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Ortografia, ou Arte de escrever e pronunciar com acerto a Língua Portuguesa

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Introdução

João Paulo Silvestre

A Ortografia de Madureira Feijó foi um completo manual para o auxílio do ensi-no da escrita, com um percurso editorial surpreendentemente longo. Propondo uma codificação ortográfica com as marcas e as indecisões da escrita do início do século XVIII, permaneceu inalterada até finais do século XIX e institui-se como uma das primeiras autoridades normativas do português moderno. Mesmo após Luís do Mon-te Carmelo, Bernardo de Lima e Melo Bacelar, Pedro José da Fonseca, Jerónimo Soa-res Barbosa ou Francisco Solano Constâncio, continuava a ser “a mais seguida e geral” das obras dedicadas à prescrição ortográfica, de acordo com o testemunho de Inocêncio Silva1.

Não era uma obra filologicamente instruída, desconsiderava as fontes literárias e insistia em traços ortográficos inusitados; não obstante, a extensa lista de formas correctas e erradas, organizada por ordem alfabética, foi precursora dos dicionários práticos da língua portuguesa, revelando-se um instrumento essencial para a progres-siva regularização da escrita, muito antes de estarem reunidas as condições materiais, sociais e institucionais para a imposição de uma ortografia uniforme, algo que no caso português só acontece no início do século XX.

Desejando emendar os “erros do vulgo” e esclarecer a grafia de palavras difíceis, Feijó coligiu um raro testemunho da variedade ortográfica do seu tempo, comparan-do grafias etimológicas e fonéticas, que repercutiam distinções de tipo sociolectal. A reedição da Ortografia recupera a memória de formas lexicais preteridas pela tradição do texto impresso, por serem conotadas com um registo vulgar ou com um uso des-cuidado da escrita. Pelo intuito de codificar e sancionar a relatinização do léxico por-tuguês, constitui também um testemunho essencial do período em que a configura-ção etimologizante da ortografia se torna irrevogável.

O autor

João de Morais Madureira Feijó (1688-1741), filho de Álvaro Enes de Soares Madureira, morgado de Parada, nasceu em S. Gens da Parada, próximo da cidade de Bragança, e aí viveu até aos 15 anos. Ingressou nos jesuítas em Coimbra, obteve o grau de bacharel em teologia e ensinou retórica no colégio da Companhia. Foi mestre particular do Duque de Lafões, D. Pedro Henrique Mascarenhas da Silva, para quem

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escreveu um conjunto de manuais didácticos, que posteriormente são adoptados e divulgados pela rede escolar jesuíta2. A Arte explicada é um extenso comentário da gramática latina de Manuel Álvares, publicado em três volumes entre 1730 e 1732. A

Ortografia, ou Arte de escrever e pronunciar com acerto é a continuação desse plano de

estudos, num quarto volume subordinado à escrita da língua portuguesa.

A Ortografia

O tratado ortográfico divide-se em três partes. A primeira e a segunda são dedi-cadas à definição de ortografia, à enunciação de regras de escrita associadas a cada uma das letras do alfabeto, à divisão de palavras e sinais de pontuação (vide índice p. 19). Prolixo, abundante em regras, minucioso na justificação das opções, reúne mais informação teórica e listas de palavras difíceis que qualquer uma das obras ortográfi-cas de Nunes de Leão, Franco Barreto e Bento Pereira.

Justamente por isso, revelava-se pouco funcional para o esclarecimento expedi-to de dúvidas sobre uma palavra, que tinha de ser localizada no capítulo respeitante à dificuldade que apresentava. Para agilizar a consulta, Feijó planeou a recolha de um índice de formas estudadas, que complementaria um volume até então de tamanho modesto: a primeira e segunda partes somavam cerca de 130 páginas, com a terceira, atingiu as 556.

As ortografias incluíam listas alfabetadas de palavras, exemplificando a enuncia-ção das regras. O modelo mais recente, as Regras de Bento Pereira, reunia ainda em apêndice «reformaçoens, divididas em varias taboas, para o bom fallar, & escrever»3, apresentando separadamente uma lista de grafias absolutamente erradas e outra de variedades admissíveis com indicação da forma que o autor considerava ser a mais correcta.

Feijó optou por um índice geral de palavras difíceis, que foi sucessivamente alar-gado no sentido de abranger «todos os vocábulos da nossa lingua, que poderîaõ causar dúvida, ou nas letras, ou na pronunciaçaõ»4. A lista pretende ser uma “arte” ortográfica em que a aplicação das regras substitui a sua enunciação, acomodada « á capacidade de todos, porque ainda os que naõ estudaraõ, desejavaõ escrever com

acerto, e naõ tinhaõ por onde aprender»5. O resultado é um instrumento

metalinguís-tico muito mais ambicioso e a designação que melhor o classifica é dada pelo próprio autor: um «Thesouro, ou vocabulario ortografico da lingua portuguesa»6.

O extenso dicionário foi redigido após a conclusão da primeira e segunda partes e obrigou à análise comparativa de milhares de palavras e soluções ortográficas. Daí resultou uma revisão de critérios que invalidou muitas das regras que postulara ante-riormente, e em que assume o papel de autoridade, sobrepondo-se às decisões varia-das e contraditórias expostas nos dicionários contemporâneos. Sobre o Thesouro da

Lingua Portugueza, o dicionário mais divulgado e usado no ensino jesuíta, o próprio

autor Bento Pereira afirmava que a ortografia não era coerente7. O Vocabulario de Bluteau era também um espelho das indecisões do lexicógrafo sobre a norma, embora sublinhasse que a orientação etimológica era a opção a privilegiar8. Tratando-se de

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Sobre a biografia de Feijó, cf. Silva, 1858-1923: III, 422; Machado, 1965-1967 (1741-1759): 706; Kemmler, 2001: 205-206 3 Pereira, 1666: 82 e ss. 4 Feijó, 1734: *6. 5 Feijó, 1734: 143. 6 Feijó, 1734: *5. 7 Pereira, 1666: prólogo. 8 Bluteau, 1728-1729: II, 195.

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um dicionário de 10 volumes in-fólio e de circulação restrita, era uma autoridade ao alcance de poucos.

A boa recepção do dicionário de Feijó justifica-se pela absoluta necessidade de um instrumento metalinguístico prescritivo e acessível. A estrutura dicionarística da

Ortografia tornava-a um vade-mecum que cumpria as funções que modernamente se

atribuem a um prontuário ou a um dicionário de bolso. Com uma extensa nomencla-tura de cerca de 12 mil entradas, foi o primeiro dicionário verdadeiramente portátil que não pretendia dar o acesso a uma segunda língua. Apesar de se estabelecerem relações etimológicas com palavras latinas, é intencionalmente monolingue, ofere-cendo definições sucintas em português para as palavras cujo significado não era evi-dente. Para as palavras de definição desnecessária, respondia à principal urgência dos consulentes, que era a informação ortográfica.

O dicionário foi reeditado mantendo-se inalterado nas edições do século XIX, o que demonstra a sua valência normativa. Registou uma elevada procura, acompa-nhando o alargamento do ensino do português e a normalização ortográfica. A proi-bição imposta pelo Marquês de Pombal às obras de filiação jesuíta, proscrevendo a

Ortografia e a Arte explicada, não conseguiu erradicar por decreto uma obra que só

poderia ser substituída pelos novos dicionários práticos e compactos, que viriam a ser editados no século XIX9.

A ortografia etimológica

Os princípios teóricos em que Feijó se fundamenta reflectem a formação de latinista e a observação dos usos prestigiados que validavam a opção por uma escrita etimologizante. Consultando as principais produções metalinguísticas da época, Ben-to Pereira enunciava as regras comuns à língua portuguesa e latina; Bluteau auBen-toriza- autoriza-va centenas de palavras decalcadas de termos greco-latinos; as edições dos Sermões de Vieira — paradigma estético e de uso próprio da língua — apresentavam igualmente uma ortografia de cariz latinizante. Ortografia, dicionários e texto impresso con-fluíam nesta orientação, mas sem uma intenção absolutamente prescritiva, pelo que eram exemplos autorizantes, mas não uma norma.

Feijó toma por princípio que se deve preferir a forma evocativa da etimologia, excepto quando uma forma não etimológica for largamente aceite por autores, dicio-nários e ortógrafos. A introdução à Orthographia é a apresentação de um programa de reforma latinizante, exequível pela proximidade das línguas, na «similhança dos nomes, na imitaçaõ dos verbos, e na propriedade dos vocabulos»10.

Tratava-se de adoptar para a escrita do português algumas soluções grafemáticas latinas, explorando analogias com uma língua regulamentada, estável e uniformizada pela tradição gramatical, lexicográfica e pedagógica. Ainda assim, havia uma conside-rável margem para a variação; a analogia podia ser tão subtil que apenas introduzisse unidades alografemáticas, ou tão intrusiva que modificasse a pronúncia, construindo uma forma relatinizada.

A reforma do sistema ortográfico, no sentido de o tornar regular, racional e perene devia estender-se à oralidade, contrariando os «abusos de palavras, e erros da pronunciaçaõ» característicos do vulgo, mas também os «erros pátrios»11 (as varieda-des regionais). A ortografia corrigia a pronúncia, aferida de acordo com um registo efectivamente existente, ainda que minoritário, preferido pelos escolarizados na tra-dição gramatical latina. Nem sequer a manutenção dos grupos grafemáticos <ct>,

9 Verdelho, 1982. 10 Feijó, 1734: 6. 11 Feijó, 1734: 5.

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<mn>, <gn>, <pt> seria um desvio ao postulado que recomendava escrever como se pronuncia. «Os que sabem», explica Feijó, pronunciam victoria, damno ou prompto, mas «naõ exprimem tanto as consoantes, de que se compõem a palavra, que as façaõ soar tanto, ou mais que as vogaes; mas la as tocaõ taõ levemente que juntas com as vogaes fazem hum som muyto proprio, e indicativo da palavra», e quem diz o contrário «he porque so sabe pronunciar material, e rusticamente, sem arte, nem sciencia»12.

Feijó e os demais defensores de uma escrita etimológica aceitavam pacificamen-te que a emulação do latim era um factor de distinção social entre os doutos e o vulgo que se limitava a reproduzir a oralidade. Bluteau considerava natural esta diferencia-ção de registos, já que «nas cortes pede o decoro, que a nobreza, e os doutos no fallar, e no escrever se distingaõ do vulgo»13. O desejo de uniformização não se confundia com o conceito de universalização, partindo-se do princípio de que a escrita do vulgo seria inevitavelmente desregrada, reflexo de um uso descuidado e de uma deformação na aprendizagem. Sobre esse registo impende uma desconsideração social: «que des-prezem os idiotas estas noticias, pouco importa. Assim como ninguem faz caso do modo com que fallaõ; a ninguem da cuidado o modo com que escrevem. Aos letrados compete por obrigação o bom uso das letras»14.

O domínio das regras deste sistema ortográfico não era portanto uma compe-tência que pudesse ser conferida no ensino das primeiras letras, dependia de uma aprendizagem concomitante da gramática latina e de todo um percurso escolar que contemplava a prática da escrita em ambas as línguas. A estabilidade do sistema orto-gráfico latino devia por isso ser reproduzida na escrita do português, caso contrário «sahirá huma terceira lingua, que mais parecerá aborto deforme, que filha perfeita da latinidade; qual he a língua, que o vulgo ignorante erradamente pronuncia, e escre-ve»15. A escrita da língua materna, ainda que principal objecto da Ortografia, apresen-tava-se subordinada ao saber basilar que era a latinidade.

Escrever com acerto

A Ortografia foi concebida como um instrumento pedagógico, cuja observância obrigava a uma reorientação das práticas individuais de escrita dos mestres-escola e dos métodos de ensino elementar da leitura e da escrita.

Reconhecida a impossibilidade de reformar a língua para que pudesse acomo-dar-se às capacidades de todos, restaria definir as regras do registo prestigiado e, a partir dessa referência, tudo o mais era comodamente classificado como erro. Mas, considerando a ampla variação ortográfica de limites indefinidos, não bastava ensinar o correcto, era preciso indicar o erro. Nunca em obras anteriores a marcação do erro fora tão sistemática, assumindo-se uma autoridade verdadeiramente prescritiva.

Os erros da escrita do vulgo nasciam nas escolas — explica Feijó — onde os pro-fessores, de qualificação muito díspar, não veiculavam exemplos de língua e escrita sancionados pelo “bom” uso.

Saõ as Eschólas o primeiro berço, aonde se criaõ innumeraveis erros assim no pronunciar, como no escrever; porque naõ só escrevem por traslados, que sendo na letra hũa admiraçaõ da vista, pela galhardia do rasgo, saõ na Orthografia hũa torpeza da pronunciaçaõ pela fealdade dos erros: mas tambem aprendem a ler por cartas, em que muitas vezes mais saõ os erros, que

12 Feijó, 1734: 8. 13 Bluteau, 1728-1729: II, 194. 14 Bluteau, 1728-1729: II, 225. 15 Feijó, 1734: 11.

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11 as palavras; e como se habitûaõ nelles, ainda que estudem Latim, sempre os usaõ por costu-me.16

Os treslados, define o Vocabulario de Bluteau, eram os papéis que os mestres davam de sua letra ao discípulo que aprendia a escrever»17. Neles os professores exi-biam uma caligrafia inadequada — a palavra galhardia, também segundo Bluteau, é

sinónimo de bizarria18— onde se encontravam os mesmos traços que vão caracterizar

a escrita das “mãos inábeis”, como a ausência de cursus, ou a escrita em módulo grande19. A impreparação dos professores recomendaria que apenas ensinassem a escrever por textos impressos para esse efeito, ou, sendo manuscritos, os «mostras-sem a pessoas doutas, para examinar a sua ortografia»20.

Continuavam a circular cartinhas da tradição seiscentista, que ensinavam traços ortográficos diferentes dos postulados pela racionalização etimologizante21. Esse lar-guíssimo fundo textual acumulado não poderia ser instantaneamente substituído, daí a recomendação de Feijó para que «ao menos naõ lhe deixarem ver as cartas, sem primeiro as reverem, para lhes emendarem as letras, que estiverem erradas»22. Deviam evitar-se as aulas das mestres de meninas, que ensinavam a leitura e escrita a par dos lavores domésticos. «A experiencia mostra, que escrevem Cramo, Frol, Mester, Pedor, & pronunciaõ Carmo, Flor, Mestre, Pedro»23. As mulheres, por terem em regra um percur-so escolar mais curto, não exercitavam suficientemente a representação segmental e esses traços ortográficos eram transmitidos às alunas24.

A um nível elementar bastava a ensinar a ler um conjunto restrito de textos reli-giosos de conhecimento generalizado. O ensino da leitura principiava pela memori-zação sequencial de todo o alfabeto; só depois aprendiam a identificar letras isoladas. Após meses de exercícios de silabação e repetição de palavras, poderiam ler em voz alta frases, textos formulares e orações religiosas. Para os aprendentes que não tives-sem acesso a outros materiais além dos silabários ou cartinhas, a leitura era a decifra-ção de combinações de grafemas, sem contacto com uma ampla variedade de vocabu-lário, inferindo soluções ortográficas por analogia. A escrita era uma competência distinta, ensinada posteriormente, com custos materiais que afastavam os mais pobres e as meninas se os pais julgassem esta habilidade supérflua. Escrever supunha mesas, materiais de escrita e textos exemplares para os alunos copiarem, geralmente excertos de catecismos ou cartas. A restrita variedade lexical obrigaria também a deduzir analogicamente a ortografia das muitas palavras desconhecidas.

O método de aprendizagem proposto por Feijó na Ortografia apontava para uma escolha criteriosa dos silabários, insistindo no exercício de memorização de conjun-tos grafemáticos que representassem sílabas de uso frequente. As sequências

16 Feijó, 1734: 547. 17 Bluteau, 1712-1728: s.v. treslado. 18 Bluteau, 1712-1728: s.v. bizarria. 19 Marquilhas, 2000: 238-241. 20 Feijó, 1734: 547. 21

A Doutrina Cristã do padre jesuíta Marcos Jorge, foi justamente o primeiro livro impresso pela Companhia em Portugal (1561), e «constituiu a popularissima cartilha, cujas repetidas edições se tor-naram, pelo assim dizer, inumeraveis» (Silva, 1858-1923: VI, 129). Sob o nome de Cartilha ou

Com-pêndio da Doutrina Cristã (1856), reformulada por António Mesquita Pimentel, este modelo didáctico

perdurará até à época de Inocêncio, que notava ser esta cartilha «a mais bem aceita para o ensino nas escolas menores tanto de Portugal como do Brasil» (Silva, 1858-1923: I, 173).

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Feijó, 1734: 547. 23

Feijó, 1734: 547. 24

Esta irregularidade ortográfica está bem documentada e «constitui a característica mais recorrente das mãos inábeis seiscentistas. O traço não é histórico, nem específico da escrita do português. Ente inábeis de 10 anos dos séculos XIX e XX observou-se igual comportamento» (Marquilhas, 2000: 246).

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natórias que tradicionalmente iniciavam as cartilhas exploravam pares de grafemas que de facto pareciam mais apropriados à leitura de textos latinos25. Desta forma in-correriam os alunos no erro de atribuírem, por analogia, valores alografemáticos que não estavam contemplados no bom uso.

Nos seus silabários, Feijó subverte a ordenação alfabética para agrupar as sequências que representam a realização de uma mesma consoante. As recomenda-ções incidem sobre as áreas críticas da aprendizagem da ortografia, que reflectiam simultaneamente os desvios do (bom) uso aceitável e os desacertos devidos às evolu-ções fonológicas da língua portuguesa no período seiscentista.

Do seu testemunho infere-se que os alunos aprendiam as sequências <ga> <ge> <gi> <go> <gu>, pronunciando sempre a velar oclusiva sonora, sem distinguir o valor de palatal fricativa sonora que se atribuía a <ge> <gi>. Deveriam aprender as oposi-ções <ga> <go> <gu>, <ge> <gi> e <gua> <gue> <gui> <guo> <guu>, com os exemplos

guapo, guerra, guincho, distinguo, distinguunt.

Reprova o ensino da pronúncia errada de <x> e <ch>, progressivamente indife-renciados à medida que se perde a memória da africada [tʃ] (=<ch>). Para Feijó, chave

e Cartaxo soavam distintamente, e essa diferença deveria ser assinalada pelos profes-sores, ainda que nessa época eles já não a percebessem.

A mesma incompreensão se verificava na representação grafemática do sistema das sibilantes. Feijó era originário de Trás-os-Montes e era sensível a um conjunto de oposições fonológicas que se conservavam no norte e centro interior: as pré-dorso-alveolares surda e sonora (paço, cozer) e as fricativas ápico-pré-dorso-alveolares surda e sonora (passo, cozer)26.

De acordo com a prática de ensino das primeiras letras, os alunos repetiam a sequência <ca> <ce> <ci> <co> <cu>, sempre como oclusiva velar surda e traduziam a sibilante grafando <çe> <ci>. Feijó recomenda que se ensinem as sequências <ca> <co> <cu> e <ça> <çe> <ci> <ço> <çu>, estas últimas admissíveis em posição inicial em palavras como çapato e çujo, fonologicamente distinto de sapato e sujo.

Os alunos que ultrapassassem esta fase elementar, em que se assegura o correcto uso das letras “portuguesas”, deveriam ser preparados para a aprendizagem de princí-pios de ortografia etimologizante, sendo advertidos do valor dos grafemas e dígrafos <ch> <k> <ph> e <y> semivocálico, com exemplos de palavras de origem latina, que surgiriam à medida que abandonassem as cartilhas e passassem à leitura e cópia de textos selectos de autores portugueses, ou iniciassem os rudimentos latinos.

Os silabários de Feijó eram bem mais adequados à fonologia e ortografia portu-guesas que a das cartilhas. Todavia, os exemplos de boa escrita que os alunos deviam interiorizar eram da responsabilidade dos mestres. A eles se destinava a Ortografia.

Corrigir e racionalizar

A correcção da ortografia é indissociável da vertente ortoépica, obrigando-se a descrições fonológicas meticulosas, que esclarecem os casos em que não há corres-pondência entre a pronúncia e a interpretação típica de uma determinada sequência de grafemas.

Antiguidade. naõ se carrega no u depois do g, porque perde o som de vogal; mas pronunciase levissimamente. Antiguidade, e naõ Antigu-î-dade; como alguns erradamente dizem.

Acciôma. assim se pronuncîa, mas deve escreverse Axiôma.

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Uma Cartinha de 1534 propunha sequências como ab, eb, ib, ob, ub; ac, ec, ic, oc, uc ... (Cartinha, 1981 [1534]: 3).

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Pode considerar-se que as formas erradas representam, em geral, ortografias fonológicas, pois o dicionário não contempla os erros de escrita resultantes de defi-ciente segmentação, mas que eram pronunciados correctamente (como os já citados

cramo, frol, mester, pedor). As diversas marcas fonológicas características deste período

da história da língua portuguesa reflectem-se na escrita, pelo que são previsivelmente abundantes os exemplos de alterações de timbre vocálico, metáteses e dissimila-ções27.

A recorrência de grafias “erradas” em que interferem critérios fonológicos e elementos etimológicos, como a duplicação de consoantes, indicia um contacto com exemplos de escrita prestigiada, mas também a impossibilidade de apreender as con-venções de um código ortográfico sustentadas pela analogia com a escrita latina.

Acclamaçaõ. Accramaçaõ. Acclamar. Accramar.

Accumular, e os mais. Accomular. Affabilidade. Affavilidade.

Affrôxar. Affloxar. Applaudir. Appraudir.

São também “erradas” formas como acrecer, apacentar, beninidade, consustancial,

contato, que representavam a pronúncia geralmente aceite, mesmo pelos que as

escre-viam com consoantes mudas etimologizantes. Feijó prescreve também a modificação na pronunciação, relatinizada em accrescer, apascentar, benignidade e contácto.

As entradas do dicionário são sempre grafias autorizadas, mas pode indicar no artigo outras que considera mais consentâneas com a etimologia latina, e por isso preferíveis, ainda que não sejam as de uso mais difundido.

Aceitaçaõ, Aceitar. se diz commummente: mas como tem analogîa de Accipio, deve escreverse Acceitaçaõ, Acceitar com dous cc.

Aceleraçaõ, Acelerado, Acelerar, tambem se devem escrever Acceleraçaõ, Accelerado, Accele-rar, porque no Latim tem dous cc. Acceleratio, Accelero.

Acender, Acêso: saõ do Latim Accendo, e por isso devem escreverse Accender, Accêso.

Assemelhar. dizem todos universalmente, fugindo da analogia do verbo Latino Assimilare. E eu sempre direi Assimilhar, ou quando muito Assimelhar; porque na conjugaçaõ diremos: Assi-mêlho, Assimêlhas, Assimêlha &c. Assim como Mediar, e Premiar, que todos escrevem com i no infinito, e na conjugaçaõ dizem Premeyo, Medeyo, Premêas, Medêas &c. e se dizem Allum-îo HistorAllum-îo, Allumîas, Historîas &c. Porque naõ diraõ Assimilho, Assimilhas &c. como Humi-lho, Humilhas. Eu antes quero responder, que assim escrevo por analogia do Latim, do que por imitaçaõ do Castelhano, que diz Semejança.

O conjunto de recomendações de Feijó conferiu uma importante regularização ao sistema ortográfico, impondo uma ratio latinizante que limita a diversidade de grupos alografemáticos. O latim não permitiria as grafias arqua (arca), ataqua, barqua,

barquo, bilrro (bilro), amiginho (amiguinho), acosidade (aquosidade), acoso (aquoso), conssumo (consûmo) e esse princípio é transposto para o português.

A solução é menos evidente quando se trata da representação das sibilantes, para as quais Feijó identificava os antigos usos distintos dos grafemas <ç> , <saeiou> e <ss>. Ainda assim, as emendas que apresenta configuram em larga medida aquele que

27Metáteses como adaijo (adágio), bachiler (bacharel), bolra (borla); alteração de timbre vocálico, adalgaçar (adelgaçar), adientar (adiantar), assestir (assistir); acrescentamentos vocálicos em epêntese

ou paragoge, adeministrar, apoderecer, culpavele, esterile; dissimilação de r > l, apricar (aplicar),

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virá a ser o uso moderno: açucar, assanhar, clareza, braço, balança, bacia, atiçar (em vez de

assucar, açanhar, claresa, brasso, balansa, bassia, atissar). Percurso editorial

A história das numerosas edições da Ortografia não se encontra suficientemente esclarecida e necessita do escrutínio do maior número possível de exemplares. Rolf Kemmler principiou esse levantamento e identificou 12 edições oficiais e 5 impres-sões clandestinas, descrevendo pelos menos 6 verimpres-sões da segunda edição e 2 da oitava (Kemmler 2001: 205-208). A partir da sua cuidada bibliografia pode elaborar-se uma lista de edições:

1ª 1734 — Lisboa Occidental, Na Officina de Miguel Rodrigues

2ª 1739 — Coimbra, Na Officina de Luis Seco Ferreyra (1739a,b,c,d em Kemmler) 2ª 1739 — Lisboa Occidental, Na Officina de Miguel Rodrigues (1739f,g em Kemmler) 3ª 1781 — Lisboa, Na Regia Officina Typografica

4ª 1786 — Lisboa, Na Regia Officina Typografica 5ª 1797 — Lisboa, Na Regia Officina Typografica 6ª 1802 — Lisboa, Na Regia Officina Typografica 7ª 1806 — [Lisboa], Na Impressão Regia

8ª 1814 — Lisboa, Na Impressão Regia

8ª 1815 — Lisboa, Na Officina de Antonio Rodrigues Galhardo 9ª 1818 — Lisboa, Na Typographia Lacerdina

10ª 1824 — Lisboa, Na Impressaõ Regia

11ª 1836 — Lisboa, Na Typografia de Eugenio Augusto 12 1861 — Lisboa, Na Typographia Rollandiana

Este percurso é esclarecedor quanto ao uso continuado da Ortografia, mesmo no período da proibição pombalina, em que a procura deve ter sido suprida pelas impressões clandestinas com data de 1739.

Critérios da presente edição

Segue-se a edição de 1734, de acordo com o exemplar da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP L. 5049 A), confrontado com um outro exemplar da mesma edição, de uma biblioteca particular.

ORTHOGRAPHIA, / OU / ARTE DE ESCREVER, / E Pronunciar com acerto / A LINGUA PORTUGUEZA. / PARA USO / DO EXCELLENTISSIMO /DUQUE DE LAFOENS. / PELO SEU MESTRE / JOAÕ DE MORAES / MADUREYRA FEYJÓ. / Presbytero do habito de S. Pedro, Bacharel em Theologia e Prégador. / LISBOA OCCIDENTAL, / Officina de MIGUEL RODRI-GUES / M. DCC. XXXIV.

[7], 553, [3] pp., 20 cm.

Com o objectivo de preservar o testemunho lexical, bem como a coerência entre o discurso metaortográfico do autor e os exemplos, optou-se por uma edição semidiplomática, mantendo-se as grafias originais, a pontuação e os diacríticos.

Procedeu-se ao desdobramento das abreviaturas, excepto as de penúltima, breve,

longa, página, número, &c. e v.g., bem como nos contextos em que o autor explica o uso

de abreviaturas. Efectuaram-se as emendas sugeridas pelas erratas e corrigiram-se as falhas tipográficas identificadas.

No que respeita à configuração da estrutura do texto, uniformizou-se a disposi-ção e destaque gráfico dos títulos das secções. Com base nesses títulos, elaborou-se

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um índice que permite um conspecto sobre as temáticas e organização da obra, ine-xistente na edição original.

Manteve-se a informação sobre a paginação, intercalada no corpo do texto entre parênteses rectos e no topo da página. As palavras que se translineavam entre páginas foram mantidas na página em que se iniciavam. Às páginas iniciais, não nu-meradas, atribuiu-se uma numeração autónoma, assinalada com asterisco (*1, ...), con-tando-se a partir da folha de rosto.

Na edição do dicionário introduziram-se entradas remissivas com ortografia actualizada, assinaladas entre parênteses rectos, sempre que as grafias originais impliquem uma localização diferente na ordenação alfabética.

A edição é complementada por uma lista de todas as formas portuguesas que ocorrem no texto, excluindo abreviaturas e segmentos de palavras silabadas. Indica-se o número total de ocorrências de cada forma e, a título indicativo, a localização das três primeiras, remetendo para a paginação original. A versão completa dos índi-ces encontra-se disponível na internet, no endereço http://clp.dlc.ua.pt.

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