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Confissões de Ralfo: um romance de geração

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Academic year: 2021

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TELMA MARIA REMOR HILBERT

C O N F I S S Õ E S DE RALFO: UM R O MANCE DE GERAÇÃO

D I S S E R T A Ç Ã O A P R E S E N T A D A AO C URSO DE P Õ S - G R A D U A Ç Ã O EM L I T E R A T U R A B R A S I L E I R A D A U N I V E R S I D A D E F E DERAL DE S A N T A C A T A ­ RINA, P A R A A O B T E N Ç Ã O DO T l T U L O DE "MESTRE EM LETRAS". ORIENTADORA: P R O F ? D r ? T Ã N I A R E G I N A O L I V E I R A RAMOS F L O R I A N Ó P O L I S 19 90

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CONFISSÕES D E R A L F O ; U M R O M A N C E DE GERAÇÃO

TELMA M A R I A R E M O R H I L B É R T

Esta dissertação foi j u l g a d a a d e q u a d a p a r a a o b t e n ç ã o do t ítulo de

M E S T R E E M L E TRAS

E s p e c i a l i d a d e Liter a t u r a B r a s i l e i r a - e a p r o v a d a em sua forma final pelo Programa de P ó s - Graduação.

B A N C A EXAMINADORA?

V

P r o f ? D r ? M a n a Lucia de vBarros C a m a r g o C o o r d e n a d o r a do Curso de P ó s - G r a d u a ç ã o e m L i t e r a t u r a B r a s i l e i r a P r o f ? Dr? Tân^a//]legina Olivei O r i e n t a d o r a ra /Ramos W A (

P r o f ? D r ? Tânia} R,ég|_na Oliveira| Reinos

À Jb g jJiiQ L ^

P r o f ? D r ? M a r i a do Carmo Campos

_____Q i » y - < X ( b .

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P A R A M I N H A M Ã E sempre incansável em sua dedicação.

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A G R A D E C I M E N T O S

À P r o f e s s o r a TÃNIA, amiga, cuja o r i e n t a ç ã o considero ines^ t i m á v e l pela dedicação, c apacidade e confiança.

à P r o f e s s o r a ZAHIDÉ, pela o r i e n t a ç ã o intere s s a d a e v a l i o ­ sa d u r a n t e o curso.

A Secret á r i a TEREZINHA, pelo a p o i o e d i s p o n i b i l i d a d e em todas as horas.

Aos AMIGOS, em especial à I Z E T E , MARTA, S U Z A N A e ELISA- B E T H , pela solidariedade, incentivo, força espiritual.

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V

"...Tem ainda u m m i n i - p a l c o i l u m i n a d o onde este autor, v e s tido de d o u r a d o p a l h a ç a nas p e r d i d a s ilusões."

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A p r e s e n t e d i s s e r t a ç ã o é u m a t e n t a t i v a de l e i t u r a da ob r a C o n f i s s õ e s de Ralfo (uma a u t o b i o g r a f i a imaginária) de Sérgio S a n f Anna p r o c u r a n d o r e l a c i o n á - l a como t e x t o - s í n t e s e de u m a g e r a ç ã o no sentido h i s t ó r i c o de uma é poca d a t a d a - Anos

70; do e s t i l o de fazer literatura de uma geração de e s c r i t o ­ res; e de p r o d u ç ã o literária g e r a d a por um imaginário. Com esse objetivo, inicialmente, a n alisa a e s t r a t é g i a da composi ção i m a g i n á r i a da autobiografia, e a r e l a c i o n a com o c o n t e x ­ to h i s t ó r i c o e literário no período. Em seguida, t r a t a do ima g i nário c a r n a v a l e s c o na c o r r e s p o n d ê n c i a v i s ã o de m u n d o e lin­ guagem, sob a p e r s p e c t i v a t e ó r i c a de Bakhtin. Finalmente, r e ­ cupera as g e r a ç õ e s do texto, a p a r t i r das c o n f i s s õ e s p o é t i c a s e r e t ó r i c a s e x i s t e n t e s na litera t u r a do escritor.

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vii

A B S T R A C T

This p a p e r is an a t t e m p t of r e ading the w o r k C o n f i s s õ e s d e Ralfo (uma a u t o b i o g r a f i a imaginária) by Sérgio Sant'Anna, trying to r e p o r t it as a s y n t h e s i s - t e x t from a g e n e r a t i o n as to the h i s t o r i c sense of a p r e - d a t e d era -— the n i n e t e e n - seventies ; as to the litera t u r e style of a g e n e r a t i o n of writers, and as to the l i t erary p r o d u c t i o n g e n e r a t e d by a n

imaginary being. W i t h this purpose, it at first, a n a l y s e s the strategy o f the a u t o b i o g r a p h y i m a g inary c o m p o s i t i o n a n d relates it to the l i t e r a r y a n d h i s t o r i c concept of the

period. A fterwards, it deals w i t h the c a r nival like i m a g i n a r y on the c o r r e s p o n d i n g l a n g u a g e and w o r l d vision, u n d e r B a k h t i n theoretical outlook. At last, it recup e r a t e s the text

generations from the r h e t o r i c a l and poetic c o n f e s s i o n s e x i s t e n t in the w r i t e r ' s literature.

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S U M Á R I O INTRODUÇÃO ... ... . . ... ... ... 1 1. A F I C Ç Ã O DAS C O N F I S S Õ E S ... 4 1.1. Como numa A u t o b i o g r a f i a ... ... ... 4 1.1.1. Os filhos de O s w a l d ... ... . 20 1.2. Como no Carnaval ... *'... . 25

1.2.1. "A Paixão S e g u n d o Ralfo" ... ... 31

1.2.2. Uma h i s t ó r i a âs a v essas ... . 41 Notas B i b l i o g r á f i c a s ... 54 2. A S C ONFISSÕES D A F I C Ç Ã O ... ... . 57 2.1. O Sérgio das C o n f i s s õ e s ... ... ... 5 7 2.2. As Confissões no R o m a n c e . . . ... ... 61 Notas B i b l i o g r á f i c a s ... ... 6 8 C O N C L U S Ã O ... ... 69 B I B L I O G R A F I A GERAL ... ... ... 72 B I B L I O G R A F I A SOBRE O A U T O R ... ... 84 A N E X O 86

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INTRODUÇÃO

A i d é i a o r i g i n á r i a deste t r a b a l h o surgiu dentro do c u r ­ so de C u l t u r a Brasileira, m i n i s t r a d o pelo P r o f e s s o r D o u t o r Raúl Antelo. N a ocasião, p r i m e i r o semestre de 1986, i m p r e s ­ sionou-nos a f o r ç a e a o r i g i n a l i d a d e do livro S é r g i o S a n f A n n a - Confissões de R alfo (uma autob i o g r a f i a i m a g i n á ­ r i a ) . R e s u ltado desse p r i m e i r o c o n t a t o já foi sua e s c o l h a como objeto de análise p a r a m o n o g r a f i a final n a disciplina. A leitura, então, centrava-se n a p e r c e p ç ã o de u m a d e s ( a ) c r e - ditação p u r i f i c a d o r a no t e x t o dos Grandes Relatos da s o c i e ­ dade moderna. A c a r a c t e r i z a ç ã o de u m a ó t i c a s u r r e a l i s t a , p r e ­ sente e m Confissões de R a l f o , s e g u n d o n o s s a interpretação, d e s v e n d a u m á vida e uma c u l t u r a c o n t e m p o r â n e a s transf o r m a d a s e m farsas t r a g i c ô m i c a s , onde tudo que p a r e c i a real, v e r d a ­ deiro, sério ou s ólido d e s m a n c h a v a - s e no ar.

Três semestres mais tarde, o e n c o n t r o com a - P r o f e s s o r a D o u t o r a T â n i a R egina O l i v e i r a Ramos - que se t o m a r i a mais t arde n o s s a o r i e n t a d o r a de d i s s e r t a ç ã o - i n c e n t i v o u a i n d a mais a n o s s a curiosidade a c a d é m i c a e m r e l a ç ã o ao romance.

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Através de freqüe n t e s trocas de idéias com a docente, foi possível i d e n t i f i c a r no livro uma v i s ã o de m u n d o t í p i c a do folclore carnavalesco. Neste sentido, a p u r i f i c a ç ã o d e scre- ditadora e q u i v a l e r i a a p r ó p r i a e s s ê n c i a de u m rito de p a s ­ sagem que "lavasse" a sociedade de suas impurezas, levando- as ao excesso, o r i g e m m a i o r do grotesco, do f a n t á s t i c o e do cômico - c a t e g o r i a s comuns âs p e r s p e c t i v a s c a r n a v a l e s c a e surrealista. A p o s s i b i l i d a d e da i n f l u ê n c i a n o romance do carnaval a n í v e l de formação de gênero, que se. f u n d a m e n t a na t e oria da c a r n a v a l i z a ç ã o de M i khail Bakhtin, foi l e v a ntada nestas discus s õ e s como um passo n a t u r a l ao d e s v e n d a m e n t o do texto.

Paral e l o a isso, a qualidade da o b r a do autor de C o n ­ fissões de Ralfo serviu não só como índice e s t i m u l a d o r de sua escolha, mas também, da c o n c r e t i z a ç ã o m e s m o de u m a h i p ó ­ tese de trabalho. A leitura de' outros títulos do escritor, tanto anteriores q uanto posteriores, p r o p o r c i o n o u - n o s a i d e n t i f i c a ç ã o de u m fazer literário onde R a l f o c a r a c t e r i z a - se como um g rande texto dentro de u m a p r o d u ç ã o ininterrupta, coerente e de ó t i m a qualidade estética. Reconhecida, i n c l u ­ sive, p o r c r í ticas como B e n e d i t o Nunes que a a s s o c i a m com as de nomes do porte de M a c h a d o de Assis e O swald de Andrade. A i m p o r t â n c i a d e s s a literatura, contudo, n ã o livrou o autor de

0

uma e s c a s s a b i b l i o g r a f i a crítica e até de u m a atenção r e s ­ t rita nos meios u n i v e r s i t á r i o s brasileiros. Surge daí, a u r ­ gência de e s tudos que atual i z e m o d i ã l ó g o - crítica, u n i v e r ­ sidade, texto literário - que certamente o livro suscita. De q u a lquer forma, falar de uma m a n e i r a de e s c r e v e r e m R a l f o , implica r e c u p e r a r t a m b é m u m p r o j e t o e s t é t i c o de um p e r íodo específico, s o b r etudo de uma época d a t a d a h i s t o r i c a m e n t e por

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ma r c a s contextuais ideol ó g i c a s - n o m e a d a anos setenta - as q u a i s m u i t a s vezes limitaram a l i t e r a t u r a a u m v e í c u l o con- testatório.

Baseados nessas primeiras c o n c l u s õ e s , d e s e n v o l v e m o s - n ô £ sa p r o p o s t a de leitura» T e n t a r e m o s m o s t r a r e m tese C o n f i s ­ sões de Ralfo [uma a u t o b i o g r a f i a i m a g i n á r i a ). de Sérgio S a n t ' A n n a e n q uanto u m "Romance de geração".. Vale dizer, um t e x t o onde o ato de g e r ( a r ) a ç ã o p r o v é m d a d e t e r m i n a ç ã o h i s

-/ '

t õ r i c a de u m m o m e n t o e s p e c í f i c o (anos 70); de u m c o m p r o m i s ­ so l i t e r á r i o comum a uma geração de e s c r i t o r e s ; d e ^ u m i m a ­ g i n á r i o cultural p a r t i c u l a r , o carnavalesco. N e s t a o r i e n t a ç ã o p a s s a m o s a p e nsar duas linhas b á s i c a s p a r a n o s s a análise: A F i c ç ã o das C onfissões e As C o n f i s s õ e s d a Ficção. No p r i m e i r o capítulo, cuidamos da composição i m a g i n á r i a da a u t o b i o g r a ­ fia, d e s v e n d a n d o a b u s c a da ficção; Ida sua a u t o - e x p r e s s ã o en q u a n t o e s c r i t o r n o m o m e n t o de crise i n s t itucional, e d a sua l e i t u r a c a r navalesca do mundo. N o p r õ x i m o segmento, d i s c u ­ timos a t r a dição retórica da n a r r a t i v a do autor - e s p e c i f i ­ camente era seu p r i m e i r o texto dos anos oitênirar - à ' m e d i d a e m que r e t o m a e m discussão a l i t e r a t u r a (em)pregada e m C o n f i s - sões de Ralfo.

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1.1. Como n u m a A u t o b i o g r a f i a

Pois o Ralfo v e r d a d e i r o t a m b é m não passa de a l g u é m b r i n c a n d o de Ralfo.

Ralfo

No p e r c u r s o da leitura a sua análise i n t e r p r è t a t i v a , C o n f i s s õ e s de Ralfo (uma a u t o b i o g r a f i a imaginária) levou-nos de s d e o i nicio e d u rante o tempo todo a uma questão: Trata- se m e s m o de uma a u t o b i o g r a f i a ? ^

A a u t o b i o g r a f i a é um g ênero i n a u gural em que cada novo te x t o pode reescrevê-lo. D e ntro dessa orientação, o d i s c u r ­ so a u t o b i o g r á f i c o recebe uma leitura e s p e c í f i c a de a c ó r d o c o m

_ (2 ) ,

os elementos, q u e este mesmo d i s c u r s o fornece. ..Necessário e, portanto, c o n s i d e r a r m o s que nesse texto nada é gratuito. Em R a l f o , a l é m do p r ó p r i o conteúdo de teor m e t a l i n g ü í s t i c o m a r ­ cante, há u m c erco de e s p e c i f i c a ç õ e s e indic a t i v o s de seu f uncionamento.

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para-5

textual de s i g n i f i c a t i v o v a l o r retórico: Confis s õ e s de Ralfo [é] (uma a u t o b i o g r a f i a i m a g i n á r i a ) . 0 t ítulo é a síntese de t o d a poética do livro. P a s samos a desenvolvê-la.

O título v e m na capa a c o m p a n h a d o do nome de S é r g i o San t'Anna. Isso r e l a c i o n a - s e ã e x i s t ê n c i a de dois macrotextos. As confissões são atribu í d a s ao p e r s o n a g e m e os p a r a t e x t o s que c i r c u n d a m o trajeto de sua v i d a levam a a s s i n a t u r a de S é r g i o Sant'Anna. Este as a d v e r t ê n c i a s sobre o que ê e o que t r a t a o livro, e n q u a n t o que aquele é um t e x t o biogr á f i c o , i. é. . . , o r elato de uma vida. N o paratexto, composto de um prólogo, uma n o t a final (assinada e datada) e orelhas de c a ­ pa, S érgio S a n t ' A n n a m o s t r a - s e o d e p o s i t á r i o da p o é t i c a e o d e t e n t o r da "copyrigth" do livro. H á u m a t r aição da voz a u ­ toral. As confissões n ã o são dele, o escritor, mas de u m o u ­ tro. N o caso, as confissões de Ralfo.

O u s o -de terceiros nomes' num texto de e s t r u t u r a de p a c t o a u t o b i o g r á f i c o pode significar, tão somente, u m a f i g u ­ ra estilística pela qual o autor finge falar de si m e s m o co­ m o a lguém mais p o deria fazê-lo, ou como se ele m e s m o f a lasse

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de outro . E m Ralfo Sergio Sant'Anna d e s m i s t i f i c a a teoria* tradic i o n a l do n a r r a d o r - p e r s o n a g e m a u t o b i o g r á f i c o r Tu d o i n i ­ c i a n a p o é t i c a e x p o s t a n o p r ó l o g o do livro onde Ralfo é p a r i d o do i m a g i n á r i o do e s c r i t o r às vistas do leitor:

E parto agora, de corpo e alma a escre v e r m i ­ nha história. M a i s que isso, passo a v i v e r i n t e n c i o n a l m e n t e uma h i s tória que m e r e ç a ser escrita, ainda que incongruente, i m a g i n á r i a e f antas i s t a (...) r e s o l v i t r a n s f o r m a r - m e em outro homem, torna r - m e u m personagem. (CR, p. 2)

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-te a fantasia e idealiza uma outra realidade. Ao t r a v e s t i r -se de p e r s o n a g e m o autor faz de Ralfo u m a persona. A t r a v é s d e s t a m á s c a r a a d e n t r a o espaço l i t e rário de u m a forma f a r s e £

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ca e inédita . Em R a l f o , para B e n edito Nunes, "(...) ao fa "(5) zer de seu p e r s o n a g e m autor, o autor se fez p e r s o n a g e m (__ ) . Dito de o u t r o modo, Sérgio S a n t 'Anna m ostra-se, e v i d e n t e m e n ­ te, e n q uanto u m a u t o r ã p r ocura de u m p e r s o n a g e m - e s c r i t o r . Ralfo leva c o n s i g o do começo ao fim do livro o o f i c i o do p r ó p r i o autor, escrever.

At ravés disso, Sérgio Sant' A n n a b r i n c a com um jogo de identidade autor / p e r s o n a g e m , aí s u p o s t a m e n t e e s t a b e l e c i d o , c o m o se tudo fosse numa autobiografia. R a t ifica esse "faz de conta" o u s o do nós no epílogo:

Nós terminamos de e s c r e v e r isso, que é o f i m áe n o s s o livro e de . n ossas aventuras. (CR, p . 233)

Contudo, o "primeiro passo" do n a r r a d o r - p e r s o n á q e m é d e s c r e d i t a r a r e f e r e n c i a l i d a d e do eu que narra:

0 p r i m e i r o passo é a b a n d o n a r a cidade e q u a l ­ q u e r v i n c u l o c o m a e x i s t ê n c i a anterior. M a i s do que isso a p a g a r todos os traços deste p a s ­ sado. C o m p e n e t r a r - m e de que s.ou Ralfo, c o n ­ ce b i d o do nada (...). (Grifos nossos) (CR, p . 13)

Ralfo, cavaleiro solitário, p e r d e n d o todas as m e m ó r i a s e passados. (Grifos nossos) (CR, p. 14)

P orque estou no início e o m o c i n h o nunca m o r ­ re no começo do filme, a não ser q u a n d o v ã o r e c o n s t i t u í - l o em flash-back. E q u a n t o a m i m nada existe a ser reconstituído. Ralfo, o

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ho-.7

m e m sem p a s s a d o . (Grifos nossos) (CR, p . 7)

A o r i g e m e a i magem e m b l e m á t i c a d e s s a desrealização v e m no prólogo ònde o autor procl a m a a sua p r ó p r i a morte:

(...) a m o r t e de a lguém cuja i dentidade não interessa. P o rque u m h o m e m que r e c u s o u a si p r ó prio e murchou, cedendo lugar a u m p e r s o ­ nagem. (CR, p . 2)

Por trás da m á s c a r a - Ralfo, não fica o rosto autoral, e sim, a imagem fantá s t i c a e jocosa da caveira. 0 e s c r i t o r d e s c o m p r o m i s s a - s e com a v e r d a d e não i n v e ntada e lança-se, e ao leitor, ao imaginário. É a partir d e s s e i maginário q u e a a u t o b i o g r a f i a em Ralfo v a i sendo escrita. Com a criação do p e r s o n a g e m feito o d e p o s i t á r i o da v i d a é e x pulso o n a r c i s i £

m o autobi o g r á f i c o . 0 escritor não v a i falar de si mesmo. Ralfo é o escritor sem ser, i.ê..., é e s c r i t o r mas não e x a ­ t a m e n t e a p e s s o a de Sérgio Sant'Anna. Como v e r e m o s m a i s t a r ­ de, este escritor de que se fala está m u i t o ligado a u m a i magem coletiva. Ò pacto a u t o b i o g r á f i c o que i d e n t i f i c a o autor, o p e r s o n a g e m e o n a r r a d o r está quebrado. O p e r s o n a g e m e as confissões são p a r t e de u m a b r i n c a d e i r a autobiográfica.

Ralfo é um h o m e m sem pai. Não p o s s u i uma grande m a r ­ ca pessoal, o nome de família. Tanto é assim que m e s m o q u a n ­ do precisa assumi-lo, forçado por seus t o r t u r a d o r e s ("Inter­ rogatório (1 )) , o sobre n o m e é inventado:

(...) - Nome ? - Ralfo. - De quê?

- De n a d a - eu respondo, uma fração de segundo antes da primeira b o f e t a d a do b a i x i ­ nho gordo, que esmaga o cigarro contra m i n h a

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boca (...)

- Ralfo da S i l v a - eu i n v e n t o , com voz chorosa. (Grifos nossos) (CR, p . 115)

E m "Carta ã mamãe" há u m a s i t u a ç ã o similar. P r e s e n ç a m u i t o forte na n a r r ativa a u t o b i o g r á f i c a , a figura m a t e r n a remete a outros textos como Um H o m e m Sem Profissão - Sob as

_ (7 )

O r d e n s de M a m a e de O s w a l d de A n d r a d e . No e n t a n t o , em R a l ­ fo , o p e r s o n a g e m é "o bem-amado, pródi g o , d e s a p a r e c i d o e des co n h e c i d o filho", de "alguma bela, b o n d o s a e carente s e n h o ­ ra" (CR, p . 140). A i magem m a t e r n a p a s s a pela explo r a ç ã o do estereótipo: senhora, m u l h e r não m u i t o jovem; bela e bondosa, p orque não n e c e s s a r i a m e n t e u m a mãe, m a s uma "mamãe" — q u e supõe u m a relação c a r i n h o s a — é de a lguma forma "bela e bon dosa" p a r a o filho "bem amado".

Porém, existe nessa i m a g e m e l e m e n t o s estranhos ao es­ tereótipo. A p r o g e n i t o r a de R a l f o é " c a r e n t e " > seu filho é

"pródigo", e aqui não se trata de g e n e r o s o mas de d e s a s s i s -/ Q \

tido ; é " d e s a p a r e c i d o " , o p e r s o n a g e m está preso num 'hos­ pício, dadò bastante s i g n i f i c a t i v o p a r a a época; e é "desco n h e c i d o " / ou seja, tudo i ndica u m não relacionamento e f e t i ­ v o c o m essa mulher. A b u s c a de u m r e f e r e n c i a l aqui r e v e l a uma não busca, ou melhor, u m a b r i n c a d e i r a de buscar. Daí que Ra_l fo e s c o l h e sua mãe na f a n t a s i a de u m a carta encerrada numa g a r r a f a a t i rada ao mar, ou no a c a s o de u m envelope sem local d e s t i n a d o e sem um d e s t i n a t á r i o , a não ser "alguma" mamãe. Enfim, p a r a u m filho imaginário, nada mais apropriado q u e u m a m ã e ficcional.

Ralfo toma parte de u m jogo. B r i n c a n d o de e n c o n t r a r sua personalidade, ele vai i n t e r p r e t a n d o v ários papéis. V i r a um

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curinga, u m dunga q u e m u d a de v a l o r de acordo com o p a r c e i ­ ro que depara, e/ou o p a r c e i r o . q u e d e p a r a o vê d i f e r e n t e m e n ­ te do anterior. De q u a l q u e r m o d o ê sempre o outro do outro, o estrangeiro. E o q u e o p e r s o n a g e m ^ t í t u l o diz em r e l a ­ ção ã R u t e — c r i a t u r a f a b r i c a d a por ele para c o n v e n c e r - s e de sua p r ó p r i a r e a l i d a d e — v a l e para toda sua existência.

(...) É n e c e s s á r i o tornar-se o outro de a l ­ guém, t r a n s f o r m a r - s e n u m o b j e t o amado e, p o r ­ tanto, e x i s t e n t e , eis que u m outro, alguém, exterior, fixa nele seu o l h a r e interesse.

(CR, p . 58)

Mais um a m o n t o a d o de eus — - ou outros r do que uma u n i d a de, Ralfo pode ser q u a l q u e r um, e por isso, assume todas as faces:

Eu não sei q u e m sou e talvez não passe • de u m sõnho dé m i m m e s m o e torno-me, portanto, q u a l q u e r e n t i d a d e que p r e t e n d a tornar-me.(CR, p. 64) (...) e s t e m e s m o paciente, com ve l e i d a d e s de um e s c r i t o r - p e r s o n a g e m , c o stuma v a r i a r cons t a n t e m e n t e de personalidade, a s s u mindo r a d i ­ c a l m e n t e e s t a s p e r s o n a l i d a d e s temporárias e não m e d i n d o riscos para si mesmo e aqueles que o cercam. (CR, p . 149)

A i n c o r p o r a ç ã o de e l e m entos tanto positivos como n e g a ­ tivos de uma p e r s o n a l i d a d e , no "zero" que c o n t é m tudo, ai está a busca de Ralfo, a fragmentação levada à plenitude:

(...) S a l t i m b a n c o , guerrilheiro, p s i c o p a t a , v o u a p r i s i o n a n d o p e q u e n o s pedaços do infinito, p a ­ ra d e pois r o m p e r d i f i n i t i v a m e n t e as a m arras e l a n ç a r - m e no g r ande e spaço sem c o m p a r t i m e n ­ tos. (CR, p . 226)

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Uma p e r s o n a l i d a d e m ú l t ipla, sem caráter d e t e r m i n a d o , C o m o vimos, o p e r s o n a g e m não m e r e c e sequer u m s o b r e n o m e e, por isso, imagina um. E n t r e t a n t o , o n o m e que poderia i d e n t i f i c a r Ralfo revela-se o u t r o engodo. Ser "Silva" no Brasil, e até na A m érica Latina, não d e t e r m i n a muito, ou até indetermina. Di z e m o s no sentido de que é u m nome comum e típico. A l é m di£3 so, se c o n s i d e r a r m o s a n í v e l de d i c i o n á r i o "Silva" s i g n i f i

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ca m iscelania, a g r u p a m e n t o , e Ralfo pode ser lido f o n e t i ­ c a m e n t e como "half", m e t a d e , a p a r t e imaginária, o o u t r o eu --- alter ego — do autor e, p o r extensão, de q u a l q u e r um.

Ralfo t a m b é m é u m h o m e m "sém pátria" (CR, p . 13). A b d i ­ ca de uma pátria, e n tretanto, não h e s i t a em d i z e r - s e b r a s i ­ leiro. A única p e r g u n t a r e s p o n d i d a prontamente, e s e m i n v e n ­ tar, na prime i r a sessão de seu i n t e rrogatório,ê a da n a c i o n a l i dade (" I n t e r r o g a t ó r i o (1)" CR, p .115-116). E logo na p r i m e i r a p á g i n a do livro d i z - s e u m " homem sem pai e sem pátria" (CR, p. 13). Uma a p a r e n t e d i s t i n ç ã o entre pátria e n a c i o n a l i d a d e a .parece no texto. A p a l a v r a p á t r i a p o s s i b i l i t a uma c o n o t a ç ã o de raiz geográfica, cultural e a f e t i v a de e x c l u s i v i d a d e que a p e r s o n a l i d a d e (ausente ou móvel) de Ralfo não comporta. Fica uma sugestão de q u e a n a c i o n a l i d a d e b r a s i l e i r a p e r m i t e - lhe essa movência. O h o m e m b r a s i l e i r o é visto como u m ser de raízes não restritivas. O u s o de línguas como o francês, inglês e espanhol, nos t í t u l o s dos livros e episódios e nas citações sugere uma i n t e r n a c i o n a l i z a ç ã o (política a n t r o p o f á -Q|lCâ)

Ralfo é a i n d a u m h o m e m sem idade. As passagens d o li­ v r o alusivas a esse r e s p e i t o são v a g a s e, por isso mesmo,

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Em "Partida" o p e r s o n a g e m a t r i b u i - s e uma idade a p r o x i ­ mada:

(...) Ralfo, c o n c e b i d o do nada, com uma r e a ­ lidade f í s i c a e m e n t a l de v i n t e e poucos a- nos de idade. (CR, p . 13)

Em "I n t e r r o g a t ó r i o (1)" d u v i d a da idade que se auto- confere:

(...)

- Idade?

- v i n t e e seis anos — èu respondi d e ­ pressa, e m b o r a não t i v e s s e a m e n o r c e r t e ­

za (...) (CR, p . 115)

Em "Diário de M a d a m e X", a falta de certeza da idade de Ralfo e n c o n t r a explicação:

(...) Que idade ele terá? Algo aproximado en tre v i n t e e cinco e t rinta anos (...). E a- lém d i s s o ò Sr. Ralfo m e dá a impressão de um h o m e m sem i d a d e , se e que voces me e nten- d e m . Uma p e s s o a que pode surgir de lugar n e ­ n h u m e a q u a l q u e r tempo, sem d eixar v e s t í ­ g i o s . (CR, p . 134) (Grifos nossos)

M adame X r a t i f i c a , . a condição de Ralfo como um ser ima ginário, fantástico, e, por isso, sem m a r c a s realizadoras^"^.

A i d e n t i f i c a ç ã o do p e r s o n a g e m é uma brinc a d e i r a de faz de conta. Q u a n t o m a i s se p r o c u r a m elementos que o i d e n t i f y cariam, mais a p r o c u r a v i r a do avesso. Os dados que f o r m a ­ riam uma c a r t e i r a de i d e n t i d a d e do p e r s o n a g e m — o p r é n o m e , o sobrenome, a idade, a n a c i o n a l i d a d e — tornando o sujei- to uno, individual e exclusivo, t r a n s f o r m â m - n o em um ser m ú l t i p l o e i n c a p t u r á v e l . Um m o m e n t o do texto ilustra b e m

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so. Ralfo é s o l i c i t a d o a a p r e s e n t a r seus d o cumentos, ou s e ­ ja, p r ovar a sua e x i s t ê n c i a e individualidade. Eis o q u e acontece:

- D o c u m e n t o s ? Onde estão os d o c u m e n t o s ? Como pode p r o v a r que é Ralfo da Silva ou o u t r o v a g a b u n d o q u a l q u e r ?

M a s eu não p o s s o p r o v a r , este é o p r o ­ blema. (CR, p . 115) (Grifos nossos)

O p e r s o n a g e m não p o d e p r o v a r q u e m é, Ralfo "não e x i s ­ te" (CR, p . 64). Por fim a m e t á f o r a desencobre-se. Sua e x i s ­ tência sõ faz sentido n a q u e l e espaço m e s m o q u e a gerou, na representação, no fingimento:

,É q u a n t o a mim, finalmente, de n o v o sõ, como todos a q u e l e s que, após v árias tentativas, não c o n s e g u e m e n c o n t r a r sua identidade, m e r e s t a v a p r o c u r a r uma profi s s ã o em que não ê p r e c i s o tê-la: o teatro. (CR, p . 184)

Nesta a u t o b i o g r a f i a o d e p o s i t á r i o da v i d a é u m a c o n s ­ trução ficcional, a s s i m como a busca de sua identidade. De igual modo, o sujeito p o r si m e s m o a u t o b i o g r á f i c o e s t r u t u ­ ra-se numa e l a b o r a ç ã o ficcional.

Em R a l f o , o e s c r i t o r ficcional do livro é o p e r s o n a - ’ g e m - t í t u l o ; u m p s e u d o - a u t o r de um livro de a u t o n o m i a f i c t í ­ cia. No entanto, Ralfo é u m e s c ritor indigno de confiança. As suas confissões são e s c r i t a s pôr vários personagens. N e s ­ tas c onfissões todos são e s c r i t o r e s ou narrad o r e s c o n f i d e n ­ tes que cedem, v o l u n t a r i a m e n t e ou não, seus e s c ritos a R a l ­ fo. São fruto disso: "Os Fragmentos do Diário de M a d a m e X " , o "Roteiro T u r í s t i c o de G o ddamn City", o "Relatório da C o ­

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13.

m i s s ã o d e P s i q u i a t r a s C o n v i d a d a s a O b s e r v a r o Baile De Gala no L a b o r a t ó r i o Existe n c i a l Dr. Silvana", e "Sentença J u d i ­ cial".

A l é m d e s s e s escritores, o narrar a ssume o u t r a s v e z e s e m Ralfo:

Numa t e r c e i r a pessoa do singular.

(. .. ) Mas como Ralfo hesitasse èm p r o j e t a r seu corpo sobre aquela7 selva dé prédios imen sos e centenas de milhares de veículos, se- m i - e n c o b e r t a por vima fumaça negra, dois b r u ­ t a m o n t e s o a g a r r a r a m lançando-o no espaço, q u a n d o Ralfo teve ao menos o consolo de v e ­ r i f i c a r que o p a r a - q u e d a s funci o n a v a n o r m a l ­ mente. (CR, p . 86)

As c o n f i s s õ e s são de Ralfo, a respeito dele, e n ã o as do Ralfo, feitas somente por ele. 0 que d i s t i n g u e a a u t o b i o ­ grafia e a b i o g r a f i a é justamente q u e m escreve. A _ e s c r i t u ­ ra m ú l t i p l a faz de Ralfo uma b i o g r a f i a a v á r i a s mãos e até, u m a h e t e r o b i o g r a f i a , pois todos acabam falando do o u t r o (Ral­

fo) e de s i .

No entanto, Ralfo é è s c r i t o r - n a r r a d o r a m a i o r p a r t e das ■ v e z e s e seu n o m e c o m p r e e n d e u m feixe de v ozes que se m o v i m e n -

sob v á r i a s p e s s o a s discursivas.

Nas p r i m e i r a s p e s s o a s do s i n gular e plural.

C O N F E S S O que, como início, é constrangedor. Por isso p r o c u r a r e i ser objetivo, conciso. Q u a s e m e sinto t e ntado a não falar nelas, Sofia e Rosângela, esse pequeno i n t e r v a ­ lo traje-cômico. e m m i n h a vida (...) (CR, p . 18)

Como formigas, nós descemos das serras e invadimos as cidades. Nós m a tamos e morre—

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mos, o e s t ô m a g o ardendo o m e d o no coração (...). Nós, os g u e r r i l h e i r o s de Eldorado. (CR, p . 45)

Na voz r e f l e x i v a e na terceira do singular.

D e s p e r t o u - s e nesse instante em que se r e ­ c o m e ç a a pensar, a captar as coisas (...)

(CR, p . 54)

(...) Os c o l e g a s todos o l h a n d o para você, como se v o c ê a c a b a s s e de e s t u p r a r a m u l h e r do g e r e n t e de vendas. (CR, p . 91)

Numa voz t e a t r a l i z a d a .

Duas c h i b a t a d a s por aborrecer-nos com tan­ tas datas. (CR, p . 118)

A g r a d e c i m e n t o s penhorados, a p e r t o s de mão, e n r u b e s c i m e n t o m o d e s t o dos inquisidores.

(CR, p . 125)

Os n a r r a d o r e s e escritores do texto dè Ralfo são como ele, m á s c a r a s u s a d a s pelo Escritor a n u n c i a d a s no prólogo:

(.-..) A n t e s de tudo q u e r o d i v e r t i r - m e ou m e s m o e m o c i o n a r - m e — v i v e n d o e escrev e n d o

este livro e t o mando com ele d i v e r s a s liber dades, como a de objetivar-me, a l g u m a s v e ­ zes, na 3? p e s s o a do singular o u através da fala de terceiros. (CR, p . 2)

R alfo c o r r e s p o n d e a u m palco imagin á r i o de um teatro de mario n e t e s . T o d o s os p ersonagens são papéis /realizados por esse a ( u ) t o r que se expõe agitando os cordões da r e p r e s e n t a ­ ção. A "a u t o - b i o g r a f i a " (a e s c r i t a p o r si mesmó) é i m a g i n á ­ ria e m Ralfo. A "grafia", a e s c r i t a de S érgio Sant'Anna, é /

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15

a ú n i c a c o i s a concreta.

De toda forma, a confissão e s p e c i a l m e n t e como p a r t e da n a r r a t i v á autobiográfica, e t i m o l o g i c a m e n t e , s i g n i f i c a um

~ - (1 2)

r e c o n h e c i m e n t o , uma aceitaçao de q u a l q u e r e s p e c i e . Nao d esigna, portanto, a h i s t ó r i a de uma a l m a cristã, como nas C o n f i s s õ e s de Santo A g o s t i n h o . Porém, a p a r t i r dela, e s s a es p é c i e a u t o b i o g r á f i c a carrega c o nsigo a t r a d i ç ã o a g o s t i n i a - na do " M a g n i f i c a t ", i.é..., o e n g r a n d e c i m e n t o de Deus. A t r a ­ vés da r e v e l a ç ã o do eu a u t o b i o g r á f i c o numa t o n a l i d a d e de a r r e p e n d i m e n t o , e x a l t a - s e a c o n v e r s ã o do p e c a d o r pela i n t e r ­ f e r ê n c i a e m i s e r i c ó r d i a do Senhor. 0 h e r ó i d e s t a s c o n f i s s õ e s é e s s e n c i a l m e n t e o da elevação pela h u m i l h a ç ã o , aquele que se p u r i f i c a p e l a e x p iação de seus e r r o s .

A s e r i e d a d e desta m e m ó r i a do g ê n e r o faz-nos p e r c e b e r q u e a sua a p r o p r i a ç ã o e parõdica. N o s d i s c u r s o s p a r a l e l o s às c o n f i d ê n c i a s sobre Ralfo, o e s c r i t o r fala na n e c e s s i d a d e de e x o r c i z a r - s e de "uma inquietação crônica, u m tipo de p e s t e d e n t r o da alma", de "morcegos" que p r e c i s a m ser expulsos de seu c é r ebro (CR, p.l). M o s t r a uma clara intenção de d i s c u ­ tir s e n t i m e n t o s e idéias. E apôs o t é r m i n o da vida e a d e s ­ t r uição do livro de Ralfo, o a u t o r a f i r m a - s e purificado. uma d e c l a r a d a m u d a n ç a interior. M á s as t i n t a s g r o t escas que se m i s t u r a m aí e O paradoxal d e s e j o do e s c r i t o r de divertir-­ se o u emocionar-se, u s a n d o de " l i berdades" e fantasia e "go­ zar de u m a e f ê m e r a glória imortal" (CR, p.l), coloca Ralfo e m c a m i n h o s e s t r anhos ao a u t o - r e t r a t o da a l m a cristã do S a n ­ to B i s p o de Hipona.

N as C o n f i s s õ e s de R a l f o , o f i c c i o n i s t a d e s s a c r a l i z a a e s p i r i t u a l i d a d e desse gênero v o l t a d o para Deus. A d e s c o n s

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t rução da u n idade retór i c a do eu não p o s s i b i l i t a julgamentos p o s i t i v o s ou negativos. Na n a r r a t i v a não há semelhança

algu-/

m a com a insatisfação causada p e l a v i o l a ç ã o de leis ou da con duta m o r a l estabelecida. Em seu l ugar está o deboche, â z o m ­ baria, o elogio â licenciosidade, ã loucura e a todas as for m a s avessas de transgressão.

Tudo isso põe Ralfo m a i s p r o f u n d a m e n t e d entro da f i c ­ ção. A purifi c a ç ã o do e s c r i t o r não se faz no c o m p r o m e t i m e n ­ to com a verdade, com o s u jeito uno, indivi d u a l e e x c l usivo tr a t a d o n a r c i s i c a m e n t e , ou c o m r e f e r e n c i a i s ao real — como no p acto a u t o b i o g r á f i c o d e s e j a - s e fazer, m a s numa m a n e i r a de n a r r a r (delírio c a r n a v a l e s c o ) . O C o n f i s s õ e s de Ralfo é com- “jfiçção de Sérgio Sant'Anna.

Disse N o r t h r o p Frye que pela inspir a ç ã o criativa, e co mo tal, ficcional, a s e l e c i o n a r a c o n t e c i m e n t o s e fatos da v i d a do autobiõgrafo> com fim de p r o p o r c i o n a r um todo s i g n i ­

ficativo, a confissão é forma de prosa f i c c ional que, entre-(14) tanto, nao expulsa c o m p l e t a m e n t e c o m p r o m i s s o s referenciais Em Ralfo a confecção fica e x p l í c i t a q u a n d o no seu- título o autor substabelece a e s c r i t a da a u t o b i o g r a f i a ao imagina rio. A a u t o biografia como p a l a v r a no d e s m e m b r a m e n t o de suas partes, supõe uma v i d a (bio), um sujeito por si p r óprio (au­ to) e uma escrita (grafia). A e s crita pesa mais n e s t e tipo de relato, porque n e l a está a escolha do que da v i d a vai pro d üzir u m sentido e, em R a l f o , este sentido é dado p e l o imagi^ nãrio.

0 que Frye p r o p õ e teoricamente, S érgio S a n t 'Anna d i s ­ põe ficcionalmente. Toda a u t o b i o g r a f i a é de a l g u m m o d o f i c ­ cional segundo r a t i f i c a o prólogo:

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17

Afinal, não só esta, m a s todas as a u t o b i o g r a ­ fias são sempre i m a g i n á r i a s e reais (...) (CR, p . 2)

0 q u a l i f i c a t i v o "imaginária" no s u b t ítulo do livro j o ­ ga toda a força do texto na ficção. Ralfo não c a r a c t e r i z a uma a u t o b i o g r a f i a imaginada — s o mente r e a l izada p e l a i m a g i ­ nação, mas inserida no fantástico, no extraordinário.

Lugar p o s s í v e l de t r a t a r "da v i d a real de um h õ m e m ima gi nãrio ou da v i d a i m a g i n á r i a de u m h o m e m real" (CR, p . 2) a confecção de Ralfo r e l a t i v i z a o p r ó p r i o c o n c e i t o de r e a l i d a ­ de:

(...) se é que se p o d e d e l i m i t a r f ronteiras e- xatas nesse sentido. Pois se a realidade é de c erto m o d o uma c r iação imaginária, também a i m a g i n a ç ã o e a fantasia são realidades c o n ­ tundentes, que r e v e l a m i n t e g r a l m e n t e o ser e o m u n d o c o n c r e t o s em que se apoiaram. (CR, p . 2)

J o g ando com a r e a l i d a d e e o imaginário, Sérgio S a n t ' A n na brinca com a l i t e r a t u r a do eu. E n i s s o escreve a a u t o b i o ­ grafia, que para ele "mereça ser escrita" (CR, p . 2).

No conto "0 C o n c e r t o de João G i l b e r t o no Rio de J a n e i ­ ro", onde o a u t o r t a m b é m faz de si personagem, agora u s a n ­ do seu p r ó p r i o nome, fala da r e l a ç ã o e s c r i t o r / a u t o b i o g r a f i a e d e i x a claro e m que m e d i d a a sua l i t e r a t u r a constrói-se:

(...) um e s c r i t o r a u t o b i o g r á f i c o acabará escre v e n d o sobre ele escrevendo.

De c e r t a forma p a r e i de v i v e r e s p o n t a n e a mente. P orque e n c a r o as m i n h a s v i v ê ncias de uma forma u t i l i t á r i a , ou seja: m a t erial p a r a escrever. Ãs v e z e s até s e l e ciono aquilo que v o u v i v e r em f u nção do que d esejo e s c r e v e r . (15)

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Gu a r dados os devidos e x a g e r o e h u m o r contidos na a f i r ­ mação, fica uma espécie de m a n i f e s t o l i t e r á r i o que v a l e i- g u a l m e n t e para R a l f o , escrito sete anos antes.

A i magem do e s c ritor a p a r e c e de capa a capa em R a l f o . No meio é p e r s o n a g e m de si m e s m o — a e s c r i t a da ficção no

livro. N o ’ início e no fim, nos d i s c ursos que a b r e m e f e c h a m y

o texto do personagem, a p r e s e n t a - s e como ser real, faz q u e s ­ tão de i d e n t i f i c a r seu nome e a época em que e s c r e v e u o li­ vro. Se o p r ó l o g o é a instalação da s u p e r f i c ç ã o , o e p í l o ­ go e a nota final vão servir para r e c u p e r a ç ã o do autor e do real. Ao texto de. Ralfo, já destruído, segue o s u i cídio do p r o ­ tagonista no e p í l o g o e a nota final onde o escritor, d iante da c o n c r e t u d e das páginas que lemos, a d m i t e u m a "trapaça" literária. O e s c r i t o r desvela-se. A m o r t e do p e r s o n a g e m e a d e s t r u i ç ã o do livro afastam o d o c u m e n t a l , n ã o -podemos ler a h i s t ó r i a como História. Se a s s i m o fizéssemos, só r e s t a r i a m a nota final e o epílogo porque o texto imaginário, a n t erior a eles, foi destruído. Confissões de Ralfo (uma a u t o b i o g r a ­ fia imaginária) só existe se aceita r m o s a g e r a ç ã o imagi n á r i a O u , e m o utras palavras, para Sérgio Sant'Anna, a l i t e r a t u r a só sobrevive e n q u a n t o tem suporte imaginário. Sem isso, ela não se mantém.

Na d e s c o b e r t a da confecção de Ralfo, em c o m - f i c ç ã o de Sérgio SantJ Anna, verif i c a m o s um e m p e n h o em c e n t r a l i z a r o texto na f igura do escritor, numa época determinada. A p r e ­ sença e x p r e s s a do escritor como criador, não seria ■ necessá ria para p r o d u z i r um p e r s o n a g e m que escreve. A p r e o c u p a ç ã o em m o s t r a r o e s c r i t o r e a data da e s c r itura do livro, d e t e r ­ m i n a um m o m e n t o específico — anos 7 0 e o escritor? desse tem po.

(27)

19.

Nossa a n álise p r o s s e g u e no s e n t i d o de busca d e s s e e s ­ critor, nesse p e r íodo e specífico, e dos motivos pelos quais S érgio Sant'Anna d e s e j o u e s crevê-los.

Antes porém, v a l e dizer, â p r o d u ç ã o no imaginário d e s ­ ta a u t o b i o g r a f i a incorpora a s i m u l t a n e i d a d e do individual e d o coletivo, u m i nteragindo e n a s c e n d o do outro. Como o p r o ­ nome "uma" no subtítulo sugere, as fronteiras são " i n d e f i n i ­ das" quanto a isso:

(...) não seria m e r a m e n t e individual, pois a quilo que está em um e s t á de certo modo, em todos. 0 individual i n s e p a r á v e l do c o l e t i ­ vo . (16)

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1.1.1. Os filhos de O s w a l d

"Minha geração e s t á infest a d a , i m p r e g n a d a de vivência, de l o u c u r a e de m o rte."

M e m p o G iardinelli - "A vo z do e x í l i o A r ­ gentino" .

"1980 vai j u l g a r a gente.' O que é que vocês fizeram? Nõs t emos q u e p r e s t a r c o n ­ tas a 1980.' Quedê n o s s o s livros, quedê n Ó £ sas revoluções? O que é que a n o s s a g e r a ­ ção fez?"

Ivan  n g e l o - A F e s t a

Uma d i s t â n c i a de a p r o x i m a d a m e n t e v i n t e anos s e p a r a - n o s d a l i t e r a t u r a fe?lta nos anos setenta. E o que a p r i n c í p i o p a r e c i a difuso, vai aos poucos f i c ando mais claro, d i f e r e n ças c o m e ç a m a dissol v e r - s e e a c a b a m s u r g i n d o c a r a c t e r í s t i ­ cas gerais da época. D i s t i n g u e - s e o que c h a mamos de u m a g e ­ ração, ou seja, pessoas que c o m p a r t i l h a r a m de certas experi^ ê ncias e interesses e m u m t e m p o e u m espaço específicos .

As p a s s a g e n s que abrem este t e x t o são o s u m á r i o d o q u e ca r a c t e r i z a e s t a geração. O B r a s i l e a A m é r i c a Latina, de forma geral, e n c o n t r a v a m - s e desde os anos s e s senta n u m a s i ­ tu a ç ã o singular. O m u n d o i n t e i r o v i v i a u m e s t o u r o .libertá­ rio n o comportamento, nas idéias e n a s a r t e s , e n q u a n t o o c o n t i n e n t e e r a v a r r i d o p o r ditaduras. O p r o t e s t o c o n t r a c u l - tural a n í v e l m u n d i a l a g ravava-se aqui p e l a p r e s e n ç a de u m i n t e r l o c u t o r muito mais concreto. O e s c r itor, o i n t e l e c t u a l latino-americano, via-se diante de u m conflito. Haviâ u m a a n g ú s t i a i n d i v i d u a l e colet i v a c o n t r a u m r e g i m e a u t o r i t á r i o que f o r ç a v a - o a participar. Por o u t r o lado, o r eceio de tor n a r o v e r b o "escrever" t r a n s i t i v o demais, u t i l i t á r i o e c i r ­ cunstancial, o suficiente p a r a que a l i t e r a t u r a deixas-«

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/

21

se de ser um e x e r c í c i o artístico. A l i e n a ç ã o e e n g a j a m e n t o e- r â m e n t ã o os dois pesos e as duas m e d i d a s da p r o d u ç ã o l i t e ­ rária.

D i a n t e do dilema, u m a r e s p o n s a b i l i d a d e ,a h e r a n ç a que p r e c i s a v a ser legada â p r ó x i m a geração. 0 sentido de uma o b r i g a ç ã o m oral de e s c r e v e r impunha-se. F o s s e para ~0iri)for m a r uma m e m ó r i a h i s t ó r i c a e tecer u m p r o t e s t o no presente, o u na m e n o r parte das vezes, p a r a c o n s t r u i r u m p r o j e t o l i t e ­ r á r i o que s u bstituísse e d e s s a s e q ü ê n c i a às v a n g u a r d a s dos anos sessenta — até p o r q u e a m a i o r i a dos intele c t u a i s e s t a ­ v a e x i l a d o e os cançretistas f i c a r a m c o m o que â parte <'■ n e s s a questão.

0 contexto literário a p r e s e n t a v a - s e de forma plural. As respostas literárias f o r a m d i s t i n t a s d i a n t e dos m e s m o s es tímulos (repressão, censura, etc.).

Uma delas foi o r o m a n c e - r e p o r t a g e m . Os jornais já não p o d i a m falar livrem e n t e e a l i t e r a t u r a passou, então, a ter u m e m p r e g o p a r a J o r n a l í s t i c o , , p r e c i s a m e n t e p orque e s t a v a d e ntro de u m estilo que era simples t r a n s p l a n t a ç ã o do real e acusava a cena p o l í t i c a v i g e n t e -— o e x e m p l o de u m c a s o a- le g o r i z a v a a totali d a d e do u n i v e r s o político. Esta l i t e r a t u ­ ra obteve g rande r e p e r c u s s ã o no p e r í o d o e foi a mais p e r s e ­ guida, porque, o que se fez m u i t a s vezes, foi r e a l mente recu p e r a r o c o r r ê n c i a s p o l i c i a i s p o l ê m i c a s q u e t i v e r a m s u cesso na imprensa e a m p l i á - l a s s u f i c i e n t e m e n t e a t o r n a r e m - s e l i ­ vros.

A literatura do eu, p r i n c i p a l m e n t e nos fins dos anos se tenta, com a v o l t a dos exilados, a t r a v é s de d e p o i m e n t o s e memórias, p a s s o u a p r e e n c h e r as f i s suras d e i x a d a s p e l a h i s ­

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tória oficial. Esta narrativa teve s u c e s s o imediato. Uma g e r a ç ã o m a i s jovem tentava, a t r a v é s dã m e m ó r i a alheia, su­ p r i r o seu (des)co nhecimento h i s t ó r i c o , e o u t r o tipo de lei­ tor, d e s e j a v a e x p i a r culpas s u s c i t a d a s pela p r ópria a l i e n a ­ ção ou pelo apoio, silencioso ou não, dado ao golpe, ütili-z a n d o - s e p a r a essa expiação da l e i t u r a o b s e s s i v a de todo o

- (18) relato que e s t i v e s s e a sua d i s p o s i ç ã o

Em m e i o a toda essa l i t e r a t u r a de cunho naturalista, e x i s t i r a m o p ç õ e s que b u s c a r a m uma l i n g u a g e m estética, que d i f e r i s s e do real construido p e l a l i n g u a g e m do regime. P e r ­ c e b e - s e o q u e p o d emos c o n s i d e r a r a v a n g u a r d a e s t ética de se­ tenta. N o entanto, ao invés de m o v i m e n t o s , que supõem u m c a ­ m i n h a r junto e igual, esta g e r a ç ã o t r o u x e e s t r a t é g i a s de e s ­ critura. Cada u m achou sua m a n e i r a de escre v e r o m o m e n t o e de d r i b l a r a censura. Pela r e c u p e r a ç ã o de m u i t o s aspec t o s d a b i b l i o t e c a de 22, estes e s c r i t o r e s p o d e m ser chamados "Os ' f i lhos de Oswald" .

A e x p e r i m e n t a ç ã o como forma de fidelidade ao p r e s e n t e foi g r a n d e marca. Uma situação e x i s t e n c i a l singular exigia u m a a t itude estética nova, u m m o d o p r ó p r i o de narrã-la. O^ us o da m e t a l i n g u a g e m e uma f o r t e a u t o - r e f l e x i v i d a d e e v i d e n ­ c i a m essa preocupação. A p o é t i c a do autor é c o l o c a d a como p a r t e i n t e g r a n t e do conteúdo para explicar, j u s t i f i c a r e o r i e n t a r a c o m p o s i ç ã o do texto e a sua p r ó p r i a leitura. Era s e g uido o p r i n c i p i o a n t r o p o f á g i c o de u m n a c i o n a l i s m o c r í t i ­ co, da d e v o r a ç ã o de todas as i n f o r m a ç õ e s culturais e t é c n i ­ c a s r e d i m e n s i o n a d a s por um jeito "gauche" de escrever, o'que

;

se p o d e e n t e n d e r como m a n e i r a b r a s i l e i r a . As regras dos g ê ­ n e r o s f o r a m m i sturadas, a l i t e r a t u r a dessacraliza-se. A n a r ­

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23

r ativa c r itica e c r i a t i v a m e n t e t o r n o u - s e f r a g m e n t á r i a , e v i ­ d e n c i a n d o uma r e a l idade incompleta e i n c a p t u r ã v e l . Ã a m a r g u ­ ra p o l í t i c a r e s p o n d e r a m c o m a a l egria c a r n a v a l e s c a do humor q u e não d i c o t o m i z a p r a z e r e pranto.

0 caso de R enato Pompeu c o m Q u a t r o O l h o s , I nácio de L o y o l a B r andão c o m Z e r o , M á r c i o Souza em Galvez I m p e r a d o r do A c r e , Sérgio S a n t ' A n n a com C o n f i s s õ e s de Ralfo, (uma a u t o ­ b i o g r a f i a i m a g i n á r i a ) , Ivan A n g e l o com A F e s t a , R u b e m F o n s e ­

ca é m Caso M o r e i e Feliz Ano N o v o , são a l g u n s exemplos.

N ã o é de admirar, portanto, que nas o r e l h a s de R a l f o , Sérgio Sant' A n n a renda h o m e n a g e m a O s w a l d de A n d r a d e c o m o o gr a n d e pai da litera t u r a b r a s i l e i r a contemporânea:

E e s t e romance, como toda a m o d e r n a l i t e r a t u ­ ra brasileira, paga a l g u m t r i b u t o a O s w a l d de Andrade, p r i n c i p a l m e n t e ao O s w a l d g u e r r i l h e i ­ ro da v i d a e da estética, c a v a l e i r o a n t r o p o - fágico. (Cf. anexo)

E n q uanto o romance-reportagem, no g r a n d e acont e c i m e n t o , e a l i t e r a t u r a memorialista, em tom mais baixo, t i n h a m c o ­ m o m á x i m a a tarefa de uma p r o t e s t a ç ã o e n f o c a n d o as crises, o AI-5, a r e v o l u ç ã o e todas as formas de v i o l ê n c i a — prisão, tortura, intimidação, exílio — a que o ser h u m a n o estava su jeito n a q u e l e s dias, a literatura p r o p o s t a por estes e s c r i ­ tores fazia - s e sobretudo na crença de que fosse possível, a t r avés de u m t r a b a l h o estet i c a m e n t e importante, dar u m a c o n ­ t r i b u i ç ã o p o l í t i c a m uito maior. F i cava e v i d e n t e a b u r l a da censura, o f a l a r contra, mas não se p e r d e u a l i t e r a t u r a dq- v i s t a ao fazer isto, havia também, neste aspecto, u m "falar

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N este c o n t e x t o é que S é r g i o Sant' A n n a c o n c e n t r a Ralfo no escritor, h o m e m que vê a c o n t e c e r o drama, e que m e s m o d i ­ ante da i m p o s sibilidade da p a l a v r a , precisa escrever. Como dissemos antes, a aposta n o i m a g i n á r i o une o indivi d u a l e d coletivo. 0 p e r s o n a g e m - e s c r i t o r t o r n a - s e m e t áfora do ser h u ­ mano, e de uma g e ração de e s c r i t o r e s , de suas v i d a s e idéias naquele momento.

Tudo isto é possível p e l a i n s t a l a ç ã o no livro do imagi. n ãrio carnavalesco. A p artir do p r e s s u p o s t o de que o Brasil tem sua p r ática c a rnavalesca i n s t i tucionalizada, c u m p r e d i ­ zer, Sérgio S a n t 'Anna a f a s t a - s e do carnaval b r a s i l e i r o em di reção ã carna v a l i z a ç ã o l i t e r á r i a teorizada por M i k h a i l Bakh- tin (20). A t r a v é s dela, t o r n a e x e r c í c i o de l i n g uagem o que po deria ser somente elemento e strutural. Ainda: suspende, i n ­ terroga e d i s c u t e a r e a l idade b r a s i l e i r a e mundial.

(33)

I

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1.2. Como no C a r n a v a l

(...) C o m p o s t a d i a l e t i c a m è n t e de s e ntimentos contrá r i o s e m entrechoque, pode c o n duzir e s ­ ses s e n t i m e n t o s s i m u l t a n e a m e n t e em v á r i a s d i r e ç õ e s , como uma corda d e m u i t a s p o n t a s q u e fosse e x i g i d a p a r a todos os lados, - a t é r o m p er-se no meio. Este n ú c l e o de rompim e n t o é o p r ó p r i o corpo e t a m b é m a m e n t e do o u v i n ­ te e intérprete, que talvez não mais se r e ­ c u p e r e m d e s t e m o m e n t o traumático. (Sonata de

Frankstein, R a l f o ) . _ .

Observamos a ntes o f o r t a l e c i m e n t o do s u p o r t e ficcional. na composição i m a g i n á r i a da n a r r a t i v a a u t o b i o g r á f i c a . Auxilia mo-nos para tanto, dos pressupostos acerca dos gêneros de ficção em prõ ■

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sa de Northrop Frye . Tudo foi resultado da escrita de R a l f o . Como não e n c o n t r á v a m o s um lugar fixo para o texto, a sua t eoria foi-nos esclarecedora. A p a r t i r d e l a adquir i m o s a p e r c e p ç ã o das obras ficcio n a i s como h í b r i d o s que d i f i c i l m e n t e se a c h a m e m estado puro. Sob esta ótica, os d e s v i o s p r o v o c a d o s na a u t o b i o g r a f i a n a s c e r i a m de seu e n t r e c r u z a m e n t o com o utras formas f i c c i o n a i s p r e s e n t e s no livro: a h i s t ó r i a r o m a n e s c a p e l a trajet ó r i a de a v e n t u r a s e a c o n t e c i m e n t o s e x t r a o r d i n á ­ rios; o romance na sua t e n d ê n c i a a uma a b o r d a g e m f i c c i o n a l da h i s t ó r i a e a s átira menipéiá' - q u e Frye chama a n a t o m i a - em d i f e r e n t e s m a n e i r a s como p r o c u r a m o s demonstrar.

A d i f i c u l d a d e d e c l a s s i f i c a ç ã o de m u i t o s textos f i c c i o ­ nais o c o r r e m por conta do não r e c o n h e c i m e n t o deste c a r á t e r m i s t u r a d o da prosa de ficção, s e gundo Frye. Um dos grandes ex e m p l o s neste s e ntido é Ulisses de James Joyce que, r e c e b i ­ do pela c r ítica t r a d i c i o n a l s i m p l e s m e n t e como um romance,

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foi sujeito a a n a l i s e s e j u l g a m e n t o s improprios. E x a t a m e n t e o c o n h e c i d í s s i m o c o m e n t á r i o feito por T.S. Eliot sobre este

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livro a p arece como uma das e p í g r a f e s de R a l f o :

Em m a t é r i a de romance, somente tem v a l o r hoje, ao que tudo indica, a q u i l o que não é mais r o ­ mance. (CR, p . 9)

S i n t o m a t i c a m e n t e p r e cede e s t a opinião - deum m o d e r n o de tradição não v a n g u a r d i s t a - a frase de Andy Warhol:

Eu q u e r i a fazer o p i o r filme do mundo. (CR, p . 9)

Papa da "jòop art " americana, Warhol ao m e s m o t empo sim b o l i z a e explica a n e gação aos conceitos e s t a b e l e c i d o s de arte contidos na vanguarda. O "pior filme" é aquele que e s t á fora dos p r e c e i t o s estét i c o s já existentes no caso. Por esta conta Ralfo p r o n u n c i a o seu "manifesto" de um ,c a minho p r ó ­ prio, independente:

Q u a n t o a mim, ao contrário, quero e s c rever um s u p e r - r o m a n c e , t a m b é m com um superenredo, re­ pleto de a c o n t e c i m e n t o s inverossímeis e p u e ­ ris e onde fulgura u m p e r s o n a g e m p r i n c i p a l , ú - nico e sufocante, a q u e m acontecem m i l p e r i ­ pécias: eu. (CR, p . 9)

Mas, além desta questão, a declaração do p e r s o n a g e m - e s - critor já nós p e r m i t e v i s l u m b r a r no livro a compos i ç ã o m i s ­ ta de que falamos. Super-romance, Ralfò encont r a - s e acimados limites do r o m ance nas "inverossímeis peripécies" r o m a n e s ­ cas, no "sufocante" r e l a t o do e u e no temper a m e n t o m e n i p e u - já transm i t i d o nas intenções p o é t i c a s através do ridíc u l o contido no e x c e s s o da l i n g u a g e m ao mesmo tempo g r a n d i l o q ü e n ­ te, d e b o c h a d a e megalómana. Por isso teria tudo de uma

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su-27

perficção, a i n t e n sificação da f i c ç ã o no imagin á r i o e a u t i ­ lização de toda essa tipologia dos g ê n e r o s ficcionais em pro s a .

Porém, o hibrid i s m o que p e r c e b e m o s no livro, acha-se nu ma dimensão ainda mais complexa. Para d a r conta dela b u s c a ­ m o s trabalhar com a teoria que fosse p e r t i n e n t e a esse tipo de texto literário. Partiu daí, a o p ç ã o p e l a teorias de

Mik-(23) -

-hail Bakhtin: 'Ralfo sofre a i n f l u e n c i a da c a r n a v a l i z a ç a o na p r e s e n ç a de gêneros literários e extraliterári'os~ intercalados^ numa p l u r a l i d a d e de estilos e v a r i e d a d e s de vozes.

Essa d e t e r m i n a ç ã o dialõgica da l i t e r a t u r a c a r n a v a l i z a d a . (24) tem sua o r i g e m nos diálogos s o c r á t i c o s e na satira menipeia,. gêneros que c o m b i n a m o cômico e o sério, t r a n s m i t i n d o - s e na literatura mundial, até a l c ançar a p r o f u n d i d a d e p o l i fôni- ca em Dostoiévski.

Ralfo ê um texto em que se p r a t i c a este p e n s a m e n t o a r t í s ­ tico polifônico, Avesso ao m o n o l o g i s m o oficial, que se

su-(25)

p õ e detentor de uma verdade final , h a a coexis t e n c i a de v ários n a r r a d o r e s que dizem o t e x t ò e n q u a n t o c o n f ecção e como história. Entre eles o "herói" i m p õ e - s e mais vezes no texto, p orque é ele o suporto s u j e i t o a utobiográfico, são de le as confissões. Entretanto na sua voz já soa um diálogo sobre a forma de um duplo:

Saio para rua neste m e u p r i m e i r o dia de e x i s ­ tência ativa como Ralfo. (CR, p . 13)

Foi Sofia quem ligou o a p a r e l h o e p e netro com a m a i s absoluta certeza e m suas intenções. A luta silenciosa que as d u a s t r a v a m em torno de mim, Ralfo, pivõ de todos os ciúmes (...).

Referências

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