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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL PPGCOM Programa de Pós-Graduação em Comunicação ALEXANDRE SILVA GUERREIRO

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL

PPGCOM – Programa de Pós-Graduação em Comunicação

ALEXANDRE SILVA GUERREIRO

A CARNAVALIZAÇÃO E O GROTESCO

PELO PRISMA DO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

(2)

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL

PPGCOM – Programa de Pós-Graduação em Comunicação

ALEXANDRE SILVA GUERREIRO

A CARNAVALIZAÇÃO E O GROTESCO

PELO PRISMA DO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE

FEDERAL FLUMINENSE COMO REQUISITO PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE

LINHA DE PESQUISA ANÁLISE DA IMAGEM E DO SOM ORIENTADOR PROF.DR.ANTONIO CARLOS AMANCIO DA SILVA

Niterói, RJ

Abril de 2007

(3)

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

G934 Guerreiro, Alexandre Silva.

A carnavalização e o grotesco pelo prisma do cinema brasileiro contemporâneo / Alexandre Silva Guerreiro. – 2007.

152 f. ; il.

Orientador: Antônio Carlos Amâncio da Silva.

Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Artes de Comunicação Social, 2007.

Bibliografia: f. 138-140.

1. Cinema brasileiro. 2. Carnavalização. 3. Bakhtin, M.M. (Mikhail Mikhailovitch) 1895-1975. I. Silva, Antônio Carlos Amâncio da. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Artes e Comunicação Social. III. Título.

(4)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

08

I – DO CARNAVAL AO CINEMA

14

1.1 – Dialogismo e Intertextualidade

16

1.2 – Dialogismo e Polifonia

19

1.3 – Sátira e Diálogo

22

1.4 – Estilização e Paródia

24

1.5 – Cultura Popular e Carnaval

27

1.6 – A Cosmovisão Carnavalesca

34

1.7 – Inversões Carnavalescas

36

1.8 – Grande Angular Carnavalesca

39

II – DO GROTESCO AO CINEMA

51

2.1 – O Grotesco Romântico

53

2.2 – Um Grotesco “de Câmara”?

58

2.3 – O Grotesco Realista

62

2.4 – O Grotesco no Brasil

65

2.5 – Rebaixamentos Grotescos

69

2.6 – Grande Angular Grotesca

73

III – O GROTESCO-CARNAVALIZADO

NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

83

3.1 – O Grotesco-carnavalizado

85

(5)

3.3 – Breve Apresentação dos Três Filmes

95

3.4 – Mésalliances

100

3.5 – Bocas e Narizes

106

3.6 – Animalização

108

3.7 – Do Diabo

110

3.8 – A Comida e o Sexo

112

3.9 – Inversão e Rebaixamento

117

3.10 – O Exagero

126

3.11 – O Linguajar Comum

128

CONSIDERAÇÕES FINAIS

133

BIBLIOGRAFIA

137

ANEXOS

141

(6)

RESUMO

O presente trabalho propõe uma reflexão acerca do cinema brasileiro

contemporâneo sob o prisma do repertório teórico do russo Mikhail

Bakhtin focando em dois conceitos-chave: a carnavalização e o grotesco.

A partir de uma (re)leitura do universo de Bakhtin, pretendemos aproximar

esses dois conceitos para, em seguida, experimentar sua aplicabilidade no

panorama do cinema brasileiro e mundial, no curta-metragem Vereda

Tropical, de Joaquim Pedro de Andrade, e em três longas-metragens: A

Marvada Carne, de André Klotzel, Carlota Joaquina, princesa do Brasil,

de Carla Camurati, e Amélia, de Ana Carolina.

PALAVRAS-CHAVE

(7)

ABSTRACT

The present work is a reflection concerning the contemporary

Brazilian cinema under the prism of the theoretical repertoire of the russian

Mikhail Bakhtin with an especial focus in two concept-key: the

carnivalization and the grotesque. We intend to approach these two

concepts and to try its applicability in the panorama of the Brazilian and

international cinema, and more deeply in a shortfilm, Vereda Tropical, de

Joaquim Pedro de Andrade, and in three features: A Marvada Carne,

directed by André Klotzel, Carlota Joaquina, princesa do Brasil, directed

by Carla Camurati, and Amelia, directed by Ana Carolina.

KEYWORDS

(8)

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Francisco e Solange, por terem indicado o caminho.

Aos meus irmãos, Francisco e Luciana, pelo companheirismo de sempre.

A Renato Reis, pelo estímulo e apoio na reta final.

A Maurício de Bragança e Pedro Lapera, pelo encorajamento na faixa de

largada.

A Ana Paula Nunes e Andreson Carvalho, pela crença em nossas

capacidades.

A Luciana Biazzi e Luelane Corrêa, pelo carinho ao longo dessa jornada.

A Sílvia Campos, pelo auxílio e simpatia constantes.

A João Luiz Vieira e Rubens Machado, pela participação nas etapas finais

desse processo.

A Ana Lucia Enne, pela leitura atenta e pelas dicas preciosas.

(9)
(10)

INTRODUÇÃO

O cinema é uma arte coletiva; pressupõe contribuições diversas, já que muitas vozes são consideradas na confecção de um filme. Esse é apenas um primeiro passo para se pensar o poder da obra de Mikhail Bakhtin se tomada como referencial teórico para a análise fílmica. Naturalmente, a questão das vozes é muito maior do que a escuta direta dos envolvidos em uma obra cinematográfica. Isso porque qualquer discurso está infiltrado de vozes outras, anteriores e posteriores, o que nos levaria a uma genealogia sem fim. Mas é inegável que o cinema parte de uma complexidade inerente à confluência de universos para um mesmo set, a cada filme realizado.

Assim, é interessante constatar que o cinema se origina numa peça literária, o roteiro, passando pela contribuição de artistas das mais diversas formações, fotógrafos, montadores, figurinistas, atores, e seus universos particulares, até chegar à figura de um diretor ou produtor que também pode tudo como resultado do processo de realização de um filme, menos assumir um discurso monológico sobre ele. Não é à toa que sindicatos no seio da indústria de cinema estadunidense já pleitearam o fim do uso da expressão “um filme de” vinculada ao nome do diretor nos créditos, repercussão na prática do que pensamos se aplicar, na teoria, ao cinema.

Por essas e outras razões, o cinema parece ser um espaço privilegiado para que nos movimentemos rumo às possibilidades de diálogo entre os diversos elementos que o formam. Nossa intenção é caminhar pelo repertório conceitual bakhtiniano para chegar no

(11)

que consideramos ser a peça fundamental desse trabalho, a carnavalização, atrelando a esse conceito a idéia de grotesco como decorrente de um desenvolvimento no pensamento de Bakhtin, a partir do que se pode lançar um novo olhar sobre o cinema.

A profunda ligação das análises tecidas por Bakhtin com a História fez crescer nosso interesse por ele. Costuma-se exaltar os conceitos e áreas do conhecimento pelas quais os textos de Bakhtin circularam, lingüística, psicologia, filosofia, mas é preciso salientar que a matéria-prima em suas abordagens é a História.

A intenção desse trabalho é, antes de tudo, aplicar os conceitos bakhtinianos ao cinema brasileiro contemporâneo, não apenas como exercício de análise dos filmes aqui trabalhados, mas também como investigação acerca da permanência do grotesco e do carnavalizado no nosso cinema. Para isso, os filmes que foram escolhidos dialogam com outros momentos da nossa história, outros textos.

Partiremos de uma preocupação em separar, no corpo do trabalho, a categoria de grotesco, anterior a Bakhtin e desenvolvida por alguns importantes autores, da de carnavalização, conceito que nasce do repertório bakhtiniano. A metodologia aqui utilizada, partindo dessa separação, pode causar estranheza num primeiro momento, mas isso se fez necessário pela dificuldade em se encontrar textos que deliberem concretamente sobre as ligações entre tais conceitos no que tange ao cinema. Isso porque é comum que autores evoquem um desses conceitos ignorando completamente o outro. No caminho inverso, discorreremos sobre eles separadamente, para melhor amarrá-los em seguida, através do que chamaremos de grotesco-carnavalizado.

Assim, no campo teórico, há uma preocupação em trabalhar isoladamente os conceitos-chave para depois buscar o momento exato da aproximação, descortinando o vínculo que há entre os dois. E ainda que nos vinculemos a Bakhtin, dada sua importância

(12)

neste trabalho, isso será feito sem que se lance sobre sua obra um olhar sacralizador. Para evitar esse risco, diversos autores atuais, brasileiros e estrangeiros, que manuseiam e/ou atualizam os conceitos aqui utilizados, serão apresentados nos momentos necessários.

É perfeitamente factível refletir sobre o grotesco sem vinculá-lo necessariamente ao carnavalizado. A categoria do grotesco é anterior a do carnaval como instrumento de análise literária. Mas como é possível que se fale em carnavalização sem que se evoque o grotesco? Nosso esforço será feito no sentido de melhor entender os limites desses conceitos para, em seguida, aplicá-los com mais propriedade aos filmes escolhidos, sem perder de vista a necessidade de se salientar qual forma de grotesco se enquadra à idéia de carnavalização.

Optamos por trabalhar com o cinema brasileiro produzido nos últimos vinte anos, ao contrário do que pensamos no projeto inicial, pelo qual este estudo abarcaria meio século de cinema, recorte ambicioso e pouco recomendável que deixamos de lado. Procuramos escolher filmes significativos não só por servirem ao nosso universo conceitual, mas também por se destacarem como fundamentais no panorama do cinema brasileiro contemporâneo. O resultado foi o a escolha de filmes que atravessaram esses vinte anos de maneira muito particular. Isso porque assumimos o cinema da retomada como referência da contemporaneidade no nosso cinema para que se estabelecesse que filmes seriam escolhidos. Como marco maior da retomada, um dos filmes analisados será Carlota

Joaquina, Princesa do Brasil, de Carla Camurati, que já suscitou textos sobre

carnavalização no cinema, como indicaremos futuramente.

Carlota será, então, o divisor de águas do cinema brasileiro contemporâneo. Alguns

anos antes do filme de Camurati, foi realizado outro importante filme que será também objeto de análise, a saber, A Marvada Carne, de André Klotzel, e alguns anos depois de

(13)

Carlota, mais recentemente, foi a vez de Amélia, de Ana Carolina. Esses três títulos dão

conta de reter na tela uma certa tendência do cinema brasileiro provocadora do riso, partindo de estratégias próprias aos mecanismos da carnavalização e do grotesco.

Tentaremos provar que os conceitos do grotesco e do carnavalizado servem para fomentar uma discussão acerca dos filmes escolhidos, em particular, e do cinema brasileiro contemporâneo, de uma maneira geral, a ponto de inscrever uma corrente do nosso cinema permanentemente numa tradição de um cinema grotesco-carnavalizado. Essa tradição se fará presente numa abordagem panorâmica que elaboraremos no final do primeiro e do segundo capítulo, mas também numa aproximação mais acurada que será feita, no terceiro capítulo, do curta-metragem Vereda Tropical, tomado aqui como ícone maior da tradição do grotesco-carnavalizado no cinema brasileiro.

No primeiro capítulo, desenvolveremos uma abordagem sobre os principais conceitos que giram em torno da cosmovisão carnavalesca e do universo bakhtiniano, atentando para uma importante separação entre conceitos afins, mas não congruentes. Em seguida, discorreremos sobre a aplicação da carnavalização ao cinema, observando o cinema nacional e estrangeiro, buscando comprovar a existência de um cinema recorrentemente carnavalizado.

No segundo capítulo, buscaremos traçar uma rápida visão sobre a evolução do grotesco até a sua aplicação ao cinema. Para isso, consideraremos as contribuições de alguns importantes autores que discorreram sobre o grotesco, desde Victor Hugo até o brasileiro Muniz Sodré para, num segundo momento, analisarmos o grotesco cinematográfico, em que filmes nacionais e estrangeiros serão considerados.

No terceiro capítulo, finalmente, faremos convergir os dois conceitos isolados de modo operativo nos capítulos anteriores. Em seguida, aplicaremos esses conceitos na

(14)

análise do filme Vereda Tropical. E depois de demonstrarmos as raízes do grotesco-carnavalizado no cinema brasileiro, desenvolvermos a nossa análise principal, tomando os filmes A Marvada Carne, Carlota Joaquina, Princesa do Brasil e Amélia como representantes do grotesco-carnavalizado no cinema contemporâneo.

Os filmes escolhidos apresentam situações que nos autorizam a vinculá-los a uma tradição do grotesco-carnavalizado no cinema brasileiro sem, contudo, apresentarem o carnaval enquanto festa popular. Interessa-nos, sobretudo, que os filmes aqui analisados sejam representantes de uma visão carnavalizada do mundo. A questão principal que nos chega através de Bakhtin é que o carnaval, festa popular, acabou criando uma mentalidade, uma visão de mundo, que pode ser percebida em diversos segmentos, inclusive, na produção cultural. Por isso, nos esforçamos na seleção de filmes que não utilizam o carnaval enquanto festa para que salte aos olhos do leitor com mais clareza que estamos discutindo, aqui, a mentalidade que essa festa milenar suscitou.

Em tempo, gostaríamos de registrar que o grotesco ocupa nesse trabalho um lugar propositadamente destacado. Isso porque, ao contrário do que acontece com outros termos próximos ao carnavalizado, como paródia, sátira, polifonia, dialogismo, o grotesco carece de definição no sentido de se estabelecer de que grotesco se fala, afastando-o do que o senso comum digere como grotesco, e salientando quais ligações o mesmo estabelece com o conceito bakhtiniano de carnaval tornando-os indissolúveis, o que nem sempre é feito.

É importante salientar que, no fluxo dos estudos sobre o cinema contemporâneo, o grotesco e o carnavalizado tendem a ter cada vez mais destaque na medida em que uma releitura dessacralizadora da obra de Bakhtin passa a ser feita em outras áreas. O cinema, em sua essência polifônica, permanece oferecendo tantos sons e imagens quantas são as leituras capazes de analisá-los.

(15)

I

(16)

I

DO CARNAVAL AO CINEMA

Ao criar o conceito de cosmovisão carnavalesca, Bakhtin desenvolveu também uma série de outros conceitos que fundamentam seu trabalho, e que ajudam a melhor compreender a aplicabilidade do carnaval como instrumento de análise. De um lado, há os elementos que compõem diretamente o carnavalizado, como a paródia e a sátira menipéia. De outro, os conceitos de polifonia, dialogismo e intertextualidade. Antes de iniciarmos uma explanação sobre o cinema carnavalizado, queremos registrar de que forma esses outros conceitos movimentam-se em torno do tema aqui tratado, promovendo uma atualização dos mesmos a partir de autores que sobre eles discorreram mais recentemente.

A quantidade de leituras da obra bakhtiniana, de onde apreendemos a necessidade de constantemente passar a limpo as interpretações de seus conceitos, está expressa em Robert Stam.

Cada país e cada escola, porém, parecem ter seu próprio “Bakhtin”, e não raro se observa a existência de Bakhtins diversos no mesmo país. Assim, encontramos Bakhtin, o formalista, Bakhtin, o antiformalista, e lado a lado com Bakhtin, o fenomenologista, Bakhtin, o marxista, e Bakhtin, o pós-estruturalista (STAM, 1992: 9).

(17)

1.1 - Dialogismo e Intertextualidade

É importante salientar que, dependendo do enfoque dado ao instrumental teórico criado por Bakhtin, alguns conceitos podem figurar em primeiro plano enquanto outros passam a ocupar o fundo do quadro ou mesmo o espaço fora da tela dentro da análise. Mas é inevitável notar sua existência e refletir sobre eles. Para Diana Luz Pessoa de Barros, o fundamental na obra de Bakhtin é a idéia de dialogismo, já que

o princípio dialógico permeia a concepção de Bakhtin de linguagem e (...) de mundo, de vida (BARROS, 2003: 2).

Beth Brait afirma que

A natureza dialógica da linguagem é um conceito que desempenha papel fundamental no conjunto das obras de Mikhail Bakhtin, funcionando como célula geradora dos diversos aspectos que singularizam e mantém vivo o pensamento desse produtivo teórico (BRAIT, 2003: 11).

De fato, o princípio do dialogismo amplia as possibilidades de crítica da obra de arte, em especial, e da leitura de mundo, de uma forma geral. Nesse sentido, a contribuição desse conceito provocou uma verdadeira revolução no campo da produção intelectual. Bakhtin critica a fetichização da arte bem como o enfoque concentrado no ponto de vista do observador que analisa a obra. Segundo ele, é preciso um entendimento em todos os sentidos para que se possa superar tanto o formalismo quanto o ideologismo. Essa idéia está imbuída do sentido maior que é o dialogismo, pelo qual nenhuma análise deve estar

(18)

fechada em si, o que pressupõe o diálogo entre as mais diversas correntes. Um discurso traz, em seu seio, inúmeros outros discursos que o formam.

A presença do discurso do “outro” no “eu” é exemplificada por Bakhtin através de uma reflexão sobre a aprendizagem da fala por uma criança, que constrói seu discurso totalmente baseado no discurso do outro, pai, mãe, professor etc. Para Robert Stam,

Toda a obra de Bakhtin gira em torno desse eixo do eu e do outro, e da concepção de que a vida é vivida nas fronteiras entre a particularidade de nossa experiência individual e a auto-experiência de outros (STAM, 1992: 18).

Há que se fazer, no entanto, uma distinção entre dialogismo e intertextualidade, muitas vezes usados como sinônimos.

Segundo José Luiz Fiorin, o termo intertextualidade foi desenvolvido por Julia Kristeva, no ambiente do estruturalismo francês. Esse termo foi empobrecido, afastando-se da multifacetada concepção do dialogismo bakhtiniano (FIORIN, 2003: 29).

Todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção de um outro texto. Assim, em lugar da noção de intersubjetividade, instaura-se a de intertextualidade (KRISTEVA, 1974: 64).

Quando Kristeva discorreu sobre a intertextualidade, o termo dialogismo já havia sido cunhado por Bakhtin, marcando seu afastamento tanto do formalismo quanto do ideologismo. Assim, através de um princípio admirável, ele nega uma análise que corte as relações do texto com a sociedade, mas também recusa uma abordagem que seja míope à estrutura própria do texto, não integrando a organização lingüística à realidade social (BARROS, 2003: 9).

(19)

Robert Stam chama atenção para uma solta tradução do dialogismo bakhtiniano por Julia Kristeva, pois considera que

Sua tradução do dialogismo de Bakhtin como intertextualidade provocou uma proliferação de estudos sobre intertextualidade, muitos dos quais mantinham apenas uma tênue conexão com o pensamento de Bakhtin (STAM, 1992:

10).

Seria um erro, portanto, tomarmos esses dois conceitos como sinônimos, ainda que eles sejam tão próximos. Para Fiorin, o dialogismo de Bakhtin se define mais concretamente na idéia de que

o discurso não se constrói sobre o mesmo, mas se elabora em vista do outro. Em outras palavras, o outro perpassa, atravessa, condiciona o discurso do eu (FIORIN, 2003: 29).

Em contrapartida, a intertextualidade concerne ao processo de construção, reprodução ou transformação do sentido. A distinção entre dialogismo e intertextualidade pode ser intuída, a partir de Fiorin, contrastando também a noção de texto e de discurso. Teríamos, então, interdiscursividade como sinônimo de dialogismo, e intertextualidade como um conceito correlato, próximo à formulação bakhtiniana, mas sem se confundir com esta. A intertextualidade seria, então, a prática de incorporação de um texto em outro, o que pode ocorrer através da citação, da alusão e da estilização. O dialogismo ou interdiscursividade seria o processo de incorporação de temas ou figuras do discurso do outro. (FIORIN, 2003: 30-33).

(20)

No entanto, diversos autores não fazem distinção entre intertextualidade e dialogismo. Em texto recente, Diana Luz Pessoa de Barros usa esses conceitos com proximidade, apontando a intertextualidade como um caso específico de dialogismo.

Outro aspecto do dialogismo a ser considerado é o do diálogo entre os muitos textos da cultura, que se instala no interior de cada texto e o define. Esse sentido de dialogismo é mais explorado e conhecido e até mesmo apontado como o princípio que costura o conjunto das investigações de Bakhtin

(BARROS, 2003: 4).

Seja como for, a distinção entre dialogismo e intertextualidade é importante, ainda que eles naturalmente se misturem, se agreguem, não sejam excludentes. Não é outro o movimento que fazemos nesse trabalho ao separar estrategicamente o grotesco e a carnavalização, ainda que tenhamos em vista o cruzamento definitivo desses conceitos mais adiante.

1.2 - Dialogismo e Polifonia

Em seu estudo da obra de Dostoiévski, Bakhtin chama atenção para a existência de várias vozes em seus romances, o que não tinha sido percebido pela crítica literária até então. A obra de Dostoiévski passa a ser associada à idéia de romance polifônico, contrapondo-se ao romance monofônico.

O princípio da polifonia implica na afirmação do “eu” do outro não como objeto, mas como sujeito. O mundo monológico da consciência do autor dá lugar à

(21)

autoconsciência dos personagens. A visão de mundo do autor, então, passa a ser apenas uma das visões de mundo presentes no texto, o que torna a obra aberta, incompleta, já que não cabe mais ao autor explicar, através de uma visão monológica, o lugar do outro (BAKHTIN, 1982: 6; 36).

Isso tem uma implicação direta na questão ideológica contida no texto, já que a existência do outro enquanto sujeito acaba por promover a confluência de vozes de discursos diferentes, ou mesmo contraditórios, dentro de um mesmo universo. A polifonia, então, tem um caráter ideológico que precisa ser percebido, e que vem ao encontro do ideário bakhtiniano de não exclusão, ao considerar as inúmeras vozes que estão presentes em cada discurso, vozes essas que podem ser heterogêneas e contraditórias. Portanto, a polifonia permite que essas vozes permaneçam como sujeitos, audíveis, ao invés de serem filtradas ou alteradas, enquadradas na voz do autor, o que tornaria o texto monofônico. É preciso saber

“representar a idéia do outro”, conservando-lhe toda a plenivalência enquanto idéia, mas mantendo simultaneamente a distância, sem afirmá-la, nem fundi-la com sua própria ideologia representada. (BAKHTIN, 1981: 71)

Os termos polifonia e dialogismo também já foram empregados indiscriminadamente. Contra a prática de misturar tais conceitos, Diana Luz Pessoa de Barros define que

emprega-se o termo polifonia para caracterizar um certo tipo de texto, aquele em que se deixam entrever muitas vozes

(22)

Em contrapartida, o termo dialogismo seria empregado como princípio constitutivo da linguagem e de todo o discurso (BARROS, 2003: 2).

A partir da separação que os autores fazem entre dialogismo, intertextualidade e polifonia, poderíamos realmente aceitar que dialogismo fosse um termo maior no repertório bakhtiniano e que intertextualidade e polifonia seriam variações desse conceito principal. No entanto, em certas ocasiões, essas distinções se tornam rasas, sendo necessário manter um conceito sem misturá-lo aos demais, sem esquecer, porém, que pela própria essência do tema aqui tratado, todos eles são arejados, infiltrados, contaminados por idéias anteriores ou paralelas que atuam intertextualmente, dialogicamente, polifonicamente, na sua significação. Diana Luz Pessoa de Barros, citando Joseph Frank, afirma que

A complexidade do pensamento bakhtiniano, que rejeita a dominância de leituras excludentes, configura uma filosofia da linguagem que, concebendo o eu e o outro como inseparavelmente ligados e tendo como elemento articulador a linguagem, pode espelhar, por um certo prisma e de maneira ideal, o diálogo entre Deus e o homem (BARROS,

2003: 12).

Assim, uma das principais contribuições do ideário bakhtiniano reside no fato de que o outro existe como sujeito. Esse é o princípio elementar da polifonia. É a concepção, a aceitação do outro como sujeito, que permite um efeito polifônico ao texto. A partir disso, Bakhtin instaura uma abordagem tolerante com as diferenças, absolutamente aberta às mais diversas influências dos pensamentos, ideologias, correntes que a precederam. O pensamento e suas manifestações culturais passam a fazer parte de uma tradição humana e do acúmulo de sua experiência.

(23)

1.3 - Sátira e Diálogo

As raízes da cosmovisão carnavalesca foram localizadas por Bakhtin na sátira menipéia e no diálogo socrático. Essas duas variações desenvolveram-se ainda no período da Antigüidade Clássica, sendo que a sátira menipéia seria uma derivação do diálogo socrático. A estrutura do diálogo socrático, que pressupunha a voz do outro e não só a do autor, fomenta a discussão das origens da polifonia.

Bakhtin define o “diálogo socrático” como um gênero cômico-sério saído do carnaval. Se, como afirma insistentemente, o carnaval é ambivalência profunda e recusa de soluções, se a mentalidade carnavalesca é inimiga das convenções, então a recusa de uma decisão e o questionamento das idéias recebidas, duas táticas fundadas na maneira pela qual Sócrates concebe a natureza própria da verdade, sugerem com efeito o clima ou o modo carnavalesco

(HAYMAN, 1980: 33).

Ao buscar o princípio polifônico nas origens do gênero cômico, Bakhtin localiza a nascente da sátira. Leonor Lopes Fávero afirma que a sátira menipéia

deve seu nome ao filósofo Ménippe, de Godare (séc. III a.C.), que lhe deu a forma clássica, tendo sido Varrão (séc. I. a.C.) o primeiro a empregar o termo para designar um gênero

(24)

particular, intitulando sua obra Saturae Menippeae

(FÁVERO, 2003: 52).

Bakhtin elenca diversas particularidades da sátira menipéia, num total de catorze1, dentre as quais podemos citar a presença constante do elemento cômico, a libertação das limitações históricas e a total liberdade de invenção filosófica e temática, a síncrese, a infração às regras do bom-tom, o uso de contrastes violentos, a representação de estados psíquicos anormais, a opção pelos problemas sociopolíticos contemporâneos. A sátira menipéia está no cerne da questão da carnavalização do mundo, funcionando a partir do princípio polifônico na arte (STAM, 1992: 38-39).

Um dos recursos básicos da sátira menipéia enquanto gênero é a capacidade de infiltrar-se em outros gêneros. Isso, certamente, garante sua permanência, através de suas características mais básicas, tais como o uso de contrastes agudos, sendo ainda comuns escândalos, comportamentos excêntricos, violações das normas comportamentais (BAKHTIN, 1982: 101).

Sendo assim, a menipéia, pelas suas características mais corriqueiras, é fundamental para o desenvolvimento da noção de carnavalização. Para Bakhtin, não há como separar sátira menipéia e paródia dentro do conceito maior de carnavalização. Ao colocar a questão da cosmovisão carnavalesca em foco no seu repertório teórico, ele acabou por valorizar gêneros considerados secundários.

1

Segundo Robert Stam, Suzana Camargo aplica as catorze “particularidades fundamentais” enumeradas por Bakhtin ao livro de Mário de Andrade, em Macunaíma: ruptura e tradição (São Paulo: João Farkas/Massao Ohno, 1977).

(25)

1.4 - Paródia e Estilização

Etimologicamente, paródia significa canto paralelo, o que pressupõe a idéia de vozes se sobrepondo, funcionando como “contracanto” em relação à outra voz que lhe é anterior.

Foi Aristóteles quem categorizou a paródia como arte, a partir de Hegemon de Tarso, que usou pela primeira vez, no séc V a.C., esse gênero infiltrado no gênero épico, ao colocar os homens como seres comuns, inseridos na vida cotidiana e não como seres

superiores (FÁVERO, 2003: 49).

Os conceitos de sátira e paródia são elementos fundamentais na elaboração da

cosmovisão carnavalesca. A paródia atua dentro da sátira menipéia e apresenta-se como

essencialmente intertextual e polifônica, já que seu texto pressupõe textos anteriores que são por ela negados, relativizados, transformados.

Na paródia a fusão de vozes é impossível, pois elas provêm de mundos diferentes; elas se fazem ouvir numa leitura polifônica – a polifonia é uma de suas características

(FÁVERO, 2003: 55).

Em tempo, é preciso considerar as colocações de Flávio R. Kothe acerca da paródia, o que representa um certo pensamento desabonador sobre a mesma. Sua abordagem atribui à paródia um lugar inferior, a partir de uma separação entre paródia e estilização.

A paródia procura rebaixar um texto, um estilo, uma escola; a estilização, que, como a paródia, também tem alguma outra

(26)

obra ou tendência anterior como referência, diferencia-se porque procura criar uma obra que seja de nível mais elevado e que não viva mais apenas para negar algo anterior

(KOTHE, 1980: 99).

Seguindo essa lógica, ele atribui à paródia apenas o que considera destituído de qualidade, cabendo à estilização todos os méritos de obras ditas maiores.

A estilização é uma paródia que conseguiu ser uma grande obra de arte, enquanto que a paródia é uma estilização que artisticamente não deu certo e se situa, portanto, na parte baixa da pirâmide (KOTHE, 1980: 102).

Tais considerações partem de um princípio que considera pejorativamente o rebaixamento promovido pela paródia. Não se trata, através desse rebaixamento, de tecer considerações acerca do que tem ou não qualidade. Antes, é preciso descobrir que a premissa bakhtiniana é a de valorização do que até então, mesmo na literatura, permanecia no domínio do extra-oficial e do popular.

Ao discorrer sobre esse assunto, Bakhtin contribui para a diferenciação e valorização tanto da paródia quanto da estilização, ao afirmar em relação à paródia que

Nesta, como na estilização, o autor fala a linguagem do outro, porém, diferentemente da estilização, reveste essa linguagem de orientação significativa diametralmente oposta à orientação do outro. (...) O discurso se converte em palco de luta entre duas vozes. Por isto é impossível a fusão de vozes na paródia, como o é possível na estilização.

(27)

Afonso Romano de Sant’Anna, na contramão do que afirma Kothe, expõe dois textos precisos de Tynianov e Bakhtin nos quais fica claro que a separação entre paródia e estilização nada tem a ver com qualidade, e sim com o sentido tomado pela leitura do texto original. Assim, a paródia pode seguir vários caminhos, porém todos eles inversos ao da obra que suscitou a paródia. E ainda que geralmente esteja vinculada ao riso, Tynianov afirma que a paródia de uma comédia pode ser uma tragédia. Ao contrário, a estilização deve seguir um único caminho, o mesmo seguido pelo autor da obra original (SANT’ANNA, 1985: 13-15).

É o próprio Afonso Romano de Sant’Anna quem atualiza esses conceitos, propondo modelos ternários e quaternários, incorporando à estilização e à paródia novos elementos, como a paráfrase e a apropriação. Para Sant’Anna, rompe-se assim com o dualismo que opõe a paródia ora à estilização, ora à paráfrase. Complexos e flexíveis, os modelos permitem uma atualização dos conceitos e uma ampliação da idéia de estilização, que passa a sustentar termos como estilização negativa, estilização positiva, contra-estilo etc.

Para Bakhtin, a estilização pressupõe o estilo, assumindo a mesma direção do texto a ser estilizado.

O estilizador usa o discurso de um outro como discurso de um outro e assim lança uma leve sombra objetiva sobre esse discurso. (...) Afinal de contas, o importante para o estilizador é o conjunto de procedimentos do discurso de uma outra pessoa precisamente como expressão de um ponto de vista específico. (BAKHTIN, 1981: 164).

(28)

1.5 – Cultura Popular e Carnaval

A acepção do “carnaval” como sendo uma mentalidade que fundou uma visão de mundo diferenciada do mundo oficial passa pela idéia de “cultura popular”. Para Bakhtin, a seriedade e a austeridade desse mundo oficial se contrapõem ao extra-oficial, risonho, excêntrico universo do carnaval, tomado como modelo de todas as manifestações que se inserem na tradição das festas populares.

No entanto, o termo “cultura popular” sofreu uma teorização tardia. Sua origem nos remete ao conceito de “cultura primitiva”, termo originário da antropologia cultural, que marcou uma distância entre a visão colonialista do passado e que via as camadas populares e sua produção cultural como “camadas inferiores dos povos civilizados”, e uma abordagem que finalmente reconhecesse nesses povos a existência de uma “cultura”. (GINZBERG, 1995: 17).

O avanço teórico nesse setor pode ser percebido na passagem abaixo, que salienta a ambigüidade conceitual e a importância do tratado bakhtiniano sobre a obra de Rabelais para a conceituação de “cultura popular”.

Às classes subalternas das sociedades pré-industriais é atribuída ora uma passiva adequação aos subprodutos culturais distribuídos com generosidade pelas classes dominantes (...), ora uma tácita proposta de valores, ao menos em parte autônomos em relação à cultura destas classes (...), ora um estranhamento absoluto que se coloca até

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mesmo para além, ou melhor, para aquém da “cultura” (...). É bem mais frutífera a hipótese formulada por Bakhtin de uma influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante. (GINZBURG, 1995: 24).

Bakhtin nos brinda com a idéia de circularidade, pela qual as culturas das camadas mais elevadas, eruditas, se contrapõem e alimentam as das camadas populares, e estas, por sua vez, se espelham e reinventam, a seu modo, a cultura erudita, influenciando-a e completando o quadro da circularidade bakhtiniana. Fica claro, em sua descrição do carnaval, que este se utiliza do mundo oficial para se inventar. O universo risonho e livre das festas populares contrasta, assim, com o mundo hierárquico, sério, erudito.

Outros pensadores apontam para a dificuldade que existe na conceituação de “cultura”. Para Peter Burke, houve uma transformação no uso do termo a partir do séc. XVIII, o que resultou na ampliação do conceito.

seguindo o exemplo dos antropólogos, os historiadores e outros usam o termo “cultura” muito mais amplamente, para referir-se a quase tudo que pode ser apreendido em uma dada sociedade (BURKE, 1989: 25).

Essa transformação conceitual foi acompanhada e fomentada pela formação dos Estados Nacionais, na qual a cultura popular desempenhou um papel fundamental no sentido de criar uma identidade nacional e unificar ideologicamente em torno de um mesmo território uma população sobre a “ilusão” do pertencimento. A unidade nacional foi, portanto, um dos benefícios da ampliação do conceito de cultura popular.

Por outro lado, essa mesma cultura popular pode ser percebida como uma forma de resistência cultural, contra-hegemônica, dificultando, assim, o aspecto da coesão nacional,

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o que nos dá a dimensão da ambigüidade que paira sobre a conceituação do termo aqui tratado.

Seja como for, Nestor Garcia Canclini aponta para o perigo de uma definição frouxa ou pouco precisa do termo “cultura”, propondo que seu uso seja mais restrito. Segundo sua concepção, a cultura seria responsável por

fenômenos que contribuem, mediante a representação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para a compreensão, reprodução ou transformação do sistema social (CANCLINI, 1983: 29).

Canclini também chama atenção para o caráter de resistência cultural das regiões periféricas e contra-hegemônicas, o que, no processo de globalização das últimas décadas, cumpre um papel fundamental no sentido de preservar o regional. Ecoa, aqui, o conceito da circularidade bakhtiniana, as culturas dominantes influenciando, mas sendo também influenciadas pelas culturas de regiões periféricas no âmbito das trocas culturais. A resistência dada pela cultura popular, então, passa a ser responsável tanto pela sobrevivência das culturas periféricas, quanto pela manutenção e equilíbrio da circularidade entre as culturas.

Manuseando o conceito de cultura popular, Bakhtin discorre sobre as festas populares medievais, em especial o carnaval, como sendo um segundo mundo vivido pelo povo, que degenera e subverte o mundo oficial. Esse carnaval serve de base para que se formule a idéia da cosmovisão carnavalesca, o que não significa, segundo o próprio Bakhtin, “traduzir” o carnaval como instrumento de análise. Aqui, fica claro que o conceito não está fundamentado na idéia de uma tradução, mas de uma transposição que

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amplia significativamente as possibilidades de análise da obra de arte. O carnaval, segundo Bakthin,

É uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações dependendo da diferença de épocas, povos e festejos particulares. O carnaval criou toda uma linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas, entre grandes e complexas ações de massas e gestos carnavalescos. Essa linguagem exprime de maneira diversificada e, pode-se dizer, bem articulada (como toda linguagem) uma cosmovisão carnavalesca una (porém complexa), que lhe penetra todas as formas. Tal linguagem não pode ser traduzida com o menor grau de plenitude e adequação para a linguagem verbal, especialmente para a linguagem dos conceitos abstratos, no entanto é suscetível de certa transposição para a linguagem cognata, por caráter concretamente sensorial, das imagens artísticas (BAKHTIN,

1982: 105).

A concepção bakhtiniana do carnaval passa pela definição de três grandes categorias. Bakhtin estabelece que a idéia maior do “carnaval” ultrapassa a materialidade das festas populares, que constituem a primeira categoria, a saber, as formas dos ritos e

espetáculos, desembocando em outras duas categorias, a das obras cômicas verbais e a das diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro. É essa visão amplificada

(32)

do fenômeno do carnaval que permitiu a formulação do conceito de carnavalização e outros conceitos correlatos.

As formas dos ritos e espetáculos traduzem-se como o carnaval concreto, das

festividades carnavalescas que rompiam com as tradições religiosas e oficiais, e instauravam outra tradição, a do cômico-popular, do riso, do extra-oficial. Segundo Bakhtin, os que participavam dessas festividades

pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, “um segundo mundo” e “uma segunda vida” (...). Isso criava uma espécie de “dualidade do mundo” (BAKHTIN, 1993:

5).

As obras cômicas verbais, segundo Bakhtin, poderiam vir tanto do folclore e de uma tradição oral, quanto da literatura, através de uma absorção das manifestações de ordem carnavalesca. Assim, tanto o linguajar quanto o riso festivo próprio do carnaval eram usados, formulando essa literatura cômica própria da Idade Média, e que teve no Renascimento seu apogeu.

As diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro foram apontadas por Bakhtin como essenciais para se entender o carnaval como um todo. Esse vocabulário específico está presente tanto nas festividades populares como na literatura cômica que se formulou no período. Era uma forma nova de se comunicar, imbuída do espírito do carnaval, que se desdobrava no uso freqüente de grosserias. O uso desse linguajar específico se dá graças à convivência familiar entre os homens que o carnaval suscita.

Antes de abordarmos a carnavalização propriamente dita, cabe fazermos, ainda, algumas considerações sobre a festa que originou tal conceito. Segundo Roberto Da Matta, o carnaval seria

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o sumário perfeito desta visão anticotidiana da vida brasileira. Um ritual que, ao romper com o continuum da vida diária, aponta gritantemente para alguns pontos básicos da nossa ordem social (MATTA, 1977: 22).

É importante distinguir de que carnaval nos fala Bakhtin ao propor essa transposição. O carnaval é uma festa popular que atravessou a História, sendo dentre todas as manifestações da cultura popular, a mais consistente e tradicional para servir de base à transposição bakhtiniana. Assim, ele nos fala do carnaval como símbolo das festas populares.

O carnaval revela-nos o elemento mais antigo da festa popular, e pode-se afirmar sem risco de erro que é o fragmento mais bem conservado desse mundo tão imenso quanto rico. Isso autoriza-nos a utilizar o adjetivo “carnavalesco” numa acepção ampliada, designando não apenas as formas do carnaval no sentido estrito e preciso do termo, mas ainda toda a vida rica e variada da festa popular no decurso dos séculos e durante a Renascença, através de seus caracteres específicos representados pelo carnaval nos séculos seguintes, quando a maior parte das outras formas ou havia desaparecido, ou degenerado (BAKHTIN, 1993:

189-90).

Hiram Araújo aponta quatro centros de excelência do carnaval. O primeiro seria o Egito de 4000 a.C. O segundo, figuraria na Grécia e Roma da Antigüidade Clássica, pelos deuses Saturno, Dionísio e Baco, celebrando os instintos, o sexo e a bebida. O terceiro

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centro seria a Veneza renascentista, onde se agregaram os componentes estéticos, fantasia e alegoria. O quarto ponto de excelência seria, naturalmente, o Rio de Janeiro do século XX. Isso leva à divisão nos seguintes períodos: o ORIGINÁRIO – 4000 a.C., o PAGÃO – séc. VII a.C. ao séc. VI d.C., o CRISTÃO – séc VI d.C. ao séc. XVIII d.C. – e o CONTEMPORÂNEO – séc. XVIII d.C. ao séc. XX. (ARAÚJO, 2000: 2;8;18;44).

O carnaval originário teria como marco inicial a criação dos cultos agrários e, como ponto final, a oficialização das festas a Dionísio, durante o reinado de Pisístrato, na Grécia, de 605 a 527 a.C., quando teria início o carnaval pagão. Este terminaria quando a Igreja adotou, oficialmente, o carnaval, em 590 d.C., tendo início o carnaval cristão. O carnaval contemporâneo seria marcado, então, pela espetacularização radical dessa festa popular, que guarda em relação às suas origens uma vinculação apenas vaga.

O carnaval de que nos fala Bakhtin é muito diferente de uma definição apontada pelo senso comum acerca do carnaval. O que se chama de carnaval, então, vai além da própria definição cristã do período que antecede os jejuns quaresmais. Temos que ultrapassar as fronteiras de nossa tradição cristã, bem como da espetacularização atual desse fenômeno popular, para entender a amplitude do carnaval bakhtiniano.

É importante notar que, ao se referir ao carnaval, Bakhtin não evoca as manifestações carnavalescas de sua época. Para entender o conceito de carnavalização proposto por Bakhtin, é preciso fazer uma viagem no tempo e entender as diferenças que ocorreram no carnaval.

É necessário deixar de lado, ainda, a estreita concepção espetaculoso-teatral do carnaval, bastante característica dos tempos modernos.

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Para interpretar corretamente o carnaval é necessário tomá-lo nas suas origens e no seu apogeu, ou seja, na Antigüidade, na Idade Média e, por último, no Renascimento. (BAKHTIN,

1982: 138).

Pela cronologia criada por Hiram Araújo, o período que recebe mais atenção na análise de Bakhtin, a saber, a Idade Média e, principalmente, o Renascimento, está contido no período Cristão, entre os séculos VI e XVIII d.C. Na verdade, Bakhtin exclui de sua análise apenas o carnaval contemporâneo, que assumiu um caráter espetacular muito diverso dos carnavais dos demais períodos.

1.6 – A Cosmovisão Carnavalesca

Uma tradição secular de festas populares de cunho carnavalesco foi responsável pelo desenvolvimento de uma visão de mundo avessa ao mundo oficial, diário. A idéia de subversão está no cerne da questão da cosmovisão carnavalesca. Durante séculos, os homens conviveram com e no carnaval, e é natural que tenham se contaminado pela visão de mundo própria do universo de inversões e rupturas dos festivos carnavalescos.

Essa contaminação nos autoriza supor que determinadas obras não se enquadrem nos cânones clássicos da literatura e da arte em geral. O conceito de cosmovisão

carnavalesca vem preencher essa lacuna, batizar uma prática de leitura do mundo

contaminada pela essência do carnaval.

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Chamaremos literatura carnavalizada à literatura que, direta ou indiretamente, através de diversos elos mediadores, sofreu a influência de diferentes modalidades de folclore carnavalesco (antigo ou medieval). Todo o campo do cômico-sério constitui o primeiro exemplo desse tipo de literatura. Para nós, o problema da carnavalização na literatura é uma das importantíssimas questões de poética histórica, predominante de poética dos gêneros (BAKHTIN, 1982: 92).

Ao aproximar o homem do mundo, o homem do homem, o conceito de carnavalização promove uma transformação que nada tem a ver com o questionamento da qualidade artística da obra, mas ressalta o tratamento que temas que não são notadamente “nobres” podem receber. Isso porque a carnavalização descortina uma pluralidade de estilos e de vozes na corrente do gênero cômico.

Na medida em que promove a inversão ou libertação do mundo oficial, a carnavalização permite o surgimento do “humano”, mesmo dentro da história oficial. A partir de um tratamento carnavalizador, até os reis tendem a ser percebidos como homens, através de estratégias de coroação-destronamento, próprias da cosmovisão carnavalesca. Assim, a obra carnavalizada

opõe-se somente à seriedade oficial unilateral e sombria, gerada pelo medo, dogmática, hostil aos processos de formação e à mudança, tendente a absolutizar um dado estado da existência e do sistema social (BAKHTIN, 1982:

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Segundo Diana Luz Pessoa de Barros, os textos carnavalizados

diferenciam-se, portanto, dos discursos autoritários, graças à polêmica narrativa, à polifonia, (...) recursos pelos quais se obtém a visão do direito e do avesso do mundo e se mantém a polifonia interna das vozes que dialogam no texto (BARROS,

2003: 8).

Leonor Lopes Fávero coloca ainda o carnaval como sendo a fonte cultural de onde provêm os gêneros cômico-sério-crítico, como a sátira, calcada na paródia, e o diálogo. Para isso, usa a expressão “gêneros carnavalescos”, que nos serve para afirmar a importância dos conceitos anteriormente apresentados. A carnavalização é o termo que abarca todos os demais, dentro do instrumental teórico bakhtiniano, promovendo uma dança sempre contemporânea entre paródia, sátira, dialogismo, intertextualidade, polifonia e também da categoria do grotesco, da qual nos furtaremos de falar neste capítulo, mas que receberá um tratamento especial no capítulo seguinte.

Seguindo o mesmo movimento dos festejos carnavalescos, ao formular o conceito de carnavalização, Bakhtin promoveu uma profunda transformação na produção intelectual do século XX.

1.7 – Inversões Carnavalescas

Dentre as muitas características que podem ser ressaltadas quando enfocamos a carnavalização, a idéia de inversão, sem dúvida, assume destaque pois está no cerne da própria abordagem do carnaval feita por Bakhtin.

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A inversão que o carnaval promove na vida cotidiana foi responsável pela sedimentação de uma visão de mundo carnavalizada, mas é importante notar de que maneira essa inversão se manifesta.

Um dos pontos fundamentais é a idéia de que o carnaval é responsável pela aproximação entre os homens, que na vida cotidiana permanecem afastados social e hierarquicamente. Essa aproximação específica promovida pelo carnaval transforma-se, então, no livre contato familiar entre os homens. Instaura-se um novo modo de relações interpessoais, a partir da formulação do contato livre e familiar.

A esse conceito, Bakhtin atrela outra característica importante do mundo carnavalizado, a saber, a excentricidade. Para ele,

A “excentricidade” é uma categoria específica da cosmovisão carnavalesca, organicamente relacionada com a categoria do contato familiar; ela permite que se revelem e se expressem – em forma concreto-sensorial – os aspectos ocultos da natureza humana. (BAKHTIN, 1981: 106).

Além disso, uma das mais fortes características do carnavalizado é o uso de contrastes agudos, as mésalliances, através do confronto entre sagrado e profano, alto e baixo. Assim, através de categorias dicotômicas, o carnaval promove a aproximação dos

elementos antes fechados, separados e distanciados uns dos outros pela cosmovisão hierárquica extracarnavalesca.

(BAKHTIN, 1981: 106).

A profanação é outra marca própria da carnavalização, ligada ao poder do carnaval de transformar o que é sagrado, intocado, oficial, instituindo-se, aqui, os “sacrilégios carnavalescos”. Essa e as categorias citadas anteriormente se manifestam no carnaval

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através das ações carnavalescas, dentre as quais se destaca a prática da

coroação-destronamento, constante em festejos os mais variados.

A cerimônia de destronamento é como se encerrasse a coroação, da qual é inseparável (...). Através dela transparece uma nova coroação. O carnaval triunfa sobre a mudança, sobre o processo propriamente dito de mudança e não precisamente sobre aquilo que muda (...) era precisamente no ritual do destronamento que se manifestava com nitidez especial a ênfase carnavalesca das mudanças e renovações (BAKHTIN, 1981: 107-8).

A primeira característica da carnavalização apontada por Bakhtin, o contato livre e

familiar entre os homens, tem implicação direta numa outra característica tomada por ele

como uma das três manifestações do carnaval. Trata-se do linguajar comum, já citado anteriormente quando mencionamos as diversas formas e gêneros do vocabulário familiar

e grosseiro. É essa nova convivência e contato entre os homens suscitados pelo carnaval

que origina um novo linguajar, despojado, provocador de um riso festivo.

O novo tipo de relações familiares estabelecidas durante o carnaval reflete-se, portanto, em uma série de fenômenos lingüísticos (BAKHTIN, 1993: 14).

Nas ações carnavalescas, podemos perceber a presença de todas as categorias enumeradas anteriormente. Assim, a ação da coroação-destronamento se caracteriza pelo princípio das mésalliances, pela profanação, pelo contato livre e familiar. O uso de um

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contato livre e familiar que o carnaval promove. Essa é a coerência interna do arsenal

teórico bakhtiniano.

Os conceitos e categorias até aqui comentados atuam ativamente na composição da

cosmovisão carnavalesca. Através deles, Bakhtin plantou novas possibilidades de análise

em diversos textos: música, teatro, literatura, cinema. É como se os sons que nos chegam agora não chegassem mais como nos primórdios do cinema sonoro. Agora, o som não vem apenas de um ponto localizado atrás da tela, ou mesmo do solitário piano na frente desta. Os profundos avanços tecnológicos permitem uma ampliação do som na sala de cinema, caixas de som espalhadas pela sala, ampliando o efeito de tridimensionalidade do som. A contribuição bakhtiniana convida os que manuseiam seus conceitos a estarem atentos a todos os sons, vozes, influências, possibilidades, focando uma análise mais profunda. A partir de Bakhtin, estaremos sempre sentados numa sala de cinema cercados de vozes, e não apenas as que nos chegam diretamente do filme.

1.8 - Grande Angular Carnavalesca

A carnavalização pode ser notada, em maior ou menor grau, no cinema brasileiro e estrangeiro. Pretendemos, aqui, fazer uma breve explanação sobre a carnavalização no cinema, não sendo nossa intenção, no entanto, esgotar o assunto. Sabemos das brechas que as linhas seguintes poderão deixar. No entanto, nossa proposta nesse momento é promover uma análise panorâmica da produção cinematográfica de raízes carnavalescas. O efeito dessa análise poderá ser o de uma lente grande angular, que distorce o que vê para ver mais

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coisas dentro do quadro. Eis o nosso recurso para apenas pincelar, em um século de cinema, os conceitos até então expostos.

O cinema demorou a edificar uma tradição carnavalesca. Algumas situações que encontramos nos anos 60 são impensáveis nos filmes realizados no início do século. Assim, precisaremos esperar décadas para que recursos próprios da carnavalização tenham efetivo espaço. Os épicos religiosos hollywoodianos do início do século XX se esmeravam em produções cada vez mais elaboradas, e nem o público, nem o cinema pareciam muito interessados na carnavalização propriamente dita, lançando mão apenas mais tarde, como veremos, de recursos tais como a profanação e outras inversões carnavalescas. O cinema clássico-narrativo imperou e fez escola na primeira metade do século XX, mas a segunda metade do século viu o cinema experimentar reviravoltas no campo da linguagem e da ideologia que perpassavam os filmes. As cinematografias nacionais se insurgiram com força contra o cinema hegemônico, buscando espaço onde pudessem respirar livremente, o que ocasionou mais freqüentemente o uso da carnavalização no cinema.

No entanto, não sem algum esforço, poderemos encontrar, já nas primeiras décadas do cinema, alguns filmes que utilizaram, ainda que de maneira incipiente, elementos da carnavalização cinematográfica. Nos anos 30, localizamos em Pigmaleão2 uma dupla utilização de características da carnavalização. Trata-se da clássica história de Eliza Dollitle, uma paupérrima vendedora de flores que é transformada em dama pelo professor de fonética Henri Higgins. Durante esse processo, fica claro a presença do espírito das

mésalliances, enquanto acompanhamos a aprendiz Eliza Dollitle se deslocar da condição de

mendiga a de uma grande dama da sociedade. Além disso, a questão do linguajar comum é

2

Dirigido por Anthony Asquith e pelo ator Leslie Howard, que também protagoniza o filme. Pygmalion foi inspirado na peça escrita por George Bernard Shaw.

(42)

extremamente explorada no filme. O desafio do professor é fazer com que Eliza fale “corretamente”. O popular aparece, assim, através do linguajar comum de Eliza e seu sotaque que denota sua origem social. Mais tarde, nos anos 60, essa mesma história será transformada num grande musical, dirigida por George Cukor3, mantendo o aspecto carnavalesco que, aqui, é apenas de ordem temática.

Os anos 30 ainda nos apresentaram filmes como Jezebel4, em que a personagem-título desafia a sociedade com seus hábitos pouco convencionais, invertendo os valores de sua época. A seqüência em que ela aparece numa festa com um vestido vermelho tornou-se instantaneamente antológica, e não deixou o black-and-white atrapalhar o efeito pretendido. Jezebel faz referência à personagem bíblica de mesmo nome, e termina por sucumbir aos valores que tão veementemente tenta subverter. Mas antes de sucumbir, ela busca virar o seu mundo de cabeça para baixo, movimento próprio da concepção carnavalesca, algo que se repete no contemporâneo A Época da Inocência5, em que a Condessa Olenska, recém-chegada da Europa, promove uma verdadeira revolução nos costumes da sociedade provinciana dos EUA do séc.XIX.

É preciso salientar que esses filmes não se deixaram influenciar esteticamente pela cosmovisão carnavalesca, mas o desenvolvimento de suas histórias nos permite fazer conexões para pincelarmos o início do século com as cores da carnavalização. Na medida em que avançamos no tempo, essas cores ficarão mais fortes, como é o caso do cinema musical que atingiu seu auge nos anos 30 e 40.

3

Trata-se do filme Minha Bela Dama, de 1964. 4

Dirigido por William Wyler em 1938. 5 Dirigido por Martin Scorsese em 1993.

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Talvez o mais emblemático musical que serve a nossa análise seja Entre a Loura e a

Morena6, filme que conta com a presença de Carmem Miranda, cuja sexualidade era colocada em evidência em suas participações sempre marcantes em Hollywood. Carmem encarnou a latina liberal e ajudou a montar um estereótipo exuberante da mulher latinoamericana, o que pode ser também atribuído a carreiras similares, como a da portoriquenha Rita Moreno. Em todo caso, Carmem tem alguns números musicais no filme em questão, e um deles em particular chama nossa atenção. Trata-se da música The lady in

the tutti-frutti hat, que Carmem canta entre bananas gigantes e jovens latinas que formam

os caleidoscópios humanos tão representativos da obra de Berkeley. A carnavalização evidente se dá pela exuberância, pelo exagero e, como veremos no capítulo seguinte, pela acentuação da questão sexual.

Americanos tell me that my hat is high Because I will not take it off to kiss a guy But if I ever start to take it off, ay ay… I do that once for Johnny Smith And he is very happy with The lady in the tutti-frutti hat7.

O chapéu gigante do título da canção tornou-se uma imagem-símbolo de Carmem em sua passagem pelos EUA. O exagero está nas formas acentuadas e na própria construção do estereótipo para o que Carmem contribuiu. Mas o gênero musical é muito rico e complexo. Podemos perceber variáveis que recolocam cada filme em gêneros mais gerais, podendo um musical oscilar do drama extremo à absoluta comédia. Seja como for,

6

Dirigido por Busby Berkeley em 1943.

(44)

esse é um gênero dado ao exagero e à exuberância tão marcantes em Carmem Miranda. De

Entre a Loura e a Morena até Moulin Rouge8, um universo de filmes pode ser citado, mas via de regra, o exagero é uma marca do gênero.

Nos anos 50, um dos musicais mais aclamados de todos os tempos será todo construído sobre situações baseadas na parodização do próprio cinema. Trata-se de

Cantando na Chuva9, que aborda com muito humor e irreverência a revolução sonora que mudou os rumos do cinema em 1927. A paródia, aqui, não toma apenas um texto, um filme, como objeto original. É a práxis do cinema que recebe um tratamento paródico, numa representação do esforço técnico no ajuste necessário implantado pelo advento do som, o que está na origem do cinema de gênero musical. Cantando na Chuva põe em xeque a própria questão do star system, através da tentativa de manutenção da fictícia estrela do cinema mudo, Lina Lamont, no elenco de um filme que passa, instantaneamente, para a condição de filme falado. Sua voz aguda causa um desconforto na platéia, que reage com um riso histérico à performance da estrela de outrora. Sua salvação será Kathy, uma dubladora, até que Lina seja desmascarada no final. O antagonismo entre as estrelas e, mais uma vez, o exagero característico do cinema musical, nos autorizam a pensar aqui na presença de elementos da carnavalização. No entanto, em todos os exemplos até então citados, essa carnavalização é incipiente e temática. Será preciso esperar os anos 60 para que a carnavalização comece a se dar de maneira mais efetiva na sétima arte.

O Incrível Exército de Brancaleone10 é o primeiro grande filme carnavalizado de nossa análise panorâmica. Trata-se de uma paródia a Dom Quixote, de Cervantes, que serve como trampolim para uma abordagem até então inédita da História. Virada de

8

Dirigido por Baz Luhman em 2001. 9

Dirigido por Gene Kelly e Stanley Donen em 1952. 10 Dirigido por Mário Monicelli em 1965.

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cabeça para baixo, desglamourizada, a História enfocada é a da Baixa Idade Média,

período marcado pela desgraça humana causada pela fome, pela peste negra e pela guerra. Essa trilogia de caráter trágico, no entanto, não impede que o filme promova uma verdadeira reviravolta histórica calcada no espírito carnavalesco do riso. Aqui, a

profanação está presente já no argumento, através do enfoque dos cruzados que tentam

expandir o alcance do cristianismo, mas que para isso vão acumulando gags pelo caminho. Ao contrário dos filmes épicos hollywoodianos, Brancaleone capta a essência da época na simplicidade, na sujeira, na ausência de austeridade, e termina por ser um dos melhores estudos sobre o período medieval, sendo ainda hoje uma referência interessante sobre o assunto.

Um dos mais exemplares filmes em que podemos localizar a carnavalização no cinema é, sem dúvida, A Vida de Brian11, do grupo Monty Python, realizado no final dos anos 70. A partir de situações cômicas, alguns tabus religiosos vão sendo ridicularizados, no sentido carnavalesco da palavra, e as passagens do novo testamento são, uma a uma, profanadas pelo viés da carnavalização. Para começar, os três reis magos entram em uma manjedoura onde uma criança acabara de nascer. Naturalmente, era a manjedoura errada, e Brian, a criança, passará o resto de sua vida tendo que enfrentar a concorrência do outro “cara da Galiléia”. O sermão da montanha também é devidamente profanado, e a câmera se situa afastada da montanha para registrar o conflito entre os ouvintes que, na verdade, nada conseguem ouvir do que está sendo dito. O filme brinca com as imagens dos épicos religiosos, tão comuns na Hollywood de décadas anteriores.

(46)

Os anos 80 têm um dos melhores exemplos da cosmovisão carnavalesca no cinema no filme O Prisioneiro do Rio12. O lendário Ronald Biggs, perseguido no Brasil pelo histórico golpe que aplicara na Inglaterra, e que o fez milionário, refugia-se no “carnaval” carioca, o que não impede que a polícia inglesa mande um detetive para descobrir seu paradeiro. No final apoteótico, após ter cruzado com bandidos e travestis, o detetive inglês se vê no meio do desfile de uma escola de samba na Marquês de Sapucaí, onde se depara com o figurante Biggs. A fotografia, nesse instante, parece demonstrar a erudição do realizador do filme. Isso porque, lentamente, a câmera vira de cabeça para baixo, a tela subverte o mundo real, oficial, assim como faz o carnaval, e num instante de euforia tudo fica invertido, o mundo vira de ponta-cabeça. Majewski parece estar familiarizado com o universo teórico de Bakhtin, promovendo um plano que, de certa forma, traduz a idéia da inversão carnavalesca, numa metáfora visual para explicar o bandido que se encontra no paraíso, através da carnavalizacão bakhtiniana e a inversão que esta promove13.

A inversão aqui se dá também no contexto, já que aquele que ocupa o lugar do bandido, e que, por definição, deveria buscar a sombra, ao contrário, se deixa filmar, feliz, fantasiado, apoteótico14. Um mendigo vestido de rei. Rompe-se no contexto (e no texto) as amarras do mundo oficial, tudo passa a ser permitido num mundo invertido. E não há lugar melhor para essa inversão, espetacularizada, do que a passarela do samba do Rio de Janeiro.

No Brasil, não é raro encontrar o carnaval no cinema. Como centro de excelência do carnaval, o Rio de Janeiro, ao se transformar no principal pólo de produção

12 Dirigido por Lech Majewski para a TV em 1988. 13

A esse respeito, Cf. O Brasil dos Gringos, imagens no cinema, em que Tunico Amâncio faz uma análise plano a plano da seqüência final do filme de Majewski.

Referências

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