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Entrevista com o ator e fundador do grupo Clowns de Shakespeare, César Ferrario, realizada por Diogo Spinelli

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Academic year: 2021

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LABORATÓRIO – PORTAL TEATRO SEM CORTINAS

POÉTICAS ATORAIS – ENTREVISTAS

Entrevista com o ator e fundador do grupo Clowns de Shakespeare, César

Ferrario, realizada por Diogo Spinelli

Revisão: Edilaine Dias

Arquivo: 07.PA.0006

Laboratório - Portal Teatro Sem Cortinas

Poéticas Atorais 07.PA.0006

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Entrevista realizada por Diogo Spinelli com César Ferrario, ator e fundador do Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare/Natal-RN, na sua residência no bairro de Petrópolis, em Natal – Rio Grande do Norte, no dia 21 de novembro de 2014, no intervalo das atividades do Festival O mundo inteiro é um palco – ano II. Essa entrevista foi originalmente publicada nos anexos da dissertação de Spinelli, intitulada O Teatro de Grupo e a relação com encenadores convidados na formação,

profissionalização e manutenção do Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare, disponível em http://repositorio.unesp.br/handle/11449/138968

Diogo: Você é um dos fundadores dos Clowns de Shakespeare. Gostaria que você se apresentasse, e apontasse quais foram as principais mudanças na trajetória do grupo nesses vinte e um anos.

César: Meu nome é César Ferrario. Como você já antecipou, sou um dos fundadores do Grupo

de Teatro Clowns de Shakespeare. Estou desde o início. Acho que essa é minha apresentação de vida: dizer que sou integrante dos Clowns de Shakespeare. Porque acho que ser integrante é mais do que ser ator, é outra função. E queira ou não, embora eu já tenha desempenhado uma série de outras funções na minha vida – já fui professor, já fui administrador, já fui designer – essa é a minha profissão de escolha, e que atravessa toda minha vida profissional desde quando comecei a trabalhar. Talvez eu não fosse ator profissional, mas já era ator, e hoje já não há mais dúvida. Estou aqui, e aqui pretendo permanecer até o fim da vida. O César Ferrario é integrante do Clowns de Shakespeare, e no mais é tudo o que isso implica. Penso que falar das mudanças do Clowns na sua trajetória é apontar simplesmente a constante e necessária sobrevivência, ou permanência. Acho que qualquer estrutura que seja estática, que seja engessada, que seja pré-definida, acaba por se deteriorar ao longo do tempo. Penso que a grande constante é justamente a mobilidade. Acho que esse é o grande segredo da gente ir burlando as adversidades e as intempéries da vida, da existência. Acho que no caso do Clowns, sua sobrevivência, sua permanência e seu êxito – vou chamar de êxito sem juízo de valor, êxito porque conseguimos sobreviver, e conseguimos continuar fazendo aquilo que a gente escolheu fazer e é isso que eu trato como êxito – acho que esse êxito diz da inteligência que opera sobre essa mobilidade, sobre essas mudanças ao longo do tempo. Acho que a melhor forma de entendê-las é dentro de um pensamento dialético. Sobre isso, para não ficar muito no campo conceitual, acho que posso dar alguns exemplos práticos. Como já escrevi em alguns lugares e já dei outros depoimentos sempre que requisitado, o Grupo começa num ambiente totalmente adolescente e festivo, quase que como um rito de passagem: pré-vestibulandos, último ano de encontro, muito provavelmente no ano seguinte já não nos veríamos mais e cada um seguiria sua rota na universidade num curso distinto. De uma forma muito celebrativa decidimos montar uma peça no mais puro e autêntico teatro escolar. E quando falo teatro escolar, não é um teatro de escola de teatro, é um teatro escolar mesmo, que não tem nada a ver com teatro e no qual se faz uma

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pecinha de final de ano para a gente se divertir, ou como já falei, celebrar momentos transitórios como esses ritos de passagem. Nisso, não havia nenhum conhecimento ou aprofundamento naquilo que escolhemos fazer. Menos ainda havia preocupação com haver um aprofundamento. Era algo absurdamente leigo e essa condição não nos afligia em nenhuma medida. Isso por um lado tem suas desvantagens, mas por outro, tem seus benefícios. Dentro dessas circunstâncias, o professor nos batiza de Clowns de Shakespeare e no ano seguinte, já depois da primeira experiência, e ainda que de uma forma bastante incipiente, foi o suficiente para que alguns desses alunos dissessem: tem alguma coisa aí que não sei explicar, tem alguma coisa que não sei teorizar, que não tenho profundidade, que não tenho conceito, mas tem algo que me interessa, algo que me cooptou, me atraiu, e isso não é algo tão simples. Não sei nem se isso chega num plano de tamanha consciência, sei que não conseguimos mais largar, como de fato, não fizemos. E no momento que a gente não conseguiu mais largar, no momento que essa permanência foi acontecendo, aí sim nós fomos começando a nos deparar com essas faltas, com essas insuficiências. Nós naturalmente começamos a ser cobrados, se não pelo ambiente externo, uma cobrança a partir da gente mesmo: se estou fazendo isso, se permaneço, se tenho interesse nisso, e isso está me despertando desejo, então preciso decifrar, preciso dar um passo a mais. Nós tínhamos o nome Clowns de Shakespeare, não sabíamos nada de Shakespeare, não sabíamos que o termo clowns implicava em uma técnica e uma estética correlata, mas, no entanto a gente empunhava o nome. E aí começa a operar essa dialética que eu aponto: precisamos preencher o nosso nome. Primeiro se estabelece a circunstância, e depois a gente começa a correr atrás. Quando a gente entendeu a circunstância, o elemento teatro já estava posto, e a gente teve que correr atrás. Primeiro, do nosso nome, e depois do nome, de um lugar para fazer teatro, e depois do lugar para fazer teatro, a gente percebeu que precisava de um lugar para guardar o cenário, e depois desse outro lugar, a gente percebe que tem a necessidade de manter esse cenário, e depois que estreou um espetáculo a gente entendeu que precisava de um lugar não só pra fazer uma ou duas apresentações, mas precisava de um lugar para a gente fazer temporadas e amadurecer o espetáculo, então acho que o Grupo sempre foi percebendo as suas problemáticas e a partir daí foi correndo atrás para resolvê-las. O Grupo já nasce nessa lógica de tentar ultrapassar aquilo que se coloca como desafio ou o gargalo que mais se anuncia no nosso fazer. E esse desafio de se reorganizar a partir daquilo que a realidade nos nega, mais uma vez apontando a dialética, essa lógica começou na hora em que o grupo foi incorporando isso à sua existência e foi aplicando ela nos mais distintos lugares. Até mesmo na própria organização coletiva. Acho que o Grupo experimenta momentos de organização coletiva, de conexão dos seus indivíduos, que vem mudando e se modificando ao longo da história. Nos primeiros anos foi de uma determinada maneira, depois de outra, depois para a construção da Casa da Ribeira, de outra, depois do Muito barulho por quase nada de outra, depois d’O capitão e a sereia, de outra forma, depois de Gabriel Villela e Marcio Aurelio de outra forma, sempre nessa

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perspectiva de ajustes, de negociações, de entendimentos, que às vezes se dá muito no plano do intelecto, do combinado, da razão, e às vezes também se dá muito no plano das circunstâncias, e às vezes, se dá com certas discordâncias, dores, desafetos... Mas o Grupo, até então, vem trazendo consigo essa plasticidade. Vou chamar de plasticidade coletiva, que é sempre uma medição de forças, e para minha felicidade, na maioria das vezes não é por questões menores, como vaidades, disputas de poder, embora ache que em alguma medida isso aconteça, mas acho que principalmente por necessidades mais dignas como desejos estéticos, necessidades de afirmação e de experiências de fazeres específicos dentro dessa estrutura coletiva, por uma necessidade de uma efetivação pessoal de uma determinada prática, ou às vezes por um desejo de uma determinada fração do Grupo. E a massa do Grupo, dentro dessa sua capacidade plástica, dentro das suas condições de plasticidade, vai se adequando. Às vezes ela absorve, e para a nossa tristeza, às vezes ela não absorve. Às vezes o Grupo não consegue adequar-se, e a gente coleciona algumas várias rupturas, como todo coletivo, ao longo da nossa história. Nos primeiros dez anos, essas rupturas, até devido à falta de clareza nesse pacto coletivo de sua condição profissional, de dar subsistência ao ator, criam uma condição de flutuação maior. Depois de dez anos, com a profissionalização e uma clareza maior nesse pacto, a gente fixa mais os indivíduos e em compensação, essas rupturas quando ocorrem, acabam sendo mais dolorosas. Para tentar fechar essa pergunta, se fosse falar tudo o que falei com poucas palavras, diria que essa mobilidade é a condição de uma única palavra, que se chama sobrevivência. É uma luta pela sobrevivência, pela permanência.

Diogo: A partir do que você falou sobre as rupturas no Grupo, e sobre a questão do indivíduo e do coletivo, esse é um dos temas que aparece muito n’O capitão e a sereia. Você poderia falar um pouco sobre o processo de criação desse espetáculo?

César: Cada espetáculo tem suas peculiaridades. Embora não tenha sido essa a sua pergunta, só

para começar por esse quesito, acho que é uma tarefa muito tirana querer hierarquizar a produção. Porque parece que cada espetáculo se coloca como um degrau único e indispensável para o passo que se daria naquele instante. Então é difícil você atribuir maior importância para um degrau que está num nível mais alto, e por consequência mais complexo do que aquele que está num momento inicial do Grupo, porque se você subtrai esse primeiro degrau, talvez o outro não existisse. Após esse contexto inicial, considero O capitão um degrau, porém, dito isto, a gente começa a apontar as suas peculiaridades e nesse quesito de peculiaridades, tem-se muito o que falar sobre O capitão. Para mim o teatro é uma estrutura de espelhos multifacetados que nos reflete em infinitos ângulos e posições, e acho que – não sei se pela primeira vez – alinhamos os espelhos n’O capitão de modo a nos enxergar. Pela primeira vez tivemos uma clareza sobre esse fato. Sobre um espetáculo que nos reflete. Não só reflete nossa carpintaria teatral e a artesania que a gente imprime sobre a fábula que está sendo articulada e sobre a teatralidade no seu

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sentido mais amplo, mas também no discurso que está sendo articulado. O discurso n’O capitão também passa a ser uma responsabilidade nossa. Montamos o Muito barulho, e existia uma visão do Muito barulho a partir do regionalismo; a Megera doNada tinha algo parecido; o Roda Chico também tem uma cara nossa, mas todos são discursos alheios e externos dos quais a gente se apropria para articular. N’O capitão a gente parte de um papel em branco, e aquele papel em branco recebe a tinta que está naquele roteiro, carregada das nossas próprias intempéries. Acho que, nessa medida, o teatro se dá de forma plena, onde a gente consegue ser simultaneamente objeto do que está sendo articulado, mas também sujeito daquilo que está sendo organizado e dito. O capitão para mim ocupa um lugar muito especial, que até então acredito que a gente não conseguiu revisitar. Mesmo depois de ter passado pelo Sua Incelença, Ricardo III e pelo Hamlet que foram direções externas, e agora voltando novamente para a direção nossa, do próprio Grupo, como é o caso do Nuestra senhora de las nuvens e do Abrazo, e teremos dentro em breve o Dois amores y um bicho, com direção externa do Renato Carrera, mas acho que pelo próprio fato de o Grupo estar fracionado e esses espetáculos não trazem o todo desse coletivo, esse seja um dos primeiros motivos de não termos revisitado aquele lugar que O capitão inaugura dentro do Grupo. Espero que a gente tenha oportunidade de regressar. Foi uma experiência muito importante, imprescindível.

Diogo: Como você mesmo falou, após O capitão e a sereia, os próximos dois espetáculos do Grupo foram com diretores convidados. Apesar de saber que esses projetos já existiam antes, como o fato de voltar a esses projetos depois de ter encontrado esse lugar d’O capitão reverberou no processo do Grupo?

César: Sei que essa opinião que emiti sobre O capitão é bem coletiva, acho que é quase uma

unanimidade. Com suas idiossincrasias, mas uma unanimidade. O que vou falar agora, já não sei se é uma unanimidade: acho essas duas experiências tão imprescindíveis quanto O capitão. Tão quanto. A gente precisa voltar para O capitão, é fundamental a gente voltar a’O capitão. Ao mesmo tempo é imprescindível que a gente seja atravessado por esses elementos e fatores externos. Porque penso também que voltar os espelhos para nós mesmos também tem suas questões colaterais. Isso implica num ensimesmamento e a partir daí corremos o risco de alimentar determinadas ideologias. Acho que a gente pode ficar refém disso, e colocar o Grupo como centro operante do universo: aquela é a forma de existir, aquela é a forma de ser, e aquele discurso estético da cena pode acabar doutrinando, engessando determinadas formas de existir. É muito bom poder chegar e nos deparar por seis meses com Gabriel Villela, por exemplo. Lembrando que são seis meses de processo, então existe uma segurança temporal. O Grupo não vai passar a ser de Gabriel, ele não vai ser cooptado pelo pensamento estético de Gabriel. A gente cria uma experiência em forma de arco com começo, meio e fim, e depois disso o Gabriel parte e nos deixa um legado em forma de espetáculo que tanto nos rendeu, e nós podemos dizer

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que conhecemos a fundo um grande encenador da história recente brasileira. É como se a gente pagasse uma disciplina da forma mais plena, com todas as possibilidades de aprofundamento que uma sala de aula jamais nos daria. A mesma coisa vale para Marcio Aurelio. E depois disso, o Grupo continua no seu fórum soberano com sua assembleia geral, para ponderar, para saber o que daquilo nos interessa, o que não nos interessa, onde naquilo nós nos vemos refletidos, o que daquilo podemos fazer uso, como podemos melhorar, a partir daquela forma de pensar. Acho que estar pronto para viver estas experiências é garantia de sobrevivência. A gente tem que abrir estruturas de arejamento para que a gente seja atravessado por outros ventos. Para que a gente possa inclusive estabelecer um discurso crítico pra com a gente mesmo, a partir do olhar do outro. Acho que esse exercício também é fundamental. A produção cultural em grupo, apesar de ser precária e pequena, essa estrutura enquanto procedimento me lembra um grande transatlântico, que para parar num porto daqui dez quilômetros, você já precisa começar a desacelerar agora, porque exige uma quantidade de movimento muito grande envolvida naquela massa absurda. Se você quer dobrar à esquerda lá na frente, você já começa desde agora a girar o timão. Há um delay, porque você tem que escrever o projeto, tem que manter os pensamentos alinhados durante um determinado período de tempo, tem que conseguir recursos. A coisa não é assim tão rápida. Da decisão de montar um espetáculo até você ter a oportunidade de ter uma temporada de estreia, vai fácil três anos. Às vezes não é tão fácil, mas penso que o ideal seria a gente continuar a ser atravessado por esses pensamentos externos, principalmente por pessoas que a gente admira, e que a gente sente um interesse primeiramente estético, mas acho que, sobretudo, humano. Ainda me pergunto se a questão estética é nosso centro, e acho que essas separações entre estética, política, e por aí adiante, funcionam muito bem na teoria, mas na prática a coisa não acontece bem assim. Acho que no teatro de grupo o estético é indissociável do humano. O ideal é que a gente sempre repetisse esse trânsito: ser atravessado por outras pessoas, e periodicamente fazer o regresso e o exercício de nós mesmos.

Diogo: Quais foram os desejos do Grupo ao chamar o Gabriel Villela para dirigir um espetáculo?

César: Vou contar uma história. Estava lendo um livro, desses livros que você encontra em

aeroportos, e que se chama A epopeia do pensamento ocidental. Tem um trecho que diz que antes, quando o mundo não era redondo, existia uma construção fabular fortíssima em relação ao universo. Existiam as terras dos homens de um pé só, as terras dos homens com apenas um olho na testa, outros com um olho na barriga, e aqueles que viviam de cabeça para baixo. E depois que o Homem expande a geografia, ele oprime a fábula. Parece que quando ele começa a ter esse conhecimento físico, isso acaba diminuindo a sua capacidade de fabular e imaginar. Tentando criar um paralelo, quando a gente começou a fazer teatro, já num segundo momento que não aquele da brincadeira e da farra, que a gente começa a entender um pouco a lógica da

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história, a gente naturalmente elege nossos mitos. Na época se falava muito da Royal Shakespeare Company, a gente via a e achava aquilo incrível, e nós tínhamos os nossos mitos, nossos ídolos. Aqueles lugares quase inatingíveis, misteriosos, senão místicos, fantásticos. E um desses lugares era o Grupo Galpão e seu Romeu e Julieta. Trata-se justamente da época que nós estávamos nos firmando, e com toda a áurea que se criou em torno daquele espetáculo. Então o Grupo Galpão e o Gabriel Villela nascem nesse lugar. E para nossa sorte, ou fruto do nosso trabalho, naturalmente nosso fluxo foi caminhando para essas pessoas. Primeiramente com o Grupo Galpão, quando a gente teve a oportunidade de fazer a produção local deles aqui em Natal, o que leva a Eduardo Moreira, que leva a Ernani Maletta, que leva a Babaya, e que por fim, leva a Gabriel Villela. E depois que o desejo se estabelece, e quando a vontade começa a acompanhá-lo, os argumentos vem por consequência. Muito parecido com o Grupo, acho que Gabriel também tem esse trânsito de respirar ares da contemporaneidade, mas sem prescindir do regionalismo, do seu lugar de nascença, que é o interior de Minas Gerais, e quando a gente fala de interior, embora cada interior tenha suas próprias características, parece que existe um tipo de relação existencial que permeia todos eles. Existe muita identificação entre o teatro que Gabriel desenvolve, ou desenvolveu com o Galpão e aquele teatro que a gente faz. Fora isso, Gabriel é uma pessoa que admiro muito, com a qual aprendi muito. Lembro que na época que Gabriel passou aqui, um mês depois eu li um livro com as entrevistas de Ariane Minouchkine, e existia muita proximidade no discurso e na prática impressa na produção dos dois. Não chega a ser uma interpretação brechtiana, que não é disso que estamos tratando, mas não se trata de uma interpretação dramática, e sim do ator que tem consciência do que opera, sem deixar que um sentimento dramático assuma o processo das coisas e ele passe a ser fluxo. Para mim foi o início de muitos esclarecimentos, já que não tive faculdade e nenhum outro estudo a não ser o fazer do Grupo, então foi uma oportunidade que me ensinou muito enquanto ator. E na sequencia, com Marcio Aurelio também.

Diogo: Ainda sobre o processo com o Gabriel, quais foram as maiores dificuldades do processo e os maiores ganhos?

César: Acho que a maior dificuldade foi que Gabriel traz um modus operandi já estabelecido, e

são menos de seis meses de processo. Então desde o primeiro dia de ensaio está deflagrada uma corrida de entendimento gramatical, falando de gramática cênica e do léxico sobre o qual a gente vai operar. Acho que essa é a maior dificuldade porque você tem que antecipar ou correr atrás de certos entendimentos para se colocar enquanto um indivíduo colaborativo. Porque até você decifrar essa linguagem, você acaba sendo um mero repetidor de formas, e quando você entende, acho que pode estabelecer um diálogo de uma forma mais producente entre o encenador e o Grupo que o recebia. Acho que essa foi a maior dificuldade, mas estabelecido ou conquistado isso, as facilidades apareceram. Também é importante dizer que isso opera de

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forma diferente nos indivíduos, e esse entendimento não se dá num mesmo momento determinado, como se eu não estivesse entendendo, fosse dormir, e acordasse entendendo magicamente. É uma relação processual. É antecipar o máximo de entendimento possível. Mas quero deixar claro que muitos desses entendimentos se deram quando Gabriel já tinha ido embora, o espetáculo já estava em repertório, circulando, e quando a gente estava lá no fim do mundo, em determinado gesto, em determinada cena você diz: “Compreendi isso daqui!”. E um pequeno universo de desvenda à sua frente a cada nova descoberta. É um brinquedo que até hoje continua operando. Hoje não mais, porque estou afastado do espetáculo, mas no ano passado tive a oportunidade de assisti-lo pela primeira vez, já com João Ricardo me substituindo, e outros entendimentos se fizeram. E às vezes nem tem a ver com o espetáculo. Você tem a carga da experiência com você, e você vai ler um texto que a princípio não tem nada a ver, ou vai ver uma palestra, e aquilo te esclarece sobre o espetáculo que ficou lá atrás. Existe um pequeno milagre que continua operando para além da existência do espetáculo. E no sentido oposto, do maior ganho, acho que é a mesma coisa, porque quando você transforma essa dificuldade em entendimento, você de imediato guarda isso na sua caixinha de ferramentas, então você já passa a ter um repertório mais largo, você passa a ter mais possibilidades de operar a partir daquele entendimento que você teve a partir daquele encenador. Acho que esse é o maior benefício, porque ele está para muito além da relação com Gabriel e da existência do espetáculo. É algo que você traz consigo para toda sua vida profissional. É algo de um valor imensurável.

Diogo: E com relação ao Marcio Aurelio, qual era o desejo do Grupo ao chamá-lo para dirigir um espetáculo?

César: Sobre essa pergunta acho que muitos responderam a mesma coisa. Foi muito

esclarecedor nosso encontro com o Marcio no TUSP. Marcio nos trouxe chaves de acesso a um Shakespeare – um Shakespeare que nos nomina – que nunca tínhamos reparado. Nós tínhamos tido encontros importantes em nossas vidas, mas não que nos mostrassem um Shakespeare tão interessante quanto aquele que Marcio nos desvenda. E ele tinha capacidade de fazer isso com curtas intervenções. Lembro-me de uma situação na qual o Grupo se iluminou: Ronaldo foi ler um texto, e ele tem sobrancelhas muito expressivas. Quando ia começar a ler o texto, suas sobrancelhas já tinham se modificado, já estavam quase na vertical, quando o Marcio deu um toque nele e falou: “O romantismo só vem daqui duzentos anos. Ainda não temos o romantismo”. O Marcio só disse isso, mas a quantidade de esclarecimentos que vieram em cascata foi enorme, e um universo se esclareceu para a gente. Então Marcio, econômico como ele é, traz essas pequenas pontuações, mas de efeitos avassaladores. Aí a gente diz: “Queremos mais disso. Queremos mais dessa experiência”. Mas foram esses cinco dias do TUSP. Acho que essa experiência foi em 2007, escrevemos um projeto para a Petrobras em 2009, antes mesmo do Ricardo, e viemos a consumá-lo em 2013. Como já disse, essas operações não são

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tão rápidas quanto gostaríamos. Por isso a gente tem que pensar sobre o que decide, porque a decisão que você toma hoje, você vai ter que ser responsável por ela por um bom tempo.

Diogo: E quais foram as maiores dificuldades e maiores ganhos desse processo?

César: Para não ficar uma resposta muito parecida com a do Gabriel, vou elencar

especificidades do processo, mas acho que tudo o que falei do Gabriel vale para a experiência do Marcio. Para mim, Marcio foi um grande pedagogo, foi um professor magnífico. Acho que no processo a palavra que eu posso mais atribuir à forma que ele operou é professor. Acho que ele foi mais professor do que qualquer outra coisa, até mesmo diretor ou encenador. E isso não é uma crítica, muito pelo contrário. Ele me ensinou muito com pouquíssimas palavras. E por que eu o chamo de professor? O trabalho com o Marcio despertou no meu caso um sentimento de autonomia. Ele deixou muito claro que ele não opera dentro da doutrina, dentro de um certo ou errado, de um pode e não pode. Ele opera primeiramente num lugar da autonomia. O ator precisa antes de qualquer coisa, elaborar o discurso para si mesmo, e de uma forma muito honesta e dedicada, colocá-lo à disposição do trabalho. O Marcio, de outra forma, organiza seus espelhos de tal forma que seu carrasco mais implacável é você mesmo. Ele lhe deixa muito responsável por aquilo que você escolhe e por aquilo que você opera com tudo que isso tem de bom, e com tudo o que isso tem de ruim. Isso é muito angustiante, mas também muito libertador. Muito libertador do indivíduo enquanto artista. O teatro feito coletivamente é uma escolha para mim, e acho que seus conceitos e argumentos para mim continuam todos de pé, no entanto isso não significa dizer que ele é um formato perfeito e isento de críticas. E uma das críticas que a gente pode tecer sobre o teatro feito coletivamente é que é muito fácil você esconder suas deficiências, principalmente as deficiências individuais, dentro dessa massa coletiva. E é possível que alguém, associado a um coletivo, atravesse uma vida inteira sem assumir as devidas responsabilidades, sem assumir a devida coragem de empunhar o discurso que ele opera. E acho que Marcio lhe coloca numa situação, que sem ele te obrigar a nada, faz com que você se depare com esse dilema, principalmente através dos seus silêncios. Foi dessa forma que o trabalho com Marcio operou dentro da minha individualidade. Ele foi muito transformador nesse sentido. Me deu muitas convicções e certezas. A partir de então, eu tive uma série de coragens que eu não tinha tido. Sem querer confundir o trabalho do Marcio com qualquer relação de terapia ou psicanálise. Não é nada disso. A gente continua falando da importância do indivíduo dentro de uma relação coletiva. Mas um coletivo que sem a clareza do indivíduo ele se enfraquece, ou com a potência do indivíduo, de forma harmônica, ele pode crescer. Acho que eu organizei mais as minhas deficiências e entendi que elas não podem ser um impeditivo ao fazer. Desde então acho que venho procurando espaços de colaboração e de exercício, não obrigatoriamente dentro dos Clowns. Sem atrapalhar o funcionamento dos Clowns, pois entendi que o grupo tem suas demandas, suas exigências. Por exemplo, eu queria

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aprender a escrever, e vi que existia o grupo Estação, para o qual eu poderia escrever os meus textos e mandar por internet sem me roubar um tempo coletivo presencial, e poderia aprender. Hoje eu vejo o resultado do meu trabalho, e a partir da operação prática desse trabalho consigo ver principalmente as deficiências desse trabalho, e a partir dessas deficiências, quero buscar um outro trabalho no qual eu possa me corrigir. Mas o desafio implica em você assumir uma proposta de discurso, uma proposta de trabalho e uma proposta de fazer. Acho que o Marcio me dá uma clareza sobre isso, sem que a gente se cobre um resultado absoluto e definitivo. Porque o Marcio, como bom pedagogo, é uma pessoa absolutamente processual, e o processo é o que vale. Então o interessante é que, falando de uma forma bem simples, eu fiz determinado trabalho, comecei no grau 1 e terminei no grau 2. Ainda falta muito para o 10, mas o interessante é que eu saí do 1 para o 2. Acho que o Marcio desloca o foco para que essa capacidade de crescimento não seja necessariamente uma cobrança para um lugar último, que às vezes impede você de dar aquele passo menor, mas possível naquela experiência.

Diogo: Apesar de essas três experiências serem tão distintas, você considera que todas sejam experiências pedagógicas para o grupo?

César: Eu considero, absolutamente. E aí, já não falo mais nem do indivíduo. É inegável que

existe uma música diferente para o grupo antes d’O capitão e depois d’O capitão, e a mesma coisa para o Ricardo e para o Hamlet. São experiências que modificam a música do Grupo. Esse é meu argumento. O Grupo é diferente, o Grupo muda a partir de cada uma dessas experiências. Então tem implicações, sim. O difícil é enquadrar essas mudanças dentro de uma escala de bom e ruim. Acho que isso pode ser uma armadilha, porque nem sempre aquilo que é ruim deixa de ser bom em alguma medida. As coisas são mais complexas do que a gente imagina. Ainda mais quando a gente tenta organizar tudo isso sobre o termo que é: desafio. Se colocar em desafio. E se colocar em desafio é estar pronto a se deparar com algumas angústias.

Diogo Sendo essas colaborações uma característica do Grupo, que outras características você consideraria como constitutivas dos Clowns de Shakespeare?

César: É uma pergunta muito difícil essa. Acho que a característica dos Clowns de Shakespeare

é a teimosia em permanecer junto. É a gente bater cabeça, e permanecer. Acho que essa é a única coisa que atravessa toda a história. Não há nenhuma outra. Não é o amor, porque nós já nos odiamos em algumas circunstâncias, não é a amizade porque não acho suficiente. O Grupo já está muito além da amizade, embora ela ainda exista. Não é só o desejo de fazer teatro, porque poderia fazer isso em vários lugares. Acho que é a teimosia e a resistência. Mostrar que é possível.

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Diogo: A prática do convite aos encenadores é o desenvolvimento dessa prática que o Grupo já tinha de colaborações?

César: Acho exatamente isso. Como a gente começa na mais absoluta ausência, o Grupo

começa realmente como um papel em branco, e desde muito cedo a gente firmou o caminho de buscar no outro a resposta para as deficiências que temos dentro das nossas fronteiras. Essa lógica se estabelece muito cedo. E depois que o Grupo cresce e estabelece seus alicerces, isso não era visto com maus olhos. Era visto com muito mais tranquilidade do que em outros coletivos, porque está atrelado com a própria fundação do Grupo. Ele já nasceu assim, dadas às suas circunstâncias.

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