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a interseccionalidade entre gênero e raça para a construção étnico-identitária das

mulheres negras

Mariane Camargo D’Oliveira1 Maria Aparecida Santana Camargo2

Resumo: A intersecção entre gênero e etnia é problemática que perpassa a multiplicidade de

questões concernentes à edificação identitária das mulheres negras. Com base neste entendimento, é objetivo do estudo (re)pensar alternativas de desfragmentação de concepções étnicas fortemente arraigadas e obsoletas, especialmente através da luta antirracista, das ações de reversão dos impactos do sexismo e das desigualdades, bem como da implementação de políticas públicas. Isto porque os estudos sobre mulheres têm demonstrado que houve uma centralidade no debate, embora os feminismos “não brancos” venham, paulatinamente, questionando a unidade do “nós”, ao argumentar que a tendência principal foi e tem sido a branca, não contestadora ao racismo. Nesse sentido, mostra-se necessário compreender que não há mais espaço para subalternizar esta temática, à medida que se almeja transcender o processo histórico de discriminação, rompendo com o mito da democracia racial. Assim, a invisibilidade tende a desaparecer quando se compreende que as experiências vivenciadas se constituem em estratégias de reivindicação. A afirmação étnico-identitária das mulheres negras tem, portanto, papel essencial no âmbito multicultural que se constrói na contemporaneidade a partir de uma perspectiva de resistência e protagonismo.

Palavras-chave: Discriminação. Políticas Públicas. Reivindicação.

O embate antirracista brasileiro engendrado mediante a busca pelo reconhecimento e valorização da mulher negra tem alcançado, paulatinamente, vitórias ao longo dos anos. Ainda falta muito, é claro, de forma principal em decorrência da afirmação cultural do embranquecimento. É indispensável, assim, reconceitualizar quem é – ou se diz – branco e como este debate da identidade pode colaborar nas discussões das relações étnico-raciais. Isto porque a experiência de ser negra, no país, somente tem consciência quem vivencia o histórico de discriminação, já que o preconceito étnico ainda opera enquanto instrumento de revigoramento da diferenciação.

A afrocentricidade é, pois, o elemento primordial quando se pretende analisar a temática étnico-racial, notadamente à medida que se almeja edificar espaços de articulação e resistência negra ao preconceito e à discriminação. Logo, ao se descortinar a África, pode-se desconstruir a imagem padronizada da mulher negra. Nesse sentido, é mister lutar pelo direito universal à não discriminação, perquirindo novos parâmetros para nortear as políticas públicas, porquanto não basta

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito, com concentração na área de Políticas Públicas de Inclusão Social, da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC/RS). Graduada em Direito pela Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ/RS). Advogada.

2 Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Professora da Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ/RS). Líder do Grupo de Pesquisa em Estudos Humanos e Pedagógicos da UNICRUZ. Artista plástica.

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repetir a mera abstenção da prática discriminatória, impõem-se medidas eficazes de fomento da efetiva igualdade e da valorização da diferença.

A partir destas perspectivas é que se mostra fundamental (re)pensar alternativas de desfragmentação de concepções étnicas fortemente arraigadas e obsoletas, especialmente através da luta antirracista, das ações de reversão dos impactos do sexismo e das desigualdades, bem como da implementação de políticas públicas. Transcender o processo discriminatório e encontrar práticas de resistência são essenciais para a substancial inserção da mulher afro na hodierna conjuntura sociocultural.

Desta maneira, a intersecção entre raça e gênero, assim como as demais construções sociais, têm impacto na afirmação identitária do sujeito. É necessário assinalar, assim, que, a par da luta política subjacente às escolhas conceituais, a uniformidade ou linearidade possível refere-se tão somente à necessidade de embasamento teórico para abordar o fenômeno complexo dos impactos do preconceito étnico na vida das mulheres negras. Verifica-se decisivo neste processo a indispensável reestruturação das culturas institucionais em suportes democráticos e inclusivos, bem como estabelecer novas práxis antirracistas, principalmente face ao consenso acerca da urgência de seu enfrentamento por todos os instrumentos e com a participação dos atores sociais.

Discutindo interconexões entre gênero e raça

Sob esta ótica, a definição de raça como uma construção social implica a denúncia da existência e atuação de um sistema complexo de hierarquização social que utiliza características biológicas específicas como marcadores de diferenças e desigualdades entre grupos. No Brasil, sob a égide do seu significado social e legitimada pela ideologia do racismo, estabeleceu-se a inferioridade da etnia negra, a partir da qual descendentes dos diferentes povos africanos, trazidos como escravos, passaram a ser agrupados no estrato inferior da hierarquia sociorracial, em consonância com o referido por Lopes e Werneck (2000).

É possível analisar, desse modo, que a interseccionalidade “traduz as várias formas como raça e gênero interagem para moldar as múltiplas dimensões das experiências” das mulheres negras, conforme esclarece Crenshaw (2002, p. 177). A partir disso, pode-se compreender que a utilização do termo como ferramenta de análise possibilita vislumbrar a complexidade da vivência cotidiana, que cria um contexto híbrido e fluido onde diferentes grupos existem, se articulam e empreendem mobilizações por melhores condições. Tais lutas impossibilitaram isolar qualquer um dos fatores atuantes na vida dos sujeitos, seja cor, etnia, gênero, classe social, idade e sexo.

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A etnicidade, segundo Juteau-Lee (1983), pode ser concebida como fluida e construída no interior de relações desiguais, sendo uma relação social que possui uma face externa – a relação com outrem –, e uma face interna – a relação com uma história e com uma origem comuns. A partir da reflexão acerca destas complexas problemáticas, bem como buscando desconstruir a homogeneidade da categoria “mulheres” e levar em consideração sua diversidade de situações, interesses e identidades, as feministas introduzem em seus exames outras dimensões sociais, sendo acrescentadas as de etnicidade e classe, como aduz a autora em questão (2009).

O uso dos conceitos de raça e de relações raciais não deve, portanto, ser restrito. A análise proposta sugere que a exploração de grupos claramente demarcados segundo uma grande variedade de diferentes maneiras é parte integrante do capitalismo e que grupos étnicos se unem e agem em conjunto por terem sido submetidos a tipos de exploração distintos e diferenciados. As relações raciais e os conflitos raciais são necessariamente estruturados pelos fatores econômicos e políticos de caráter mais geral, na visão de Bottomore (2012).

Precisamente por dependerem de um processo histórico e discursivo de construção da diferença, raça e etnia estão sujeitas a um constante processo de mudança e transformação. Na teoria social contemporânea, a diferença, tal como a identidade, não é um fato, nem uma coisa. A diferença, assim como a identidade, é um processo relacional. Diferença e identidade só existem numa relação de mútua dependência. O que é (a identidade) depende do que não é (a diferença) e vice-versa. É por isso que a teoria social contemporânea sobre identidade cultural e social recusa-se a simplesmente descrever ou celebrar a diversidade cultural. A diversidade tampouco é um fato ou uma coisa. Ela é o resultado de um processo relacional – histórico e discursivo – de construção da diferença, na compreensão de Silva (2013).

Com suporte nestas concepções e na medida em que é autoconscientemente reivindicada, a etnicidade é parte da identidade. De acordo com Platt (2010), a identificação com determinada etnicidade será afetada pelas percepções dos outros e pelo uso que fazem de categorias étnicas para situar um indivíduo. Esses processos de autoidentificação e identificação por outros, juntamente com um senso de etnicidade comum, resultam em concepções de grupos étnicos distintos. Examinar se determinados grupos estão em desvantagem – e se e como as sociedades discriminam minorias – exige uma análise das experiências e oportunidades de vida dos diferentes grupos étnicos existentes em todas as ambiências do campo social.

Nesse prisma, constata-se que diversos podem ser os marcos teóricos para se explicar a construção do ideário sobre raça e racismo e sua intersecção com as questões do gênero no Brasil.

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Grande influência foi exercida pela Europa do século XIX e pela sistematização científica dos estudos étnicos. O estabelecimento da diferenciação racial constituiu o aporte científico necessário para que o racismo pudesse tornar-se uma prática no mundo moderno, consoante alude Seyfert (1996). Entre outros fatores, entendia-se que os problemas de ordem socioeconômica seriam ocasionados pela hereditariedade inferior ou por complicações genéticas dos povos e das raças, como explica Chase (1977).

Percebe-se, dessa maneira, que a interseccionalidade entre gênero e raça é embaraçosa. Isto porque, a partir dos anos 1980, houve uma centralidade dos debates em torno da oposição entre mulheres brancas e “mulheres de cor”, porquanto as feministas negras e dos países colonizados tachavam de essencialismo o feminismo dominante, praticado por mulheres brancas. Nesse sentido, os feminismos não-brancos vêm há muito questionando a unidade do “nós”, argumentando que a tendência principal do feminino foi e tem sido a branca, não contestadora ao racismo3.

Ademais, os estudos de mulheres (women’s studies) pouco abordaram as experiências daquelas submetidas a múltiplas formas de opressão – de gênero, raça, classe, dentre outras – como têm vivenciado historicamente as mulheres negras. Sem dúvida, as feministas negras reconhecem a relevância das abordagens desconstrucionistas pós-modernas, todavia, desconfiam de suas posturas, em conformidade com o que elucida Sardenberg (2002). Partindo destes pressupostos, pode-se compreender que a articulação do racismo com o sexismo deve ser sopesada com as inúmeras variáveis, uma vez que se constituem em formas de opressão, as quais, embora possuam histórias diferentes, não deixam de estar correlacionadas. Por conseguinte, é essencial entender que a construção de categorias sociais engloba a maneira como se interconectam diversos processos de diferenciação e hierarquização na conjuntura sociopolítica.

Nesse ponto, Varikas (1998) alerta que a imbricação dessas relações se manifesta diversamente. A família e a maternidade são colocadas no centro do discurso nacionalista que defende a pureza da “raça” e a homogeneidade do grupo. A representação feminina, que está no cerne do imaginário social, serve para demarcar as fronteiras e definir a identidade do grupo. A “questão das mulheres” se vê utilizada para comparar e avaliar diferentes grupos étnicos. Ainda que as mulheres participem das lutas de liberação nacionais, elas permanecem frequentemente privadas

3 Em um primeiro momento as mulheres não negras do movimento feminista acusaram as negras de racistas por quererem separar a luta das mulheres negras da luta das mulheres brancas. No entanto, a reivindicação era diferente, pois não se poderia contestar por algo que não era vivido e não era sentido na pele pelas mulheres brancas. Assim, há a necessidade de dar visibilidade às questões específicas da mulher negra e romper com o mito da mulher universal, já que a sociedade precisava – e ainda precisa – entender que, além do preconceito de gênero, a mulher negra sofre ainda mais com falta de oportunidades e de direitos, como ressalta Martins (2008).

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dos direitos de cidadania. A relação das mulheres com a etnicidade passa, antes de tudo, por sua contribuição, específica e exigida, à reprodução biológica e cultural do grupo étnico ou nacional. Essa contribuição inscreve-se em relações sexistas, de modo que os homens exercem controle sobre as mulheres, sobre seu trabalho e sobre seu corpo.

Nascimento (2003), ao discutir as dimensões do racismo e do sexismo, relembra o contexto histórico de justificação das subalternidades como um processo que vai além de tornar naturais as desigualdades sociais. Identifica os grupos discriminados com a própria natureza, em oposição ao ser humano, e representa como subumanas ou animalescas as pessoas cujos corpos trazem as marcas identificáveis. Nesse aspecto, a identidade, se considerada única e euro-centrada, torna-se instrumento de dominação política e cultural.

Atinente a este processo de edificação da identidade negra, Dayrell e Gomes (2002) afirmam que esta é construída historicamente em uma sociedade que padece de um racismo ambíguo e do mito da democracia racial. Como qualquer processo identitário, ela se constrói no contato com o outro, na negociação, na troca, no conflito e no diálogo. Ser negro, no Brasil, é “tornar-se negro” e, nesta visão, Nascimento (1974, p. 76) demonstra que “ser negro é enfrentar uma história de quase quinhentos anos de resistência à dor, ao sofrimento físico e moral, à sensação de não existir, à prática de ainda não pertencer a uma sociedade na qual consagrou tudo o que possuía, oferecendo, ainda hoje, o resto de si mesmo”.

Para entender, assim, o “tornar-se negra” em um ambiente de discriminação, é relevante sopesar como essa identidade se solidifica no plano simbólico, mediante os valores, as crenças, os rituais, os mitos e a linguagem desenvolvida na esfera pragmática. Tornar-se, neste caso, significa assumir-se mulher negra, adotando uma "identidade de projeto", capaz de reformular sua inserção na sociedade com o objetivo de interferir na estrutura social, nos termos de Castells (2010). Perfilhando este entendimento, Woodward (2000) esclarece que ao ver a identidade como uma questão de “tornar-se” aqueles que a reivindicam não se limitariam a ser posicionados pela identidade, eles seriam capazes de posicionar a si próprios e de reconstruir e transformar as identidades históricas herdadas de um suposto passado em comum.

No contexto brasileiro, a ausência de uma reflexão que articule as relações raciais e de gênero em diversos espaços de sociabilidade tem impedido a promoção de relações interpessoais respeitáveis e igualitárias entre os sujeitos. O silêncio sobre os impactos destas questões contribuem para que as diferenças sejam entendidas como desigualdades naturais. Está claro, pois, que o debate entre ênfase no multiculturalismo e nas peculiaridades de identidades vai se transformando em

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virtude das amplas linhas étnico-raciais que vão se formando e sustentando a complexa dinâmica cultural. O impacto de uma maior consciência das identidades mutantes e variáveis parece ser a chave para entender a multiplicidade de processos que engendram, cada vez mais, culturas híbridas. A afirmação étnico-identitária das mulheres negras tem, portanto, papel essencial neste âmbito multicultural que se constrói na contemporaneidade.

Nesse ângulo, percebe-se que as instituições estatais operacionalizam, mediante a sustentação de esquemas embasados pelos valores hegemônicos das classes dominantes, a discriminação étnica. Ocorre que o racismo está impregnado nas escolhas institucionais que determinam o funcionamento de políticas, procedimentos, operações e a cultura de instituições públicas ou privadas, reforçando modelos, preconceitos individuais e sendo por eles revigorado.

Pode-se pensar, então, na correlação ideológica existente entre as interações raciais e o processo cultural de embranquecimento. Esta normatividade branca configura-se como a determinação de um padrão para as atitudes dos sujeitos e está intimamente ligada às relações de poder. Tal modelo tem raízes que remontam à virada do século XIX para o XX, através da denominada ideologia da branquitude. De cunho positivista, essa fase foi marcada por teorias de respaldo na ciência da época. Pregava-se que o negro, inferior intelectualmente, seria um atraso para o progresso do país. Dessa forma, a miscigenação foi vista como estratégia para o branqueamento da população brasileira, estimando que o desaparecimento dos negros se daria de maneira natural e em no máximo cem anos4, segundo menciona Santos (2011).

Face a não concretização factual de tais proposições, as mulheres negras foram sendo, paulatinamente, associadas à rotulação “negra, mãe, pobre e empregada doméstica”. Ao contrário da mulher branca – oprimida, no entanto protegida pelo sistema patriarcal –, sobre a qual pairava o mito da fragilidade, condizente com o desprezo generalizado pelo trabalho, a mulher negra foi considerada “pau pra toda obra”. E carregava nas costas não apenas o fardo dos serviços domésticos, mas também de trabalhos extenuantes realizados nas minas, nas lavouras, nas manufaturas ou no comércio. Além disso, era explorada sexualmente pelos patrões, em consonância com a revelação de Carneiro (2004).

Nesse ambiente de opressão e abandono, que perdurou mesmo depois de encerrado o período escravista, a mulher negra, sem poder contar com o auxílio do homem, teve que se

4 Pode-se afirmar que isto gera a violência simbólica, mormente porque a perpetuação e a naturalização da dominação perpassam pelas questões de gênero e de raça. O que conduz a um processo de imposição da cultura dominante, refletindo nesta violência simbólica, a qual é um conceito elaborado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu. Nesse sentido ver, BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

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desdobrar para defender a si mesma e aos seus filhos, deixando atrás de si uma trajetória admirável de coragem, resistência e criatividade. Foi principalmente na recriação dos valores culturais das tradições africanas, que esta reencontrou a autoafirmação de sua identidade.

Considerações finais

Diante de todos estes dados, é possível constatar que as mulheres negras, constantemente, estiveram subalternizadas, sendo que, no contexto atual, ainda existe uma escravidão simbólica a que são submetidas, imperando, notadamente, o mito da mulher negra supersexuada originado da visão patriarcal existente na época escravagista. A partir desse viés, a escrava era considerada uma “coisa” e, por isso, usada para satisfazer as necessidades sexuais dos senhores. Como resultado dos valores morais e religiosos rígidos desta sociedade tradicional, recai sobre a negra os desejos do senhor. As negras ficavam, então, à mercê deste, o que despertava o ciúme e a inveja das senhoras, gerando muitos crimes de tortura e todo o tipo de violência contra as escravas. Negras foram escravizadas na época colonial, sendo que essa condição se estendeu até o final do século XIX.

Depois desse transcurso temporal, o panorama seguiu marcado pela exploração econômica e sexual das mulheres negras, com sua imagem frequentemente associada a padrões de comportamento sexual mais permissivo e personificado no estereótipo da “mulata”. O papel destinado a este grupo continua sendo subalterno, com a desvalorização da sua força de trabalho, no campo e na cidade, altos índices de prostituição e condições precárias de saúde e educação. Este quadro poderia ter sido ainda mais agudo, não fossem os inúmeros movimentos de insurgência, denúncia, reflexões, produções e ações elaboradas por negras nas últimas décadas do século XX e início do XXI. Entender as dinâmicas de organização e os indicadores sobre mulheres negras requer a reflexão a respeito das construções sobre raça e racismo, ao longo de um determinado período na história recente do país, como advertem Heringer e Silva (2011).

Tais argumentações refletem a história de luta dos movimentos negros e de mulheres negras no Brasil, a qual foi marcada por ações que visavam à erradicação do preconceito e da discriminação das estruturas do Estado brasileiro, à superação das desigualdades étnicas através da garantia dos direitos e ao aperfeiçoamento da democracia brasileira. Os movimentos atuaram decisivamente para o enfrentamento do racismo, de forma principal na revisão da Constituição, em 1988, conforme referência feita por Xavier (2000).

A significativa participação da sociedade civil e do governo brasileiro na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata,

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ocorrida na África do Sul, em 2001, ampliou o debate público sobre a questão racial e intensificou as discussões sobre como o setor público poderia estabelecer compromissos mais efetivos e sustentáveis com o combate ao racismo e às desigualdades dele decorrentes, de acordo com Lopes e Werneck (2000). Igualmente o contexto educacional não ficou de fora desta mobilização e no ano de 2003 foi promulgada a lei n. 10.639. Sancionada em janeiro do referido ano, determinou que todas as escolas de Ensino Fundamental e Médio abordassem a história da África e a cultura afro-brasileira. Outra relevante conquista ocorreu no início de 2003, ocasião em que foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Também nesse caminho é a alusão feita por Xavier quando explicita que:

Na revisão da Constituição de 1988 estes movimentos conseguiram construir um conjunto de medidas que pudessem erradicar as desigualdades e consolidar direitos, a exemplo dos direitos à saúde, à educação, à moradia e à terra e da criminalização do racismo, atingindo em cheio o racismo institucionalizado nas práticas do Estado brasileiro. A retirada de mecanismos jurídico-político da Constituição que não permitiam o reconhecimento do tratamento desigual destinado aos negros e negras, assim como a outros grupos sociais foi fundamental para a inclusão do racismo como crime nas cláusulas pétreas. E inaugurou políticas públicas que pudessem oferecer condições ao desenvolvimento de cidadãos e cidadãs de acordo com as suas necessidades (XAVIER, 2000, p. 21).

Sob este enfoque, almejando mais igualdade e mais cidadania, as organizações de mulheres negras vêm participando de diversas redes e articulações do movimento de mulheres brasileiras, tendo uma atuação cada vez mais destacada na conquista de espaço junto ao Estado, consoante aduzem Heringer e Silva (2011). Desse modo, passados e presentes das mulheres negras são atuais e verdadeiros. Entre a vitimização e a produção simbólica, há experiências complexas de luta, opressão, humilhação, superação, amor, dor, desejos, escolhas, alegrias e desafios. Constatar isso pode ser pouco, mais importante será conhecer e tornar visíveis - em alguns espaços do conhecimento e da decisão sobre as políticas públicas - o universo das mulheres negras e o seu protagonismo de ontem e de hoje, segundo reflexionam Paixão e Gomes (2008).

Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente, demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na caracterização da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca. Introduzir a discussão sobre as doenças étnicas ou as com maior incidência sobre as negras como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde, instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de

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trabalho como a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras, é essencial, como assevera Carneiro (2001).

Nesse entendimento, a análise dos sujeitos em uma perspectiva que considere a diferença faz presumir o rompimento com rígidos critérios binários, como negros e brancos, nós e outros, mulheres e homens. No entanto, para resistir às armadilhas das essencializações, faz-se primordial considerar que as culturas, assim como as experiências vivenciadas pelos indivíduos em diferentes contextos, se produzem no embate e se constituem como estratégias de lutas para a reivindicação de uma identidade que constrói poder.

Sendo assim, a transversalidade das questões étnico-raciais necessita ser posta em prática, mormente porque há ainda uma profunda resistência por parte dos diversos segmentos sociais em assumir uma dívida histórica com as mulheres negras. É mister, então, desfragmentar o mito da democracia racial, essencialmente através da erradicação das desigualdades étnicas. Isto tudo afeta a maneira como estas atuam na sociedade, mostrando-se, consequentemente, indispensável romper com a memória escravagista, em que negros e negras eram considerados “coisas” destinadas a servir, enfrentando as manifestações de preconceito étnico-racial.

Vislumbra-se fundamental, então, esclarecer que o fato do Brasil ser o maior país negro fora da África deve conduzir, inexoravelmente, à aceitação da miscigenação como uma das formas de igualdade e de valorização da diversidade. Somente a partir de tais transformações histórico-culturais, será possível desnaturalizar a representação dos papéis sociais tradicionalmente associados às mulheres negras, o que se traduzirá, ao depois, em igualdade em todas as ambiências. É imprescindível, dessa forma, a desconstrução e ruptura da ideologia do embranquecimento, revertendo este discurso de naturalização da branquitude. Como corolário, será possível execrar do atual contexto sociocultural práticas neocolonialistas embasadas em valores que ainda usam a cor da pele para subalternizar sujeitos iguais.

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Intersectionality between gender and race for the construction of ethnic-identity black women Abstract: The intersection between gender and ethnicity is problematic that permeates the

multiplicity of issues concerning the construction of identity of black women. Based on this understanding, it is essential (re)consider alternative conceptions defragmentation ethnic entrenched and obsolete, especially by combating anti-racist actions reversing the impacts of sexism and inequality, as well as the implementation of public policies. This is because women’s studies have shown that there was a centrality in the debate, although feminisms “non-whites” will gradually questioning the unity of “we”, arguing that the main trend was and has been the white, non-disruptive to the racism. In this sense, it seems necessary to understand that there is more room for subjugate this issue, as it aims to transcend the historical process of discrimination, breaking the myth of racial democracy. Thus, the invisibility tends to disappear when one understands that the experiences constitute strategies claim. The claim ethnic identity of black women have therefore essential role in multicultural builds in from a contemporary perspective strength and leadership.

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