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Uma cruz na beira do caminho: o imaginário jardinense sobre as cruzes de uma estrada

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Academic year: 2021

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CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ- CERES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES- DHC

LUANA BARROS DE AZEVEDO

UMA CRUZ NA BEIRA DO CAMINHO: O IMAGINÁRIO JARDINENSE SOBRE AS CRUZES DE UMA ESTRADA

CAICÓ, 2014

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UMA CRUZ NA BEIRA DO CAMINHO: O IMAGINÁRIO JARDINENSE SOBRE AS CRUZES DE UMA ESTRADA

Monografia apresentada ao Curso de História Bacharelado, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte-CERES, para obtenção do título de Bacharel em História.

Orientador: Prof. Dr. Lourival Andrade Junior

CAICÓ, 2014

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UMA CRUZ NA BEIRA DO CAMINHO: O IMAGINÁRIO JARDINENSE SOBRE AS CRUZES DE UMA ESTRADA

Aprovada em: _____/_____/_______

BANCA DE DEFESA

___________________________________________________________________________ Professor Dr. Lourival Andrade Júnior

Departamento de História do CERES- UFRN (Professor Orientador)

___________________________________________________________________________ Professor Dr. Joel Carlos de Souza Andrade

Departamento de História do CERES- UFRN

___________________________________________________________________________ Professor Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo

Departamento de História do CERES- UFRN

CAICÓ, 2014

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Dedico este trabalho inteiramente a Marlene Barros da Silva, minha mãe, que desde o começo do curso acreditou na minha capacidade e me deu forças para ir até o fim.

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Vez por outra me pergunto o que seria do homem se este fosse sozinho e vivesse apenas por si, sem a necessidade do próximo. Acredito que isso não seria possível. Por esse motivo, devemos reconhecer e agradecer inteiramente àqueles que fazem parte da nossa vida e que nos ajudam a seguir em frente e aprender a cada dia.

Primeiramente agradeço às forças da natureza e ao meu deus interior, protetor espiritual, que me faz ter forças e não desistir jamais dos meus propósitos.

Aos meus pais, Alberto Luis de Azevedo, Marlene Barros da Silva, e ao meu irmão, Aldo Lúcio Barros de Azevedo, o meu muito obrigada, por estarem sempre comigo.

Aos meus amigos e irmãos do peito, Jackson Silva Pereira Júnior e Luana de Medeiros Silva Henrique, o meu muito obrigada por fazerem parte da minha vida, e espero levar essa amizade pelo resto da vida.

Agradeço aos meus colegas de curso, e, em especial, Rafael Jefferson que, desde o começo da vida acadêmica, foi como um irmão para mim. E Antônio Alves, amigo e companheiro, que pretendo levar por toda a vida.

Agradeço aos meus professores, que me ensinaram muito bem o que é a vida acadêmica. Que a História não é apenas uma disciplina, mas um reconhecimento do que somos. Agradeço também por nos ensinar a acreditar que muitas vezes o que achamos impossível, é sim possível. Em especial, agradeço a Lourival Andrade Júnior, meu orientador, por todas as aulas e orientações.

Agradeço a Helder Macedo e a José Júnior, grandes historiadores, que desde o começo ajudaram muito com minha pesquisa e acreditaram nela.

Agradeço também a todos os professores que me ensinaram ao longo do curso, os que ainda se encontram no CERES, os que partiram para outras cidades, e a Hugo Romero, grande professor, que me contagiou com seu sorriso e suas brincadeiras em sala aula. Que o mesmo descanse em paz. Agradeço a todos, pois com os demais aprendi mais nesses quatro anos do que em metade da minha vida.

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Esse trabalho tem como objeto o estudo das cruzes que delimitam óbito em Jardim do Seridó/RN, essas que se encontram na BR-427. Investigaremos cada objeto que acompanha as cruzes e como elas são postas nas estradas, onde se encontram e o que mudou no cenário urbano após essas cruzes serem postas. Daremos início a essa monografia falando sobre o homem e seus comportamentos perante a morte, trataremos de entender, de uma forma diacrônica, as atitudes do homem diante da morte. Analisamos esse assunto com base em estudos sobre o homem e a morte, visando uma perspectiva ocidental, primeiramente, para posteriormente, entendermos o homem seridoense. Posteriormente a isso, falaremos sobre a representação da morte, e seus rituais, para os habitantes de Jardim do Seridó, tendo em vista sua história, tradição, cultura, memória e rituais de enterramento. Por último, trataremos das cruzes de estrada, lugar de memória e história daquele que faleceu, assim como faremos uma abordagem em torno do aspecto físico da cidade e sua população, crenças, religião e cultura.

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The present work aims the study of the crosses that delimit death in Jardim do Seridó, these are on BR-427. We are going to analyze each object that is with the crosses and how the last ones are put on the roads, where they are found and what changed in the urban scenery after they were put there. We are going to start this monograph talking about the man and his behaviors face to death, trying to understand, in a diachronic way, the attitudes of man facing death. We are going to analyze this subject based on studies about man and death, aiming the occidental perspective at first, to then understand the seridoense man. Afterwards, we are going to talk about the representation of death, and its rituals, to the habitants of Jardim do Seridó, considering their history, tradition, culture, memory and burial rituals. At last, we are going to address the road crosses, place of memory and history of who has died, as well as we are going to make an approach around the physical aspect of the city and its population, beliefs, religion and culture.

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"Verdadeiramente, porém, no fundo de nós mesmos, não nos sentimos mortais" (ARIÈS, Philippe, 1989, p. 66).

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INTRODUÇÃO ... 10

1. MORTE EM VIDA: A CONCIÊNCIA DO MOMENTO DERRADEIRO...13

1.1- A representação da morte para o homem e seus rituais...13

1.2- A morte no Medievo...17

1.3-A morte e suas representações no Seridó...25

2. BENZA ÓH DEUS: O IMAGINÁRIO JARDINENSE A RESPEITO DA MORTE E SEUS RITUAIS FÚNEBRES...31

2.1- Breve história de Jardim do Seridó...31

2.2- Da capela ao cemitério- local de enterramento...32

2.3- A morte não é uma festa- morte como tradição em Jardim do Seridó...37

3. CREDO E CRUZ: CRUZES QUE DELIMITAM ÓBITO E SEUS CREDOS EM JARDIM DO SERIDÓ...44

3.1- Em quê consiste nosso estudo...44

3.2- Objetos que compõem as cruzes de estrada e seus significados...46

3.3- As cruzes e seus personagens...52

3.4- Além das cruzes que delimitam óbito...61

CONCLUSÕES...63

FONTES ORAIS...65

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INTRODUÇÃO

Instigante é saber que por mais distante que se encontrem as localizações, a cultura e a religião, o imaginário ainda liga os seres humanos de uma forma ou de outra: seja ela através de símbolos ou histórias contadas, que atravessam gerações. O símbolo, desde muito tempo, representa para o homem uma história, pois ao vê-lo o mesmo já faz uma ligação com seu significado. A cruz é um símbolo adotado pelo Cristianismo, que representa morte, e as cruzes que se encontram nas beiras das estradas, assim como os objetos que as rodeiam, ou seja, as flores (artificiais ou não), rosários ou terços, e pedras, demonstram, para o homem, não apenas uma morte, mas uma morte inesperada e muitas vezes extraordinariamente sofrida. Isso, em grande parte, causa espanto e, ao mesmo tempo, comoção nas pessoas que por ali passam.

Era curioso notar essas cruzes nas estradas que se localizam na BR-427 de Jardim do Seridó-RN a Caicó-RN, percurso que a autora da monografia fazia diariamente, e tentar, só em observá-las, entender seu significado e de todos aqueles objetos que as rodeiam. Mesmo a curiosidade se estendendo todos os dias, com relação a essas cruzes que se localizam na BR-427 que liga Jardim do Seridó a Caicó, optamos por reduzir o recorte espacial, pesquisando, apenas, as cruzes que estão na BR-427 que passa por Jardim.

Em muitas estradas podemos ver cruzes que vêm antes/após uma curva ou uma ladeira, servindo, também, como ponto de atenção para o motorista. As cruzes são lugares de memória, fé e história de uma pessoa que teve sua vida interrompida por um possível acidente. Isso é o que mais comove os que a vêem.

Espantoso é saber que temos um fim, que chegamos ao final de uma vida. Nós, seres humanos, que nos consideramos os mais inteligentes dos seres da natureza, não podemos evitar esse término, e o que perturba é saber que a morte não pode ser anulada. Extraordinária e espantosa, a morte, e o que possa vir depois dela, nos causa curiosidade e medo. Não saber o que acontecerá conosco depois do momento final, é o que nos faz aproveitar cada momento da vida.

A presente monografia tem como intuito principal compreender de que forma o ser humano, especialmente os habitantes de Jardim do Seridó/RN, reagem conforme esses acontecimentos que rodeiam a morte e o que possa vir depois dela. O que nos levou a resolução deste trabalho foi a curiosidade diária que gerava questões em torno das informações sobre essas cruzes, presentes na cidade de Jardim, onde a pesquisadora se faz

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residente, especialmente no trecho da BR-427. Para resolver essas questões, analisamos as tradições, heranças culturais, pensamentos, imaginários, ritos, e, principalmente, os símbolos, em especial, as cruzes que delimitam óbito na BR-427 de Jardim do Seridó e os objetos que se encontram em torno delas. Para compreender o assunto, analisamos, primeiramente, essas heranças culturais e religiosas, que influenciam o comportamento diante da morte e procuramos entender um pouco das influências sofridas ao longo do tempo, para poder compreender suas condutas mais atuais.

Com base nisso, nosso primeiro capítulo aborda, de uma forma diacrônica, as atitudes do homem diante da morte ao longo do tempo. Fazemos uma análise desse assunto com base em estudos sobre o homem e a morte, visando uma perspectiva ocidental, primeiramente, para posteriormente conseguimos compreender como é formado o imaginário jardinense a respeito da morte. Escolhemos o homem ocidental por ter conhecimento das influências que os seridoenses e, consequentemente, os jardinenses sofreram desde o período colonial. O nosso intuito será perceber como se deram essas práticas de pós-morte para compreender esse imaginário a respeito da morte e as cruzes que delimitam óbito.

Posteriormente a isso, trataremos de entender como o homem seridoense, em especial o jardinense, via a morte, e como eram feitos esses rituais: a preparação, o velório, o enterramento e o luto, símbolos que ligam o imaginário desses homens, a herança cultural e religiosa. Esses ritos de morte são o que dizem muito sobre a cultura, classe social, religião e esse imaginário das pessoas de uma determinada região. Enterros festivos, angustiosos, simples, suntuosos também representam os vivos e os mortos. Assim como a tradição mortuária e seus significados e crenças falam sobre as pessoas, as sepulturas, o caixão e a consciência da morte que representam determinado local, e isso é o que procuraremos analisar, levando em conta seus rituais de enterramento e os locais dos mortos que são feitos não somente para o falecido, mas também para os vivos, pois estes últimos são quem sofrem com a perda do jacente e preparam os velórios, rituais religiosos e os locais de morte.

Por fim, trataremos do nosso objeto principal, as cruzes que se encontram na BR-427 de Jardim do Seridó/RN: qual seu significado, de quem foi herdado esse costume e o que se encontra por trás de cada objeto que as rodeiam. Nosso estudo será feito com base em depoimentos de familiares dessas pessoas que foram vítimas de acidentes trágicos, de pessoas que moram próximas a essas cruzes e do padre de Jardim do Seridó, pois achamos importante escutar o que um representante da Igreja Católica tem a nos dizer sobre esse assunto.

As informações que colhemos desses jardinenses foram de suma importância para a compreensão do nosso trabalho. Os depoimentos se encaixaram bem com os artigos que

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usamos como referência para cruzar informações. Assim como procurar entender o significado das cruzes de estrada, seus símbolos, e de quem herdamos esse costume, procuramos ver se os jardinenses pensavam o mesmo sobre elas.

Em nosso estudo sobre as cruzes já mencionadas, abordamos o local na qual elas se encontram. Esses locais são de circulação de pedestres e, geralmente, se localizam próximos de curvas, ladeiras ou passagens que ligam um bairro a outro; analisamos, também, a época em que aconteceram esses acidentes, como era a cidade de Jardim do Seridó e sua sinalização de trânsito; ouvimos das pessoas entrevistadas como ocorreram esses acidentes e quem foram essas vítimas; ouvimos das mesmas o que a cruz na beira da estrada significava para os mesmos, o que levou a família a botar aquele objeto para delimitar óbito, e qual o sentido dos que se encontram nessas cruzes. Para finalizar, falamos do significado da cruz e de seus objetos.

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CAPITULO I

MORTE EM VIDA: A CONSCIÊNCIA DO MOMENTO DERRADEIRO

A morte é um assunto peculiar que causa inquietação e curiosidade no homem, pois desde muito tempo esta foi pensada e vista de várias maneiras, despertando, assim, a imaginação e o pavor. Por saber que existem fatores- o local de habitação, cultura e práticas religiosas- que influenciam o comportamento do homem diante da morte, procuraremos entender, a priori, um pouco das influências que o homem recebeu, ao longo do tempo, para poder compreender suas condutas mais atuais.

Nesse viés, em nosso primeiro capítulo trataremos de entender, de uma forma diacrônica, as atitudes do homem diante da morte. Faremos uma análise desse assunto com base em estudos sobre o homem e a morte, visando uma perspectiva ocidental, primeiramente, para posteriormente tratarmos do homem seridoense. Escolhemos como ponto de vista o homem ocidental por ter conhecimento das influências que os seridoenses e, conseqüentemente, os jardinenses sofreram desde o período colonial. O nosso intuito será perceber como se deram essas práticas de pós-morte para compreender o imaginário jardinsense a respeito da morte.

1.1- A representação da morte para o homem e seus rituais

O primeiro dado da morte para o homem é a sepultura, que nos mostra como sendo a primeira preocupação com os mortos. Os primeiros a fazerem as sepulturas foram os homens pré-históricos, os neanderthalensis, que conta Pittard, não eram homens tão brutos, como se pensava, pois estes deram sepulturas aos seus mortos (PITTARD apud MORIN, 1970, p. 23).

Desde os tempos “primitivos”, os grupos não abandonavam seus mortos sem rituais de sepultamento. Esses acreditavam na importância que deveria dar aos rituais, principalmente aos que eram oferecidos para aqueles que descansavam em seu sono de morte. Ritos funerários também tinham importância até mesmo para os que lançavam os corpos dos defuntos ao mar: “embora os Koriaks do Leste siberano lancem os mortos ao mar, estes são confiados ao oceano, não desprezados” (MORIN, 1970, p. 25). Assim como os que lançavam corpos ao mar, a prática de canibalismo e endocanibalismo eram atos que tinham significado maiores do que se imagina, pois, segundo Morin, “praticado desde a pré-história, existe ainda em inúmeras populações arcaicas, (...) o exocanibalismo e o endocanibalismo têm ambos significados mágicos: apropriação das virtudes do morto” (1970, p. 62-63). Podemos notar

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que até mesmo as antigas civilizações que lançavam corpos ao mar, praticavam endocanibalismo e exocanibalismo, faziam isso porque acreditavam que seria a melhor forma de entregar o morto. Ou seja, já havia uma preocupação ou, melhor dizendo, uma importância para com o morto, e isso nos leva ao assunto do pós-morte, que veremos posteriormente. A tratar de ritos funerários ou de sepultamento, podemos ressaltar também o cuidado que o homem tinha com o corpo do defunto, sendo assim, nota-se que havia uma preocupação com a crença sobre o pós-morte, pois, segundo Muniz, “a ritualização da morte é um caso particular da estratégia global do homem contra a natureza, feita de interdições e concessões. Por isso, a morte não foi abandonada a si mesma e à sua desmedida, mas ao contrário, aprisionada em suas cerimônias, transformada em espetáculo” (MUNIZ, 2006, p. 163).

Quanto mais o homem tinha a noção do que era a morte, ou que se tratava do final da vida, mais a temia, e assim criava expectativas de uma vida pós-morte para ajudá-lo a superar o trauma. Morin nos explica melhor o que seria a compreensão da morte para o homem e como ele reage sobre isso: o triplo dado antropológico é a afirmação da individualidade que rege de forma simultaneamente global e dialética a consciência da morte, o traumatismo da morte, a crença na imortalidade(MUNIZ, 2006, p. 34). Assim, pode-se observar que essas três etapas se tratam de um entendimento do que venha ser a morte para o homem; de um trauma posterior a esse entendimento, uma vez que se trata do final da vida; e, por fim, a crença na imortalidade que é onde o homem se apoia para superar o que venha ser esse traumatismo, que se dá porque a consciência do falecimento é o mesmo que a perda da individualidade1 e a força da aspiração à imortalidade é função da consciência da morte e o traumatismo desta que causa no homem (MUNIZ, 2006, p. 34).

O momento final da vida é algo que deve ser pensado com cuidado, pois se trata de um assunto sobre o qual não se pode ter certeza de nada, muito menos do que venha ser uma continuação da pós-morte. Entretanto, muitas pessoas acreditam em teorias que as fazem pensar na imortalidade da alma. Assim, tornava mais fácil uma possível aceitação desse acontecimento. Essas teorias de morte e como lidar com elas mudam de acordo com o lugar, cultura, religião. Entre outros fatores, as crenças sobre morte mudam com o homem, assim como o homem muda com o lugar. O homem evolui de acordo com seu habitat. Ele cria técnicas para sobrevivência, muda a natureza e a natureza muda ele. Tanto tem da natureza no homem quanto tem do homem na natureza. Com isso, podemos ter o entendimento do que seja um lidar com a morte, como diz Morin

1 Individualidade é o que Morin chama o individualismo do ser humano, do indivíduo. É a parte pensante do

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O mais importante não é a tendência para despojar a morte do seu carácter de necessidade: é antes o assombro sempre renovado, provocado pela consciência da inelutabilidade da morte. Todos podemos verificar, como Goethe, que a morte de um ente chegado é sempre “incrível e paradoxal”, “uma impossibilidade que se transforma bruscamente em realidade” (Eckermann); e esta surge como um acidente, uma punição, um erro, uma irreabilidade (MUNIZ, 2006, p. 59).

Além do trauma do que venha ser o final da vida para o homem, Morin citando Goethe, destaca como vimos acima, que a morte de um ente próximo também é uma causa que pode vir a ser tido como uma grande perda. Àries compara a morte como um fator dilacerador, pois “arranca o homem à sua vida quotidiana, à sua sociedade racional, ao seu trabalho monótono, para submeter a um paroxismo e o lançar então para um mundo irracional, violento e cruel” (1989, p. 44).

Mesmo sabendo que a morte é um assunto misterioso, do qual não se pode saber nada sobre o que venha acontecer com a sequência do pós-morte, o homem ainda estuda e tenta desvendá-la, porque este é um ser que não se satisfaz por completo com teorias religiosas, tendo, como intuito, saber o que de fato acontece. No entanto, isso não é possível e, mesmo assim, o homem persiste desde muito tempo. O que chega a diferenciar, intimamente, este dos outros animais, é o conhecimento do risco de morte e o horror dela. E, mesmo assim, ele tenta de todo jeito procurar uma forma de superar o fator que venha a ser esse acontecimento ou, pelo menos, se adaptar a ela. Morin fala do homem como ser, diz que este “corresponde exatamente ao fenômeno de regressão dos instintos específicos, que encontramos constantemente no nosso caminho” (1970, p. 79); ele faz uma ligação entre o homem e seu antepassado. Dentre os animais, o ser humano foi o único na qual teve que aprender não somente o que é propriamente humano (falar, lidar em sociedade), como também aquilo que é conhecimento dos outros animais (andar, nadar, copular, parir, etc).

Assim, podemos notar que o ser humano é ajustável, onde aprende a se adaptar ao seu meio. Ele cria formas e jeitos de viver de acordo com o lugar que habita e os seres que o rodeiam. Com o fator morte não foi diferente, o mesmo já foi criando formas de se manter sobre isso: foram inventadas (como vimos, desde o homem pré-histórico) sepulturas, rituais de sepultamentos, crenças e até mesmo vida dupla do ser humano, que se apoia em um fator que divide o ser vivo em corpo e espírito (sendo este ultimo tido como duplo2). A crença na imortalidade da alma o ajuda a superar o trauma que seria a morte, assim como a crença na

2 Chamaremos o espírito do ser humano de “duplo”, pois assim o chama MORIN (1970), ARIÈS (1989) e

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sobrevivência pessoal sob forma de espectro, que é um meio pelo qual o indivíduo exprime a sua tendência a salvar a sua integridade para além da decomposição (MORIN, 1970, p. 125). O valor dado ao duplo é um acontecimento universal e pré-histórico.

O homem não acredita apenas na imortalidade da alma, mas, sim, no poder da alma. Os mortos são como deuses, têm poder e força sobre alguns homens. Os homens os deram essa força a partir do momento em que começaram a acreditar nessa teoria. Como bem já foi posto, o duplo vive integralmente como um vivo e não morre com a morte carnal deste. O que morre é o corpo e não o espírito. O duplo se encontra frequentemente na vida do mortal. “Na origem, os espíritos não abandonam o espaço dos vivos. Estes sentem-nos onipresentes: a atmosfera está impregnada de espíritos” (MORIN, 1970, p. 129). Sendo assim, desde muito tempo, e até hoje ainda se acredita, que o duplo tem as mesmas necessidades dos vivos, como alimentação, bens materiais e atenção.

Existem várias teorias para o que venha ser o significado da aparição do morto para o vivo. Mesmo assim, o homem teme que essa aparição aconteça. Acredita-se que o duplo, sendo esquecido, pode aparecer para o vivo lhe pedindo orações para a salvação e paz de sua alma. O temor ao espírito também acontece porque, desde a cultura eclesiástica da Idade Média, acredita-se que, quando o morto aparece para o vivo, é sempre para levar um próximo contigo ou para adivinhar o futuro. Schmitt, em seu livro, fala sobre trocas de cartas entre Agostinho3 e Evódio4; nas quais Evódio conta para Agostinho que “as aparições dos mortos não causariam nenhuma dúvida, elas parecem mesmo muito numerosas e teriam por função anunciar acontecimentos futuros, que se realizam efetivamente” (SCHMITT, 1999, p. 34). No entanto, Agostinho se nega a aceitar a possibilidade de contatos entre mortos e vivos, pois este tende a banir toda forma de culto material dos mortos (religiões cristãs irão tomar como referência as idéias de Agostinho sobre negar a possibilidade de haver contato entre os vivos e o mundo espiritual dos mortos).

O homem é um ser paradoxal, pois se presta a orar para não apagar da memória o ente querido que falecido. E, ao mesmo tempo, se põe a rezar para aqueles que morreram, porque acredita que se livrará dessas aparições, na qual causam horror. Schmitt fala como era necessário ressaltar em que esses sinais do homem com o morto eram dúbios:

3 Bispo de Ipona, Agostinho (354-430) era fundador da teoria cristã dos fantasmas, na qual acreditava que o que

aparecia para o homem não era o corpo, nem a alma, como pensavam, mas sim uma espécie de “imagem espiritual” do homem que era introduzida pelos demônios dos espíritos dos homens (SCHMITT, 1999, p. 33).

4 Evódio era mais jovem que Agostinho, e também se converteu em Milão. Evódio seguiu, posteriormente,

Agostinho em Roma e em Tagasta, da qual se tornou um dos primeiros monges, antes de ser bispo de Uzális, perto de Utica (SCHMITT, 1999, p. 34).

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Portanto, é preciso sublinhar a que ponto os sinais eram ambíguos, a que ponto a memória era, como uma forma de memória coletiva, uma técnica social de esquecimento. Tinha por função “esfriar” a memória sob o pretexto de mantê-la, apaziguar a lembrança dolorosa do defunto até que se esfumasse. Técnica classificatória, ela punha os mortos em seu lugar de mortos, para que os vivos, se porventura se lembrassem de seu nome, pudessem fazê-lo sem temor nem paixão (SCHMITT, 1999, p. 20).

Debater sobre o homem e a morte é algo complexo e, ao mesmo tempo, curioso, pois se trata de um assunto que gerou/gera várias dúvidas desde muito tempo. A compreensão do que é a morte e o segmento do pós-morte, para o homem, nesse decorrer do tempo, nos ajudará a entender o comportamento atual e suas crenças sobre a morte e até o nosso objeto de pesquisa, as cruzes que delimitam óbito em Jardim do Seridó/RN, e o que os jardinenses pensam sobre isso. Mas deixaremos esse assunto para mais adiante.

1.2- A morte no Medievo

Para falar do homem e seu comportamento diante a morte, deve-se falar do período medieval, pois “desde a época romântica, continuada pela literatura e pelo cinema fantásticos até a história em quadrinhos contemporânea, os fantasmas fazem parte do cenário obrigatório da Idade Média de castelos mal-assombrados, de dragões, de fantasmas ou mesmo de vampiros” (SCHMIT, 1999, p. 16). Ou seja, segundo Schmitt, podemos notar que a Idade Média foi o período que se popularizou a ideia de fantasmas e assombrações, tanto pelo imaginário medieval, quanto pelo cenário de castelos e lugares obscuros.

A Idade Média é o período certo para começar se discutir o que venha a ser aparições dos mortos para os vivos. O que mais se debate entre historiadores e estudiosos, que trabalham com a morte, é o sonho: este é o caminho mais estreito de contato entre vivos e mortos. No sonho o duplo aparece de forma fiel, de como era antes, para o vivo. As visões que os vivos têm dos mortos mudam de acordo com suas crenças, como já foi citado. Schmitt, a respeito desse assunto, diz que

O imaginário da morte e da evolução dos mortos no além constitui universalmente uma parte essencial das crenças religiosas das sociedades. Ele adquire formas diversas mas muito amplamente atestadas, entre as quais as visões e os sonhos ocupam sempre um lugar no primeiro plano. (...) Alhures, seres de exceção, como Cristo ou, depois dele, os santos do cristianismo, teriam tido o poder de ressuscitar os mortos. Universalmente,

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está presente também o que se costuma chamar de “crença nos fantasmas5 (SCHMITT, 1999, p. 15).

A cultura eclesiástica, desde a Alta Idade Média, não aceitava esse contato entre vivos e mortos. Recusava, persistentemente, mas não desprovia de ambiguidade e de contradição, pois admitia a possibilidade de retorno, na ressuscitação do morto, como vimos acima. Por abominar o contato entre vivos e mortos, o Cristianismo começou a considerar a necromancia6 como espécie de magia negra e invocação do Diabo, pois se tratava de práticas pagãs. A única exceção de contato entre vivos e mortos que o cristianismo aceitava valia para o corpo dos santos e seus túmulos, pois considerava esses reservas de poderes milagrosos (SCHMITT, 1999, p. 27).

Na atualidade, ainda há a prática de necromancia, ou seja, a comunicação com os mortos, que pode ser considerada como magia negra, pois o morto, que descansa em paz, não volta a aparecer aos vivos, ficando encarregado de aparecer às pessoas que praticam a necromancia apenas as almas malignas. Acredita-se que os espíritos que aparecem são os que, em vida, não cumpriram os sufrágios aos clérigos ou suas penitências completas, sendo esses conhecidos como almas malignas. Os duplos que ficaram em dívida foram “vítimas de uma morte violenta que tentam vingar-se, almas maculadas que vagam na proximidade de seu túmulo, mortos sem sepultura (insepulti), suicidas (biothanati), mulheres mortas no parto” (SCHMITT, 1999, p. 28). Ou seja, as almas funestas7 são aquelas que morreram subitamente e não tiveram tempo de pagar todas as suas penitências. Esses espíritos aparecem para cobrar alguma coisa a alguém ou para se vingar.

Partindo disso, podemos entender as cruzes que delimitam o óbito. Essas cruzes são geralmente postas próximo ao lugar em que se deu a morte. Quem faz isso são os familiares do morto, acreditando ser esse ato uma forma de não ficar em dívida com a alma. Quem também pode botar essas cruzes são pessoas próximas do jacente, que o fazem como forma de prestar serviço àquela vida que teve sua morte tão inesperada. As cruzes têm como intuito induzir orações aos que por ali passam para o jacente, especialmente porque o defunto havia falecido de forma súbita, sem ao menos preparar suas preces para a redenção dos pecados. A cruz é um símbolo adotado pelo Cristianismo, que representa morte, pois Jesus morreu na

5 A respeito de “crenças nos fantasmas”, SCHMITT deixa uma nota de fim de texto, dizendo: “A bibliografia,

especialmente etnológica, dos fantasmas é imensa. Ver, por exemplo: H. R. E. DAVIDSON E W. M. S. RUSSELL, The folklore of ghosts, Cambridge: Folklore Society, 1981. Indispensável perspective historiográfica: “Le retour des morts” (dir. D. FABRE), Ethnologie rurale, nº105-6, 1987. (...)

6 Ato de prever o futuro por meio de comunicação com espíritos. 7 “Funesto é algo que causa tristeza, pode ser lamentável ou deplorável.

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cruz. Sendo assim, esses lugares da morte são marcados com as cruzes, para que possam fazer orações e ver que ali morreu um cristão.

Para o destino da alma, segundo a religião cristã, existiam dois lugares possíveis: o paraíso ou o inferno. No paraíso iam desfrutar do bom lugar aquelas almas boas, de luz; já para o inferno, lugar tão temido pelos vivos iam as almas funestas. No entanto, a partir do século XII, foi criado pela referida religião, outro possível lugar: o purgatório. Um intermediário entre o paraíso e o inferno, que não era tão ruim quanto o inferno, mas era semelhante, para que as almas pudessem pagar seus pecados e assim fosse possíveis ser salvas.

Essas referências de paraíso, purgatório e inferno, serviram para que os cristãos começassem a se preparar para a morte. O moribundo, temendo ir para o inferno, se arrependia de seus pecados em vida e pagava todas as suas penitências. Isso era uma preocupação comum entre os cristãos, que começou a se preparar para morrer, como nos conta Monteiro:

Como consequência para o tempo que envolve o momento da morte, o purgatório levou a dramatização tanto do período que o precede quanto daquele que se segue. Para a sua obtenção, seria necessário que a penitência tivesse sido iniciada ou, pelo menos, a confissão, ou ainda, no mínimo, uma contrição sincera, de modo que a atitude do pecador no momento de sua morte assumia uma importância capital e dramática. O último instante passaria a ser de suma importância para o moribundo que, sentindo-se inseguro de ir diretamente para o Paraíso, teria a possibilidade de conseguir ainda nesse instante a salvação através da expiração de suas culpas (2013, p. 29).

Além da criação do purgatório, também foi personificada e propagada à figura do diabo, que contribuiu ainda mais para a construção de um “imaginário do medo” (MONTEIRO, 2013, p. 29). Por se tratar de um ser religioso, o homem, por temer ao que possa ser o diabo, purgatório e inferno, fazia de tudo para que seu fim não fosse com eles. Com isso, as preparações para uma forma de “bem morrer” eram importantes, pois se o morto passa para o outro mundo feliz e plenamente, ele poderá interceder pelos vivos junto a Deus, inclusive facilitando-lhes a futura incorporação na comunidade dos mortos. Daí terem as pessoas todo o interesse em cuidar bem de seus mortos, assim como da própria morte.

A morte, no período medieval, era um acontecimento tido como natural e esperado. As pessoas tinham conhecimento disso e poderiam até sentir quando fossem morrer, o que fazia com que tivessem consciência e começassem a se preparar para a hora chegada. A respeito daqueles que morriam inesperadamente, existia certo receio e alguns até evitavam falar sobre isso, pois, como a morte era algo natural e até planejado, temiam morrer subitamente e não

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terem tempo de fazer seus pedidos de perdão e preparação para se redimir de seus pecados. Para fazer alusão às pessoas que se preparavam e esperavam a morte, como algo natural, Ariès, no livro “Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média”, cita a história de pessoas, como Gaubain, o rei Ban, Tristão e Roland, na qual sentiram que a advertência da morte era feita por sinais naturais, por convicções íntimas, e não por uma premonição sobrenatural ou mágica

“Sabei”, diz Gaubain, “que já não viverei dois dias”

O rei Ban deu uma queda grave. Quando voltou a si, apercebeu-se de que o sangue vermelho lhe saía da boca, do nariz e das orelhas: “Olhou o céu e balbuciou como pôde... ‘Ah, meu Deus, socorrei-me, que eu vejo e sei que o meu fim chegou’”. Eu vejo e sei.

Em Roncesvales, Roland “sente que a morte se apodera dele (...)”. Ele “sente que o seu tempo terminou”. Tristão “sentiu que a sua vida se perdia, compreendeu que ia morrer” (ARIÈS, 1989, p. 20).

Por ser tida como natural nesse período, e tão temida nos tempos atuais, Ariès denomina o falar sobre esse acontecimento, no período da Idade Média, como a morte domesticada8, pois tanto faz referência à naturalidade com que esse caso era para o homem medieval, como também faz menção ao fato do falecimento ser esperado na casa do moribundo, mais precisamente em seu quarto, sendo tido como um evento popular entre os presentes que acompanhavam aquele que estava prestes a se encontrar com a sua morte. A respeito dessa naturalidade com a que esperavam a morte, como nos diz Reis:

Entre a Idade Média e meados do século XVIII, aproximadamente, predominou no Ocidente católico, e na França em particular, uma relação de proximidade entre vivos e mortos. Foi o período que ele denominou de “a morte domesticada”. Parentes, amigos, irmãos de confraria e vizinhos acompanhavam no quarto dos moribundos seus últimos momentos e, a partir do século v, os enterravam nas igrejas que freqüentavam ou em cemitérios contíguos absolutamente integrados à vida da comunidade (1999, p. 73).

As pessoas temiam a morte, mas, ainda assim, acreditavam que era algo natural, pois sabiam que uma hora ou outra esse momento chegaria. A morte não era temida desde que desse tempo para se preparar todos os seus ritos funerários e a remissão dos pecados, como já foi citado. O que se temia era a morte repentina, sem aviso e preparação. Havia várias formas de se preparar para a morte. Uma das mais conhecidas eram os testamentos, cartilhas escritas que as pessoas deixavam, com certa antecedência, para demonstrar como queriam que seus familiares ou amigos fizessem com seus pertences e seu corpo, após a morte. A se tratar dos

8 “A morte domesticada” foi uma expressão usada por Ariès para denominar seu primeiro capítulo do livro

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ritos fúnebres, também existia todo o cuidado que os vivos deveriam ter com o morto, para que sua alma não representasse perigo espiritual. Segundo Reis,

Tais ritos eram experimentados por vivos e mortos de maneira a marcar com ênfase a passagem para o outro mundo. Em Paris, em 1625, 345 irmandades cuidavam com desvelo dos funerais e das missas pelas almas dos associados. Os ricos, sobretudo, inspirados na morte dos soberanos, faziam de seus funerais e missas fúnebres um espetáculo de ‘profusão barroca’, (...) O funeral barroco se caracterizava pela pompa: o luxo dos caixões, dos panos funerários, a quantidade de velas queimadas, o número de participantes no cortejo- de padres, pobres, confrarias, músicos, autoridades, convidados-, a solenidade e o número das missas de corpo presente, a decoração da igreja, o prestígio do local escolhido para sepultura (1999, p. 74).

Os ocidentais no período da Idade Média, tinham seus rituais e suas preparações para a hora derradeira da vida. O moribundo se mantinha em pleno estado simples, observador de sinais e de si mesmo. Nesses rituais de partida9 eram feitas orações, acompanhadas de confissões entre o homem e o divino, arrependimentos e perdão. As pessoas não tinham pressa de morrer, mas quando viam chegada a hora, sem precipitações nem atrasos, precisamente como convinha, morriam cristãmente10. Até mesmo aqueles que não eram cristãos, morriam com a mesma simplicidade. No momento da morte, havia alguns costumes que seguiam, eram “gestos que lhe são ditados por antigos costumes, gestos rituais que é necessário fazer quando se vai morrer. (...) Está estendido de tal maneira que a cabeça fica voltada para o Oriente, na direção de Jerusalém” (GUITTON apud ARIÈS, 1989, p. 22).

Antes de surgirem os cemitérios, os corpos eram enterrados em igrejas ou próximo delas, onde as sepulturas se diferenciavam e a terra consagrada era assinalada, quando muito, apenas por uma única e grande cruz para todos mortos (SCHMITT, 1999, p. 204). Mesmo assim, no período da Idade Média, pouco importava o destino do falecido, contanto que eles ficassem perto dos santos, ou seja, o destino do corpo do morto pouco importava, o que valia era entregar este à igreja, e o que ela fizesse com ele não dizia respeito à família do morto. Ariès falou que “o defunto era abandonado à Igreja, que se encarregava dele até ao dia em que ressuscitaria” (1989, p. 39). Depois de fazer os rituais funerários e entregar o corpo por responsabilidade da igreja, o que os familiares e conhecidos deveriam fazer era prestar luto ao falecido. Este ato era uma forma de mostrar sentimentos por aquele que morreu. Quanto maior o tempo de luto, maior era a dificuldade de aceitar a morte do ente querido.

9 Chamaremos algumas vezes “a hora da morte” de “partida”.

10 Expressão usada por Jean Guitton (apud ARIÈS, 1989, p. 22) para fazer alusão àqueles que morriam com

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Algumas pessoas eram enterradas nas igrejas, mas, nelas, havia uma espécie de hierarquia que dividia os lugares de enterramento de acordo com condutas sociais e religiosas. Schmitt dizia que, no Ocidente Medieval, “são excluídos da ‘terra cristã’ os não batizados (os judeus), as crianças mortas sem batismo (terão um ‘canto’ delas, equivalente terrestre do limbo das crianças do além) e os suicidas, lançados em um fosso ou entregues à corrente do rio” (1999, p. 204). Reis disse que, no Brasil do século XIX, algumas pessoas eram enterradas na igreja, entretanto, havia uma hierarquia do local e do tipo de sepultura. Mesmo assim, não eram todos que tinham o direito à sepultura eclesiástica, sendo impedidos disso os “judeus, heréticos, cismáticos, apóstatas, blasfemos, suicidas, duelistas, usurários, ladrões de bens da Igreja, excomungados, religiosos enriquecidos (se tinham profissão de pobreza), aos refratários à confissão e à extrema-unção, infiéis, e pagãos” (REIS, 1991, p. 175). O local de enterramento era dividido entre o corpo da igreja, parte interna, e o adro, a área em sua volta. Sendo essa ultima mais desprestigiada, onde se enterravam escravos e pessoas livres muito pobres, poderia ser obtida gratuitamente (REIS, 1991, p. 175).

Com o tempo, houve a acumulação de mortos nos subsolos das igrejas que se tornou acontecimento inaceitável, principalmente, no período do século XIX, com as idéias iluministas e, consequentemente sanitaristas, que ressaltavam a preocupação com a saúde pública. A lotação de corpos em igrejas, ou em seus pátios, foi se tornando algo intolerável por parte dos habitantes da região, pois era notório o ataque de doenças advindas desses entulhos de corpos, uma vez que essas doenças eram espalhadas através do ar. Foi no século XIX que houve o surto de cólera-morbo em várias regiões do Brasil. Doenças eram espalhadas decorrentes aos miasmas vindos desses corpos enterrados. A Igreja Católica e parte da população recusavam a transferência desses corpos para outro lugar, uma vez que a Igreja era um local sagrado, propício para o enterramento de seus fiéis. Mesmo assim, essas doenças deveriam ser evitadas, por esse motivo, como nos conta, Alcineia Rodrigues dos Santos, “após dizimar parte da população do Norte e do Sul do Brasil, além de aterrorizar outras tantas, os surtos epidêmicos foram utilizados pelas autoridades médicas e imperiais como forma de justificar a implementação de medidas que proibiam os costumes fúnebres” (2011, p. 114). Tendo em vista o local de enterramento, antes feito em igrejas, posteriormente sendo transferidos para os cemitérios, começa a haver uma mudança nos rituais fúnebres e na região, em seu espaço.

Partindo disso, foram criados cemitérios distantes dos centros urbanos. No entanto, com o passar do tempo, próximo desses cemitérios, foram criados bairros e periferias que se tornaram lugares de sociabilidade e comércio. Por se tratar de um lugar público, aos poucos,

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esses cemitérios foram se transformando em lugares de promiscuidade. Conta-nos Ariès, sobre os cemitérios, que

Neste asilo intitulado cemitério- quer servisse ou não de local de sepultura-, foi também decidido construir casas e habitá-las. O cemitério designou então, senão um bairro, pelo menos um grupo de casas que desfrutavam de certos privilégios fiscais ou dominiais. Por fim, este asilo torna-se um local de encontro ou de reunião, como o Forum dos Romanos, a Piazza Maggiore ou o Corso das cidades mediterrâneas, para se fazer comércio, para se dançar e jogar, ou, muito simplesmente, para o prazer de conviver. Ao longo dos ossários instalavam-se por vezes lojas e mercadores (1989, p. 29).

Sendo algo comum em sociedades tradicionais- na qual não havia uma separação radical, como vemos nos dias atuais, entre a vida e a morte, o sagrado e o profano, entre a cidade dos vivos e a morada dos mortos- o cemitério e as igrejas serviam também de pontos de encontros entre a população. No entanto, a partir do final do século XVII, as pessoas começaram a notar que esse tipo de comportamento era algo intolerante da parte dos vivos para com os mortos (ARIÈS, 1989, p. 30).

A datar do século XVIII, na França, com o Iluminismo, a atitude das pessoas, com relação ao pensamento social e religioso foi mudando e, com isso, suas formas de reagir perante a morte também mudaram. “Os funerais foram se tornando mais econômicos, menos barrocos. O ritmo de mudança foi variando de região para região. (...) Os homens mudaram o comportamento diante da morte e também diante dos mortos” (REIS, 1991, p. 74). Isso nos mostra como formas de pensamento e ações foram mudando em cada região. Em compensação, as pessoas começaram a ter uma percepção diante da morte do outro11. Essa percepção tem início com as transformações do século XVIII, onde o homem ocidental dá à morte um sentido novo. Isso é visto, principalmente, nos livros, nas peças de teatro, onde o sentido da morte é exaltado, dramatizado, comovente. Fazem dela algo impressionante e dominador. Era uma morte romantizada, em dimensão literária, no entanto, esse sentimento de perda só poderia ser exaltado de forma privada, no cotidiano íntimo. Com isso, o homem passa a se preocupar menos com sua morte e começa a dar importância à morte do próximo, que passa a ser percebida como uma morte retórica, em que as lamentações e saudades influenciarão no comportamento dos séculos XIX ao XX no culto novo dos túmulos e dos cemitérios (ARIÈS, 1989, p. 43).

11 ARIÈS (1989), no livro “Sobre a Morte no Ocidente desde a Idade Média” denomina “a morte do outro” como

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Também no período do iluminismo, século XVIII, desenvolveram uma atitude hostil à proximidade com o moribundo e o morto, na qual os médicos começaram verificar uma redefinição das noções de poluição ritual: pureza e perigo agora se definiam a partir dos critérios médicos, mais do que religiosos. Por questões de saúde, foi recomendado que afastassem os cemitérios dos centros urbanos e que houvesse uma proibição no ato de enterramento em igrejas. No início do século XIX há uma mudança nos cemitérios e túmulos. Reis nos diz que

Em 1803, um novo decreto estabeleceria detalhadas regras de enterro, reafirmando a proibição de sepulturas dentro das igrejas, abolindo as covas comuns, ordenando a distância entre os cemitérios e a cidade, e a distância entre as sepulturas dentro dos cemitérios. O fim das covas comuns representou, segundo Ariès, “uma ruptura completa com o passado”, embora por uma questão de economia de espaço se continuasse a utilizá-las em alguns lugares, mas sempre com os cadáveres acondicionados em caixões. Assim, na França, durante a primeira década do século XIX se montou o modelo básico de sepultamento que vigoraria até final do século. Este modelo que inspiraria nossos reformadores cemiteriais (1991, p. 78).

Com isso, o deslocamento dos cemitérios para fora dos centros urbanos foi possível porque foi notória a intenção de boa forma da higienização para a população. Vale ressaltar que essas reformas cemiteriais e de sepultamento também aconteceram no Brasil, como nos explica Reis

A exemplo do que já ocorrera na França havia muito, o governo português, em 1835- observem a coincidência cronológica com a Bahia-, baixou uma lei proibindo os enterros nas igrejas e instruindo as autoridades locais a construir cemitérios fora dos limites urbanos, no prazo de quatro anos. Além disso os cadáveres deveriam ser enterrados em covas individuais, e os padres que permitissem enterros fora dos cemitérios públicos perderiam seus empregos. A lei também indicava as administrações municipais como responsáveis pela cobrança das taxas de enterro ou “de covato”. Essa lei nunca foi respeitada pela população- nem mesmo em Lisboa-, que prosseguiu enterrando nas igrejas e cemitérios paroquiais. Segundo Mello Ferreira, as câmaras municipais escreviam ao governo central pedindo o adiantamento da execução da lei por falta de fundos para a construção de novos cemitérios, mas na verdade estavam cedendo à pressão popular ou, como diziam, “à repugnância dos povos” em relação às novas medidas sanitárias (1991, p. 85).

Existia essa tentativa de afastar os cemitérios dos lugares urbanizados, por parte da população, pois o imaginário das pessoas mudava, já que estes começaram a acreditar que a presença dos cemitérios fosse necessária à cidade, uma vez que, enquanto estavam perto dos seus mortos, não os esqueciam. Havia o hábito de visitar os cemitérios, porque acreditavam que isso era uma forma de recordar o morto. Essa prática era tão normal quanto ir à igreja.

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Com isso, houve uma mudança, tanto na concepção das pessoas, quanto no cenário da morte. Se o momento final da vida, até o século XIX, é visto como algo natural, como já foi citado, deste século em diante o moribundo é poupado da sua notícia de morte, os parentes se resguardam a lhe dar essa notícia. A morte não é mais vista como um fator natural da vida, mas, sim, como algo que é temido. Começam ser motivados de mentir a respeito da hora da partida, pois acreditavam que isso poupava o doente que estava para morrer.

A partir do século XX, tem início a outra transformação no lugar de morrer. Entre 1930 e 1950, a transferência do lugar da morte se dá para o hospital, uma vez que era nesse lugar que proporcionavam cuidados que não eram mais viáveis em casa. “Não se morre em casa, no meio dos seus; morre-se no hospital, e só” (ARIÈS, 1989, p. 56).

O sofrimento de perder o ente querido que faleceu, recentemente, deveria ser sentido em particular. Ser visto sofrendo por uma perda causava repúdio nas pessoas, o inverso de piedade, o que seria mais esperado. "Ninguém tem o direito de se emocionar senão em privado, isto é, às escondidas" (ARIÈS, 1989, p. 57). Ariès faz uma comparação, citando Gorer, em que “o luto solitário e vergonhoso é o único recurso, como uma espécie de masturbação” (1989, p. 56). O desgosto que a morte causava em uma pessoa era visto pelos demais como um sentimento desprezível. Sofrer com a morte de alguém era algo vergonhoso, não podendo ser exteriorizada entre os demais, sendo reservada para o privado. Por esse motivo, como vimos anteriormente, o luto era comparado à masturbação.

1.3-A morte e suas representações no Seridó

Um lugar da América desconhecida para os europeus que procuravam por riquezas, no final do século XV e início do XVI. Território tropical, de nativos que fizeram com que os portugueses vissem este lugar como o paraíso terrestre. É notório que as próprias descrições iniciais das novas terras eram muito semelhantes das narrativas bíblicas sobre o paraíso do Jardim do Éden. No entanto, essa visão de paraíso não durou muito, pois a estada dos portugueses, nessa terra, e o contato com as asperezas das alteridades transformaram gradativamente essa ideia de paraíso em inferno. Com a mudança da visão, de paraíso para inferno, chegando até a comparar a Terra de Santa Cruz, como assim o chamavam, com o purgatório na terra, os cristãos começaram a pensar nesse espaço como um lugar de salvação. Essa ideia fez com que os portugueses fizessem da Terra de Santa Cruz um abrigo para os exilados de Portugal (OLIVEIRA, 2010, p. 2).

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Como já foi citado, o homem se preocupava com a morte desde muito tempo e dava significado para ela, variando de acordo com a região, cultura e religião. O entendimento de morte, para este, teve suas diversas vertentes em todos os lugares, e no Seridó não foi diferente. Mas, para entendermos o comportamento do homem diante da morte, devemos ter conhecimento do que os motivava a isso, como, por exemplo, em quê consistia sua cultura, sua religião.

Desde o período da colonização, a América portuguesa recebe influências européias e da sua cultura cristã. Sua população, em grande maioria, era adepta da religião católica, com isso, seguiam os preceitos católicos a respeito do morrer. Desta forma, podemos fazer uma ligação com o que já foi citado e o ponto de vista da historiadora Alcineia Rodrigues dos Santos, que nos diz

(...) as atitudes das populações da Idade Média perante o ato de bem morrer estão presentes nas representações acerca da morte da população seridoense, a qual também buscou a salvação de sua alma por meio de rituais de absolvição das faltas terrenas. O entendimento dessas práticas ligadas à boa morte foi motivado por significações culturais condicionadas pelo catolicismo, processadas por meio de uma construção social e reformas pelo processo de circularidade cultural (2005, p. 49).

Desta forma, são notórias as heranças culturais que o Brasil recebeu de Portugal, e de parte da Europa, compondo um procedimento semelhante ao deles no que diz respeito ao imaginário e suas formas de se comportar perante à morte. Sob influências européias, os “brasileiros” também começaram a exprimir-se por meio de testamentos, assim como também temiam a morte súbita, pois não tinham como se preparar para recebê-la e resolver todas as suas penitências. Como já foi exposto sobre o testamento, eles serviam como forma de deixar por escrito planejamentos e todas suas vontades e anseios sobre a morte. Esses testamentos eram ideias da Igreja Católica, como Monteiro diz

A igreja influenciava os fiéis na prática de redigir testamentos e com isso as pessoas viam nesse documento uma oportunidade a mais de tentar a salvação, muitos escolhiam seus “advogados” entre os santos. Deixavam parte de suas fortunas para os mais pobres, como forma de mostrar solidariedade; também encomendavam inúmeras missas fúnebres (2013, p. 31).

Essa ideia de boa morte servia tanto para a cultura cristã européia quanto para os “brasileiros”, que tentavam poupar seus espíritos do purgatório e da ideia de inferno. Esse entendimento consistia na preparação da escritura do testamento para pedidos de orações, missas, doações para a igreja e os necessitados, reconhecimento de filhos, libertação de

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escravos (SANTOS, 2006, p. 105), ou seja, isso servia para que o morto não ficasse com nenhuma dívida e que fosse possível ser feitas ações de caridades, com o intuito de alcançar a salvação da alma e, consequentemente, a garantia no paraíso.

Esses testamentos eram documentos de cunho jurídico-civil e eclesiástico, uma vez que eram feitos em cartório e recomendados pela Igreja Católica. As informações nas que possuíam os testamentos eram de caráter social, cultural, religioso, econômico, político, administrativo, pois era através destes que o indivíduo dispunha seus bens e vontades. Por ter esse valor, os testamentos servem como documentos históricos que nos fazem entender um pouco de como era formado o imaginário das pessoas da época a respeito da morte e como eles reagiam diante disso. Ainda citando Santos, que fez um estudo sobre o imaginário, atitudes e ritos fúnebres do Seridó nos séculos XVIII e XIX, tendo como base registros paroquiais de óbitos e testamentos da Freguesia de Sant’Ana do Seridó12, podemos entender melhor a respeito desse imaginário quando ela diz que com base em

(...) Análise documental traduziu que o seridoense tinha um extremo cuidado com os perigos que a morte poderia levar para o outro mundo. O temor da passagem para a vida além da morte e o medo de um destino incerto moveu muitos seridoenses a lavrarem seus testamentos, dando uma nova orientação a sua vida terrena. Inquietações materiais e/ou espirituais se faziam presentes nesse momento, atitudes imersas em significações culturais e eminentemente religiosas (2006, p. 59).

A elaboração da cartilha testamentária era de suma importância para a preparação do morto na sua ida espiritual ao paraíso. Por isso, conta Santos,

Esses documentos nos revelam muito acerca dos desejos que o sertanejo tinha para com a morte e seu destino derradeiro. Os testamentos traziam elementos especialmente direcionados à salvação: pedidos de intercessão; deliberação sobre os rituais fúnebres; determinações sobre o que fazer com seus bens, especialmente as doações pias, além de uma prestação de contras de seus atos (2009, p. 1).

Esses testamentos tinham como intuito fazer com que o moribundo pudesse participar de seus preparos fúnebres e declarasse suas vontades e anseios. A preparação do testamento servia para ajudar na organização de uma boa morte. Ao primeiro sinal de enfermidade, o pecador já cuidava com os preparativos dessa cartilha, pois os ritos fúnebres serviam para que houvesse a preparação do morto para o pós-morte. Esses testamentos eram elaborados na

12 SANTOS (2005, p. 46) nos fala sobre a Freguesia de Sant’Ana do Seridó citando palavras de Olavo de

Medeiros Filho (1983, p. 3), onde o mesmo descreve esse território como sendo “outrora representado pela Freguesia da Gloriosa Senhora Sant’Ana do Seridó –criada no ano de 1748 –compreendida, na sua extensão, áreas pertencentes às então capitanias da Paraíba e Rio Grande do Norte”.

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presença de amigos e familiares para que estes últimos ajudassem na organização dos funerais. Como já foi citado, o que mais se temia era a morte súbita, sem aviso prévio, que levava a pessoa sem que esta pudesse se preparar anteriormente.

Práticas de sepultamentos dentro das capelas faziam parte das formas de bem morrer descritas em testamentos. Como já vimos acima, isso foi um ato herdado dos católicos ocidentais, que enterravam seus mortos nas igrejas ou capelas. Escolhiam esses lugares pois acreditavam que conseguiam a salvação com o auxílio de proteção celestial, uma vez que as igrejas e capelas mantinham missas e orações frequentemente com padres e devotos. Esses anseios de lugar do sepultamento eram expostos em testamentos pelos próprios seridoenses antes de morrer, como mostra Santos,

Em praticamente todos os testamentos, encontramos recomendações em que o indivíduo rogava a seus parentes e testadores o cumprimento de suas ultimas vontades esperando encaminhar os negócios de sua salvação e aspirando que sua alma fosse conduzida segura a Glória para que foi criada (2011, p. 95).

A escolha do local de sepultamento era importante, pois significava que o morto ia descansar para sempre ali, por isso davam grande importância para as igrejas e capelas, pois estes revelavam devoção do morto. Ainda sobre este assunto, Santos diz que as pessoas

Cultivavam esse desejo de adquirir morada eterna, os templos, até 1856, ocupados por vivos e por mortos. A cobiça da salvação era, na maioria das vezes, expressa pelo pedido de sepultamento. O testamento era um grande aliado no sentido de indicar os rituais necessários ao repouso após a morte. Não só a capela ou igreja matriz eram especificadas, mas, esssencialmente, se indicava o ponto, na nave central, onde o corpo esperaria o julgamento final, informação confirmada por meio dos obituários (2011, p. 95).

No quesito religiosidade, Souza adverte-nos que na Terra de Santa Cruz, não havia apenas traços católicos que compunham nossa cultura, mas também “traços negros, indígenas e judaicos que misturaram-se na colônia, tecendo uma religião13 sincrética” (1986, p. 97 apud OLIVEIRA, 2010, p. 2). Houve várias influências, desde o período da colonização, que compõem a cultura brasileira até os dias atuais, ou seja, “não existiam práticas rituais exclusivamente cristãs, africanas, indígenas ou judaicas no Brasil Colonial. Existiram religiosidades populares sincréticas, mestiças, onde não podiam distinguir ou separar os elementos desta ou daquela cultura” (MACEDO, 2005, p. 6).

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Com relação à morte, esses elementos tinham suas formas de preparar o morto, as quais serviram de influência para os brasileiros. As raízes influenciadoras eram vindas principalmente de Portugal e África, e, nesses dois lugares, encontramos as formas de se preparar para a morte. De acordo com Reis,

Em ambos os lugares, encontramos a idéia de que o indivíduo deveria se preparar para a morte (...). Tanto africanos como portugueses eram minuciosos no cuidado com os mortos, banhando-os, cortando o cabelo, a barba e as unhas, vestindo-os com as melhores roupas ou com mortalhas ritualmente significativas (1991, p. 90).

“A morte, além de física, é eminentemente um aspecto sócio-cultural e sua consciência é uma marca de toda a humanidade” (MUNIZ, 2006, p. 166), por isso temos conhecimento que, desde muito tempo, cada cultura ou religião tem uma forma diferente de ver a morte, cada uma à sua maneira. No Brasil, essas culturas foram se misturando e homogeneizando para criar uma cultura própria, a brasileira, que é formada de crenças e dizeres que compõem o imaginário dessa população perante a hora da partida. Seus rituais fúnebres e crenças têm por finalidade encaminhar a alma daquele que morreu para um lugar melhor: o paraíso. Esse imaginário e seus rituais diante do moribundo e da morte têm seus pontos semelhantes também. No entanto, é em cada região específica que vemos suas particularidades. Para melhor entendimento sobre o assunto, citaremos Muniz na qual nos mostra que

A morte não é um drama unicamente pessoal, mas sim o drama de uma comunidade que súbita ou lentamente vê um membro deixar de desempenhar um papel social definido. Um dos aspectos mais importantes da morte é o impacto emocional que ela causa nos sobreviventes. (...) A morte é, para a consciência coletiva, um afastamento entre o indivíduo e a convivência humana. Esta separação tem um caráter temporário e pretende fazer com que o morto passe da sociedade palpável dos vivos à sociedade invisível dos ancestrais (2006, p. 166-167).

De uma forma ou de outra, esses rituais de despedida dos vivos para com os mortos servem para mostrar o quanto o vivo se importa com o jacente, como ele dá relevância para aqueles que já não estão mais presentes. Essa importância da produção fúnebre, e suas festas, que interessava aos vivos, explica Reis, serviam para expressar suas inquietações e para que fosse possível dissipar as angústias. O mesmo nos conta também que “não houve região no Brasil que não conhecesse esses funerais sem lágrimas” (1991, p. 138). Ao mesmo tempo, esses rituais fúnebres servem para nos mostrar que, antes de tudo, eram para os vivos e não somente para os mortos que serviam, pois toda essa preocupação e preparação para o enterro convinham como uma forma de despedida final que o vivo tinha com seu ente querido.

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Como já foi citada acima, a cultura brasileira é formada por uma mistura cultural de e o cenário religioso esteve presente, porque foi convergente na construção do imaginário e é responsável por fazer ver e agir de algumas condutas sociais. Para compreender comportamentos brasileiros, e seus hábitos sobre a morte, temos que entender também o campo religioso, porque “o brasileiro é marcadamente religioso e isso reflete em sua vida cotidiana, na capacidade de expressão de múltiplas formas de fé religiosa, de modo que suas condutas e crenças religiosas constituem parte fundamental no ethos da cultura brasileira” (ANDRADE, 2009, p. 108).

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CAPÍTULO II

BENZA ÓH DEUS: O IMAGINÁRIO JARDINENSE A RESPEITO DA MORTE E SEUS RITUAIS FÚNEBRES

Comparemos a morte com um dia frio: para uns, aquela é bonita, e para outros, tenebrosa. A única certeza da vida é espantosa, pois representa o final de uma jornada carnal. Ao mesmo tempo, há quem veja beleza nela, história, memória que são ligadas ao morto ou a objetos que representam este.

As diversas formas de morrer dizem muito sobre a cultura, classe social, religião e o imaginário das pessoas. Enterros festivos, angustiosos, simples, suntuosos também representam os vivos e os mortos. Da mesma forma que os enterros falam sobre as pessoas, as sepulturas, o caixão e a consciência da morte representa determinado lugar. É notório que os rituais de enterramento e os locais dos mortos não são feitos basicamente para o falecido, mas sim para os vivos, pois estes últimos são quem sofrem com a perda do jacente.

Neste capítulo, falaremos da representação da morte, e seus rituais, para os habitantes de Jardim do Seridó, tendo em vista sua história, tradição, cultura, memória e rituais de enterramento para que possamos entender, posteriormente, as cruzes de beira de estrada que delimitam óbito e o significado simbólico que gira em torno delas.

2.1- Breve história de Jardim do Seridó/RN

No início do século XVI até o século XVIII, portugueses vinham em grandes levas para povoar a América portuguesa à procura de terra para a colonização da cana-de-açúcar, produto de alto valor capitalista. O plantio da cana-de-açúcar se dava principalmente no litoral da América portuguesa, lugar úmido propício para as plantações. Com a colonização, também ocorreu o povoamento do Seridó, lugar não tão favorável para a plantação da cana, mas, mesmo assim, teve sua parcela de colonizadores portugueses.

No período da colonização, conta-nos Azevedo, que José Antônio de Azevêdo Maia e Izabel Pereira Alves Maia, portugueses, não emigraram para o Brasil, mas deixaram vir os filhos: Antônio de Azevêdo Maia Júnior e Maria de Azevêdo Alves Maia. Ambos vieram por incentivo do tio, Capitão Pedro da Costa Azevêdo, que lhes arranjou casamentos entre as melhores famílias da terra, e condições sociais e políticas. Com o arranjo de casamentos, os Azevêdos migraram para o Seridó, onde compraram terras e construíram prole (AZEVEDO, 1988, p. 17).

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Antônio de Azevêdo Maia Júnior, filho de Antônio de Azevêdo Maia e Josefa Maria Valcácer de Almeida Azevêdo, casou-se por volta de 1767, com Micaela Dantas Pereira. Na década de 1760 e 1770, adquiriu através de compra ao Sargento-Mor Alexandre Nunes Maltez, de Igarassu, Pernambuco, a fazenda “Conceição”, que nomeou de fazenda “Conceição do Azevedo” (AZEVEDO, 1988, p. 20).

Como a Fazenda “Conceição do Azevêdo” ficava entre dois rios (atualmente rio Seridó e rio Cobra), a localização era propícia para a plantação e criação de gado, com isso, podemos notar que aquele era um lugar favorável para se morar. Sendo assim, foi na fazenda Conceição do Azevêdo, que Antônio de Azevêdo Maia Júnior constituiu numerosa família, e os que por ali passaram foram se alojando às redondezas da numerosa terra, com isso aumentando a população da região.

2.2- Da capela ao cemitério- local de enterramento

Como já vimos no capítulo anterior, com o povoamento dos municípios pelos portugueses, houve também a proliferação da religião católica pela América portuguesa. Com isso, deram-se início à construção de capelas, que serviam para suas orações e para o enterramento da população. Em Jardim do Seridó, a construção da primeira capela se deu pelo “fundador” da referida cidade, Antônio de Azevedo Maia Júnior.

É notória a importância da religião cristã, que faz parte da construção do imaginário “brasileiro” desde o período da colonização, e o que ajudou foi a visão que os lideres católicos tinham da América portuguesa desde que chegaram. Com a chegada dos colonizadores europeus para ocuparem suas terras, logo construíram capelas, com seu altar e santos, símbolo da religião católica, que também serviam de lugar abençoado para sepultamento. Santos fala a respeito de como era o imaginário das pessoas sobre o lugar de sepultamento, e como se dava essa escolha de sepultamentos em igreja pelos seridoenses:

Essa forma de inumação não foi propagada pela igreja necessariamente como recurso de salvação. Porém a proximidade entre mortos e vivos era conduzida com base na visão acerca do purgatório, esfera onde as almas ficariam esperando o julgamento final, rogando por orações e missas para o alívio de suas faltas. Essa intervenção espiritual, necessária para o progresso da purificação dos pecados e a ascensão ao céu, seria dada pelos vivos. Estar sepultado dentro de uma igreja era não desvincular-se do mundo dos vivos. É importante lembrar aqui que a crença no purgatório está intimamente ligada à convicção e ao desejo da imortalidade- não só à vontade de possuir a vida eterna, mas, sobretudo, à de escapar do inferno e receber as graças divinas, a ressurreição (2011, p. 95).

Referências

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