A Literatura dos Conquistadores (Literatura Informa4va)
O fim das guerras dentro dos territórios ibéricos -‐ Portugal e Espanha -‐ , a centralização polí?ca em torno de um Estado forte, as inovações da tecnologia marí?ma, o papel economicamente empreendedor de uma burguesia de origem judaica e a espetacular audácia de milhares de homens garantem a portugueses e espanhóis a primazia na grande expansão européia, iniciada no século XV e consolidada no século XVI. Em nenhuma outra época houve movimento expansionista tão abrangente e avassalador. À conquista comercial dos países asiá?cos e africanos soma-‐se a conquista direta do con?nente americano. Está se abrindo um processo civilizatório que durará mais de quinhentos anos, sob domínio ocidental, e que modificará radicalmente a face do mundo.
Trata-‐se de uma façanha épica sem precedentes. Um país como Portugal, que ?nha apenas um milhão de habitantes, estende o seu domínio por vastos territórios. Nada parece deter essas frágeis caravelas e seus marinheiros que enfrentam calmarias, fome, sede, monstros marinhos, gigantes, sereias, e súbitos buracos, localizados nos confins do oceano para tragar as embarcações. Anima tais homens o espírito mercan?lista -‐ desejo de ouro, especiarias e quaisquer outros produtos que gerassem lucro. Por ele, todos os medos serão superados e todas as aventuras se tornarão possíveis. Em Mar português, Fernando Pessoa traduz essa admirável vocação de seu povo para as grandes navegações:
Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador* Tem que passar além da dor.(...)
* Bojador: Cabo na África que foi durante muito tempo o limite geográfico das navegações européias. Em 1434, foi ultrapassado pelo português Gil Eanes.
O encontro com os na,vos
Civilizações díspares povoam as terras "descobertas" por portugueses e espanhóis. No lado hispânico, astecas, maias e incas apresentam surpreendentes níveis de organização social e de conhecimento cienafico e tecnológico. No lado luso, ao contrário, os na?vos vivem na Idade da Pedra e costumam pra?car o canibalismo.
Em regra geral, todos recebem os brancos com hospitalidade e oferendas, sem se dar conta da destruição que os aguarda. Uma destruição que não foi programada, mas que acontecerá tanto pela superioridade bélica dos europeus e as doenças que trazem quanto pela inocência dos indígenas. Entre estes, os que conseguirem escapar das doenças, da escravidão e dos arcabuzes, serão subme?dos a um poderoso processo de deculturação, ou seja, perderão os seus valores culturais e, com isso, a sua iden?dade histórica, deixando de ser "índios" sem alcançar a condição de homens brancos.
A ocidentalização da América será feita, portanto, a ferro e fogo, num processo doloroso para os primi?vos donos do território. Do ponto de vista histórico, este processo era drama?camente inevitável, dada a ânsia imperialista dos países europeus e a incapacidade indígena de autodefesa.
LITERATURA INFORMATIVA
As primeiras manifestações literárias sobre a América estão delimitadas pelo seu caráter informa?vo. Expressam, sem maiores intenções aras?cas, os contatos do europeu com o novo mundo. São documentos a respeito das condições gerais da terra conquistada. Neles se descrevem os problemas, as prováveis riquezas, as lutas de dominação, a paisagem csica e humana, etc. As cartas de Hernán Cortez sobre a conquista do México são o exemplo mais famoso desse ?po de literatura.
A princípio, a visão européia é idílica. Dentro da tradição utópica do Renascimento, a América surge como o paraíso perdido, local de maravilhas e abundâncias. O país de Eldorado seduz a imaginação e os
na?vos aparecem sob ?ntas favoráveis. Porém, na segunda metade do século XVI, à medida que os índios começam a se opor aos desígnios imperiais, iniciando a guerra contra os invasores, a visão rósea transforma-‐se. A natureza con?nua exuberante -‐ na ó?ca colonizadora -‐ mas os habitantes da terra são pintados como seres boçais e animalescos.
A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA
Entre os testemunhos deixados pelos portugueses no século XVI, sobre o Brasil, o mais importante é a Carta do escrivão Pero Vaz de Caminha, companheiro de viagem do almirante Cabral, em 1500. O texto tem um notável valor histórico -‐ por ser o primeiro registro escrito sobre a realidade local -‐ mas vale ainda mais pela agudeza com que Caminha revela a paisagem csica e humana daquilo que ele julga ser uma imensa ilha.
Verdadeiro homem do Renascimento, o escrivão da frota lusa transforma a Carta num monumento de curiosidade antropológica e de abertura intelectual à diversidade. O crí?co Sílvio Castro aponta alguns dos aspectos mais significa?vos do texto:
-‐ A atenção obje?va pelos detalhes.
-‐ A simplicidade no narrar os acontecimentos.
-‐ A disposição humanista de tentar entender os na?vos. -‐ A capacidade constante de maravilhar-‐se.
Vejamos como ele descreve o primeiro contato com os índios:
A feição deles é parda, algo avermelhada; de bons rostos e bons narizes. Em geral são bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto. Ambos traziam o lábio de baixo furado e meBdo nele um osso branco, do comprimento de uma mão travessa* e da grossura de um fuso de algodão. (...)
Os cabelos deles são corredios. E andam tosquiados, de tosquia alta (...) Quando eles vieram a bordo o Capitão (Cabral) estava sentado em uma cadeira, bem vesBdo, com um colar muito grande no pescoço e tendo aos pés, por estrado, um tapete. E eles entraram sem qualquer sinal de cortesia ou de desejo de dirigir-‐se ao Capitão ou a qualquer outra pessoa presente, em especial. Todavia, um deles fixou o olhar no colar do Capitão e começou a acenar para a terra, como querendo dizer que ali havia ouro. (...) Mostraram-‐lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo: pegaram-‐no logo com a mão e acenavam para a terra, como a dizer que ali os havia. Mostraram-‐lhes um carneiro: não fizeram caso dele; uma galinha: quase Bveram medo dela -‐ não lhe queriam tocar, para logo depois pegá-‐la, com grande espanto nos olhos.
Deram-‐lhe de comer: pão e peixe cozido, confeitos, bolos, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada de tudo aquilo. E se provaram alguma coisa, logo a cuspiam com nojo. Trouxeram-‐lhes vinho numa taça, mas apenas haviam provado o sabor, imediatamente demonstraram não gostar e não mais quiseram.
A nudez das índias
A imagem mais desconcertante para os marinheiros lusos é a da nudez das índias. Vindos de um mundo onde o corpo era censurado e reprimido, de acordo com as convicções medievais, eles não escondem o assombro diante do que vêem. Caminha traduz esse sen?mento, mas com seu par?cular espírito renascen?sta, procura ver os corpos femininos desnudos dentro do quadro cultural da sociedade indígena.
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, muito novas e muitos genBs, com cabelos muito pretos e compridos, caídos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não Rnhamos nenhuma vergonha. (...)
E uma daquelas moças era toda Bngida, de baixo a cima, daquela Bntura; e certamente era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha -‐ que ela não Bnha -‐ tão graciosa que, a muitas mulheres de nossa terra, vendo-‐lhes tais feições, provocaria vergonha por não terem as suas como a dela. (...)
Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano para que se cobrisse; e o puseram em volta dela. Todavia, ao sentar-‐se, não
se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior, com respeito ao pudor.
A mistura de danças e música
Um dos momentos mais curiosos da Carta é quando índios misturam suas danças com a música européia de um gaiteiro:
E do outro lado do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-‐no bem. Passou-‐se então, para além do rio, Diogo Dias, que fora tesoureiro da Casa Real em Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. Logo meteu-‐se com eles a dançar, tomando-‐os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e o acompanhavam muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-‐lhe ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e o salto mortal, de que eles se espantavam muito e riam e folgavam.
O ideal salvacionista
A profunda religiosidade portuguesa -‐ que é um dos móveis da conquista -‐ mostra-‐se na possibilidade de conversão dos primi?vos habitantes, admi?da por Caminha e sugerida ao des?natário da Carta, o rei D. Manuel.
E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã do que nos entenderem (...) E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e converBdos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os baBzar; porque então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.
A visão do paraíso
Como diz o crí?co Sílvio Castro "o europeu, através da Carta, toma conhecimento da existência de um novo mundo. Concreto. Imediato. Rico de cores, calor, árvores, frutos, pássaros, cantos, frescura. A terra é ampla, imensa na linha do horizonte. O céu é limpo, os portos, seguros." A imagem é a do paraíso terral, como se percebe no final do texto de Caminha:
Essa terra, Senhor, parece-‐me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até a outra ponta que contra o norte vem, que nós deste ponto temos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Tem, ao longo do mar, em algumas partes, grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra por cima é toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é tudo praia redonda, muito chã e muito formosa.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender os olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos -‐ terra que nos parecia muito extensa.
Até agora não podemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem o vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares, frescos e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como de lá.
As águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-‐a aproveitar, dar-‐se-‐á nela tudo; por causa das águas que tem!
Porém, o melhor fruto que dela se pode Brar parece-‐me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar.
RELATOS DE OUTROS VIAJANTES
Durante todo o século XVI, o Brasil desperta grande fascínio entre os europeus. Além dos colonos portugueses e dos invasores franceses, outros europeus visitam a terra recém conquistada. Move-‐os a cobiça, o desejo de aventuras, a curiosidade sexual ou o ideário religioso. Alguns entre eles resolvem registrar suas andanças pelos trópicos e esses relatos obtêm êxito na Europa, onde alimentam a imaginação de leitores excitados pelos descobrimentos.
Dois desses viajantes escrevem textos defini?vos sobre a vida co?diana e os costumes dos tupinambás que dominavam uma expressiva faixa litorânea do Brasil: o alemão Hans Staden e o francês Jean de Léry.
DUAS VIAGENS AO BRASIL
Sob este nome, Hans Staden publica na Alemanha, em 1557, um livro no qual descreve as suas aventuras em território brasileiro, especialmente os nove meses e meio em que esteve prisioneiro dos na?vos. Em busca de aventuras (e dinheiro, provavelmente) o autor vai de Bremen para Lisboa e daí parte para o Brasil como ar?lheiro de uma nau portuguesa. A chegada dá-‐se em Pernambuco e logo está me?do em batalhas contra índios inimigos. Esta primeira viagem encerra-‐se em seguida porque a caravela retorna à Europa.
A segunda viagem é a mais emocionante: Hans Staden par?cipa de uma expedição que alcança a ilha de Santa Catarina, permanecendo no local por cerca de dois anos. Dirige-‐se então -‐ sempre pelo mar e com outros marinheiros portugueses -‐ a São Vicente, no litoral paulista. Ali, numa caçada, será feito prisioneiro pelos tupinambás. Levado à aldeia indígena, é obrigado a gritar para as mulheres, em língua tupi: "Estou chegando, eu, a vossa comida".
A antropofagia
Enquanto homens, mulheres e crianças fazem sinais para indicar a forma que o devorariam, o aventureiro alemão imagina como poderia fugir de seu des?no. Ao mesmo tempo, observa com enorme curiosidade os costumes dos índios. Nos dias e meses seguintes alternará a observação me?culosa com tenta?vas de escapar do ritual antropofágico, ao qual está condenado. Sabedor, por fim, de que havia um navio francês nas imediações, ele convence o chefe -‐ a quem fora presenteado -‐ a levá-‐lo até lá. Usando de muita persuasão, astúcia e presentes, Staden livra-‐se de seus captores e acaba sendo resgatado pelos franceses.
A antropofagia é o mo?vo principal de seu livro, talvez até pelo interesse que o assunto despertava na Europa. Porém, tanto no texto principal quanto num relatório que acrescenta como arremate das Viagens, ele apresenta vivas descrições dos costumes indígenas: onde e como moram, como acendem o fogo, a maneira que cozinham e o que comem, seus utensílios, sua destreza no manejo do arco e flecha e de outros instrumentos, como preparam a bebida e com ela se embriagam, no que acreditam, suas formas de guerrear, etc.
Além disso, mostra aos leitores europeus os animais da terra, as árvores, a vegetação, pintando um quadro intenso e colorido da realidade brasileira de então, transformando o seu livro num notável êxito editorial do século XVI.
Vejamos como ele descreve a execução e a devoração de um inimigo pelos tupinambás:
Quando trazem para casa um inimigo, batem-‐lhe as mulheres e as crianças primeiro. A seguir colam-‐lhe ao corpo penas cinzentas, raspam-‐lhe as sobrancelhas, dançam em seu redor e amarram-‐no bem. Dão-‐lhe então uma mulher para servi-‐lo. Se tem dele um filho, criam-‐no até grande e o matam e o comem quando lhes vem à cabeça.
Dão de comer bem ao prisioneiro. Conservam-‐no por algum tempo e então se preparam. (...) Assim que está tudo preparado, determinam o tempo em que ele deve morrer e convidam os selvagens de outras aldeias para que venham assisBr. Enchem de bebidas todas as vasilhas. Logo que estão reunidos todos os que vieram de fora, o chefe da choça diz: "Vinde agora e ajudai a comer o vosso inimigo". (...)
Quando principiam a beber, levam consigo o prisioneiro que bebe com eles. Acabada a bebida, descansam no outro dia e fazem para o inimigo uma pequena cabana no local em que deve morrer. Aí passa a noite, sendo bem vigiado. (...)
O guerreiro que vai matar o prisioneiro diz para o mesmo: "Sim aqui estou eu, quero te matar, pois tua gente também matou e comeu muitos dos meus amigos". Responde-‐lhe o prisioneiro: "Quando esBver morto, terei ainda muitos amigos que saberão me vingar". Depois, ele é golpeado na nuca, de modo que lhe saltem os miolos, e de imediato as mulheres arrastam o morto para o fogo, raspam-‐lhe toda a pele, tornando-‐o totalmente branco e tapando-‐lhe o ânus com uma madeira, a fim de que nada dele se escape. Depois de esfolado, um homem o pega e lhe corta as pernas acima dos joelhos e os braços junto ao corpo. Vêm então quatro mulheres que apanham quatro pedaços, correndo com eles em torno das cabanas, fazendo grande alarido, em sinal de alegria. (Costume indígena já referido em outra página por Staden) Separam após as costas, junto com as nádegas, da parte dianteira. Repartem isso entre eles. As vísceras são dadas às mulheres. Fervem-‐nas e com o caldo fazem uma papa rala que se chama mingau que elas e as crianças sorvem. Comem também a carne da cabeça. As crianças comem os miolos, a língua e tudo o que podem aproveitar.
VIAGEM À TERRA DO BRASIL
Igualmente centrado no co?diano da vida indígena, o livro do calvinista francês Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil, revela uma percepção histórica mais apurada dos costumes na?vos pelo fato do autor ser um homem culto, de formação humanista e, portanto, aberto às diferenças entre as civilizações. Léry permanece no país durante um ano(1557), como enviado do líder religioso Calvino, para servir a Villegagnon, fundador de uma colônia francesa na futura cidade do Rio de Janeiro. Ali tem a oportunidade de conviver (em liberdade) com os tupinambás, fazendo uma série de anotações interessanassimas a respeito de sua existência.
Movido por um espírito universalista, encara com simpa?a os índios, rela?vizando moralmente certos hábitos que na Europa passavam por bárbaros. Essa compreensão revela-‐se, por exemplo, na análise da nudez feminina:
Quero responder aos que dizem que a convivência com esses selvagens nus, principalmente entre as mulheres, incita à lascívia e à luxúria. Direi que (...) a nudez grosseira das mulheres é muito menos atraente do que comumente imaginam. Os atavios, cabelos encrespados, golas de rendas, anquinhas, sobre-‐saias e outras bagatelas que as mulheres de cá (européias) se enfeitam e de que jamais se fartam, são causas de males incomparavelmente maiores do que a nudez habitual das índias.
Além de detalhar um significa?vo conjunto de costumes religiosos, medicinais, sociais (casamentos, funerais, educação dos filhos, etc.) e de mostrar certas prá?cas desconhecidas na época, entre os quais a preparação e o uso do cauim e do fumo, o viajante francês descreve com minúcias o ímpeto guerreiro dos homens tropicais, vendo as batalhas entre as tribos de forma quase poé?ca.
O canibalismo dos tupinambás
Obviamente também a antropofagia é um dos temas predominantes da obra, sendo mostrada com uma riqueza de detalhes em muito superior à obra de Hans Staden. Observe-‐se esta cena, ocorrida logo após a morte do prisioneiro:
Em seguida, as mulheres, sobretudo as velhas, que são mais gulosas de carne humana e anseiam pela morte dos prisioneiros, chegam com água fervendo, esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-‐lhe a epiderme; e o tornam tão branco como na mão dos cozinheiros os leitões que vão para o forno. Logo depois o dono da víBma e alguns ajudantes abrem o corpo e o esquartejam com tal rapidez que não faria melhor um açougueiro ao esquartejar um carneiro.
E então -‐ incrível crueldade -‐ assim como os nossos caçadores jogam a carniça aos cães para torná-‐ los mais ferozes, esses selvagens pegam os filhos, uns após outros, e lhes esfregam o corpo, os braços e as pernas com o sangue inimigo a fim de torná-‐los mais valentes.
Em seguida, todas as partes do corpo, inclusive as tripas depois de bem lavadas, são colocadas no moquém, (ver ilustração), em torno do qual as mulheres, principalmente as velhas gulosas, se reúnem para recolher a gordura que escorre pelas varas dessas grandes e altas grelhas de madeira. Em seguida exortam os homens a procederem de modo que elas tenham sempre tais peBscos e lambem os dedos e dizem iguatu, o que quer dizer "está muito bom!"
Tais exemplos de crueldade dos índios para com seus inimigos são, contudo, abrandados pelo rela?vismo moral que Léry estabelece:
É úBl, entretanto, que ao ler sobre semelhantes barbaridades, os leitores não se esqueçam do que se praBca entre nós. Em boa e sã consciência acho que excedem em crueldade aos selvagens os nossos usurários (agiotas) que, sugando o sangue e o tutano, comem vivos órfãos, viúvas e outras criaturas miseráveis, que prefeririam sem dúvida morrer de uma vez a definhar assim lentamente.
A visão abrangente e humanista do viajante francês leva-‐o não apenas compreender o na?vo, mas também a apreciar a terra brasileira como um paraíso terreal:
Por isso, quando a imagem desse novo mundo, que Deus me permiBu ver, se apresenta a meus olhos, quando revejo assim a bondade do ar, a abundância de animais, a variedade de aves, a formosura das árvores e das plantas, a excelência das frutas e, em geral, as riquezas que embelezam essa terra do
Brasil, logo me acode a exclamação do profeta no salmo 104: "Senhor Deus, como tuas diversas obras são maravilhosas em todo o universo! ..."
OUTROS VIAJANTES
Ainda dentro de uma linha de exaltação da terra, ao lado de registros realistas dos primeiros esforços de colonização, encontramos a História da Província de Santa Cruz, de Pero de Magalhães Gadavo (1576), Tratado descri?vo do Brasil, de Gabriel Soares de Souza e Tratados da terra e gente do Brasil, de Fernão Cardim.