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GÊNEROS FICCIONALIZADOS E IDENTIDADE DE GÊNERO

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Academic year: 2021

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GÊNEROS FICCIONALIZADOS E IDENTIDADE DE GÊNERO

Audria Albuquerque LEAL (Universidade Nova de Lisboa/ CLUNL, F. C. Gulbenkian) Matilde Alves GONÇALVES (Universidade Paris 8/ Universidade Nova de Lisboa/ CLUNL-FCT)

ABSTRACT: The present work intends to distinguish the processes from actualization and fictionalization of genres and, thus contribute for its identification. The idea that all text belongs to one genre is consensual. We distinguish in this relation of belonging two processes: 1) the genre is an abstract category, it is only possible to observe it throughout the texts that carry through it, in this in case that it is said of actualization process 2) the genres and the texts nor always have a linear relation, have texts that they are constructed appealing to one “pastiche” of genre, in this in case that it is said of fictionalization process. In this work they will be analyzed phenomenon of actualization and fictionalization to the light of the notion of parameters of genre, which allows to the comment of the identity of a genre and its textual realization.

KEYWORDS: Textual genre, actualization, fictionalization, parameters of genre

1. Introdução

Nesse trabalho, consideramos que as nossas atividades lingüísticas se realizam na forma de textos. Assumimos que o texto, como atividade global da comunicação, é produto da interação humana em situação de comunicação na qual estarão em jogo, para além dos aspectos lingüísticos, fatores sociais, culturais e históricos. No âmbito dos estudos dos gêneros textuais, é consensual a idéia de que os textos se realizam sob a forma de um gênero textual. A noção de gênero está relacionada com a diversidade das práticas sociais, ou seja, os gêneros apresentam características sociocomunicativas variáveis de acordo com as necessidades comunicativas humanas. Essa noção remete-nos a duas questões fundamentais: a primeira relaciona o gênero ao conjunto das atividades de linguagem, ou seja, as atividades comunicativas irão influenciar a escolha do gênero. A segunda remete-nos para a idéia de que, sendo o texto a materialização empírica do gênero, então, no ato da produção textual, estarão em evidência, no texto, elementos que revelam o gênero convocado. Assim, enquanto a primeira questão refere-se à ligação entre as atividades de linguagem e o gênero; a segunda questão está relacionada com a estabilidade do gênero, ou seja, com elementos que participam na realização de um texto. Isto torna possível o reconhecimento do gênero que esse texto convoca, contribuindo para a caracterização da identidade desse gênero textual.

Ciente da problemática levantada nos estudos dos gêneros textuais, seja na caracterização dos géneros, seja na sua relação com as atividades humanas, o presente trabalho tem a preocupação de esclarecer dois fenômenos que se relacionam com a identidade do gênero: a atualização e a ficcionalização de gêneros. Interessando-nos pelas relações entre textos e gêneros e partindo do fato de que todo o texto representa um gênero, parece-nos fundamental esclarecer estes fenômenos. Designamos por atualização o fenômeno da construção textual em que um gênero é convocado. Já o segundo é observado quando há, na produção textual, uma “colagem” de um gênero, sendo que, nessa produção textual, algumas caraterísticas próprias do gênero escolhido são desvirtuadas. A explicação e a manifestação desses fenômenos nos textos serão vistas ao longo do trabalho.

Para caracterizar estes processos, adotamos como instrumento de análise a noção de “parâmetros de gêneros” (cf. COUTINHO et ali. (no prelo) e GONÇALVES e MIRANDA, 2006). Nessa perspectiva, acreditamos que todo gênero textual possui suas próprias

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características e uma análise do texto aponta caminhos para a compreensão do funcionamento do gênero bem como dos elementos que formam a identidade desse gênero. Salientamos, ainda, que a nossa análise está orientada pelas contribuições do interacionismo sociodiscursivo (doravante ISD) proposto por Bronckart (1999) com a qual concordamos. Para esse trabalho, analisar-se-ão à luz desta noção um gênero atualizado e um gênero ficcionalizado, ambos pertencentes à actividade jornalística com o objetivo de observar a ocorrência dos dois fenômenos atrás descritos. A escolha desses gêneros procura desfazer a tendência que, à primeira vista, relaciona o processo de ficcionalização ao discurso literário e mostrar que, pelo contrário, ele é produzido em diferentes actividades sociais e de linguagem. Para tal, e num primeiro momento, apresentaremos a categoria analítica atrás referida “parâmetro de gênero” relacionando-o à noção de gênero textual e à identidade de gênero. Num segundo tempo, serão descritos os fenômenos de atualização e de ficcionalização e sua realização textual. Para terminar, concluiremos o nosso propósito através da observação e da análise da manifestação desses dois fenômenos em textos tal como circulam na sociedade.

2. Noção de gênero textual, “parâmetro de gênero” e identidade de gênero

A definição de gêneros textuais como prática lingüística determinada socialmente parte do princípio de que a língua é um fato social e, portanto, sujeita as necessidades comunicativas do homem. A partir dessa idéia, surge a noção de gênero como a realização de textos que apresentam características sociocomunicativas variáveis de acordo com a diversidade das práticas sociais humanas. Ao analisar a relação entre as atividades sociais e gêneros de textos, Machado (2005) esclarece que, para o ISD, as atividades sociais como produtoras de formas de comunicação estabilizam os gêneros textuais. E, também, salienta que as diferentes atividades levam a que haja uma diversidade de gêneros de textos próprios de cada esfera dessas atividades. Nessa mesma linha de pensamento, Marcuschi (2001) também relaciona as atividades de linguagem aos gêneros textuais. Ele afirma que os gêneros são estruturas mais ou menos sólidas que se distribuem na oralidade e na escrita como práticas sociais sedimentadas longamente desenvolvidas e testadas. Sua definição é de natureza sociocomunicativa, com parâmetros essencialmente pragmáticos e discursivos. Portanto, são fenômenos históricos, profundamente ligados ao social e ao cultural. Para esse autor, apesar dos gêneros possuírem poder preditivo e interpretativo das ações humanas em qualquer contexto discursivo, eles não são estanques, mas possuem, entre suas características, a maleabilidade, o dinamismo e a plasticidade. Eles surgem de acordo com as necessidades e atividades socioculturais, bem como na relação com inovações tecnológicas.

Ainda segundo Bronckart (2001, op. cit. Machado, 2005, p.250), os gêneros são conhecidos como construtos existentes necessários para a realização das nossas acões comunicativas uma vez que podem ser caracterizados como uma "espécie de 'reservatório de modelos de referência', dos quais todo produtor deve se servir para realizar ações de linguagem". Assim, a noção de gênero aqui apresentada eleva os gêneros à categoria de formas abstratas. Contudo, não podemos negar que, na realização textual, o modelo de gênero adotado apresenta elementos que o caracterizam e que possibilita o seu reconhecimento, através do que denominamos “parâmetros de gênero”.

A noção aqui utilizada – “parâmetros de géneros” – está a ser desenvolvida no seio de um projecto, cuja problemática se preocupa com as relações entre “Género Textual e Organização do Conhecimento”1. Numa primeira fase da investigação, o principal objectivo foi a caracterização dos gêneros. Surgiu assim a necessidade de construção de um instrumento de análise. Com efeito, é de notar que as descrições propostas nas diversas teorias nas quais

1 Este projeto está a ser desenvolvido no Centro de Lingüística da Universidade Nova de Lisboa, pela equipe de pesquisadores em Teoria do Texto da qual fazemos parte.

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nos baseamos2 visam a criação de instrumentos para a análise de textos e não para a análise de gêneros. Baseando-nos no modelo da arquitetura textual, tal como o Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) o concebe e introduzindo ou reformulando alguns elementos3, elaboramos um instrumento de análise sob forma de grade4, conforme apresentamos abaixo. Tabela 1 – Grade de análise

Como convém especificar, a noção de “parâmetro de gênero” insere-se num certo tipo de análise, a de gêneros, que pretende identificar os traços específicos de um determinado gênero. Para averiguar quais os “parâmetros genéricos”, é preciso, antes de mais, efetuar uma

2 Situamo-nos no quadro teórico do interacionismo sociodiscursivo desenvolvido por Bronckart, 1999; 2004; 2005 articulando-o com perspectivas convergentes na área dos textos e dos discursos, nomeadamente Adam 1997 e 1999 e Rastier 2001.

3 Estes elementos estão representados na grade em negrito. 4

Sobre a constituição da grade e das diferentes classes analíticas subjacentes a esta: os “parâmetros de gênero” e os “mecanismos de realização textual”, ver COUTINHO et alii. (no prelo) e GONÇALVES e MIRANDA (no prelo).

Parâmetros do contexto de produção Valores dos parâmetros

Contexto físico Lugar de produção Momento de produção Produtor Receptor

Suporte e condições de circulação Epitexto(s)

Contexto socio-subjectivo

Lugar social

Posição social do emissor (enunciador) Posição social do receptor (destinatário) Finalidade(s) Estratégias de produção A ã o d e li n g u a g em C o n d õ es d e P ro d u çã o Contexto de produção (conj. de parâmetros susceptíveis de influenciarem o modo como um texto se organiza) Contexto cognitivo

Representações (do conteúdo temático, do

produtor/enunciador, do receptor/destinatário, do arquitexto, outras)

Recurso ao arquitexto – escolha do gênero de texto considerado adequado

Tipificadas Tipos de discurso; Sequências; Outras V er b a is Outras

Identidade temática; Identidade ilocutória;

Outras

Não verbais (icónica, semio-gráficas, outras) Constituição de unidades

textuais (UTs)

Mistas

Articulação entre unidades tipificadas Modalidades de

articulação entre UTs

Articulação entre quaisquer UTs Espaço-temporal

Retórica

Infraestrura interna

ou plano de texto

Disposição das UTs

Outras

Verbais Conexão

(segmentação/ligação)

Organizadores

textuais Não verbais Coesão nominal

Coesão verbal Mecanismos de

textualização

Outras

Distribuição das vozes

T E X T O A R Q U IT E C T U R A I N T E R N A Mecanismos de responsabilização

enunciativa Expressão dos pontos de vista

P A R Â M E T R O S D E G Ê N E R O M E C A N IS M O S D E R E A L IZ A Ç Â O T E X T U A L

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análise textual – visto o gênero ser uma categoria abstrata apreensível através dos textos. A análise textual de um corpus, pertencendo ao mesmo gênero, faz-se à luz do nosso instrumento, a grade. Dessa análise, são determinadas as ocorrências – ou traços comuns – observáveis nos textos e as especificidades inerentes a cada texto, que fazem dele um objecto único e singular. Esta etapa permitiu distinguir duas classes analíticas: os “parâmetros de gênero”, ou seja, o que o gênero prevê e os mecanismos de realização textual que permitem observar como os textos atualizam o gênero do qual dependem.

Os “parâmetros de gênero” são um instrumento que dá conta das possibilidades e das impossibilidades organizacionais previstas pelo gênero, ou seja, funcionam na produção textual como normas para a construção de um texto inscrito no gênero em questão. Assim sendo, estes “parâmetros” são dados que o pesquisador obtém a partir da análise de gênero. Para a concepção desta noção importa sublinhar a definição de Rastier sobre o gênero:

Programme de prescriptions (positives ou négatives) et de licence qui règle la production et l’interprétation d’un texte. Tout texte relève d’un genre et tout genre, d’un discours. Les genres n’appartiennent pas au système de la langue au sens strict, mais à d’autres normes sociales. (Rastier, 2001, p. 299)

Essas “normas sociais” às quais Rastier se refere estão diretamente relacionadas com o que Bronckart chama ação de linguagem, ou seja, essas normas condicionam a atividade de linguagem.

Após termos apresentado o instrumento de análise que nos permitirá analisar a identidade do gênero, focar-nos-emos na descrição de dois fenômenos ligados ao funcionamento social do gênero: o processo de atualização e ficcionalização.

3. Processo de atualização e processo de ficcionalização: análise de casos

Antes de iniciarmos a análise dos textos, é importante definir o que entendemos, nesse trabalho, por atualização e ficcionalização. Como referido ao longo do nosso trabalho, o ISD considera a ação de linguagem como fator determinante para a reformulação do gênero no instante do próprio ato comunicativo, ou seja, do que chamaremos de atualização.

Tal como defende Bronckart (1999), os conhecimentos que o produtor tem sobre os diversos gêneros são derivados das várias situações sociais em que esse produtor atua. Assim, podemos concluir que, dentro de uma determinada situação de ação de linguagem e tendo por base os conhecimentos já adquiridos socialmente, o produtor “adota” um determinado gênero entre os diversos modelos existentes e o “adapta” ao que lhe parece mais adequado à sua situação e de acordo com a sua necessidade comunicativa. Ainda segundo Bronckart:

Embora o processo de empréstimo inspire-se, necessariamente, em modelo existente, quase nunca acaba em uma cópia integral ou em uma reprodução exata de um exemplar desse modelo. Os valores do contexto sociosubjetivo e do conteúdo temático de uma ação de linguagem sendo, pelo menos em parte, sempre novos, o agente que adota um modelo de gênero também deve, necessariamente, adaptá-lo a esse valores particulares. (Bronckart, 1999, p. 102)

É com base nesse pressuposto que entendemos o processo de atualização do gênero. Bronckart (1999) explicita que o produtor, ao adotar um gênero textual, o faz a partir de conhecimentos construídos sobre as situações sociais em que atua e na sua relação com o gênero que é o mais adequado a essa situação. Com base nisso, as ações dos agentes produtores da comunicação são construídas segundo a relação existente entre as coordenadas que organizam o conteúdo temático e as coordenadas que organizam o contexto de produção. Assim, no conjunto de modelos de gêneros existentes, a realização de um gênero pelo texto

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não é uma simples reprodução do gênero escolhido, mas uma reformulação e adequação em que está em jogo a relação entre as coordenadas tanto do conteúdo temático como do contexto de produção. É isso que chamamos, nesse trabalho, de atualização de gêneros. Desta forma, podemos esquematizar da seguinte maneira o processo de atualização: 1) Adoção de um determinado gênero 2) Adaptação do gênero à situação comunicativa.

Essa relação entre as coordenadas do conteúdo temático e do contexto de produção também existe no processo de ficcionalização. Concebemos o processo de ficcionalização (cf. MIRANDA, nesse volume), dentro de uma determinada atividade de linguagem, como uma adoção não-linear do gênero pelo produtor, ou seja, como uma utilização dos traços específicos desse determinado gênero, orientando-o para uma desvirtualização dos “parâmetros gênericos” de acordo com as suas necessidades comunicativas. Assim, entendemos que os gêneros ficcionalizados guardam alguns “parâmetros do gênero” inicial. Isso permite a permanência da identidade, assim como a possibilidade de este objecto ser reconhecível e interpretado, apesar de alguns dos parâmetros serem desvirtuados. Neste caso, convém salientar a importância da relação entre gênero atualizado e gênero ficcionalizado para poder distinguir quais parâmetros são mantidos e quais são desvirtuados.

Para observar os fenômenos atrás descritos, recorremos à análise de alguns “parâmetros do gênero” “inquérito”. Debruçar-nos-emos, num primeiro tempo, na ação de linguagem (contexto físico, sociosubjetivo e cognitivo) e num segundo tempo na arquitetura interna do texto (constituição de unidades textuais, mecanismos de textualização e mecanismos de responsabilização enunciativa).

O corpus desse trabalho é composto por três textos. O primeiro (que corresponde ao texto A) foi retirado do jornal “Metro”, do dia 26 de Janeiro de 2007, cuja distribuição é gratuita nos transportes públicos. O segundo (que corresponde ao texto B) pertence ao jornal “Diário de Notícias” do dia 31 de Janeiro de 2007. Já o terceiro (texto C) foi colhido no jornal “Público” no suplemento denominado “o InimigoPúblico”, do dia 03 de Fevereiro de 2007, tendo tiragem semanal.

Seguindo a grade de análise, podemos então determinar quais os parâmetros pertencendo ao contexto de produção (contexto de físico e contexto sociosubjecivo) (ver tabelas 2 e 3) e o conteúdo temático (ver tabela 4).

Tabela 2 – Contexto de produção – Contexto físico

Mecanismos Parâmetros

Texto A Texto B Texto C

Lugar de

produção Redação dos jornais Redação dos jornais Redação dos jornais

Momento de

produção Produção diária Produção diária Produção semanal

Produtor Redator não

identificado

Redator não

identificado Patrícia Castanheira.

Receptor Público em geral Público em geral Público em geral

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Tabela 3 – Contexto de produção – Contexto sociosubjetivo

Mecanismos Parâmetros

Texto A Texto B Texto C

Lugar social Lugar social: ruas da

cidade

Lugar social: ruas da cidade

Lugar social: redação do jornal

Posição social do emissor/enunciador

Entidade jornalística

Entidade jornalística Humorista

Posição social do receptor/destinatário

Abrange posições sociais mais diversas.

Abrange posições sociais menos

diversas

Abrange posições sociais mais específicas

Finalidade (s) Informar a opinião do

público em geral. Informar a opinião do público em geral. O entreterimento do público em geral. Estratégias de produção Produção envolvendo várias pessoas/ entidade jornalística. Produção envolvendo várias pessoas/ entidade jornalística É um projeto conjunto do jornal – Público – com as empresas de entreterimento

– Produções Fictícias e Farol de Idéias através de O

Estado do Sítio.

A ação de linguagem é determinada pelo contexto de produção tanto pelo contexto físico como pelo contexto sociosubjetivo. Quanto ao contexto de produção, podemos afirmar que se constitui num conjunto de fatores referentes ao mundo físico ou ao mundo social (normas, valores, regras, etc.) e ao mundo subjetivo (imagem que o agente faz de si ao agir, etc.) que interferem na organização textual. Quanto aos fatores de ordem física, Bronckart (1999, p.93) observa que o agente ao produzir um texto o faz levando em consideração as restrições definidas pelo lugar e momento de produção, e pelo papel do emissor e do receptor dos textos (aquele que produz e aquele que receberá o texto). Para os textos A e B, o primeiro dos contextos – físico – é definido, conforme tabela 2, pelo lugar de produção que será a redação de ambos os jornais; pelo momento de produção, no qual A e B têm tiragem diária; pelo produtor que, nesse caso, será um redator não identificado; pelo receptor, que é o público em geral; e o suporte que é o mesmo para todos os textos. Com relação ao texto C, apesar do lugar de produção, o receptor e o suporte serem os mesmos de A e B, há uma diferença no momento de produção – A e B são diários e o C é semanal – e no produtor uma vez que nos textos A e B não têm repórter definido que assuma a responsabilidade de ser o produtor do texto, mas, em contrapartida, no texto C temos a autora “Patrícia Castanheira”. Com efeito, a responsabilidade pelo texto é ligada, nesse caso, à posição social do emissor (cf. tabela 3) que no exemplo A e B é a entidade jornalística e no C é o humorista. Reconhecemos o papel social do texto C a partir do suplemento do qual se retirou esse texto. O C é reconhecidamente elaborado com uma finalidade de entreter os leitores e, para comprovar, encontramos na manchete o enunciado “Se não aconteceu, podia ter acontecido”, fazendo, assim, uma clara referência ao papel lúdico desse suplemento.

A respeito dos parâmetros de ordem sociosubjetiva do contexto de produção, o lugar social, para os textos A e B, é as ruas da cidade, enquanto que para o texto C é a redação do jornal. Essa questão coloca um ponto interessante, pois uma das características do gênero “inquérito” refere-se ao fato de ser colhido nas ruas uma vez que se trata da opinião das pessoas comuns que vão respondendo à pergunta feita pelo jornalista. Como o texto C é elaborado no próprio jornal, isso não ocorre. Pois as perguntas são feitas às personagens fictícias criadas pelos humoristas, contribuindo para a criação de um mundo fictício. Este é

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um dos parâmetros que é subvertido (cf. tabela 4). A posição social do emissor e do receptor – que lhes dá o estatuto de enunciador e destinatário respectivamente – causa um certo efeito de sentido no seu destinatário e está ligada à finalidade. Sendo o papel social dos textos A e B, sinalizado pela entidade jornalística, o que subjaz a intenção de informar, o objetivo produzido no destinatário está ligado a essa intenção. De forma diferente, no texto C, a posição social do enunciador, o humorista, encaminha para outra finalidade – a de entreter o receptor.

A posição social do receptor é determinada, no texto A, pelo fato do jornal ser gratuito e distribuído nos transportes públicos o que pressupõe que o “público-alvo” é mais alargado, ou seja, abrange posições sociais mais diversas. Para o texto B, o público-alvo é o que compra o jornal, sendo, por isso, menos alargado que o texto A. Para o texto C, o público é mais específico que aquele do texto A e B, já que apenas pessoas que se interessam pelo humor satírico de temas da sociedade procuram ler esse tipo de jornal. Afinal, o texto C caracteriza-se por caracteriza-ser uma ação de linguagem por meio da qual “produtores sociais” (os humoristas) apresentam uma visão satírica de temas que circulam na sociedade com objetivo lúdico. Tabela 4 – Conteúdo temático

Mecanismos Parâmetros

Texto A Texto B Texto C

Conteúdo temático: apresenta temas vigentes na sociedade Tema: hábitos culturais ligados ao teatro “Costuma ir ao teatro? Qual foi a última peça

que viu?”

Tema: desenvolvimento urbanístico “O impacto de Tróia

para Setúbal”

Tema: visão satírica em relação ao referendo sobre

aborto “É uma daquelas

pessoas que até votaria SIM se a

pergunta fosse outra?”

O conteúdo temático refere-se ao conhecimento do indivíduo adquirido no meio social e cultural e que se manifesta no texto. A ação de linguagem influencia o conteúdo temático como podemos constatar ao observar os três textos. O texto A apresenta como tema as informações sobre o hábito da própria pessoa entrevistada de ir ao teatro. O texto B expõe o tema do desenvolvimento da cidade de Tróia e a sua influência em Setúbal. No caso do texto C, o tema não está tão explícito quanto os textos A e B. Neste caso, o conteúdo temático será recuperado pelo leitor a partir da memória social. Isto porque a pergunta não é de modo algum clara e explícita. Contudo, temos algumas marcas que orientam para a compreensão do tema – referendo sobre o aborto5. Uma dessas marcas é a data da publicação, uma vez que esse referendo decorreu uma semana depois da publicação desse texto. Portanto, trata-se de um assunto que ainda estava presente na comunicação social. Outra marca é o próprio nome “sim” em letras maiúsculas que faz referência ao boletim de voto. Assim, a falta de uma pergunta clara mas com referências indiretas ao tema contribui para o papel comunicativo do texto de ironizar, satirizar um assunto da realidade social. O mesmo não é objetivo dos textos A e B cuja finalidade está em informar e apresentar o ponto de vista ao leitor do jornal.

5

No dia 11 de Fevereiro de 2007, decorreu, em Portugal, um referendo sobre a despenalização do aborto, cuja pergunta era: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”

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Tabela 5 – A arquitetura interna dos textos. Atualização Ficcionalização Aspecto da organização interna Parâmetros do gênero “inquérito” Mecanismos de realização textual Texto A Mecanismos de realização textual Texto B Mecanismos de realização textual Texto C Constituição de unidades textuais verbais (UTS) – Abertura/título da seção

“Pergunta do dia” “Vox Populi” “Inquérito”

Constituição de unidades textuais

verbais (UTS) –

Identidade temática

Oração interrogativa que introduz o tema

Oração declarativa que introduz o tema

Oração interrogativa sem referente (coloca problemas a nível da coesão nominal) Infra-estrutura interna ou plano de texto Constituição de unidades textuais (UTS) mistas – Relação entre unidades linguísticas e icónicas Identificação da pessoa entrevistada: parte icônica realizada pela foto maior que

compreende o corpo; parte verbal que compreende nome, profissão, idade e a resposta à questão do inquérito Identificação da pessoa entrevistada: parte icônica realizada pela foto da face;

parte verbal que compreende nome, profissão, idade e explicação do ponto de vista em relação ao tema proposto pelo inquérito

Identificação da pessoa entrevistada: parte icônica realizada foto,

parte verbal que compreende nome (fictício ou não), elementos caracterizadores (fictício ou não) e a resposta à questão do inquérito Mecanismos de textualização Coesão nominal Função de introdução e de retoma na relação entre pergunta e resposta Na pergunta: inserção de uma unidade fonte – teatro – com cadeia anafórica Na resposta: inserção de unidades que consistem na reformulação da unidade fonte Na pergunta: inserção de uma unidade fonte – Tróia e Setúbal – com cadeia anafórica Na resposta: inserção de unidades que consistem na reformulação da unidade fonte Na pergunta: não há inserção de uma unidade fonte, não há construção de uma cadeia anafórica Na resposta: não há inserção de unidades que consistem na reformulação da unidade fonte Mecanismos de responsabilização enunciativa – distribuição das vozes Distribuição de vozes – relação entre as instâncias marcada pela pergunta (instância supra-ordenada) e resposta (instância infra-ordenada) Instância supra-ordenada: redator Instância infra-ordenada: pessoa entrevistada: a) marca da presença da primeira pessoa do singular, b) presença de aspas – marca do discurso alheio Instância supra-ordenada: redator Instância infra-ordenada: pessoa entrevistada a) marca da presença da primeira pessoa do singular, b) presença de aspas – marca do discurso alheio, Instância supra-ordenada: Patrícia Castanheira Instância infra-ordenada: pessoa fictícia entrevistada a) marca da presença da primeira pessoa do singular, b) ausência de aspas – característica do fenômeno de ficcionalização

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Ao analisar a arquitetura interna dos textos A, B e C, encontramos divergências na realização dos mecanismos que apontam para as diferenças entre os fenômenos de atualização e de ficcionalização. A análise dos textos permitiu determinar os “parâmetros do gênero” “inquérito”. Nesse trabalho, demos ênfase apenas a alguns deles (cf. tabela 5). Focando a infra-estrutura interna, observamos, dois tipos de constituição de unidades textuais (UTs): verbais e mistas. Para o primeiro, a abertura constitui-se da mesma maneira para todos os textos analisados – a partir de um título para essa seção. Ainda, nessa primeira constituição, a verbal, a identidade temática é fornecida por uma oração que pode ser declarativa (para o texto B) ou interrogativa (para o texto A e C). Contudo, a identidade temática não se apresenta de forma clara. (ver nesse trabalho: conteúdo temático, tabela 4 e mecanismos de textualização, tabela 5). Para o segundo, o tipo de UTs é misto. Observamos a presença de uma unidade icónica e verbal. Os mecanismos são semelhantes no textos A e B. Já no texto C, a relação entre o verbal e o icônico é desvirtuado, ou seja, não corresponde com a realidade (ver anexo 3). A foto tem o objetivo de acentuar as informações dadas sobre o entrevistado. No caso do C, como os dados sobre o entrevistado são fictícios a foto também apresenta indícios de um mundo fictício (ver o personagem Possidónio Mata Ratos). Com efeito, a disposição das unidades verbais e icónicas dentro dos textos são semelhantes, no entanto, quanto aos mecanismos de textualização e de responsabilização enunciativa vemos que há diferenças entre o processo de atualização e o de ficcionalização.

Em relação aos mecanismos de textualização, nomeadamente, a coesão nominal, notamos que o gênero “inquérito” apresenta o mecanismo de coesão com duas funções: a de introdução e a de retoma. A primeira função está contida na pergunta, criando uma unidade fonte que permitirá a criação da cadeia anafórica. A segunda função está essencialmente na resposta que retoma a unidade fonte construída na pergunta. Todavia, no texto C, há, novamente, uma deturpação na realização dos mecanismos de textualização. Isto porque não há uma introdução de unidade fonte na pergunta, nem tampouco há retoma de unidades fontes na resposta. Na pergunta colocada “É uma daquelas pessoas que até votaria SIM se a pergunta fosse outra?” falta a referência, no texto, para o termo “a pergunta fosse outra” o que causa um efeito de nebulosa.

Na análise dos mecanismos de responsabilização enunciativa uma vez mais o “parâmetro do gênero” “Inquérito” dos textos A e B é mantido, ou seja, a relação entre as instâncias é marcada pela pergunta da instância supra-ordenada – o repórter – e pela resposta da instância infra-ordenada – pessoa entrevistada. No texto C, observamos que os mecanismos de responsabilização enunciativa apontam para o processo de ficcionalização: não há diferença de vozes enunciativas. A instância supra-ordenada e infra-ordenada são a mesma entidade: Patrícia Castanheira. Afinal, as vozes dos personagens correspondem à voz da própria humorista. Os personagens e suas opiniões fazem parte do mundo fictício criado pela autora.

4. Conclusão

Para concluir, reafirmamos a nossa convicção que o gênero se relaciona com as nossas práticas sociais, ou seja, as características sociocomunicativas vão variar de acordo com as necessidades comunicativas humanas. Acreditamos que é na ação de linguagem que o gênero é convocado. É consensual a idéia que a relação entre a ação de linguagem e o gênero se apresenta de um modo dinâmico, variando de acordo com o momento social, cultural e histórico. Essa relação faz com que o gênero tenha como características a “maleabilidade, o dinamismo e a plasticidade” sem perder, contudo, a sua estabilidade. E é essa estabilidade que podemos observar nos textos a partir daquilo que chamamos de “parâmetros de gênero”.

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A observação do gênero “inquérito”, à luz do nosso instrumento de análise “parâmetro de gênero” permitiu-nos não somente dar conta da identidade do gênero, como também relacionar essa idêntidade à existência de dois fenômenos: o de atualização e o de ficcionalização. O primeiro define-se pelo fato de um produtor recorrer a um determinado gênero, adotando-o e adaptando-o à situação de comunicação. O fenômeno de ficcionalização é semelhante ao de atualização, uma vez que ocorre tanto o processo de adoção como o de adaptação. Contudo, como mostrou a análise do texto C, na adaptação, manifesta-se uma desvirtualização dos parâmetros da ação de linguagem que são revelados pelos mecanismos de realização textual, caracterizando-se, assim, como ficcionalização.

Assim sendo, a ficcionalização do gênero funciona também como um tipo de atualização do mesmo, visto que o gênero ficcionalizado guarda características que permitem identificá-lo e relacioná-lo ao gênero atualizado. Isto é realizável graças às características de maleabilidade inerentes ao objecto abstrato que é o gênero.

Portanto, a análise dos “parâmetros de géneros” permite, por um lado, estabelecer a identidade de um gênero, por outro, desvendar os processos de atualização e de ficcionalização; sendo esses processos também responsáveis pela identidade do gênero. Admitimos que o trabalho aqui apresentado não é um trabalho esgotado, deixando assim portas abertas e caminhos a serem seguidos.

Anexos

Anexo 2. “Pergunta do dia” in Metro, 26 de Janeiro de 2007

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Anexo 2. “Vox populi”, in DN, 31 de Janeiro de 2007

Anexo 3. “Inquérito” in Inimigo Público, 3 de Fevereiro de 2007

Referências

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COUTINHO, Maria Antónia; ALVES, Marisa, GONÇALVES, Matilde; MIRANDA, Florencia & PINTO, Rosalice. Parâmetros de géneros e mecanismos de realização textual – aspectos teóricos. Diácritica, v. 21, n. 1. 2007. (no prelo).

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Referências

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