta ter uma meta de promoção de saúde se

Os principais resultados obtidos pelo modelo numérico foram que a implementação da metodologia baseada no risco (Cenário C) resultou numa descida média por disjuntor, de 38% no

Entre as atividades, parte dos alunos é também conduzida a concertos entoados pela Orquestra Sinfônica de Santo André e OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São

[r]