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O regime de protecção de testemunhas em Portugal

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(1)Revista de Direito Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010. O REGIME DE PROTECÇÃO DE TESTEMUNHAS EM PORTUGAL. José Mouraz Lopes Universidade de Coimbra, Portugal. RESUMO. 1. jose.mouraz@gmail.com. O presente artigo traça uma radiografia detalhada sobre o regime especial de protecção de testemunhas vigente no direito processual penal português e a sua inserção, normativa e dogmática, num sistema penal sustentado no regime constitucional decorrente da implementação do Estado Democrático que assegura um processo penal justo. Palavras-Chave: protecção de testemunhas; processo penal português; Estado Democrático.. ABSTRACT This article provides detailed information on the witness protection special regime in force Portuguese penal process and its normative and dogmatic insertion in a penal system based on the constitutional regime set up during the rule of law, that assures a faire penal process. Keywords: witness protection; portuguese penal process; rule of law.. Anhanguera Educacional Ltda. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@unianhanguera.edu.br Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Informe Técnico Recebido em: 30/04/2011 Avaliado em: 19/05/2011 Publicação: 10 de junho de 2011. 1 Uma versão reduzida deste texto foi originalmente apresentada no «Taller sobre Protección de testigos para Panamá», organizado pelo ONUDOC, Ciudad de Panamá, Panamá, Fevereiro, 12-15, 2007.. 91.

(2) 92. O regime de protecção de testemunhas em Portugal. 1.. O SISTEMA PENAL PORTUGUÊS – BREVE RADIOGRAFIA O regime constitucional estabelecido em Portugal após a Revolução de 1974, que consagrou um Estado livre e democrático, encontrando-se estabelecido pela Constituição da Republica de 19762, obrigou à adequação da legislação ordinária a um novo espírito legislativo e a sua adaptação às estruturas constitucionais subjacentes aos princípios de um Estado de direito democrático. A primeira grande reforma no âmbito do direito criminal, veio a ser consagrada pelo Código Penal de 19823 que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1983, revogando o Código Penal de 1886. Obedecendo nos seus princípios a uma filosofia humanista, o Código Penal de 1982 adaptou a Lei Penal aos valores constitucionais assumidos pela Constituição da República Portuguesa de 1976. Iniciando-se por uma parte geral, verdadeira carta constitucional das possíveis restrições aos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição da República, aqui se estabelece toda a estrutura fundamental do direito de punir que ao Estado é atribuído. Assim são consagrados, nas suas dimensões normativas, fundamentalmente o princípio da legalidade dos crimes, das penas e das medidas de segurança e os princípios da necessidade, da proporcionalidade e exigência da culpa como fundamento da aplicação da pena. Quanto à parte especial do Código, onde se tipiciza o quadro de valores que o legislador entendeu possuírem relevância criminal, assume o Código, na sequência do que é hoje a sociedade Portuguesa, um conjunto de tipos criminais assumidamente constitutivos de uma sociedade aberta e democraticamente legitimada. Maximizaram-se áreas de tolerância em relação a formas de vida que relevam formas multiculturais e mundividências morais e que não põem em causa os bens jurídico penais nem desencadeiam intoleráveis danos sociais. Criminalizaram-se, apenas, comportamentos que lesem de forma insuportável bens jurídicos fundamentais, com relevância constitucional, aceitando-se assim e como princípio estruturante de toda a tipicização a punição como ultima ratio da política criminal.. 2 Aprovada pela Assembleia Constituinte em 2 de Abril de 1976 e sucessivamente revista e alterada pelas Lei Constitucional 1/82, Lei Constitucional 1/89, Lei Constitucional 1/92 e Lei 3 Aprovado pelo decreto Lei nº 400/82 de 23 de Setembro, entretanto sucessivamente alterado, sendo a última alteração (a 26º) a que consta na Lei nº .40/2010 de 3 de Setembro.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

(3) José Mouraz Lopes. 93. Assim são desde logo criminalizadas condutas que não sofrem hoje no quadro cultural e jurídico europeu quaisquer dúvidas, como sejam os tipos de crime contra as pessoas - onde sobressaem os crimes contra a vida, a integridade física, a honra, a liberdade e a reserva da vida privada - os crimes contra a paz e a humanidade, contra o património e contra o Estado. Foi assumido também um título onde se estabeleceram os crimes contra os valores e interesses da vida em sociedade. Aqui, para além da consagração de variadíssimos tipos de crime de perigo o legislador estabeleceu os chamados crimes contra a família, os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e os crimes que punem a violação do dever de solidariedade social e contra os sentimentos religiosos. Numa omissão deliberada não foram incluídos no Código Penal os chamados crimes económicos, doutrinalmente considerados de carácter mais mutável e por isso, por opção, incluídos em legislação avulsa de carácter especial - Decreto Lei nº 28/84 de 20 de Janeiro. O mesmo raciocínio levou o legislador a não incluir no Código Penal de 1982 toda a legislação criminal relativa aos estupefacientes, hoje em dia estabelecida também em legislação especial - Decreto Lei 15/93, de 22 de Janeiro. A resposta a ulteriores desafios decorrentes das novas criminalidades ou a necessidade de responder criminalmente a problemas sociais a que também a política criminal deve responder, tem sido reflectida em várias alterações ao Código Penal (caso do terrorismo, das novas formas de corrupção, da protecção de dados pessoais, das armas) e, também, à criminalização de outros crimes em diplomas avulsos. Apenas a nível tópico elencam-se os crimes informáticos (Lei da Criminalidade informática, nº 109/91 de 17 de Agosto), crimes dos titulares de cargos políticos (Lei n.º 34/87 de 16 de Julho) ou a responsabilidade penal por comportamentos anti-desportivos (Lei n.º 57/2007 de 31 de Agosto). A segunda grande reforma do sistema penal deu-se com a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 19874 que instituiu um novo modelo de abordagem processual da matéria penal, estruturado essencialmente numa abordagem tríptica em que a Polícia investiga sob a direcção do Ministério Público que, como titular da acção penal profere a acusação ou arquivamento, assumindo o Juiz o papel de decisor e. 4 Aprovado pelo Decreto-lei nº 78/87 de 17 de Fevereiro e sucessivamente alterado desde então (a ultima alteração consta na Lei nº 26/2010 de 30 de Agosto).. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

(4) 94. O regime de protecção de testemunhas em Portugal. simultaneamente garante das restrições legais admitidas nas fases preliminares do processo. Trata-se fundamentalmente de um modelo processual acusatório, mas integrado por um princípio de investigação judicial. A estrutura basicamente acusatória do processo, que adopta como regra o princípio da acusação, impõe que a entidade julgadora - o juiz - não pode ter funções de investigação preliminar e de acusação dos crimes. Impõe-se-lhe sim o julgamento do facto sujeito à sua apreciação, num processo público e contraditório, dentro dos limites efectuados por uma entidade diferenciada, o Ministério Público. Entidade que deverá incluir na sua estrutura interna uma autonomia só passível de ser assumida por uma magistratura sujeita a critérios de estrita legalidade e objectividade no exercício das suas funções. Atribuiu-se. ao. Ministério. Público,. que. assume. constitucionalmente. a. prerrogativa de magistratura autónoma e sujeita no exercício do seu munus ao princípio da legalidade, a titularidade de uma fase processual - o inquérito. Inquérito que compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência e um crime, determinar os seus agentes, a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão de acusação. O Ministério Público é assistido na direcção do inquérito pelos órgãos de polícia criminal, que actuam na sua dependência funcional. O juiz de instrução é, no processo penal, o titular de uma fase processual - a instrução. Trata-se de uma fase intermédia entre o inquérito e o julgamento, facultativa, que tem como objectivo a comprovação judicial da decisão do Ministério Público deduzir acusação ou arquivar o processo, em ordem a submeter ou não o processo a julgamento. Desenvolvendo-se a instrução como uma fase investigatória assume no entanto a finalidade primária de controlar judicialmente a actividade investigatória do Ministério Público. O juiz de instrução, nesta fase, tem a possibilidade de investigar os factos autónomamente de modo a fundar a sua convicção para pronunciar ou não o arguido. Pode praticar todos os actos que entenda necessários para essa finalidade, culminando a instrução com a existência de um debate instrutório, de natureza contraditória onde após. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

(5) José Mouraz Lopes. 95. a audição das duas partes - a acusação e a defesa - o juiz decide do envio ou não do processo à fase de julgamento. Também ao juiz de instrução, como juiz garantistico, à semelhança do juiz das liberdades5, como garante fundamental das liberdades e garantias dos cidadãos, é atribuída a competência para praticar ou autorizar actos no inquérito que traduzam ataques a direitos liberdades e garantias fundamentais. Ao juiz de julgamento compete apreciar o facto que lhe é endereçado por essa entidade autónoma que é o Ministério Público, mediante um conjunto de regras processuais definidas, mas possibilitando-se sempre, nessa fase uma completa liberdade de investigação de maneira a apurar sempre a verdade material. Se esse princípio de investigação é inquestionável estabelece no entanto o Código de Processo Penal no âmbito da audiência de julgamento um modelo semelhante ao da cross examination do direito anglo saxónico. Assim e desde logo todas as provas com relevância para a descoberta da verdade em que se sustenta a investigação do tribunal deverão ser produzidas em julgamento, sujeitas ao contraditório e a um regime rigoroso do depoimento da prova testemunhal. A testemunha é inquirida por quem a indicou, sem prejuízo dos esclarecimentos necessários formulados pelo Juiz; deve respeitar o privilégio da não incriminação, a proibição do testemunho de ouvir dizer sendo ainda ainda proibido, com alguns limites, a leitura de autos de declarações prestados no inquérito. Um regime rigoroso na fundamentação da decisão do tribunal após a produção de prova completa o carácter publícistico do processo, não permitindo a condenação do cidadão senão fundada nas provas produzidas que devem ser profusamente invocadas e analisadas criticamente na sentença final.. 2.. A PROTECÇÃO DE TESTEMUNHAS No âmbito do quadro penal identificado, nomeadamente com a entrada em vigor de um processo penal estruturado no modelo acusatório identificado, a prova assume uma inequívoca centralidade na afirmação e concretização de um processo penal justo.. 5 O afigura do «juiz das liberdades» é hoje consagrada em vários ordenamentos jurídicos europeus, estruturado essencialmente como o magistrado independente e imparcial que, no âmbito do processo penal e sobretudo nas suas fases de investigação, tem o poder de restringir os direitos do cidadão na medida em que seja necessário para possibilitar a concretizar as finalidades do processo.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

(6) 96. O regime de protecção de testemunhas em Portugal. No âmbito vastíssimo dos problemas que os meios de obtenção e os meios de prova suscitam, emerge a constatação de que a prova testemunhal continua a ter um papel fundamental na demonstração dos factos objecto da prova em julgamento – prova rainha. E se essa é a realidade para todos os tipos criminais, a emergência de novas formas de criminalidade e a sua rápida expansão levou à necessidade de compatibilizar a indispensabilidade da prova testemunhal com a realidade criminal complexa, grave e organizada e o modo de, processualmente, continuar a ser uma prova indispensável. Já em 1995 o Conselho da União Europeia, consciente da necessidade de transmitir a todos os Estados a imposição de que é fundamental garantir uma protecção adequada de testemunhas, estabeleceu uma Resolução, em 23 de Novembro de 1995, relativa à protecção das testemunhas no âmbito da luta contra o crime organizado. Aí se referiu genericamente que as testemunhas, no sentido de qualquer pessoa que detenha dados ou informações que a autoridade competente considere importantes, deverão ser protegidas contra qualquer forma de ameaça, pressão ou intimidação directas ou indirectas. Outros instrumentos internacionais vieram estabelecer quadros normativos onde a questão da protecção de testemunhas assumiu uma inequívoca prioridade, sendo paradigmático o último e mais importante documento aprovado no quadro da União Europeia sobre justiça, - o Programa de Estocolmo – Uma Europa aberta e segura que sirva e proteja os cidadãos – que salienta que «a as vítimas de crimes ou testemunhas que estejam em risco podem ser objecto de medidas de protecção, as quais devem ser eficazes em toda a União»6. Também Portugal não omitiu a necessidade de enfrentar a questão. Resultando directamente de Lei nº 93/99 de 10 de Agosto, posteriormente aprovada à entrada em vigor do Código de Processo Penal, consagrou-se pela primeira vez no ordenamento jurídico processual português um conjunto de normas referentes à protecção de testemunhas e seus familiares em processo penal, que em determinadas situações modifica mesmo o Código de Processo Penal. A Lei nº 93/99 foi posteriormente regulamentada pelo Decreto Lei nº 190/2003 de 22 de Agosto que veio, essencialmente, concretizar as regras de confidencialidade para a efectiva protecção de testemunhas que requeiram a reserva do conhecimento da identidade, desenvolveu os meios de efectivar as medidas pontuais de segurança e. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

(7) José Mouraz Lopes. 97. desenvolveu as regras de funcionamento da comissão de programas especiais de segurança. A Lei n.º 93/99 foi recentemente modificada pela Lei nº 42/2010, de 3 de Setembro, alargando o espectro de crimes em que é possível utilizar o mecanismo da reserva do conhecimento da identidade da testemunha7. Os diplomas citados enquadram um conjunto excepcional de medidas de protecção de testemunhas em processo penal, quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de considerável valor são postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objecto do processo. Trata-se de medidas individualizadas, excepcionais e expressamente referidas como tal no artigo 1º nº 4 da Lei 93/99, o que impõe uma absoluta interpretação literal do regime aí estabelecido. Como decorrência dessa excepcionalidade, só podem ser aplicadas quando necessárias e se forem adequadas à protecção das pessoas e à realização das finalidades do processo. Ou seja, os princípios da necessidade e da adequação a que se alude no artigo 1º nº 4 citado, liquidam toda e qualquer tentativa de interpretação do regime que alargue as possibilidades do regime legal estabelecido. Não é em vão que tais requisitos são impostos. Desde logo por virtude do regime ser mais uma lei de cariz processual penal, extravagante e excepcional que restringe direitos fundamentais estabelecidos no quadro legal e constitucional vigente. As dúvidas e as nefastas consequências de uma pulverização de normas processuais penais pelo ordenamento jurídico foram já objecto de apreciação. Dir-se-á sempre que essa natureza “anormal” de leis processuais penais em nada contribui para a legitimação da própria lei perante os cidadãos.8 Recorde-se que de entre as garantias constitucionais estabelecidas no quadro constitucional e legal português assume especial importância o direito de defesa que passa, num primeiro plano, pela assistência do defensor ao arguido em todos os actos do processo. De idêntica forma o princípio do contraditório impõe a possibilidade de o arguido confrontar e interrogar sempre as testemunhas apresentadas e que sustentam a acusação contra si deduzidas. É claro a este propósito, para além do regime estabelecido no Código de Processo Penal português vigente, o quadro legal supra constitucional em. Cf. Programa de Estocolmo – Uma Europa aberta e segura que sirva e proteja os cidadãos, de 2 de Dezembro de 2009. Sobre o regime português, vide SILVA, Sandra Oliveira e, A Protecção de Testemunhas no Processo Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 2007.. 6 7. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

(8) 98. O regime de protecção de testemunhas em Portugal. que se sustenta o nosso ordenamento jurídico. Assim o artigo 6º nº 3 alínea d) da CEDH estabelece que o acusado tem como mínimo o direito de “interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação”. Porque o regime estabelecido colide de alguma forma com a pureza de tais princípios, só motivações excepcionais poderão por isso suportar a restrição a tais direitos fundamentais. São essencialmente duas as razões apresentadas pelo legislador para justificar a necessidade deste regime excepcional. Por um lado, a colocação em perigo de vida, da integridade física ou psíquica, da liberdade ou mesmo de bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado das testemunhas que devam contribuir para a prova de factos objecto de um processo penal. Por outro lado, e apenas para a situação de reserva do conhecimento da identidade da testemunha, quando se estiver em presença de crimes previstos nos artigos tráfico de pessoas, de associação criminosa, de terrorismo, de terrorismo internacional ou de organizações terroristas ou, desde que puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a oito anos, a crimes contra a integridade física, contra a liberdade das pessoas, contra a liberdade ou autodeterminação sexual, de corrupção, de burla qualificada, de administração danosa que cause prejuízo superior a 10 000 unidades de conta ou cometidos por quem fizer parte de associação criminosa, no âmbito da finalidade ou actividade desta9. Ou seja, são considerações de política criminal relacionadas com a necessidade de, em linguagem menos jurídica e mais bélica, “combater” o crime organizado que estão na origem da tais medidas, assumindo-se a perspectiva de que a delinquência actua cada vez mais no âmbito de organizações sofisticadas que se infiltram no Estado, sendo que a punição dos crimes associados a estas realidades depende, em larga medida, dos contributos prestados por pessoas ligadas ou conhecedoras das organizações e da sua actividade. Ora, a compatibilização das restrições referidas com o quadro legal garantistico assumido pelo Estado Português só é passível de ser aceite se tais restrições obedecerem a. 8 Critica de forma contundente o sistema fragmentário das leis penais Ferrando Mantovani, “Sobre a Exigência perene da codificação”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 5, 1995, pg 143. 9 Este catálogo foi substancialmente alargado com a Lei nº 42/2010 de 3 de Setembro, sendo em alguns casos pouco compreensíveis as motivações que levaram a tal alargamento, nomeadamente aos crimes de burla qualificada ou administração danosa. Foi retirado expressamente, no entanto, o crime previsto no artigo 28º do Decreto-lei n.º 15/93 (associação criminosa no âmbito do tráfico de estupefacientes).. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

(9) José Mouraz Lopes. 99. um rigoroso controlo jurisdicional. Só este efectivamente permite assegurar um “mínimo suportável” atentado aos direitos de defesa. Recorde-se que pode considerar-se património jurídico cultural europeu a existência de uma entidade independente e imparcial que possa, em determinadas circunstâncias, no domínio do processo penal, assumir a restrição dos direitos fundamentais.. 3.. ÂMBITO SUBJECTIVO Aplicando-se a todas as situações relacionadas com testemunhas cuja vida, a integridade física ou psíquica, liberdade ou mesmo bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem o processo, veio a Lei nº 93/99 de 14 de Julho adoptar medidas de cariz policial e jurisdicional essencialmente destinadas à protecção de testemunhas, familiares ou pessoas que lhe sejam próximas. Aplicável a qualquer pessoa que, independentemente do seu estatuto face à lei processual, disponha de informação ou de conhecimento necessário à revelação, percepção ou apreciação de factos que constituam objecto do processo, as medidas de protecção estabelecidas naquele diploma não se destinam por isso e só, como num primeiro momento poderia parecer, às testemunhas. Também aos arguidos, assistentes, às partes civis e aos peritos e consultores técnicos é passível de ser aplicável o regime estabelecido, desde que verificados os pressupostos aí estabelecidos.. 4.. TIPOS DE PROTECÇÃO A Lei 93/99 de 14 de Julho estabelece e regulamenta cinco diferentes situações referentes ao seu objecto, ou seja a protecção de testemunhas (e outros intervenientes processuais) em processo penal: ocultação e teleconferência, reserva de conhecimento da identidade da testemunha, medidas pontuais de segurança, programas especiais de segurança e por último participação de testemunhas especialmente vulneráveis.. 4.1. Ocultação de imagem ou distorção de voz e teleconferência Desde logo no capítulo II regulamenta a prestação de depoimento através de ocultação de imagem ou distorção de voz bem assim através de teleconferência.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

(10) 100. O regime de protecção de testemunhas em Portugal. Tendo como finalidade evitar o reconhecimento da testemunha, só é passível de ser aplicado tal mecanismo depois de decisão jurisdicional fundamentada em factos ou circunstâncias que revelem intimidação ou elevado risco de intimidação da testemunha. Se é possível em qualquer tipo de crime proceder à ocultação da imagem ou à distorção da voz da testemunha, já a tomada de declarações através de videoconferência só é possível tratando-se de crimes que devam ser julgados por tribunal colectivo ou pelo júri (crimes mais graves, em regra puníveis com pena de prisão superior a cinco anos). Mais rigoroso e selectivo foi o legislador no que diz respeito à legitimidade para requerer a prestação de depoimento através de teleconferência, apenas se possibilitando esse mecanismo ao Ministério Público, ao arguido e à testemunha – e não ao assistente e mesmo oficiosamente, como no caso da prestação de depoimento através de ocultação de imagem ou distorção de voz. Referindo expressamente a Lei, no artigo 6º nº 3, que a decisão sobre o requerimento da utilização de teleconferência é precedida pela audição dos sujeitos processuais não requerentes, nada referindo no que respeita à ocultação de imagem e distorção de voz, o princípio do contraditório, reforçado nesta situação excepcional, como se referiu, obriga no entanto a que também aqui se ouçam os sujeitos não requerentes. Importa sublinhar que a tomada de declarações através de teleconferência – naturalmente utilizando dois locais distintos – obriga a que a testemunha deponha sempre na presença de um juiz a quem caberá tomar todas as decisões especificamente discriminadas no artigo 10º da Lei 93/99, e que passam essencialmente pela identificação e ajuramentação da testemunha e pela garantia de que o acto decorrerá sempre em total acordo com os princípios do processo penal, nomeadamente pela prestação de um depoimento livre e espontâneo da testemunha.. 4.2. Reserva de conhecimento da identidade Especiais cuidados teve o legislador na regulamentação da medida de não revelação de identidade da testemunha agora estabelecida no artigo 16º e seguintes da Lei nº 93/99. A ponderação, no equilíbrio entre as necessidades da justiça penal que obrigam à aceitação na lei deste tipo de medidas e os direitos de defesa do arguido, só são compatíveis através de um procedimento que permita contestar a presumida necessidade do anonimato, a credibilidade ou a origem do conhecimento das testemunhas. Sublinhe-se que é um direito do arguido, estabelecido no artigo 6º nº 3 alínea d) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no ordenamento jurídico processual. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

(11) José Mouraz Lopes. 101. penal português interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação, o que o regime em causa restringe. A reserva do conhecimento da identidade da testemunha pode ter lugar durante todas as fases do processo ou apenas nalguma delas. Tratando-se efectivamente de um mecanismo gravemente limitador dos direitos processuais do cidadão, que por regra tem o direito a um julgamento público, justo e célere, naturalmente que a limitação agora estabelecida obriga a um conjunto de garantias processuais que minimize a restrição do direito do conhecimento pleno das provas que servirão para eventualmente condenar esse cidadão. Desde logo impõe a Lei um conjunto de requisitos cumulativos – para além de só se aplicar a situações passíveis de integrar os chamados crimes do “catálogo”, já referidos supra – a que não pode de todo “fugir-se”. Assim exige-se que a testemunha em causa, os seus familiares ou outras pessoas que lhe sejam próximas corram grave perigo de atentado contra a vida, a integridade física, a liberdade ou mesmo contra os seus bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado; que o depoimento constitua um contributo probatório de relevo e, por último, que não seja fundadamente posta em dúvida a credibilidade da testemunha. A apreciação destes requisitos é sempre efectuada pelo juiz de instrução, em processo autónomo do processo principal, a requerimento do Ministério Público devendo desde logo este indicar todas as prova que justifiquem esse pedido e passíveis de ser apreciadas pelo juiz. A decisão sobre a prestação de depoimento sobre reserva de identidade implica, para o juiz que a profira um conjunto de impedimentos, que naturalmente têm por objectivo salvaguardar sempre o princípio a imparcialidade e independência do julgador. Assim e desde logo não pode decidir o incidente relativo ao depoimento sob reserva o juiz que tenha procedido ao primeiro interrogatório do arguido, que tenha procedido à aplicação de uma medida de coacção, que tenha procedido a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário ou a quaisquer buscas domiciliárias, que tenha ordenado ou autorizado a apreensão de correspondência e dela tenha tomado conhecimento ou tenha ordenado ou autorizado a intercepção, gravação ou registo de conversação de comunicações ou que tenha presidido a actos de instrução ou ao debate instrutório – artigo 17º nº 3 da Lei nº 93/99.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

(12) 102. O regime de protecção de testemunhas em Portugal. Por outro lado o juiz que tenha decidido o incidente fica imediatamente impedido de intervir posteriormente no processo. A excepcionalidade da medida de não revelação da identidade de testemunha obriga à organização de um processo complementar ao processo penal em curso, que será tramitado em separado deste e ao qual tem acesso apenas o juiz de instrução que decidir o incidente. Os direitos de defesa do arguido serão, neste processo complementar, assegurados por defensor próprio, que não o advogado ou defensor do arguido, indicado pela Ordem dos Advogados, a solicitação do juiz. Compatibiliza-se assim o interesse pela descoberta da verdade material subjacente às finalidades do processo penal que decorre da necessidade de protecção da testemunha, com a necessária garantia de defesa do arguido, sendo certo que a relação e confiança entre o arguido e o seu advogado ou defensor, poderia, ficar seriamente abalada se apenas se proibisse aquele a divulgação da identidade da testemunha ao arguido. A decisão sobre a reserva do conhecimento da testemunha é precedida de um debate oral e contraditório entre o defensor nomeado para processo complementar e o Ministério Público, debate esse que incidirá sobre os fundamentos do pedido. A existência de testemunha sobre reserva de conhecimento num processo penal, antes da constituição de arguido, implica que a este, logo que constituído, seja dado conhecimento da sua existência. O arguido poderá então requerer novo debate sobre os fundamentos que sustentaram a decisão. Deverá por isso dar-se proceder-se de acordo com o disposto nos números 3 e 4 do artigo 18º da Lei 9/99, requerendo o juiz novo defensor à Ordem dos Advogados, e proceder-se a uma reavaliação dos pressupostos invocados pelo Ministério Público. Logo que se mostre desnecessária, nomeadamente por carência de algum dos fundamentos que levaram à sua aplicação, a medida é revogada, seja por requerimento do Ministério Público seja da própria testemunha.. Valoração do depoimento da testemunha A testemunha a que for concedida a medida de não revelação de identidade pode prestar depoimento com recurso à ocultação de imagem, distorção de voz ou mesmo teleconferência. O carácter excepcional da medida não deixa qualquer dúvida. O próprio legislador. estabelece. que. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106. nenhuma. decisão. condenatória. poderá. fundar-se.

(13) José Mouraz Lopes. 103. exclusivamente ou de modo decisivo, no depoimento ou nas declarações produzidas por uma ou mais testemunhas cuja identidade não foi relevada. Trata-se de uma salvaguarda ao regime excepcional desta medida que, numa posição mínima exige que existam outras provas relevantes para a condenação, em julgamento, para além do depoimento da testemunha em causa.. 4.3. Programas especiais de segurança No que respeita às medidas e programas especiais de segurança para testemunhas a Lei 93/99 considera duas situações: medidas pontuais, a decidir pelo Ministério Público na fase do inquérito ou pelo juiz que presidir à fase seguinte (instrução ou julgamento); programas especiais, a decidir por uma Comissão de Programas Especiais de Segurança, na dependência do Ministério da Justiça.. Medidas pontuais No que respeita às medidas pontuais de segurança há que relevar que só podem ser determinadas quando estiver em causa um tipo de criminalidade que revista alguma gravidade. Assim só quando o crime em causa deva ser julgado pelo tribunal colectivo ou pelo júri pode o Ministério Público ou o juiz lançar mão das referidas medidas. Curiosamente na fase de instrução ou julgamento apenas e só a requerimento do Ministério Público. Tais medidas passam essencialmente pela indicação de residência não coincidente com a real, transporte da testemunha a cargo do Estado, condições de segurança nas instalações judiciárias, policiais ou estabelecimento prisional e mesmo protecção policial à testemunha ou familiares. Sublinhe-se apenas a necessidade da protecção policial, quando determinada, não poder ser efectuadas por órgão de polícia que tenha intervindo no inquérito ou na instrução, assim se salvaguardando a liberdade de determinação da testemunha, quando prestar depoimento.. Programas especiais Quanto ao programa especial de segurança, trata-se de matéria de índole administrativa da competência de uma Comissão de Programas Especiais de Segurança, constituída nos termos do artigo 23º da Lei 93/99 de 14 de Julho.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

(14) 104. O regime de protecção de testemunhas em Portugal. 5.. TESTEMUNHAS ESPECIALMENTE VULNERÁVEIS Por último regulamenta a Lei a prestação de depoimento de testemunhas especialmente vulneráveis. Não definindo a lei quem são para os efeitos em causa “testemunhas especialmente vulneráveis”, o artigo 26º nº 2 estabelece o critério de aferição que deve condicionar a autoridade judiciária a fazer uso do mecanismo. Assim ao estabelecer que “a especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência”, é evidente que se está a falar num primeiro momento de crianças, idosos ou pessoas cuja doença os torne psicologicamente frágeis. Por outro lado estão em causa pessoas membros de família ou grupo social fechado que tenham que prestar depoimento contra pessoa do mesmo grupo e que não tenha condição de prestar tal depoimento livre de quaisquer constrangimentos provocados pela pertença ao grupo. Deixando ao Ministério Público, no inquérito ou ao Juiz (de instrução ou de julgamento, consoante a fase processual) o poder de providenciar para que a prestação de depoimento decorra nas melhores condições possíveis, estabelece-se também um regime diverso consoante a fase processual onde ocorra o incidente. Assim, no inquérito, constatada a situação de especial vulnerabilidade, as declarações da testemunha devem ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime. Além disso, não só deverá evitar-se a repetição da audição da testemunha – o que alguma prática faz com frequência – como também pode ser, nestas situações utilizado o mecanismo do artigo 271º do C.P.P – declarações para memória futura. Admitida também a figura do “acompanhamento das testemunhas” – artigo 27º que consiste na designação de técnico de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para isso, possibilita-se que o acto processual de prestação de depoimento da testemunha seja mesmo acompanhado pelo “acompanhante”. A presença do acompanhante só poderá consistir no entanto numa presença física, não se permitindo qualquer intervenção da mesma no decurso do depoimento. O acompanhante ficará sempre obrigado ao segredo de justiça do que presenciar, se a situação ocorrer em fase não pública. No que respeita à prestação de depoimento das testemunhas especialmente vulneráveis em acto processual público ou sujeito a contraditório admitiu-se um conjunto. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

(15) José Mouraz Lopes. 105. de procedimentos a utilizar pelo juiz – de instrução ou de julgamento consoante a fase processual – que possibilitem que aquele depoimento seja totalmente livre e inequivocamente prestado em quaisquer constrangimentos. Assim pode o juiz: a) dirigir os trabalhos de modo a que a testemunha nunca se encontre com certos intervenientes o mesmo acto, designadamente com o arguido; b) ouvir a testemunha com utilização de meios de ocultação ou de teleconferência, nomeadamente a partir de outro local do edifício do tribunal c) proceder à inquirição da testemunha, podendo, depois disso, os jurados, o Ministério Público, o defensor e os advogados do assistente e das partes civis pedir-lhe a formulação de questões adicionais. Ou seja, todo um conjunto de mecanismos que alteram o regime da produção da prova testemunhal estabelecido no artigo 348º do Código de Processo Penal. Permite-se por último, e ainda no que toca às testemunhas especialmente vulneráveis, e para sua própria protecção, um regime excepcional que possibilita o afastamento temporário da testemunha da família ou do grupo social fechado em que se encontra inserida – artigo 31º. Trata-se das situações em que estão em causa testemunhas que prestarão depoimento contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa situação de subordinação ou de dependência. Trata-se aliás de situação com alguma frequência prática, nomeadamente no âmbito da criminalidade intra-familiar.. 6.. NOTA CONCLUSIVA A manutenção de um quadro normativo processual penal sustentado em princípios constitucionais, em que o processo penal se apresenta como direito constitucional aplicado, apresenta-se actualmente como uma garantia fundamental a um processo penal justo. A adaptação de normas processuais, nomeadamente no domínio dos meios de prova e da sua produção e valoração no âmbito de um processo público e contraditório, em função de realidades criminais complexas, violentas ou organizadas, é um mecanismo admissível no âmbito do quadro normativo e processual penal sustentado naqueles princípios constitucionais. Sendo a prova testemunhal, ainda, um meio de prova fundamental e insubstituível em determinado tipo de criminalidade, a criação de mecanismos processuais que protejam quem tem conhecimento de factos e deva produzir o seu. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

(16) 106. O regime de protecção de testemunhas em Portugal. depoimento sem constrangimentos, é essencial à concretização da finalidade de um processo penal democrático e assente nos princípios da busca da verdade material.. José Mouraz Lopes Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Diretor da Revista JULGAR. Juiz Desembargador.. Revista de Direito • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 91-106.

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Referências

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